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O papel do Estado na violência nos territórios

Luis Ventura Fernández1

A violência contra os povos e contra seus ter-


ritórios é um elemento constante ao longo
de todo o processo de colonização do espaço que
Por isso também é no território – ou no campo,
seguindo a terminologia deste relatório – que a
violência sistêmica se concretiza.
hoje conhecemos como América Latina. Essa vio-
lência foi representada e concretizada de formas O processo colonial foi construído sobre a base de
diferentes, nos diversos momentos históricos, três elementos fundamentais e inter-relacionados
mas perpassa estruturalmente o tempo e o proje- (Figura 1):
to colonial. E que sempre teve como foco princi-
pal o território.

Entendemos o território, de antemão, como o es-


paço habitado, o lugar concreto da experiência
humana, das relações, do quotidiano; é o lugar
da construção do conhecimento e da continuida-
de física e cultural de um grupo. O território é o
lugar dos saberes e dos sabores, o lugar significa-
do culturalmente; é o espaço da pertença. Como
afirma Carlos W. Porto-Gonçalves (2002), “cada
sociedade é [...] um modo próprio de estar-junto
[...], o que implica, sempre, que toda sociedade
ao se instituir enquanto tal o faz construindo seu
espaço [...]”2.

Ao mesmo tempo, do ponto de vista da lógica co-


lonial, o território foi desde o primeiro momento
o principal objeto de expropriação e desapropria-
ção. Trata-se, nessa outra perspectiva, do terri- • Uma economia de saque e exploração de
tório como jazida, como espaço de bens naturais bens naturais com destino à metrópole, ao centro
que precisam ser retirados e removidos para o de poder;
centro do poder econômico, político, religioso e
epistêmico. • A necessidade, portanto, do controle – físico,
militar, cultural, epistêmico – dos territórios;
Portanto, é no território concreto que se concen-
tram as contradições históricas e as lógicas an- • Por fim, a tentativa de domínio ou extermínio
tagônicas; é o lugar do conflito e o lugar da(s) dos povos que habitavam esses territórios.
resistência(s). Ou, nas palavras de Milton Santos
(2005), “a arena da oposição entre o mercado – Esses três elementos e suas interações explicam a
que singulariza – e a sociedade civil – que gene- dinâmica estrutural do processo colonizador até
raliza – é o território, em suas diversas escalas”3. nossos dias.
1
Missionário do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).
2
PORTO-GONÇALVES, Carlos W. Da geografia às geografias: um mundo em busca de novas territorialidades. In: CECEÑA; Ana Esther;
SADER, Emir. La guerra infinita: Hegemonia e terror mundial. Buenos Aires: CLACSO, 2002. p. 217-256.
3
SANTOS, Milton. O retorno do território. OSAL: Observatório Social da América Latina, Buenos Aires, v. 6, n. 16, 2005.

