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DA CRUZ, Gabriel. Corpo e terra: facetas do poder na organização territorial brasileira.

Aula
05: Poder. PRJ827: Produção contemporânea do espaço urbano.

Three major events have, in the course of the last quarter of the twentieth
century, profoundly affected the material conditions of the production of
life in Africa. These events are as follows: (1) the increasing rigor of
monetary constraint, and its effects in revivifying long-distance imaginaries;
(2) the simultaneity of democratization and of the deregulation of the
economy and the structures of the state; and (3) the dispersion of state
power and the fragmentation of society. (Mbembe, 2005, p.)

Um dos poderes principais do Estado: o de produzir e impor as categorias


de pensamentos que utilizamos espontaneamente a todas as coisas do
mundo, e ao próprio Estado. (Bourdieu, 2011, p. 91)

É no domínio da produção simbólica que particularmente se faz sentir a


influência do Estado: as administrações públicas e seus representantes são
grandes produtores de “problemas sociais” que a ciência socias apenas
ratifica, retomando-os por sua conta como problemas sociológicos.
(Bourdieu, 2011, p. 95)

Nitegeka, Serge Alain. Ode to Black II, 2017.

As ideias aqui articuladas buscam explorar algumas das propriedades da terra que se mostram
pertinentes para problematizar sua incorporação na construção da lógica da inclusão
socioespacial precária1 nas cidades brasileiras. Nosso ponto de partida situa-se num
deslocamento da proposta de Mbembe (2005) sobre as condições materiais de produção da vida
na África no último quarto do século XX: busca-se pensar, em caráter de esboço, a pertinência da
dispersão do poder estatal e da fragmentação da sociedade na constituição dos limites fundiários
da sociedade colonial brasileira. Nesse sentido, acreditamos, pode-se desenhar as bases de uma

1O termo inclusão precária é uma proposição de José de Souza Martins (1997) e permite entender a participação que
as populações socialmente vulneráveis têm nos circuitos de produção e reprodução capitalista contemporânea. Trata-
se de uma contramedida ao termo exclusão na medida em que esses grupos, ainda que de forma perversa, são
incluídos nas dinâmicas econômicas, políticas e territoriais da urbanização.
plataforma política sobre a qual desenvolvem-se os modelos de organização territorial mais
complexos, tais quais as metrópoles e grandes cidades do Brasil. Assinalamos que, longe da
proposição de um modelo científico, esta resenha busca tensionar as categoriais analíticas pela
qual trata-se cientificamente a questão da terra e da propriedade nos estudos urbanos. Os
objetivos de uma rearticulação conceitual como a que se segue nestas páginas encontra amparo
na proposição sociológica de Bourdieu:

O trabalho, difícil e talvez interminável, necessário para romper com as pré-


noções e os pressupostos, isto é, com todas as teses jamais colocadas como
tais, já que estão inscritas nas evidências da experiência comum com todo
o substrato de impensável subentendido no pensamento mais vigilante, é
frequentemente mal compreendido, e não apenas por aqueles chocados
em seu conservadorismo por esse trabalho. (Bourdieu, 2011, p. 92-93).

Nesse sentido, as propriedades que destacamos aqui como pertencentes à terra são: I)
a faceta de mercadoria; II) a capacidade de ser apropriada em lógicas de separabilidade;
e III) uma faceta jurídico-normativa, que historicamente lhe conferiu a condição de
propriedade. Essas propriedades, sugerimos, possuem como qualidade essencial sua
força. Possuem uma inércia, uma capacidade de se preservarem no curso da história e
de redesenharam a forma pela qual são inteligíveis aos grupos e agentes sociais2. Em
outras palavras, essas facetas operam de forma articulada, movimentando-se dentro de
uma margem de deslocamento e reposicionamento interna, obedecendo a estratégias
que são conformadas por uma urgência histórica. Após constituída e estabilizada, essa
teia de relações permanece disponível para ser operacionalizada em diferentes
circunstâncias de sociabilização. Na medida em que as formas sociais seguem seu curso
histórico, essas propriedades adquirem novas formas, são atualizadas conforme as
relações de dominação específicas de cada período e contexto socioespacial. A seguir,
buscamos explorar, ainda de forma inicial, as três vertentes aqui destacadas.

