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Porto-Gonçalves diz textualmente: “Enrique Dus- desse modelo de acumulação por despossessão
sel vai nos ensinar que a Modernidad, o Capita- na “zona do não-ser”7 é a violência contra as co-
lismo e a América têm a mesma data de nasci- munidades, que reúne as forças armadas dos po-
mento”4. O início da invasão europeia na América deres estatais e as forças paramilitares ou priva-
Latina significou, na época, a possibilidade de das: “a violência e a militarização dos territórios
fechar o círculo do mundo que podia ser conhe- são a regra”.
cido. A sociedade moderna e, principalmente, o
modelo de produção capitalista só podiam ger- Se, de um lado, resulta evidente a participação
minar a partir da capacidade de contemplar o de atores hegemônicos privados no esquema de
mundo como uma unidade. É assim que a econo- violência e expropriação dos territórios, respon-
mia-mundo capitalista nasceu naquele momen- dendo a interesses econômicos vinculados com
to, com sua gramática de centros e periferias; de essa economia-mundo capitalista, o que nos pro-
estratégias globais que provocam conflitos locais pomos nesta reflexão é trazer a análise sobre o
nos territórios. papel que os atores públicos, particularmente sob
a figura histórica do Estado nacional, tiveram e
Desde o primeiro momento, a América Latina foi continuam tendo na violência contra os povos e
situada no sistema-mundo como território-jazida, seus territórios. E fazer isso se torna imprescindí-
em sua condição de fornecedora de bens primá- vel neste preciso momento em que o Brasil está
rios fundamentais para o crescimento da metró- saindo, aos poucos, de uma noite escura repre-
pole. A economia-mundo capitalista foi incor- sentada no período 2019–2022 por um projeto
porando os lugares de forma subalterna a uma de necropolítica instalado no lugar do governo
lógica global, naquilo que Milton Santos chama e introjetado em amplos segmentos da socieda-
de “mundialização dos territórios”, o que acon- de, em que os conflitos e a violência contra as
tece até os dias atuais com as novas frentes de comunidades e os povos aumentou de forma ex-
expansão do capital: o agronegócio, a mineração, ponencial.
a exploração de madeira ou os grandes projetos
associados de infraestrutura, como estradas, por- Estado garante ou Estado legitima-
tos, aeroportos, hidrovias, ferrovias ou barragens dor: um estado disputado e seu pa-
de dejetos. pel na perpetuação da violência
A violência no campo, ou contra os povos em seus O Estado territorial moderno nasceu na Europa,
territórios, perpassa todas as fases do processo no século XVII, como um instrumento de domina-
de colonização; ela é inerente à economia-mun- ção dentro de cada território governado por um
do capitalista. Nas palavras do geógrafo David rei. Posteriormente, se configurou em unidade
Harvey5, estamos diante de um modelo de “acu- política fundamental, portador de uma suposta
mulação por despossessão”, por desapropriação, identidade nacional homogeneizadora e de uma
isto é, um modelo em que se acumula na medida ideologia territorial que vinculava território a so-
em que se expropria, se despossui e se expulsa o berania nacional.
outro. Raúl Zibechi, conforme recorda Composto
e Navarro6, afirma que o principal instrumento A figura do Estado só chega à América Latina a
4
PORTO-GONÇALVES, Carlos W. De Caos Sistêmico e de Crise Civilizatória: tensões territoriais em curso. Territorium (Coimbra) , v. 27,
p. 05-20, 2020.
5
HARVEY, David. El “nuevo” imperialismo: acumulación por desposesión. Socialist Register: El nuevo desafio imperial, v. 40, p. 99-130,
2004.
6
COMPOSTO, Claudia; NAVARRO, Mina Lorena (comp.) (2014). Territorios en disputa, luchas en defensa de los bienes comunes
naturales y alternativas emancipatorias para América Latina. México DF. 1ª ed. Bajo Tierra Ed. (p. 77)
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Zibechi toma do sociólogo Ramón Grosfoguel os termos “zona-do-ser” e “zona do não-ser”, que fazem referência a espaços sociais em
que, dando-se o mesmo conflito social, este resolve-se de forma diferente. Na zona do ser, onde a maior parte da teoria social é produzida,
estabelecem-se certas condições para a negociação; já na zona do não ser, onde nunca atuou a lógica da inclusão e onde Grosfoguel situa
as populações do campo, agricultores familiares, indígenas, ribeirinhos, trabalhadores da periferia, ..., a lógica do Estado que se impõe é a
da negação, exclusão ou violência.