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Porto-Gonçalves diz textualmente: “Enrique Dus- desse modelo de acumulação por despossessão
sel vai nos ensinar que a Modernidad, o Capita- na “zona do não-ser”7 é a violência contra as co-
lismo e a América têm a mesma data de nasci- munidades, que reúne as forças armadas dos po-
mento”4. O início da invasão europeia na América deres estatais e as forças paramilitares ou priva-
Latina significou, na época, a possibilidade de das: “a violência e a militarização dos territórios
fechar o círculo do mundo que podia ser conhe- são a regra”.
cido. A sociedade moderna e, principalmente, o
modelo de produção capitalista só podiam ger- Se, de um lado, resulta evidente a participação
minar a partir da capacidade de contemplar o de atores hegemônicos privados no esquema de
mundo como uma unidade. É assim que a econo- violência e expropriação dos territórios, respon-
mia-mundo capitalista nasceu naquele momen- dendo a interesses econômicos vinculados com
to, com sua gramática de centros e periferias; de essa economia-mundo capitalista, o que nos pro-
estratégias globais que provocam conflitos locais pomos nesta reflexão é trazer a análise sobre o
nos territórios. papel que os atores públicos, particularmente sob
a figura histórica do Estado nacional, tiveram e
Desde o primeiro momento, a América Latina foi continuam tendo na violência contra os povos e
situada no sistema-mundo como território-jazida, seus territórios. E fazer isso se torna imprescindí-
em sua condição de fornecedora de bens primá- vel neste preciso momento em que o Brasil está
rios fundamentais para o crescimento da metró- saindo, aos poucos, de uma noite escura repre-
pole. A economia-mundo capitalista foi incor- sentada no período 2019–2022 por um projeto
porando os lugares de forma subalterna a uma de necropolítica instalado no lugar do governo
lógica global, naquilo que Milton Santos chama e introjetado em amplos segmentos da socieda-
de “mundialização dos territórios”, o que acon- de, em que os conflitos e a violência contra as
tece até os dias atuais com as novas frentes de comunidades e os povos aumentou de forma ex-
expansão do capital: o agronegócio, a mineração, ponencial.
a exploração de madeira ou os grandes projetos
associados de infraestrutura, como estradas, por- Estado garante ou Estado legitima-
tos, aeroportos, hidrovias, ferrovias ou barragens dor: um estado disputado e seu pa-
de dejetos. pel na perpetuação da violência
A violência no campo, ou contra os povos em seus O Estado territorial moderno nasceu na Europa,
territórios, perpassa todas as fases do processo no século XVII, como um instrumento de domina-
de colonização; ela é inerente à economia-mun- ção dentro de cada território governado por um
do capitalista. Nas palavras do geógrafo David rei. Posteriormente, se configurou em unidade
Harvey5, estamos diante de um modelo de “acu- política fundamental, portador de uma suposta
mulação por despossessão”, por desapropriação, identidade nacional homogeneizadora e de uma
isto é, um modelo em que se acumula na medida ideologia territorial que vinculava território a so-
em que se expropria, se despossui e se expulsa o berania nacional.
outro. Raúl Zibechi, conforme recorda Composto
e Navarro6, afirma que o principal instrumento A figura do Estado só chega à América Latina a
4
PORTO-GONÇALVES, Carlos W. De Caos Sistêmico e de Crise Civilizatória: tensões territoriais em curso. Territorium (Coimbra) , v. 27,
p. 05-20, 2020.
5
HARVEY, David. El “nuevo” imperialismo: acumulación por desposesión. Socialist Register: El nuevo desafio imperial, v. 40, p. 99-130,
2004.
6
COMPOSTO, Claudia; NAVARRO, Mina Lorena (comp.) (2014). Territorios en disputa, luchas en defensa de los bienes comunes
naturales y alternativas emancipatorias para América Latina. México DF. 1ª ed. Bajo Tierra Ed. (p. 77)
7
Zibechi toma do sociólogo Ramón Grosfoguel os termos “zona-do-ser” e “zona do não-ser”, que fazem referência a espaços sociais em
que, dando-se o mesmo conflito social, este resolve-se de forma diferente. Na zona do ser, onde a maior parte da teoria social é produzida,
estabelecem-se certas condições para a negociação; já na zona do não ser, onde nunca atuou a lógica da inclusão e onde Grosfoguel situa
as populações do campo, agricultores familiares, indígenas, ribeirinhos, trabalhadores da periferia, ..., a lógica do Estado que se impõe é a
da negação, exclusão ou violência.

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partir do século XIX, dentro do processo de co- assim, sua natureza como o espaço da política,
lonização. Ou seja, nasce como parte do legado do bem comum e do direito. Movimentos sociais,
colonial e como instrumento a serviço dos inte- comunidades e organizações populares vão dis-
resses das novas elites locais e pela manutenção putar permanentemente essa forma de Estado.
do lugar da região na economia-mundo como for-
necedora de bens primários. De outro lado, o Estado apresenta-se como o
agente regulador entre o capital e o trabalho – e
Desde o início, o Estado-Nação vai assumir uma aqui deveríamos dizer também, e principalmente,
relação de conflito com as comunidades e povos entre o capital e o território –, garante das con-
que o conformam. Estes vão pleitear do Estado dições de acumulação por parte do capital. Essas
duas ideias fundamentais: garantias se concretizam nas escolhas políticas e
estratégicas de regulamentação e desregulamen-
• A ideia da diversidade cultural. Frente ao tação, e de estabelecimento de um marco norma-
projeto homogeneizador de identidade nacional tivo que ofereça estabilidade e previsibilidade aos
por parte do Estado, persiste a realidade histórica agentes privados da economia-mundo. Setores
de uma diversidade de formas culturais de ser e empresariais e elites econômicas vão pretender
de estar no mundo; disputar o Estado para esse lado.