Faceta 01: A erótica da mercadoria e o jogo das terras


Mbembe (2018) acrescenta à imagem que Fanon produziu acerca da colonização duas
novas características. Uma primeira trata-se da violência da ignorância, condição de
assimilação da razão colonial acerca das populações colonas: no terreno da colônia é
mais eficaz a lógica da guerra como baliza que guie à dominação e à vitória em
detrimento do conhecimento e da confecção de saberes. Uma segunda, importante para
nosso trato, é a proposta de que a colonização é uma prodigiosa máquina produtora de
desejos e fantasias (Mbembe, 2018, p. 203). Para Mbembe, essa máquina atua na
produção e circulação de bens materiais e recursos simbólicos cobiçados pela sociedade
colonial. Sua capacidade de operar socialmente consiste na elaboração de diferenciação
entre os corpos que habitam o terreno colonial. As ferramentas de administração desses
bens em circulação são, também, aparatos de manutenção do poder e da gestão da
perversidade colonizadora. Operam, por sua vez, racionando as prebendas e
gratificações, produzindo novas formas espetaculares as quais o colonizado, estupefato,
dificilmente esquece (Mbembe, 2018 p. 203). Concluindo seu raciocínio, Mbembe
afirma:

2 Conforme Santos (2020) ao refinar o trato sobre o conceito de elemento, “Os elementos disporiam então de uma
inércia, pela qual podem permanecer nos seus próprios lugares, enquanto, ao mesmo tempo, existem forças que
buscam desloca-los ou penetrar neles” (p. 16).
O potentado tenta, assim, levar o nativo, se não a renunciar às coisas e aos
desejos a que se sente apegado, então ao menos a complementá-los com
novos ídolos, a lei de novas mercadorias, o preço de novos valores, uma
nova ordem de verdade. (Mbembe, 2018, p. 204).

O diálogo entre o aparato colonial e o colonizado, portanto, se dá através de uma


relação libidinal. Aqui, Mbembe desenha dois principais pilares - a regulação das
necessidades e a regulação dos fluxos do desejo. A mercadoria encontra-se entre os dois
pilares em posição privilegiada – posição essa que possibilita um uso simbólico
(distintivo), psíquico (desejo) e instrumental (necessidade). Valendo-se do esforço de
Mbembe, nossa proposição é a de direcionar suas reflexões à terra como mercadoria,
forma que surge após a confecção do Direito de Propriedade pela Constituição de 1824
e amplia-se com a Lei de Terras de 1850. A esse respeito, Maricato (2000), aponta como
a elite política brasileira dividia-se em torno da elaboração da nova lei de terras e da
abolição da escravidão no país. De um lado, o projeto liderado por José Bonifácio, que
buscava implantar uma colonização branca associada à pequena propriedade privada e,
de outro, a demarcação de terras devolutas e formalização de grandes latifúndios –
projeto vitorioso. Conforme argumenta a autora a definição e demarcação das terras
devolutas, após 1850, foi uma das maiores farsas que marcaram a história do Brasil
(Maricato, 2000 p. 148). A farsa consiste na ineficiência do Estado em controlar as terras
demarcadas: acentuava-se o processo de grilagem e os órgãos de administração nada
faziam a não ser para confirmar as propriedades existentes e reivindicadas. Por outro
lado, após a abolição, surgia uma categoria nova de trabalho no país: o trabalho
assalariado. Baldez (1986) desdobra-se sobre as alterações da forma de dominação da
sociedade escravocrata para a pós-abolicionista justamente na órbita da questão
fundiária. Se a terra não era mais fator subalterno, as sequentes políticas de gestão
fundiária e a inserção da mão-de-obra assalariada na produção rural brasileira
sujeitaram a população recém liberta ao trabalho na fazenda e ao regime de exploração
capitalista. Assim:

O trabalhador vai irrompendo na história entra no processo de trabalho


destituído de bens materiais, trazendo consigo apenas sua força de
trabalho. (Baldez, 1986, p. 106).

