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Entenda o beiradão, música

que vendeu mais que


Roberto Carlos na Amazônia
Teixeira de Manaus, Chico Cajú e Oseas
são ícones dessa música, expressão das
festas do interior do estado, em beiras de
rio
21.set.2020 às 18h20

"Auê-Ra-Uê! Danço com você!", dizem vozes entre solos


de saxofone e uma base com guitarra e percussão, numa
levada que lembra a lambada. Esse som, no meio do
caminho entre e o instrumental e o cantado, é a marca
registrada de Teixeira de Manaus, nome mais famoso
dessa música dançante que se desenvolveu nos
chamados “beiradões”, como são conhecidas as festas
em comunidades espalhadas pelo Amazonas, nas regiões
de beira de rio.

A última canção do disco "Solista de Sax", de Teixeira,


carregava o título de "Beiradão". Mas na virada dos anos
1970 para os 1980, quando Teixeira foi até São Bernardo
do Campo para gravar nos estúdios da Copacabana –a
convite do Rei do Carimbó, o paraense Pinduca–, esse
termo não era usado como sinônimo de uma música
específica.
Essa ideia foi amadurecendo ao longo da última década, e
hoje "beiradão" extrapola seu significado tradicional.
Pode ser usado para falar das festas à margens dos rios e
de sua música, mas também é título de portal no YouTube
e está nos nomes de bandas e cantores do Amazonas,
que se apropriam da alcunha dessa expressão cultural do
interior.

Uma reportagem publicada neste jornal em 2012 relatava


o último show de Teixeira, no Teatro Amazonas. O
saxofonista era apresentado como o criador do
“beiradão”, um “estilo de música instrumental da
Amazônia, que mistura jazz, forró e ritmos caribenhos
com pequenos refrões”.

Mais do que a sonoridade do interior do Amazonas pautar


a imprensa paulista, o que chamava a atenção na
reportagem de 2012 era o tratamento dessa cultura como
um gênero musical.

“Essa reportagem cita o ‘beiradão’ como um estilo


musical”, diz o pesquisador Igor Marques, que jogou luz
sobre essa música amazônica em artigo no recém-
lançado portal Embrazado, dedicado à cobertura da
música periférica brasileira (ele prepara uma segunda
parte dessa reportagem, a ser publicada nos próximos
dias).

“Havia essa ideia de resgatar uma 'raiz musical'


amazonense, e veio a Copa do Mundo de 2014. Manaus
foi sede, e o pessoal queria alguma coisa para vender
para os turistas. Aí começa a se falar de um estilo musical
do beiradão, nesse contexto.”

Essa é a época em que surge a Orquestra de Beiradão do


Amazonas, a OBA, criada em 2013 a fim de adaptar a
sonoridade do beiradão à linguagem jazzística das big
bands. Mas, enquanto essa música ganhava um maior
reconhecimento em Manaus, nos círculos de música
erudita, a cultura dos beiradões continuava a todo vapor
no interior.

Segundo o etnomusicólogo Rafael Branquinho Abdala


Norberto, a música de beiradão é anterior e muito mais
ampla do que aquilo que chegou a ser gravado. Ele
escreveu em 2016 uma importante dissertação de
mestrado sobre o tema.

“Em 2009, se você colocasse Chico Cajú ou Teixeira de


Manaus no YouTube, havia pouquíssimo material. Hoje,
tem um monte”, ele afirma. Quando começou a estudar os
beiradões, Rafael percebeu que muitos daqueles músicos
haviam caído numa espécie de esquecimento fora do
calendário de festas no interior.

“Estavam às margens não só da música que estava no


mainstream, mas do poder público em geral. Não tinham
reconhecimento da própria população. Teixeira de
Manaus era dado como morto por muita gente.”

Em viagens pelo interior do Amazonas, o pesquisador


buscou as origens dos beiradões. Lembrado na literatura
nos anos 1950, o termo passou a se referir à música pela
influência do rádio. Locutores anunciavam as festas nas
comunidades chamando os locais de beiradões.

“Toda beirada de rio pode ser beiradão, então imagine, o


Amazonas é o maior estado do país, com muita beira de
rio ocupada. Então, deve ter uma diversidade de gêneros
e instrumentos –e de como eles são tocados– que é muito
grande”, afirma o pesquisador Igor Marques.

Influenciada tanto pelo balanço dos barcos –principal via


de transporte do estado– quanto pelos sons que
chegavam pelo rádio, a música tocada nos beiradões foi
ganhando o que pesquisadores e músicos chamam de
“sotaque musical”. Ou seja, os instrumentistas da região
passaram a tocar lambadas, forrós, cumbias, merengues,
sambas, valsas e boleros de uma maneira própria.

Na websérie documental "A Poética dos Beiradões", o


músico Eliberto Barroncas mostra as diferenças de se
tocar pandeiro nos beiradões e no samba carioca, a partir
de uma música do saxofonista Chico Cajú. Toda a
identidade rítmica da música de beiradão está relacionada
à dança –é uma música feita essencialmente para animar
as danças, e não, a príncípio, ser gravada.