• A ideia de território. O Estado pretende impor Essa disputa permanente pelo Estado e pela na-
sua ideologia territorial vinculada à soberania na- tureza do Estado, protagonizada por atores so-
cional. Junto com isso, na “lógica da razão instru- ciais com interesses divergentes, será resolvida
mental”, conforme palavras de Aníbal Quijano, em cada país na sequência de projetos políticos
lembradas por Paul Little8, o Estado só consegue com maior ou menor projeção social, com maior
contemplar duas formas de propriedade da terra, ou menor comprometimento com as forças do
de natureza pública ou privada, submetidas ao capital. No entanto, duas questões precisam ser
controle do Estado ou do capital. Frente a esses reafirmadas:
conceitos de território, emergem e resistem uma
diversidade de territorialidades, de formas cultu- a) O modelo de produção capitalista, na sua
rais de significar o território, e uma concepção perspectiva de economia-mundo, permanece he-
do território coletivo, nem público nem privado, gemônico, mundializando os territórios em uma
território de pertença. relação verticalizada, conduzindo o espaço que
habitamos para um caos sistêmico;
É nessa contradição histórica que se faz necessá-
rio analisar o papel do Estado para compreender b) As comunidades e povos continuam resistindo
seu lugar na manutenção da violência contra as em seus territórios, representando outras formas
comunidades e povos em seus territórios. alternativas de convivência e lutando por outras
perspectivas de futuro, de Bem Viver.
Como nos lembrava a 5ª Semana Social Brasileira,
o Estado tornou-se, mais recentemente através de O Estado disputado, mesmo representando pe-
sua trajetória constitucionalista, um espaço dis- quenos avanços na garantia de direitos funda-
putado. De um lado, apresenta-se como Estado mentais, permanece como elemento indispensá-
de direito, garantidor dos direitos fundamentais vel para a expansão da economia-mundo sobre
dos indivíduos e coletivos, e de princípios básicos os lugares onde a vida acontece. Como afirmava
de convivência como a igualdade, a justiça e a Dom Pedro Casaldáliga, “não serão os governos
solidariedade. A garantia desses direitos e des- de baixa democracia que resolverão os desafios
ses princípios se concretiza em políticas públicas maiores da maioria de nosso povo. E sabemos por
universais, dotadas suficientemente dos recursos experiência que a causa indígena é uma causa
e da estabilidade necessários. O Estado tomaria, que atrapalha. Os povos indígenas são inimigos

8
LITTLE, Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Brasília: UNB, 2002. (Série
Antropologia, 322).

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do sistema”9. toriais de povos indígenas e comunidades tradi-
cionais cria uma situação de insegurança jurídica
As formas de violência do Estado para os povos e comunidades do campo, condi-
ção fundamental para a manutenção da violência
A violência estatal se expressa de diversas for- nos territórios. A insegurança jurídica alimenta
mas. Só para efeitos de análise, propomos quatro os processos de invasão e de ocupação ilegal com
faces ou formas de violência estatal. Entretanto, interesses particulares, a grilagem ou a concen-
na realidade concreta, as fronteiras entre umas e tração de áreas em grandes propriedades priva-
outras formas de violência não são tão nítidas e das a serviço das frentes de expansão do capital
aparecem muito mais interligadas. como o agronegócio.