Sem dinheiro, o trabalhador recém liberto deveria enveredar no trabalho nas fazendas
para depois, pela compra, adquiri a terra. Esse princípio de banimento do trabalhador
ex-escravizado da terra é o mote sobre o qual se organizará a estrutura de tralho rural
e sustentará o êxodo rural e respectivo inchaço das cidades brasileiras. Afastados da
primeira rodada de comercialização de terras, ainda sob os efeitos da formação de uma
aristocracia política e econômica própria da colonização, a primeira aproximação que
pode haver entre esses corpos e a terra mercadoria não é outra, senão a psíquica e
simbólica, enquanto reserva-se a seu uso instrumental a reprodução da forma de
dominação, agora sobre a sombra do salário. Essa relação entre corpo e terra-
mercadoria é por onde buscamos fundamentar a ideia de separabilidade dos corpos.

Faceta 02: A terra mercadoria e a separabilidade dos corpos.

(...) no processo de constituição histórica da América, todas as formas de


controle e de exploração do trabalho e de controle da produção-
apropriação-distribuição de produtos foram articuladas em torno da
relação capital-salário (de agora em diante capital) e do mercado mundial.
Incluíram-se a escravidão, a servidão, a pequena produção mercantil, a
reciprocidade e o salário. (Quijano, 2005, p. 118.)

Em outra oportunidade, conceituamos a noção de fronteira como uma relação de poder


continuamente atualizada (da Cruz, 2022). Desse ponto de vista, destaca-se como
propriedade fundamental da fronteira sua capacidade de separar corpos. Ainda, essa
propriedade é mediada por formas sociais naturalizadas, isto é, constructos sociais
amplamente difundidos e reconhecidos como dados da realidade. Dentre os elementos
capazes de conduzir essa mediação, podemos destacar a terra em sua face mercadoria.
De forma breve, ao se constituir como mercadoria, uma determinada parcela de terra é
incorporada nas fronteiras como instrumento a atualizar a lógica de separabilidade,
concretizando situações de precarização territorial e inclusão precária de contingentes
populacionais em relações de dominação. Ações de reintegração de posse ou redutos
urbanos onde há maior concentração de sem tetos são exemplos de como a propriedade
opera essa separação: no primeiro exemplo, a terra mercadoria (e seu par
complementar, a propriedade) é o que sustenta a inscrição de determinados corpos em
categorias éticas e jurídicas (invasores; criminosos) e permite o uso de violência para
removê-los dos limites profanados; no segundo exemplo, não é necessários que haja
algum agente dominante para que a relação de separabilidade se dê, afinal, esses corpos
acabam se agrupando em áreas residuais da cidade.
A separabilidade, nesse sentido, é operada dentro de um espectro que contempla as
formas, categorias e modelos de reconhecimentos próprias da noção de humanidade.
Nesse espectro, os corpos separáveis deslocam-se em posições com maior ou menor
possibilidade de reconhecimento de sua própria humanidade. Mbembe em
Necropolítica (2019), e em ensaio intitulado Corpos-fronteira (2021) aborda esse tema
introduzindo: I) as categorias de morte e de vida como dimensões concretas para
fundamentação do campo da política, ao invés das proposições iluministas de liberdade
e razão; e II) como, na idade média, algumas instituições surgem para enclausurar
determinados corpos que vagavam sem rumo, sem capacidade de produzir e sem
oferecer maiores chances à maquinaria do poder até então instituída na Europa.
Próximos da morte e do controle, uma nova ontologia era criada para esses sujeitos.
Separava-se para produzir sua diferença.
Ao produzir as condições para a hiper exploração da massa recém liberta e, além disso,
produzir as condições para a solidificação de uma elite fundiária e agrária, lançava-se
sobre o solo brasileiro os limites necessários para atualizar as fronteiras no curso da
formação da sociedade industrial nacional. A impossibilidade desses corpos em acessar
a terra reverbera – presumimos – nas tipologias de ocupação informal que se difundiram
pelas cidades.

