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I.

Discurso de Poder e o
Conhecimento da Alteridade

Estrutura da Colonização e Marginalidade


Que Deus tenha piedade de nós!. .."A raça humana?"
Phylhs exclamou, e nfatizando a segunda palavra com espanto,
"É o que d1z aqui", garantiu-lhe jmn.
"Não comeces a interromper-me."

P. Boulle, Planet of t.he Apes

A disputa por África, no período mais intenso da colonização, durou


nenos que um século e envolveu uma grande parte do continente
1fricano, entre o final do século dezanove e meados do século vinte.
~mbora a experiência colonial, quando olhada a partir da perspectiva
1ctual, represente apenas um breve momento na história africana, a
•erdade é que se trata de um período ainda contestado e controverso,
>ois significou uma nova configuração histórica e a possibilidade de tipos
le discursos completamente novos acerca das tradições e culturas
1fricanas. Poder-se-á pensar que esta nova configuração histórica sig-
lificou, desde as suas origens, a negação de dois mitos contraditórios:
tomeadamente, a "imagem hobbesiana de uma África pré-europeia,
mde não existia noção de Tempo; nem de Artes; nem de Escrita; uma
\frica sem Sociedade; e, pior ainda, marcada pela perpetuação do
nedo e pelo perigo de uma morte violenta"; e ainda a "imagem rosseana
ie uma era africana dourada, plena de liberdade, igualdade e fraterni-
iade" (Hodgkin,1957, p.174-175).
Embora as generalizações sejam obviamente perigosas, colonialismo
! colonização significam essencialmente organização, arranjo. Ambas
1s palavras derivam do termo latino co/ere, que significa cultivar ou
:onceber. No entanto, a experiência colonial hjstórica não reflecte, nem
JOde obviamente reflectir, as conotações pacíficas que estas palavras
mcerram. Pode, contudo, admitir-se que tanto os colonos (aqueles
1ue estabelecem uma região), como os colonizadores (aqueles que

t OOtscursodoPodHtoCooh~dmt:ntod.tAitf:rict.de lS
exploram um terrilóno pelo dom mio de uma maioria local), tenderam
ambos a organizar e transform ar zonas não europeias em construçõe s
fundamen talmente europeias.
Eu sugeri na que ao analisar este processo, é possível utilizar três ex-
plicações principais para determinar as modulações e métodos represen-
tativos da organizaçã o colonial: os procedime ntos de aquisição, distri-
buição e exploração de terras nas colónias; as polítiCas para domestica r
nativos; e a forma de gerir organizaçõ es antigas e implemen tar novos
modos de produção. Assim, emergem três hipóteses e acções comple-
mentares: o domfnio do espaço físico, a reforma das mentes nat1vas,
e a integração de histórias económica s locais segundo a perspectiv a
ocidental. Estes projectos compleme ntares constituem aquilo a que se
poderia chamar a estrutura colonizadora, que abarca completam ente
os aspectos físicos, humanos e espirituais da experiênci a colonizado ra
(ve1~ por exemplo, Cbristopher, 1984, pp.27-87). Esta estrutura tam-
bém indica clarament e a metamorfo se prevista e projectada , com um
grande custo intelectual, por textos Ideológicos e teóricos, que desde o
final do século XIX até a década de 1950 propusera m programas para
''regenerar " o espaço africano e os seus habitantes .
Césaire pensa que

a grande tragécila históncu de A/rica tt>msido não tanto o facto de ter entrado em con·
cacto com o resto do mundo tardiamente como a forma como esse contacto se proces·
sou: a Europa começou a propagar·se num moml.'nto em que JÓ tinha cafdo nas mãos
dos frnancc~ros e capnães da rndúsma mais inconsc1enciosos. {Césa~re, 1972, p.23)