O Estado omisso/negligente Negligências administrativas ou fragilidades nor-


mativas acabam favorecendo uma situação de
A primeira forma de violência estatal se dá sob vulnerabilidade e de insegurança, para aqueles
a forma da omissão e/ou negligência, em que o que vivem na terra e com a terra. No âmbito do
Estado se mostra como inerte e inoperante, apa- Poder Judiciário, a demora na definição da inter-
rentemente incapaz, em sua função de garantidor pretação jurídica do caráter constitucional dos di-
de direitos fundamentais das pessoas e dos cole- reitos territoriais das comunidades e povos como
tivos. A omissão pode dar-se por falta de recursos direitos originários – o RE 1.017.365, mais co-
para a execução de políticas públicas inclusivas nhecido como julgamento do marco temporal11 –
e de qualidade – o poder-fazer – ou por falta de contribui com a insegurança jurídica, alimenta a
competência ou de planejamento de quem exer- manutenção da violência e compromete o direito
ce a responsabilidade pública – o saber-fazer. O ao prazo razoável previsto em nota constitucio-
Estado omisso não cumpre com suas obrigações, nal12.
não executa políticas públicas, mostra-se como
um Estado ausente; e, dessa forma, pessoas e Outros direitos fundamentais podem ser também
grupos inteiros veem cerceados seus direitos fun- cerceados nos territórios devido à omissão do Es-
damentais. tado em áreas sensíveis, como educação e saúde
por exemplo. A falta de investimentos em educa-
Quando falamos da violência nos territórios, a ção no campo e do campo consolida relações de
omissão pode acontecer em diversos campos. desigualdade e dependência e favorece o êxodo
Uma das áreas mais significativas seria a demora forçado para núcleos urbanos, desestruturando
ou paralisação dos mecanismos de regularização as dinâmicas de continuidade social e cultural
fundiária e de reconhecimento dos direitos terri- nos territórios. A ausência ou precariedade de po-
toriais. Somente no âmbito dos territórios indíge- líticas de atenção primária de saúde nas áreas do
nas, conforme os dados do Conselho Indigenista interior e nos territórios compromete os cuidados
Missionário (CIMI)10, em 2021 ainda existiam básicos das comunidades, condiciona um direi-
871 territórios que não tinham concluído o pro- to fundamental das pessoas e obriga a remoções
cedimento administrativo de demarcação. permanentes, quando são possíveis, para núcleos
urbanos. Por último, dificuldades na política ad-
A ausência ou lentidão do Estado nessa função, ministrativa do Censo populacional afetam o pla-
na perspectiva, por exemplo, de uma profunda nejamento e a alocação de recursos para políticas
reforma agrária no campo brasileiro ou de uma públicas nessas regiões.
celeridade no reconhecimento dos direitos terri-
9
CASALDÁLIGA, Pedro. Mensagem para a XIX Assembleia Geral do CIMI, out. de 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=0oUM6rSTOOg. Acesso em: 29 mar. 2023.
10
Ver: Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5109720.
Acesso em: 29 mar. 2023.
11
BOUJIKIAN, Kenarik. A busca de Justiça e do prazo razoável para os povos indígenas. Conjur, 15 mar. 2023. Disponível em: https://
www.conjur.com.br/2023-mar-15/escritos-mulher-busca-justica-prazo-razoavel-povos-indigenas. Acesso em: 25 mar. 2023.
12
Ver: https://ssb.org.br. Acesso em: 29 mar. 2023

