HUM05021 - ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS Turma: C
Professor: Ricardo Shiel Aluna: Giulia Oliveira
Fichamento TEXTO: Sociedade contra o Estado - cap. Copérnico e os selvagens - Pierre Clastres
Com o capítulo “Copérnico e os selvagens” de Pierre Clastres pudemos adentrar em
um meio em que a antropologia e a etnologia tardaram em estudar: o espaço político nas sociedades arcaicas, como estas sociedades se relacionam com o poder, quais as suas origens e formas de se manifestar. No entanto, como ressalta o autor, os estudos em antropologia política foram se tornando mais numerosos, e neste sentido o trabalho de Jean-William Lapierre se torna uma importante fonte de informações e reflexões para Clastres desenvolver seus próprios questionamentos acerca da natureza do poder e das concepções vigentes sobre tal assunto. Na obra intitulada “Ensaio sobre o fundamento do poder político” Lapierre organiza uma grande variedade de sociedades arcaicas a partir de uma tipologia que classifica estas sociedades de acordo com a “quantidade” de poder político encontrado. A partir dai Clastres começa uma série de questionamentos que se chocam com os os tradicionalismos da pesquisa antropológica e histórica. Para se classificar, é preciso definir os termos da classificação, e o poder é tradicionalmente (ou “ocidentalmente”) definido como uma relação de coerção, de comando-obediência, de subordinação e uso da violência para se realizar e se manter. No entanto, Clastres nos traz os exemplos dos indígenas da América, onde é encontrado um cacique, um líder que é reconhecido como tal e “onde o político se determina como campo fora de toda coerção e de toda violência, fora de toda subordinação hierárquica, onde, em um palavra, não se dá uma relação de comando-obediência” (Pg:27). Sendo assim, estas sociedades chamadas de arcaicas, não teriam poder? Ou apenas o entendem e se relacionam com ele de maneira distinta? Segundo a tipologia de Lapierre, a maioria dos indígenas americanos estaria lá embaixo na classificação, seriam classificados como sem-poder ou pré-políticos. Mas para que serve uma tipologia assim? Para indicar um caminho evolutivo das sociedades arcaicas até a sociedade moderna, onde o “verdadeiro poder” acontece? Claustres pretende questionar justamente estes conceitos e preceitos clássicos e tradicionais, que acabam por definir as demais sociedades a partir de suas próprias experiências e noções, o chamado etnocentrismo. Neste sentido, Claustres começa por problematizar os critérios de definição vigentes para se classificar uma sociedade como “arcaica”, que seriam a ausência de escrita e economia de subsistência. Mas novamente o autor chama a atenção para a construção desses critérios, que “provém do campo ideológico do Ocidente moderno, e de forma alguma do arsenal conceitual de uma ciência.” (pg: 30). Tudo isto ajuda a construir uma imagem distorcida e preconceituosa a respeito destas sociedades, pois “[...] trata-se simplesmente de enfatizar a vaidade “científica” do conceito de economia de subsistência que traduz muito mais as atitudes e hábitos dos observadores ocidentais diante das sociedades primitivas que a realidade econômica sobre a qual repousam essas culturas.” (pg: 30). Toda a construção deste discurso, com estes termos e linguagem também está conectado à construção do conceito de poder político, baseado sempre na ideia que o ocidente construiu de poder. O etnocentrismo, portanto, se torna um obstáculo real para a pesquisa antropológica, onde no contato com a diferença “quer compreendê-las como diferenças determinadas a partir do que é mais familiar, o poder tal como ele é experimentado e pensado na cultura ocidental.” (Pg: 33) Somado a este cenário temos o evolucionismo, que apenas reforça a ideia ocidental sobre tudo e todos, marcando as sociedades como um projeto embrionário de sociedade e indicando a sociedade moderna como o caminho a ser seguido para o progresso e desenvolvimento. Como então se poderia praticar a pesquisa antropológica ultrapassando todos estes obstáculos? Clastres propõem uma mudança de perspectiva no olhar e estudos das sociedades arcaicas. Isto inclui reavaliar as categorias e conceitos utilizados até então para classificar as outras sociedades, ou seja, ao estudar o poder em determinada sociedade, buscar fazê-lo não buscando traços que se identifiquem com o poder que encontramos na sociedade ocidental, mas sim compreendendo sua maneira própria de acontecer nas outras sociedades: “A condição será nesse caso, a decisão de levar enfim a sério o homem das sociedades primitivas, sob todos os seus aspectos e em todas as suas dimensões; inclusive sobre o ângulo do político, mesmo e sobretudo se este se realiza nas sociedades arcaicas como negação do que ele é no mundo ocidental.” (pg: 35) Neste sentido, Clastres identifica o poder político como produto inerente da experiência social, uma experiência universal, podendo se expressar de formas variadas, de maneira