• A ideia de território. O Estado pretende impor Essa disputa permanente pelo Estado e pela na-
sua ideologia territorial vinculada à soberania na- tureza do Estado, protagonizada por atores so-
cional. Junto com isso, na “lógica da razão instru- ciais com interesses divergentes, será resolvida
mental”, conforme palavras de Aníbal Quijano, em cada país na sequência de projetos políticos
lembradas por Paul Little8, o Estado só consegue com maior ou menor projeção social, com maior
contemplar duas formas de propriedade da terra, ou menor comprometimento com as forças do
de natureza pública ou privada, submetidas ao capital. No entanto, duas questões precisam ser
controle do Estado ou do capital. Frente a esses reafirmadas:
conceitos de território, emergem e resistem uma
diversidade de territorialidades, de formas cultu- a) O modelo de produção capitalista, na sua
rais de significar o território, e uma concepção perspectiva de economia-mundo, permanece he-
do território coletivo, nem público nem privado, gemônico, mundializando os territórios em uma
território de pertença. relação verticalizada, conduzindo o espaço que
habitamos para um caos sistêmico;
É nessa contradição histórica que se faz necessá-
rio analisar o papel do Estado para compreender b) As comunidades e povos continuam resistindo
seu lugar na manutenção da violência contra as em seus territórios, representando outras formas
comunidades e povos em seus territórios. alternativas de convivência e lutando por outras
perspectivas de futuro, de Bem Viver.
Como nos lembrava a 5ª Semana Social Brasileira,
o Estado tornou-se, mais recentemente através de O Estado disputado, mesmo representando pe-
sua trajetória constitucionalista, um espaço dis- quenos avanços na garantia de direitos funda-
putado. De um lado, apresenta-se como Estado mentais, permanece como elemento indispensá-
de direito, garantidor dos direitos fundamentais vel para a expansão da economia-mundo sobre
dos indivíduos e coletivos, e de princípios básicos os lugares onde a vida acontece. Como afirmava
de convivência como a igualdade, a justiça e a Dom Pedro Casaldáliga, “não serão os governos
solidariedade. A garantia desses direitos e des- de baixa democracia que resolverão os desafios
ses princípios se concretiza em políticas públicas maiores da maioria de nosso povo. E sabemos por
universais, dotadas suficientemente dos recursos experiência que a causa indígena é uma causa
e da estabilidade necessários. O Estado tomaria, que atrapalha. Os povos indígenas são inimigos
8
LITTLE, Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Brasília: UNB, 2002. (Série
Antropologia, 322).
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do sistema”9. toriais de povos indígenas e comunidades tradi-
cionais cria uma situação de insegurança jurídica
As formas de violência do Estado para os povos e comunidades do campo, condi-
ção fundamental para a manutenção da violência
A violência estatal se expressa de diversas for- nos territórios. A insegurança jurídica alimenta
mas. Só para efeitos de análise, propomos quatro os processos de invasão e de ocupação ilegal com
faces ou formas de violência estatal. Entretanto, interesses particulares, a grilagem ou a concen-
na realidade concreta, as fronteiras entre umas e tração de áreas em grandes propriedades priva-
outras formas de violência não são tão nítidas e das a serviço das frentes de expansão do capital
aparecem muito mais interligadas. como o agronegócio.
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interesses econômicos particulares. Nesse exercí- de forma infiltrada entre milícias privadas junto
cio de regulamentação das condições para a vio- a seguranças particulares, usando ilegitimamen-
lência, destaca-se a ofensiva do último governo te do privilégio das informações e da garantia de
federal pela legalização e ampliação da posse e impunidade.
do porte de armas por parte de indivíduos.
Essa forma direta de violência estatal é acompa-
Ao mesmo tempo que a regulamentação desses nhada, em muitas ocasiões, de inação, demora ou
setores contribui com a manutenção ou amplia- adulteração nas operações policiais de inquérito
ção da violência no campo, o exercício inverso que deveriam apurar os fatos e identificar os res-
de desregulamentação das medidas de fiscali- ponsáveis. É o caso de situações como o massacre
zação ambiental, por exemplo, incorpora novas ocorrido no Rio Abacaxis, Amazonas, entre ju-
condições fundamentais para que o assédio, a lho e agosto de 2020, com a morte de morado-
devastação e a violência nos territórios possam res ribeirinhos e indígenas e o desaparecimento
aprofundar-se em um ambiente de legitimidade de outros, onde houve a participação de efetivos
e impunidade. da Polícia Militar. Esse massacre ainda aguarda
medidas firmes no inquérito por parte da Polícia
O Estado agressor Federal.
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