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Nessa forma de violência – a omissão ou negli- A atuação do Estado no campo orçamentário
gência – o Estado desiste de uma política espe- também é um mecanismo fundamental, seja para
cífica para as pessoas e os grupos que vivem nos garantir direitos, seja, nesse caso, para limitá-los.
territórios e revela um estado de incapacidade A redução orçamentária para as políticas de de-
para cumprir suas funções. Essa é uma forma marcação e proteção territorial, educação, saúde
de violência muito estendida e comum. O Esta- ou fiscalização ambiental é expressão nítida de
do concentra sua atuação nos núcleos urbanos e escolhas políticas de um governo que têm seu re-
pondera a necessidade de políticas públicas de flexo na violação de direitos fundamentais e na
qualidade nos territórios em função de critérios manutenção da violência nos territórios.
de mercado, como análise de custos e benefícios.
O importante é reconhecer que essa omissão/ne- Portanto, afirmamos que estamos diante de um
gligência configura uma forma concreta de vio- Estado conivente, e não mais omisso ou negligen-
lência por negação de direitos e gera as condições te, quando o Estado faz da inação uma escolha
para outras formas de violência, exercidas por política premeditada, com uma intencionalidade
particulares e grupos econômicos no processo de explícita. Existe uma determinação política de
esbulho e expropriação dos territórios. não atuar, de não agir, tornando a omissão uma
atitude sistemática, permanente e orgânica (en-
O Estado conivente volve o metabolismo de atuação de todo o gover-
no), o que caracteriza conivência e cumplicidade
Quando a omissão é sistemática, permanente e com a violência.
orgânica, podemos falar de um Estado conivente.
A persistência da omissão revela uma intenciona- O Estado normativo/regulador
lidade determinada por parte do poder público. O
Estado, ciente das consequências de sua omissão, As duas formas anteriores de violência estatal es-
opta pela inação no processo de escolhas políticas tavam relacionadas com a inação, negligente ou
e estratégicas. O componente de intencionalida- intencional, do Estado no cumprimento de suas
de fica evidenciado pelo caráter sistemático, não obrigações e, particularmente, no seu papel de
ocasional, da omissão. garantidor de direitos fundamentais. Entretanto,
novas formas de violência estatal se configuram
Durante o período 2019–2022, o governo federal a partir de um papel proativo do Estado, particu-
assumiu como decisão política a paralisação da larmente quando este atua como instrumento a
política de demarcação de terras indígenas. Re- serviço do capital nas escolhas políticas e econô-
sulta evidente que, existindo uma decisão polí- micas.
tica externada publicamente, não podemos mais
falar apenas de omissão ou negligência. A inação Exemplo fundamental desse tipo de violência é
é uma forma de atuação de Estado e, quando isso a ação do Estado no campo normativo e/ou le-
acontece, ele se torna cúmplice das consequên- gislativo. Nos últimos quatro anos, alianças es-
cias de sua inoperância. Conivente, portanto, com tratégicas entre o Poder Executivo e segmentos
a violência nos territórios. O governo também importantes do Poder Legislativo resultaram em
determinou normativas internas que impediam, tentativas de regulamentação de setores como a
limitavam e condicionavam a atuação de servi- mineração em terras indígenas (PL 191/2020), a
dores públicos de órgãos e autarquias federais grilagem de terras públicas (PL 2633/2020 e PL
(IBAMA, ICMBio, FUNAI, INCRA, ...) em áreas 510/2021) e a alteração dos procedimentos de
como a fiscalização ambiental, o atendimento às demarcação de terras indígenas, incluindo a tese
comunidades ou o reconhecimento dos direitos falaciosa do marco temporal (PL 490/2007) ou
territoriais. Dessa forma, trata-se de um Estado a ampliação permanente no uso e circulação de
que se recusa, normativa e administrativamente, agrotóxicos (PL 6299/2002, chamado de “Pacote
a exercer suas funções e cumprir suas obrigações do Veneno”). A aprovação de qualquer uma des-
constitucionais com o objetivo de operacionalizar sas iniciativas significaria um aumento da pres-
as condições de expansão do capital: agronegó- são sobre os territórios e as comunidades e povos
cio, garimpo, extração ilegal de madeira, entre que ali habitam, firmando as condições de repas-
outras. se do usufruto e domínio dos bens naturais para

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interesses econômicos particulares. Nesse exercí- de forma infiltrada entre milícias privadas junto
cio de regulamentação das condições para a vio- a seguranças particulares, usando ilegitimamen-
lência, destaca-se a ofensiva do último governo te do privilégio das informações e da garantia de
federal pela legalização e ampliação da posse e impunidade.
do porte de armas por parte de indivíduos.
Essa forma direta de violência estatal é acompa-
Ao mesmo tempo que a regulamentação desses nhada, em muitas ocasiões, de inação, demora ou
setores contribui com a manutenção ou amplia- adulteração nas operações policiais de inquérito
ção da violência no campo, o exercício inverso que deveriam apurar os fatos e identificar os res-
de desregulamentação das medidas de fiscali- ponsáveis. É o caso de situações como o massacre
zação ambiental, por exemplo, incorpora novas ocorrido no Rio Abacaxis, Amazonas, entre ju-
condições fundamentais para que o assédio, a lho e agosto de 2020, com a morte de morado-
devastação e a violência nos territórios possam res ribeirinhos e indígenas e o desaparecimento
aprofundar-se em um ambiente de legitimidade de outros, onde houve a participação de efetivos
e impunidade. da Polícia Militar. Esse massacre ainda aguarda
medidas firmes no inquérito por parte da Polícia
O Estado agressor Federal.

