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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


CIÊNCIAS SOCIAIS

O Direito dos Quilombolas ao Território Brasileiro:


“contracolonizar” e resistir.

Trabalho apresentado como


requisito parcial na disciplina
Antropologia das Terras e
Territorialidades ministrada pela
professora Cíntia Muller.

LAURA DE ARAÚJO TOSTA LEMOS COSTA

SALVADOR
JUN/2022
INTRODUÇÃO

Desde 1930 existiram vários movimentos migratórios no Brasil que prejudicaram os povos
tradicionais, como a construção de Brasília, as estradas construídas na Amazônia, o projeto de
mineração em Grande Carajás. Em 1960 existiu um movimento de dar terras do norte
brasileiro para garimpeiros, fazendeiros, comerciantes e grandes empresas vindas de outras
regiões do país.

Se pensarmos no processo histórico de expansão territorial brasileiro nos períodos coloniais e


imperiais, iremos identificar diversos movimentos de colonização de invasão e tomadas de
territórios de africanos , provocando então “(...) um conjunto próprio de choques territoriais e
como isto provocou novas ondas de territorialização por parte dos povos indígenas e dos
escravos africanos.(...) No caso dos escravos africanos, a história da Colônia e do Império está
repleta de casos de rebeliões, fugas, luta armada e alianças entre quilombos e povos
indígenas.” (LITTLE, 2002, P.255)

Os quilombolas são atacados e precisam lutar e resistir para garantir os seus direitos à
permanência nos territórios até hoje. Isso tudo acontece em consequência da influência do
pensamento de herança colonial como estratégias para dificultar o reconhecimento de
pertencimento dos povos quilombolas à terra em que se localiza. Para entender essa luta pelo
direito ao território e a resistência dos movimentos étnico-territoriais, é necessário primeiro
entender a relação dos povos quilombolas com a terra e a importância da preservação das
particularidades dos povos quilombolas como ação política de luta e resistência.

DESENVOLVIMENTO

Os quilombolas têm uma relação de pertencimento à terra e não posse como é cobrado no
sistema capitalista, tanto é que os “contratos” sobre os territórios são feitos através da
oralidade. Para os povos quilombolas a terra é viva, a terra é vida e por isso, é preciso
respeitá-la e não tratá-la como um produto ou coisificá-la. Sobre isso, Antônio Bispo Santos
(2018) diz: 
A terra não nos pertencia, nós é que pertencíamos à terra.
Não dizíamos “aquela terra é minha” e, sim, “nós somos
daquela terra”. Havia entre nós a compreensão de que a
terra é viva e, uma vez que ela pode produzir, ela também
precisa descansar. Não começamos a titular nossas terras
porque quisemos, mas porque foi uma imposição do
Estado. Se pudéssemos, nossas terras ficariam como estão,
em função da vida. (SANTOS, 2018, P. 1)

Uma outra característica dos territórios sociais são os vínculos que se dão entre as
comunidades quilombolas e os territórios que pertencem, são os vínculos simbólicos e
ritualísticos presentes nesses ambientes sagrados.

Mesmo com o Decreto Federal n° 8878 de 2003 que garante, perante a lei, a regulamentação
para identificar, reconhecer, delimitar, demarcar e titular as terras ocupadas por comunidades
quilombolas, com o racismo religioso sendo uma forte e desastrosa característica da estrutura
da sociedade brasileira, são criadas estratégias para dificultar a proteção dos territórios
quilombolas.
 
Uma dessas estratégias é o não reconhecimento do conceito terreitório (DIÉNE, 2021) que vai
muito além do ocupar um espaço, tem a ver com
 
 "(...)perceber que esse espaço físico historiografado através da
cosmovivência e pelo modo de vida do povo de santo, imprime
através do processo de ressignificação e de autodenominação a luta
e constante mobilização pelo reconhecimento de uma história, uma
religião, um modo de viver e de pertencimento à sociedade atual.”
(DIÉNE, 2021, p.39)
 