Até o fim dos anos 1970, as formações dos grupos de


beiradão eram as chamadas “lacapacas”, baseadas nos
instrumentos acústicos –entre eles violino ou rabeca,
sanfonas, pandeiro e outros tambores, sax e trombones, e
banjos. Na década seguinte, instrumentos eletrônicos
passaram a ganhar espaço, e o sax –que geralmente
chegava aos músicos pelas bandas militares– se tornou a
marca registrada da sonoridade dessas festas.

“Antes de Teixeira, não se tinha esse ‘sotaque’ gravado”,


diz Igor Marques. “Existia uma forma de tocar que era do
interior, mas a gente não teve acesso”.

O primeiro disco Teixeira saiu em 1981, abrindo espaço


para toda uma geração de amazonenses que tocavam nos
beiradões e conseguiram gravar suas músicas nos anos
1980 e 1990. A música de beiradão, então restrita às
comunidades amazonenses, gerou uma série de músicos
virtuosos e criativos, especialmente no sax e na guitarra.
Teixeira, dizem, vendeu mais discos que Roberto Carlos
no Amazonas e influenciou gente como Carlinhos Brown.

É dessa geração a produção fonográfica mais conhecida


da música de beiradão. São os álbuns de saxofonistas
como Agnaldo do Amazonas, Souza Caxias, Toinho e
Seus Animais e Chico Cajú e guitarristas como Oseas e
sua Guitarra Maravilhosa, Magalhães da Guitarra e André
Amazonas. Hoje, é possível ouvir grande parte desses
discos no YouTube.

O jeito mais acelerado de tocar lambadas no sax, e as


frases curtas que tornavam aquelas canções um híbrido
entre o instrumental e música cantada, foram marcas em
comum dessa produção. Já os guitarristas, entre outras
virtudes, levavam intervalos harmônicos comuns no sax
para o instrumento de cordas –um jeito inovador de
abordar a guitarra.

“Quando a gente fala de lambada, de guitarrada, é muito


comum associarmos ao Pará –e com méritos. É de lá que
vêm Mestre Vieira, pioneiro nisso, Aldo Sena, entre
outros”, diz Marques. “Mas o Pará não é o único nessa
história. É importante lembrar desses guitarristas do
Amazonas, que também fizeram sucesso nacional e
gravaram discos que fazem parte desse mesmo estilo,
que é a guitarrada, só que com formas únicas de tocar.”

Esses músicos, muitos que continuam tocando nesse


“circuito” de beiradões, venderam centenas de milhares
de discos, muitos com sucesso para além do Amazonas.
Em meio à onda de produções inspiradas pelos beiradões
na capital na última década, como a OBA, o músico Hadail
Mesquita criou em 2017 no YouTube o Portal do Beiradão.
Uma de suas influências, ele diz, foi a pesquisa de Rafael
Branquinho Abdala Norberto.

“Eu sou do beiradão”, diz Hadail, do Lago do Limão, uma


vila no município de Iranduba, a 30 quilômetros de
Manaus. “Minha casa era de frente para o rio, lá tinha um
flutuante no qual meu tio tocava sax. Aqueles sopros
ficaram na cabeça."

"Ouvia muito Teixeira de Manaus, Chico Cajú. E tinha os


discos em casa. Mas aquilo não era chamado de beiradão.
Esses músicos dos anos 1980 não chamavam de
beiradão. Com o passar do tempo, a partir ali de 2018,
essa geração atual é que assumiu o beiradão como
gênero –como música e identidade cultural do
Amazonas.”

Hadail faz parte desta geração que reivindica o beiradão


enquanto expressão musical do interior, mas com uma
música bastante ligada ao forró eletrônico nordestino. Ele
diz que ainda há preconceito com o estilo na capital, por
se tratar de um ritmo “de periferia e do interior”, mas diz
que hoje a palavra beiradão já é usada até como verbo em
canções.

O teclado, marcante nessas produções contemporâneas


que levam o nome de beiradão, já está incorporado em
shows de veteranos –Chico Cajú, por exemplo, não toca
seu sax mais com bandas numerosas, e é acompanhado
também por teclados. São resultados das transformações
geracionais no público que frequenta os beiradões.

Mas talvez o trabalho mais importante de Hadail seja a


promoção de novos talentos e o resgate da memória da
cena do beiradão. Em seu portal, ele realiza entrevistas,
faz programas nos moldes da TV, disponibiliza gravações
recentes de nomes consagrados e músicas antigas de
difícil acesso. “O fenômeno é que as pessoas estão
gravando, produzindo. Está crescendo muito nas redes
sociais.”
Os beiradões são uma expressão cultural multifacetada,
que envolve as danças, os encontros nas festas às
margens dos rios e décadas de tradição mantidas e
preservadas ainda hoje. Enquanto música, ainda não há
um consenso sobre tratar o beiradão como um gênero.

Segundo Branquinho Abdala Norberto, o pesquisador,


esse tipo de discussão é lateral. “Você vai ter desde as
sociabilidades dos beiradões até a música que chega a
uma pessoa em São Paulo. Mas, quando você escuta um
disco, você não escuta o barulho do rio, os fogos quando
está chegando à comunidade. Você não consegue ter
essa dimensão. Por isso digo que, tudo bem, pode até ser
um gênero –mas é muito mais do que isso.”

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