Ele refere-se à segunda parte do século dezanove, enfatizand o a co-


existência de uma ideologia "imperialista", processos económico s e
poHticos para alargar o controlo sobre o espaço africano e instituições
capitalista s que acabaram por conduzir à dependênc ia e sub-desen -
volvimento (ver também Mazrui, 1974). Num livro recente, D. K. Field-
house escreve que "apenas um dogmátiCO tentaria afirmar categori-
camente que o colonialis mo foi totalment e inconsiste nte com o
desenvolv imento económico nas colónias ou, alternativa mente, foi o
melhor meio possível para estimular o seu crescimento. O colonialismo
não foi suficientem ente consistent e ao longo do tempo para justificar
tais declaraçõe s arrebatado ras, nem foram os seus objectivos sufici-
entemente coerentes para alcançar qualquer resultado individual"
(1981, p.103). Assim, o colonialismo foi uma espécie .de acidente
histórico, uma "fase em grande medida não planeada e, como se viu,
transitória , na relação em desenvolv unento entre as partes do mundo
mais e menos desenvolvidas" (1981, p.49). Este acidente, no seu todo,
de acordo com esta visão, não foi a pior co1sa que poderia ter aconte-
cido ao continente negro.
O argumento não é essencialme nte novo. Tem uma história que
remonta ao debate das primeiras décadas deste século. No seu livro,
lmpenalísm : A Swdy, J. A. Hobson associou a d1sputa por África
ao capitalismo e à procura capitalista de lucros mais elevados nas
conquistas coloniais. Para j. A. Schumpcter, em 1919, o colonialismo ,
bem como a sua causa, o imperialism o, não obedecem a uma lógica.
Foram "inclinações não-racionai s e irracionais puramente instintivas
em dírecção à guerra e à conquista'' que guiaram "tendências sem
finalidades em direcção à expansão à força, sem limites definidos,
utilitários" (Schumpeter , 1951, p.83). Contra o tema leninista patente
em lmperialism, the Highest Stage of Capitalism (1917). Schumpeter
afirmou que "um mundo puramente capitalista nâo oferece solo fértil
a impulsos imperialista s ... o capitalismo é por natureza anti-imperi-
alista" (1951, p.96). E num documento volumoso repleto de estatisticas,
The Balance Sheets oflmperialism (1936). Grover Oark demonstrou que
o colonialismo não era apenas economicam ente irracional, mas tam-
bém ruinoso para os poderes coloniais.
Do lado oposto, correndo o risco de serem rotulados de dogmáti-
cos, os intérpretes marxistas aceitam o essencial da tese de Lenine.
A disputa dos neomarx1stas. como Samir Amin, Paul Baran, André
Gunder Frank, e lmmanuel Wallerstein reside no facto de se o colonial-
ismo era inconsistent e com o desenvolvim ento económico, foi, pelo
menos, desde a sua origem, bastante coerente com os seus próprios
interesses económicos e objectivos.
Assim, o colonialismo deveria ter produzido um conjunto de conhe-
cimento sobre os meios de explorar as colónias (Rodney. 1981). Também
deveria ter produzido um tipo de técnica empirica para implementa-
ção de distorções estruturais ao posicionar quatro propostas políticas
principais: em primeiro lugar, foi dada a prioridade à revolução indus-
trial sobre a revolução agrícola; em segundo, a promoção simultânea
de todos os ramos da indústria. com uma abordagem preferencial da
industria pesada; em terceiro lugar, foi dada ênfase às actividades do
sector terciário e aos serviços; em quarto, foi dada a preferência às
exportações em detrimento do sistema eco nómico total (Amin, 1973).
Em consequênci a dessas políticas iniciou-se um processo de subde-
senvolvimen to em todos os lugares onde o colonialismo ocorreu. Este
processo pode ser resumido em três pontos: primeiro, o sistema capi-
talista mundial é de tal forma que partes do sistema desenvolvem -se
sempre à custa de outras partes, ou pelo comércio ou pela transferên-
cia de excedentes. Segundo, o subdesenvo lvimento das colónias
não corresponde apenas a uma ausência de desenvolvim ento, mas
a sob o colon ialism o que
tamb ém a uma estru tura orga nizac ional criad
o mun do capi talis ta. Em
cond uz um terri tório não- ocid enta l para
ômic o, as colón ias não tê m
terce1ro lugar. apes ar do seu pote nc1al econ
para o cresc imen to suste n-
capa cidad e estru tural para a auto nom ia e
rmin ado em larga med ida
tado, já que o seu desti no econ ómic o é dete
er-Frank. 1969; Wailerstei n,
pelos países desenvolvidos (Amin, 1974; Gund
algu ns teóri cos form ulara m
1979 ). A parti r desta última afirm ação ,
pado à s ituaç ão de subd e-
rapid amen te a hipó tese de o Japã o ter esca
ental que esca pou ao colo-
senv olvim ento por ser o único país não ocid
nialismo (Bigo, 1974 , p.32, 60).
sobr e o colon ialism o
Parece impossível fa1.er qual quer decla ração
etud o no que respe ita à orga nizaç ão
sem se ser um dogmático, sobr
em forma e inten ção, as
e cresc imen to econômico. Emb ora difer entes
o foco: terri tório ultra -
teori as marx istas e as perif érica s têm o mesm
a um mod elo ocid en-
mari no, total men te reorg aniza do e subm etido
cons idera o impe rialis mo
tal (Mommsen, 1983 ). A prim eira teori a
do capitalismo. Emb ora a
colonial como o auge calcu lado e inevitável
plan eado, aind a assu me o
última desc onte o aspe cto do colon ialism o
stria lizaç ão e dese nvol vim-
fenômeno como uma cons equê ncia da indu
a expa ndir- se para o ultra -
ento euro peus , obrig ado de algu ma form a
e, a aplic ação perm anec e
mar. Inde pend ente men te da teori a aceit
que designei de estru tura
a mesm a, cond uzin do inev itave lmen te ao
de socie dade s, cultu ras e
colon izado ra responsável pela prod ução
; Bair och, l971 ). Porta nto,
seres hum anos marginais (Em manuel, 1969
o clanf icar a dicot omia
com o objectivo de clarificação poste rior, quer
do que I. Sachs cham a de
criad a por esta estru tura e que é um sinal
"eurocentrismo". É um mod elo que
cção a n(vel mundral através da
domrna o nosso pensamento e devido à sua proJe
ele marca a cultura contemporánea.
expansão do capicolrsmo e do fen6meno colonra/,
cronado para alguns que obrigou à
Impondo-se coma um modelo fo rcemente condr
por 8/go, 1974, p.23, n 3)
aculturação de aucros. (Sachs. 1971, p.22, citado