Outro ponto é desqualificar, reduzir as comunidades quilombolas como não participantes da
sociedade, tentando afasta-las da sociedade e com isso, não levando em consideração seus
direitos, reforçando um pensamento de que representa um espaço de negros fugidos, ou até de
"bárbarie africana", como diz Nina Rodrigues (1977), é importante mencionar que
contrapondo a isso tem Abdias Nascimento (1980) que caracterizou os quilombos como
"territorialidade para a noção da coletividade”
 
Outro aspecto é reduzir os quilombos como uma coisa só, a sociedade e o Estado geralmente
não consideram as diversidades. Claro que, existe uma auto identificação entre quilombolas,
mas é a partir de ideologias e histórias de sobrevivências, mas eles reconhecem que existem
particularidades entre os grupos, inclusive, tem processos sociais e políticos muito
específicos.
 
Outro fator é que geralmente analisam a legitimidade da "posse" de terras a partir de uma
lógica colonial, mas como já dito, os quilombolas têm uma lógica diferente sobre a
territorialidade, eles acreditam em um pertencimento a um espaço, à terra.  Mas para evitar
violências, ataques do Estado, sendo retirados das suas próprias terras, muitas comunidades
quilombolas recorrem ao Incra para registrar as terras.

Para entender essas estratégias é importante também levar em conta as estratégias legalizadas,
ou seja, o histórico de leis e direitos aos territórios no Brasil e a influência dos estados-nação
para a hegemonia no pensamento territorial.

De acordo com o autor Paul Little (2002) os Estados-nação inventaram várias regras sobre a
ocupação de territorialidade. Little diz que a ideologia sobre a territorialidade dos Estados-
nação tem caratér nacionalista, onde o direito ao território é exclusivamente para os
integrantes da nação. Outra característica dessa ideologia é que ela é fundamentada “(...) no
conceito legal de soberania, que postula a exclusividade do controle de seu território nas mãos
do Estado.” (LITTLE, 2002, P.258)

A partir disso, é importante também mencionar Little sobre os parâmetros legais definidos
pelo regime de propriedade no Brasil: terra privada e terra pública. As terras privadas são
vinculadas e sustentadas pela ideologia capitalista, onde se é comprado uma terra e quem
comprou tem o direito exclusivo ao território em que se torna proprietário e dono. Ou seja, a
terra vira mercadoria. Já as terras públicas:
 
(...)  associada diretamente ao controle da terra por parte do Estado.
Nessa concepção, a terra pertence, ao menos formalmente, a todos
os cidadãos do país. Porém, é o aparelho de Estado que determina
os usos dessas terras, supostamente em benefício da população em
seu conjunto. Na realidade, esses usos tendem a beneficiar alguns
grupos de cidadãos e, ao mesmo tempo, prejudicar outros.
(LITTLE, 2002, P.259)

Com isso, as formas de propriedade social dos povos quilombolas baseadas na lógica da
legislação brasileira está relacionada tanto ao que se diz privado quanto ao público, isso
porque 
(...) incorpora alguns elementos que muitas vezes são considerados
como públicos - isto é, bens coletivos -, mas que não são tutelados
pelo Estado; ou seja, essa razão histórica introduz coletividades que
funcionam em um nível inferior no plano do Estado-nação. No
entanto, incorpora elementos comumente considerados como
privados, no caso de bens pertencentes a um grupo específico de
pessoas, mas que existem fora do âmbito do mercado. (LITTLE,
2002, P. 259- 260)

Na década de 1940 existiu uma grande campanha para regularização das terras através de
documentos escritos, essa lei nomeou as pessoas que ocupavam as terras como posseiros, que
de acordo com Santos dar nome a alguém é para dominar, então essa lei tem um caráter
colonialista que dá nome, mas não sobrenome, o sobrenome ele revela poder “(...) O nome
coisifica, o sobrenome empodera. Então, ao nos chamar de posseiros, nos colocaram em uma
situação de dominação, obrigando-nos a cumprir os contratos que a dominação de posseiros
nos impunha.” (SANTOS, 2018, p.1). E assim, os brancos tomaram o direito à terra dos
quilombolas, compraram as terras e expulsaram os quilombolas do lugar que pertenciam. 