Faceta 03: A normatividade jurídica e a propriedade

Quando Raúl Prebisch criou a célebre imagem de “Centro-Periferia”, para


descrever a configuração mundial do capitalismo depois da Segunda Guerra
Mundial, apontou, sabendo-o ou sem saber, o núcleo principal do caráter
histórico do padrão de controle do trabalho. (Quijano, 2005, p. )

Pretendemos, por fim, apresentar a ideia de que a normatividade jurídica é o que


articula e estabiliza as duas outras facetas. Mara (2018) propõe como uma das camadas
para se discutir a natureza da desigualdade socioespacial brasileira a transformação
histórica do conceito de propriedade e seus efeitos na organização fundiária na
ocupação colonizadora. Para tanto, a autora retoma a discussão de propriedade a partir
de suas múltiplas facetas: etimológica, semântica, jurídica, filosófica e aquela relativa às
ciências sociais, em especial à antropologia e à sociologia. De início, Mara acata os
conselhos de Grossi (2006) e Magalhães (2016) e entende a propriedade como uma
ideologia de origem europeia. Assim, enquanto ideologia, a propriedade existe como
forma social naturalizada e que naturaliza a relação entre um agente e um bem de
maneira jurídica. Refletindo a partir do Brasil contemporâneo, Mara trabalha a
propriedade como ideologia colonial, sendo sua consolidação histórica uma das facetas
pelas quais a desigualdade socioespacial adere-se à racialização das relações sociais e
segrega o espaço urbano brasileiro.
As análises clássicas sobre a segregação e a periferização urbana brasileira, conforme
levantado (da Cruz, 2022), ainda que reconheçam a distribuição desigual entre pretos e
brancos nos territórios das cidades, mensuram a perversidade da produção do território
urbano a partir da renda, pouco explorando a amplitude dos mecanismos
discriminatórios que compõe sua organização. Nesse sentido:

Se, conforme é conhecido, o preço da terra urbana e a desigualdade de


renda são fatores que compõe a dificuldade de algumas classes sociais em
acessar a propriedade fundiária, a racialização do espaço urbano também
se atrela às diversas configurações da ideologia da propriedade
(substantivo) suas formas jurídicas e sociais na história política do país. Em
suma, a propriedade compõe os limites que demarcam a desigualdade no
espaço urbano. Nessa linha, uma das dimensões da separabilidade é
constituída pelos limites das coisas materiais, reificadas como propriedade
(da Cruz, 2022, p. 23).

A normatividade jurídica é o que media a relação entre o corpo e as coisas materiais. Ao


nos atentarmos para os limites das coisas materiais, estamos destacando justamente a
capacidade que o direito possui de se apropriar de objetos e lhes embutir uma dimensão
socialmente difusa e concreta – o não-pertencimento ou a identidade. Na medida em
que esses limites definem ações sociais, possibilidades de trajetórias sobre o solo,
capacidade ou não de usufruto eles, na mesma medida, constroem o sujeito capaz de
operar dentro de ou a partir desses mesmos limites. O cerne de nossa argumentação é:
na medida em que o direito produziu e produz os limites da propriedade no solo,
produziu-se, igualmente, o contingente populacional excluído das condições (matérias
e simbólicas) necessárias para se apropriar desse solo.
REFERÊNCIAS
BALDEZ, Miguel. Solo urbano, reforma urbana, propostas para a Constituinte. Rio de
Janeiro, Fase, 1986.
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Tradução: Mariza Corrêa
– 11ª ed. Campinas, SP: Editora Papirus, 2011.
DA CRUZ, Gabriel. As fronteiras urbanas e os estigmas sociais: uma investigação da
desigualdade socioespacial a partir do corpo. Trabalho de Conclusão de Curso. Escola de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais. 2022.
MARA, Lisandra. Propriedades, negritude e moradia na produção da segregação racial
da cidade: cenário Belo Horizonte. 260 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo) da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
Belo Horizonte, 2018.
MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias. In: ARANTES, O.;
VAINER, C., MARICATO, E. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos.
Petrópolis: Vozes, 2000. p. 121-192.
MARTINS, José de Souza. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus,
1997.
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. 1 edição. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2019.
MBEMBE, Achille. O Brutalismo. São Paulo: N-1 edições, 2021.
MBEMBE, Achille. Sovereignty as a form of expenditure. In: Sovereign Bodies. Citizens,
Migrants, and States in the Postcolonial World. Hansen & Stepputat (Orgs.). Pp. 148-
166. Chalmers University of Technology, 2005.
SANTOS, Milton. Espaço e Método. 5ª edição. São Paulo: Edições da Universidade de
São Paulo, 2020.

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