um siste ma dicotômico
Dev1do à estru tura colo nizad ora, emer giu
opos ições para digm ática s:
e com este surgi u um gran de núm ero de
us escri to e Impresso; comu ni-
tradicional versu s mod erno ; oral vers
us civili zação urba na e indu s-
dade s agrá rias e cons uetu diná rias vers
cia versu s econ omia s altam ente
trializada; econom1as de subs istên à evol ução
te dada muit a aten ção
prod utiva s. Em África é gera lmen
agem de antig os para digm as para o
implícita e prom etida pela pass
um salto de uma extre mi-
último (Mudimbe, 1980). Isto press upun ha que
(dese nvol vime nto) era na
dade (sub- dese nvol vime nto) para a outr a

A ltwtr\ÇIO dt Áfri(A Gn.ost, ~ •losofi• 1 i


Ordtm OoConh.f'Cimcnto
1.8 VV Mud•mbt.
verdade enganoso. Ao enfatizar a formulaçã o de técnicas de mudança
económica, o modelo tende a negligenciar um modo estrutural herdado
do colonialismo. Entre os dois extremos existe um intermediário, um
espaço difuso, em que acontecimentos sociais e económicos definem o
grau de marginalidade (Bigo, 1974, p.20; Shaw, 1985, pp. 33-36).Ao
nível económico, por exemplo, se a produtividade relativamente baixa
dos processos tradicionais de produção (anteriormente adaptados
aos mercados e tipo de comércio e trocas então existentes) foi inter-
rompida por uma nova divisão do trabalho, que depende de merca-
dos internacionais, então a trans formação s ignificou uma destruição
progressiva das áreas tradicionais da agricultl.tra e do artesanato
(Meillassoux, 1975, p.115). Como segundo exemplo, poderíamos con-
siderar a desintegração social das sociedades africanas e o crescente
proletariado urbano como resultado de uma desestabilização das orga-
nizações comuns através de um estabelecimento incoerente de novas
ordens e instituições sociais (Turnbull, 1962; Memmi, 1966; Mait~
1975). Finalmente, se a nível cultural e religioso, através das escolas,
igrejas, imprensa e meios audiovisuais, o projecto colonizador difun-
diu novas atitudes que eram modelos contraditórios e profundamente
complexos em tennos de cu ltura, valores espirituais e no que respeita
à s ua transmissão, também fragmentou o esquema culturalmente uni-
ficado e religiosamente integrado de grande parte das tradições afri-
canas (Bimwenyi, 1981a). A partir desse momento as formas e formu-
lações da cultura colonial e dos seus objectivos serviram de alguma
fonna de meio de banaJização de todo o modo de vida tradicional e
da sua estrutl.tra espiritual. As transformações necessárias e possfveis
significaram que a simples presença dessa nova cultura esteve na base
da rejeição de pessoas inadaptadas e de mentes confusas.
A marginalidade designa o espaço intermédio entre a denominada
tradição africana e a modernidade projectada do coloniaJismo. Aparente-
mente, trata-se de um espaço urbanizado em que, como S. Amin obser-
vou, "vestígios do passado, especialmente a sobrevivência das estrutu-
ras que ainda são realidades vivas (laços tribais, por exemplo), muitas
vezes continuam a esconder as novas estruturas (laços com base na
classe ou em grupos definidos pela sua posição no sistema capitalis-
ta)" (1974, p.377). Este espaço revela não tanto que os novos imperati-
vos poderiam ajudar a dar um salto para a modernidade, como o facto
de o desespero conferir a este espaço intermédio a sua pertinência
precária e, simultaneamente, a sua importância perigosa. Como P. Bigo
referiu recentemente:

AsJOVens nações receiam, com razão, ver o seu mundo original ser engolido nos turb1lhões
da sociedade Industrial e desaparecer para sempre, um pouco como as espécies

I O OtKurso do Poder• o Canllec.m<tnto d1Aiterldade: 19


ontmUis que tt·ntamos com drjrculdade e par 1·eze5 em I'Üc• prow.aer cantru o 111\'0\au
do homem técmco. (Brgo, 1974 p.23)
Não exrsce qualquer dút•rda de que o wlomallsmo dzrecto ou mc/zrccto pro1•oca scmpr<
nos paf~es t·~sa experiênCia de damm10 cultural, uma concammação tão projumln
como oculto Os estilos de vrda c moelas de pensar das noções dommantes rendem a
impor-1c sabre as nações dommadus. Além disso, são acertes, aw mesmo procuradas.
Os modelos surgem sendo alle11ados certos {actores para as pessoas que os adopcam
{Bigo. 1974, p.Z4)

Seja como tor, este espaço intermédio podena ser visto como a
principal expressão do subdesenvolvimento , revelando a forte tensão
entre uma modernidade que é frequentemente uma ilusão de desen-
volvimento e uma tradição que por vezes reflecte uma imagem fraca
de um passado mítico. Também revela a evidência empfrtca desta ten-
são ao mostrar os exemplos concretos de fracassos de desenvolvimen-
to, como o desequilíbrio demográfico, taxas de natalidades extrema-
mente elevadas, desintegração progressiva da estrutura familiar
clássica, iliteracia, disparidades sociaís e económicas graves, regimes
ditatoriais que funcionam sob o nome catártico de democracia, o
declínio das tradições religiosas, a constituição de igrejas sincréticas,
etc. (Bairoch, 1971; Bigo, 197 4 ).
Normalmente, perturbados com tal confusão, os sociólogos preferem
apelar a uma reavaliação dos programas de modernização. Não há
dúvida de que ainda existem muitas teorias a propor e muitos planos a
fazer. Contudo, podemos perceber já que este espaço marginal tem-se
revelado um grande problema desde o início da experiência coloniza-
dora; mais do que um passo no "processo evolutivo" imaginado, tem
sido o local dos paradoxos que pôs em causa as modalidades e impli-
cações da modernização em África.

Formações Discursivas e Alteridade


É certo que os Antelle instruídos. sem serem misantropos.
não estavam de todo interessados nos seres humanos.
Ele declara na com frequência que Já não espera mutto deles ...