Com isso, os povos tradicionais se viram pressionados a perder os territórios que pertenciam e
precisaram elaborar outras estratégias de lutas e permanência nas terras. Uma das estratégias
atuais que pode ser chamado de acordo com Little como “onda de territorializações”, é de
forçar o Estado brasileiro a reconhecer as outras formas de vínculos com os territórios de
forma legalizada, procurando atender as necessidades das comunidades quilombolas.

Com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 surgiu a categoria


remanescentes dos quilombos, porém só existiu a regulamentação dessa categoria em 1995,
quando a Comunidade Boa Vista no Vale de Trombetas (PA) foi o primeiro quilombo a ser
reconhecido como remanescente. “O fato que o termo (povos tradicionais) tem sido
incorporado recentemente em instrumentos legais do governo federal brasileiro (...) reflete
essa ressemantização do termo e demonstra sua atual dimensão política” (LITTLE, 2002,
P.283)

CONCLUSÃO

Ademais, pode-se observar com os ataques feitos aos quilombolas o histórico de lutas para o
direito de permanência aos territórios e que até a conquista do direito legalizado
constitucionalmente fere a cultura e identidade quilombola, porque essa é uma lógica colonial
e que faz com que os quilombolas passem a ser proprietários das terras, indo de contra suas
ideologias.

A partir do momento em que fomos reconhecidos como quilombo,


tivemos que aprender política, direito, medicina, educação. Tudo da
população “normal”, deixando um pouco distante a nossa
identidade porque, a partir do momento em que saímos do
anonimato e nos autodeclaramos como comunidade quilombola,
passamos a conversar com o governo, o município, o Estado. Nosso
maior conflito não é o uso da terra, mas o próprio governo. É o
próprio Estado que, ao mesmo tempo que nos reconhece, nos tira
também alguns direitos. Até então éramos desconhecidos para o
Estado, éramos eleitores, cidadãos que pagavam suas contas e
contribuíam com seus impostos. Contribuíamos com as nossas
obrigações, mas não tínhamos um direito específico. A partir do
momento em que dizemos: “Além de sermos cidadãos, temos
também uma cultura”, isto é, uma forma própria de viver, passamos
a ter conflitos. Assim, muitos direitos foram tirados de nós a partir
do momento em que a Fundação Palmares nos reconheceu como
quilombo.” (KIDOIALE, M.; MUIANDÊ, M. N'K. 2018, P.4)

Mas de acordo com Santos (2018), regularizar as terras não quer dizer que os quilombolas
concordam com esses tipos de práticas, mas é uma forma de se defender e garantir a
permanências dos quilombos nos territórios. Para ele, o mais importante é a preservação e
valorização da cultura quilombola e de como eles vão se relacionar com a terra.

É preciso de “Uma política de reconhecimento dos quilombos urbanos deveria vir junto com
uma política de mapeamento e preservação do território por eles utilizado.” (KIDOIALE, M.;
MUIANDÊ, M. N'K. 2018, P.6). É preciso “contracolonizar” (SANTOS, 2022), que é
transformar as trajetórias dos povos quilombolas a partir das suas raízes, indo contra o
pensamento colonizador que “(...) é subjugar, humilhar, destruir ou escravizar trajetórias de
um povo que tem uma matriz cultural, uma matriz original diferente da sua.” (SANTOS,
2022, P.9). Contracolonizar é sobretudo, ação política de luta e resistência.

REFERÊNCIAS

DIENE, AISHA ANGELE LEANDRO. “Arquitetura de terreiro: compreendendo


socioespacialidades na Comunidades Quilombola Manzo Ngunzo Kaiango”.' 04/06/2021 109
f. Mestrado em ANTROPOLOGIA Instituição de Ensino: UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA,
Brasília Biblioteca Depositária: Biblioteca Central da UnB

KIDOIALE, M.; MUIANDÊ, M. N'K.. Senzala, terreiro, quilombo. PISEAGRAMA, Belo


Horizonte, número 12, página 52 - 61, 2018. Acesso: https://piseagrama.org/senzala-
terreiro-quilombo/

LITTLE, P. E. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da


territorialidade. Brasília, Série Antropologia, 322, UnB, 2002

SANTOS, A. B.. Somos da terra. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 12, página 44 - 51, 2018

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