coercitiva ou não. Portanto a essência do poder político não está na coerção, pois mesmo nas sociedades arcaicas consideradas como “sem-poder” ou “a-políticas” existe outro tipo de poder político regulando as relações sociais, com outro tipo de essência. No capítulo seguinte “Troca e poder: filosofia da chefia indígena” Clastres apresenta então as características do poder político naquelas sociedades que tradicionalmente não consideradas sem-poder, ou seja, onde o poder se expressa de forma não coercitiva. Sendo assim, o autor nos traz as análises de Robert Lowie sobre as características essenciais do líder índio no continente americano, que seriam: a qualidade de ser um “fazedor da paz”, moderando os conflitos, um “apaziguador profissional”; generosidade; e ser um bom orador. Somado a isto, Clastres identifica mais uma característica para as sociedades sul- americanas (excluindo-se a área andina), que seria a poligamia, reservada na maioria das vezes como privilégio do chefe. A partir das qualidades ligadas ao chefe indígena também chegamos ao reconhecimento dos “mesmo elementos cuja troca e circulação constituem a sociedade como tal, e sancionam a passagem da natureza para a cultura” (pg: 53). São eles: a troca de bens, a troca de mulheres e a troca de palavras que também acabam por constituir a esfera política dessas sociedades e que regulam a autoridade e poder político do chefe. Sendo assim, entende-se que a própria cultura delimita o poder, que é entendido como coerção, mas que é regulado pela reciprocidade (fundamento da cultura). Para Clastres estas sociedades: “pressentiram muito cedo que a transcendência do poder encerra para o grupo um risco mortal, que o princípio de uma autoridade exterior e criadora de sua própria legalidade é uma contestação da própria cultura; foi a intuição dessa ameaça que determinou a profundidade de sua filosofia política. Pois descobrindo o grande parentesco entre o poder e a natureza, como dupla limitação do universo da cultura, as sociedades indígenas souberam inventar um meio de neutralizar a virulência da autoridade política” (pg: 61). O poder então é regulado pela cultura da troca. Ao mesmo tempo que o chefe desfruta desta posição e recebe o privilégio da poligamia e da palavra (de falar a todos e em nome de todos, e que também é um dever dele), para não ser abandonado e substituído, ele precisa garantir o seu reconhecimento e apoio mediante a troca de bens e de palavras com o grupo. Isso revela então a relação de dependência do chefe em relação ao grupo e a do grupo em relação ao chefe. No capítulo seguinte, intitulado “O dever da palavra” Pierre Clastres disserta sobre o privilégio do chefe de falar para o grupo e pelo grupo. Este é um privilégio e também um dever do líder, que ao ter o monopólio das palavras do grupo também revela e exerce poder ao possuí-lo. Clastres diferencia então: “se nas sociedades de Estado a palavra é o direito do poder, nas sociedades sem Estado ela é, diversamente o dever do poder. [...] Falar é para o chefe uma obrigação imperativa, a tribo quer ouvi-lo: um chefe silencioso não é mais um chefe. [...] Aí se manifesta o verdadeiro espaço ocupado pelo poder, espaço que não é o que se poderia crer. E é a natureza desse discurso, sobre cuja repetição a tribo vela escrupulosamente, a natureza dessa palavra-líder, que nos indica o lugar real do poder.” (pg: 170-171). No entanto Clastres identifica um paradoxo neste poder da palavra do chefe: suas palavras, seus discursos pelas manhãs e aos crepúsculos apesar de serem algo esperado pelo grupo, de maneira ritualizada, são escutados de maneira desinteressada, as pessoas apesar de esperarem pelas palavras do líder, o fazem seguindo os seus afazeres diários. A importância do discurso do líder está mesmo em suas palavras “vazias”, descaracterizando assim a autoridade e o poder que poderiam potencialmente carregar suas palavras. Sendo assim, “Na sociedade primitiva, na sociedade sem Estado, não é do lado do chefe que se encontra o poder: daí resulta que sua palavra [a do chefe] não pode ser palavra de poder, de autoridade, de comando.” (pg:172) Ou seja, ao mesmo tempo que é concebido ao chefe o direito e o dever da fala, estes são regulados pela sociedade. Como conclusão Clastres revela então que: “A sociedade primitiva sabe, por natureza, que a violência é a essência do poder. Nesse saber se enraíza a preocupação de manter constantemente afastado um do outro o poder e a instituição, o comando do chefe. [...] Forçando o chefe a mover-se somente no elemento da palavra, isto é, no extremo oposto da violência, a tribo assegura de que todas as coisas permanecem em seu lugar, de que o eixo do poder recai sobre o corpo exclusivo da sociedade e que nenhum deslocamento de forças virá conturbar a ordem social. O dever da palavra do chefe, esse fluxo constante de palavra vazia que ele deve à tribo, é a sua dívida infinita, a garantia que proíbe que o homem de palavra se torne homem de poder.” (pg: 172)