P. Boulle, P/anec of rhe Apes

A estrutura colonizadora, mesmo nas suas manifestações mais extremas


- como a crise na África do Sul (ver, por exemplo, Seidman, 1985)
- poderá não ser a única explicação para a actual margmal idade de
África. Talvez essa marginal idade possa, mais basicame nte, ser enten-
dida do ponto de vista das hipóteses ma1s gera1s sobre a classifica-
ção dos seres e das sociedad es. Seria demasiad o fácil afirmar que esta
condição, pelo menos teoricam ente, f01 uma consequê ncia dos discur-
sos antropoló gicos. Desde Turgol (que na década de 1750 classificou
pela primeira vez línguas e culturas, de acordo com "se os povos rsão]
caçadore s, pastores ou lavradore s" [1913-19 23, 1, p.172] e acabou por
definir um caminho ascenden te desde o estado selvagem até às socie-
dades comerciais). a marginal idade não-ocid ental tem sido um sinal
de um possível recomeço e de uma ongem primitiva da história con-
vencional. Em vez de reproduz ir uma visão evolucion ista já demasiad o
conhecid a (Duchet, 1971; Hodgen, 1971), usaremo s aqui um ângulo
diferente , examinan do ambas as questões originada s por uma pintura
do século XV e por se atribuir à antropolo gia do século XIX um "objecto
africano".
Ao comenta r Las Meninas, de Velasquez. M. Foucault escreve: "o pintor
está de pé um pouco afastado da sua tela. Ele olha para o seu modelo;
talvez esteja a pensar se deve dar algum toque final, embora também
seja possível que o primeiro traço ainda não tenha sido feito ..." (1973,
p.3). O pintor está de um dos lados da tela a trabalhar ou a medi-
tar sobre como represen tar os seus modelos. Finalizad a a pintura,
torna-se tanto um dado adquirid o como uma renexão do que a tor-
naram possível. Foucault pensa que a ordem de Las Meninas parece
ser um exemplo de "uma represen tação [que] se comprom ete a
represen tar-se ... em todos os seus elemento s, com as suas imagens,
os olhos a quem é oferecido , os rostos que torna visível, os gestos
que a chamarã o à existência". Contudo , na complex idade surpreen -
dente desta pintura existe uma ausência notável: "a pessoa a que se
assemelh a e a pessoa aos olhos de quem é apenas uma semelhan ça"
(Foucaul t, 1973, p.16).
Tenhamo s agora em considera ção a pintura de Hans Burgkmair, Exotic
Tribe. Estará o pintor recostado a contemp lar os seus modelos exóti-
cos? Quantos? Nem sequer há a certeza de que está presente um modelo
na sala onde Burgkma ir pensa em maneiras de abarcar versões par-
ticulares do ser humano. É o ano de 1508. Dürer ainda é vivo. Burg-
kmair é então um respeitad o mestre da nova escola de Augsburg que
ele fundou. Ele gostaria de agradar aos Fuggers e Welsers e aceitou
ilustrar o livro de Bartholo maus Springer sobre as suas viagens ultra-
marinas (Kunst. 196 7). Ele leu atentame nte o diário de Springer, pro-
vavelmen te analisou alguns esboços desaJeita dos a lápis ou a caneta e
decidiu fazer seis desenhos de "pnmitivos".

1 O O•JcuriC do Poder • oConhectmento dtAI!eridfde n


A primeira imagem do conjunto parece representar uma família
Imaginemos o pintor a trabalhar. Acabou de ler a descrição de Springer
sobre a sua viagem e, possivelmente com base nalguns esboços, tenta
criar uma imagem de negros na "Gennea". Talvez tenha decidido usar
um modelo, presumivelmente branco, mas bem constituído. O pin-
tor olha fixamente para o corpo pálido, imaginando esquemas para o
transformar num ser negro. O modelo tornou-se um espell1o através
do qual o pmto r avalia como poderiam as normas de semelhança e a
sua própna criatividade transmitir quer uma Identidade humana quer
uma diferença racial para a tela. Talvez o artista já esteja a trabalhar.
Mas tem de parar regularmente, caminhar em volta do modelo, aban-
donar o espaço luminoso em frente à janela e relirar-se para um ca nto
discreto. A sua contemplação aborda um ponto que é uma questão:
Como sobrepor as caracteristícas africanas descritas na narrativa de
Springer às normas do contraposto italiano? Se for bem-sucedido, a
pintura deveria ser, pela sua originalidade, uma celebração e uma
recordação da ligação natural entre seres humanos e, ao mesmo tem-
po, uma alusão às diferenças raciais e culturais. Será testemunho da
verdade das semelhanças, das analogias e até, possivelmente, da vio-
lência da antipatia. De todo o modo, Kunst refere que:

Onu ajricano retratado por rros estó em conformidade com o regra clássiCo de contra·
posto expresso no eqUI/íbrro complmsocorro das porres srmetncas da corpo em movr-
merrta; um ombro, inclinando-se sabre uma perna e o outro, erguido acima da perna
livre. Podemos supor qr1e este homem nu for copiado de um modelo clássrco, ao qual o
artista atribuiu caracterfst/Cas, jóias e espadas, de um povo cxátrco ainda projundo·
mente ligado à natureza (Kunst, 1967, pp.19-20)