A última forma de violência estatal são os meca- Conclusões


nismos utilizados por um Estado para fazer parte,
de forma ativa, do próprio ato da violência, isto é, O Brasil passou por um momento extremamen-
momentos em que um Estado coloca suas forças te delicado nos últimos sete anos. Algo se rom-
de segurança e seus mecanismos de fiscalização peu no país. A deslegitimação das instituições
e investigação a serviço da violência institucio- políticas e democráticas foi acompanhada por
nalizada contra as comunidades e povos e contra uma fragmentação social que atingiu as esferas
seus territórios. mais próximas de convivência, a vizinhança e o
interior das próprias famílias. Esse ambiente de
Esse tipo de violência estatal pode assumir diver- corrosão política e deterioração das relações de
sas formas. Uma delas é, sem dúvida, a crimina- afeto e de diálogo permitiu um aprofundamen-
lização e perseguição de lideranças e das mobi- to do neoliberalismo, com retrocessos de direi-
lizações populares em defesa de seus territórios. tos fundamentais e cortes nas despesas públicas
Para o Estado agressor, comunidades que lutam fundamentais (2017–2018) e, posteriormente, a
pelo território passam a ser consideradas invaso- chegada ao governo de um projeto de poder fas-
ras e infratoras, por isso ele executa medidas de cista (2019–2022).
denúncia e judicialização contra as iniciativas co-
munitárias e, particularmente, contra suas lide- Dessa forma, durante os últimos quatro anos, o
ranças ou, também, contra todas as organizações Brasil vivenciou uma escalada da violência contra
e movimentos sociais aliados às lutas territoriais as comunidades e os povos e contra seus territó-
e à defesa dos direitos humanos. rios, bem como um ataque permanente de des-
constitucionalização de seus direitos fundamen-
Uma segunda forma de atuação do Estado violen- tais. As quatro formas de violência estatal aqui
to consiste na participação direta e ativa de forças descritas tomaram uma dimensão nunca vista
policiais e corpos de segurança, no cumprimento desde a redemocratização do país na década de
de decisões políticas e/ou judiciais, em ataques 1980. O governo trabalhou para manter as con-
violentos contra comunidades em conflitos terri- dições que geravam a morte e o extermínio de
toriais ou no âmbito de operações ilícitas de rein- comunidades em seus territórios, caracterizando
tegração de posse. Nos últimos anos, aumentou um projeto de genocídio. As consequências só
a participação de efetivos da Polícia Militar ou não foram maiores pela persistência, a determi-
da Polícia Civil em diversos conflitos territoriais nação e a resistência das comunidades e povos a
no Brasil, com resultados de vítimas, assassina- partir de seus territórios.
tos, feridos e detenções arbitrárias. Em alguns
casos, a participação de efetivos policiais se dá A sociedade brasileira conseguiu superar pelas

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urnas, na forma da democracia convencional, o governo de frente ampla, como seus dirigentes
projeto de morte instalado nas instituições de go- gostam de insistir, campo em que as contradições
verno. Foi uma vitória ainda parcial. O projeto de históricas e os interesses divergentes também ge-
morte permanece ativo no âmbito do Congresso ram conflitos internos. A disputa do Estado, mais
Nacional e, sobretudo, ainda persistem feridas e do que uma disputa por ocupar espaços de deci-
desafetos na convivência política na sociedade. são, deverá ser, mais uma vez, pela concretização
Há muito trabalho a ser feito, muitas relações a de direitos fundamentais de reforma agrária, de
serem recuperadas. O fascismo sempre foi, aqui e demarcação de territórios, de políticas públicas,
em qualquer lugar do mundo, uma obra de des- de proteção à vida, de respeito à diversidade e de
truição social e política. acesso à justiça. E, principalmente, pelo fim da
violência.
Abre-se um novo tempo de disputa do Estado.
Entretanto, sabemos que a esperança e a resis-
A nova configuração do governo federal abre no- tência que vêm dos territórios sempre vão além,
vas brechas para que direitos fundamentais retor- sobrepassam a conjuntura e apontam para um
nem à pauta da ação política. Trata-se de um horizonte maior. Um horizonte de uma democra-
cia mais radical, de uma sociedade plural e justa,
uma sociedade do Bem Viver.

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