É fácil julgar a minha preocupação com a semelhança neste pro-


cesso criativo específico. Não estarei a projectar uma perspectiva do
século XX nas técnicas pictóricas do início do século XVI? A estrutu·
ra das imagens encontra-se na primeira pequena pintura tratada de
forma típica. A questão da semelhança poderia ser, afinal de contas,
apenas uma hipótese contemporânea sobre o processo de criação de
relações entre seres e coisas a partir do nosso ponto de vista actual.
Contudo, é possível observar as questões decorrentes da representação
de Burgkmair. Com efeito, podemos descrever a sua filiação artística e
a sua dependência dos ideais clássicos do renascimento (Kunst, 1967,
p.20). Podemos também comparar os princfpios da sua técnica com
os que surgem nalgumas obras contemporâneas que lidam, directa ou
indirectamente, com figuras negras, Moor Dancers (1480) de Erasmus
Grasse1~ Garden of Delights (1500) de Hieronymus Bosch. Kat/een the

u VY Mudlrntt. A lrwenç:iod•AhiCI Gno~•. F~f\1 f'iOfd~rndoConht<•mPfito


Moor Woman (1521 ) de Albre chl Dürer , e mesm o no final
do século ,
Batseba (1594 ) de Corne lisz van Haarlc m. Atrav és da espec
ulação ou
da analis e dos contra stes entre as figura s branc as e negra
s destas pin-
turas, poder íamos certam ente procu rar uma visão associ
ada a expli-
caçõe s histor icame nte conve ncion ais - por exemp
lo, o sentid o das
caract erístic as e "a ideia do design , ou seja, da expre
ssão atrave s da
pura dispos ição dos conto rnos e das massa s e pela
perfei ção e orde-
namen to do ritmo linear " (Fry. 1940, p.165 ). O compl
exo jogo de cores
em hanno nia e oposiç ão, a ordem das somb ras entre
o branc o e o pre-
to, baseia m-se obvia mente em tais referê ncias intele ctuais
e consc ien-
tes. Mas não se referir á a nossa comp reens ão das econo
mias colori das
das telas, de uma forma bastan te msiste nte, a traços
invisíveis?
Os contra stes entre preto e b1anc o conta m uma histór
ia que pro-
vavelm ente duplic a uma config uração silenc iosa. mas
episte mológ ica
poder osa. Ex hippothesi poder á ser apena s uma intera
cção semel hante:
"Convementia, aemulat1o, analog ia e simpa tia conta m-nos
como o mun-
do se deve dobra r sobre si mesm o, duplic ar-se, reflec
tir-se ou forma r
uma cade1a consig o própr io. para que as coisas possa
m assem elhar- se
umas às outras . Dizem -nos quais são os camin hos da
simili tude e por
onde eles passam ; mas não onde se encon tra, como a
vemos , nem com
que marca a recon hecem os" (Fouc ault, 1973, pp.23 -24).
Regre ssemo s à pintur a acaba da de Burgk mair. As três
figura s negra s
-um rapaz. um home m e uma mulhe r que se encon
tra sentad a com
um bebé ao peito - possu em as propo rções adequ adas
entre elas e
relativ ament e ao contex to mais geral. Todas se encon
tram nuas e pos-
suem bracel etes nos pulsos ou um fio ao pesco ço, sinais
evide ntes de
que perten cem a um unive rso "selva gem" (Kuns t, 1967,
p.20). O me-
nino está a dança r; a sua cabeç a, com um taman ho
fora do norma l,
voltad a em direcç ão ao céu. No centro da tela, o home
m. apres entad o
com linhas claras e fortes, contem pla um horizo nte longín
quo, brand in-
do uma seta com a mão esque rda e segur ando outras
duas setas com a
mão direita . Ele encar nao poder. não apena s por ocupa
r a posiçã o cen-
tral da pintur a, mas també m porqu e é o signif icante mais
bem defini do
nesta cena. Ele é o locus que define a relaçã o entre o
rapaz à esque rda
e a mulhe r à direita , retrat ado com um toque de sentid
o hierát ico e
uma força ligeira mente instint iva. À direita , a mulhe
r com o bebé está
sentad a em cima de um tronco . Ela parec e estar a conte
mplar pensa -
tivam ente a zona pélvic a do home m. As curva s do
seu corpo foram
execu tadas segun do os cânon es.
A pintur a no seu todo, com a sua simplicidade e o equilíb
rio dos ritmos
das linhas, parece uma pintura verdad eiram ente encan tadora
e decorativa.
Porém, o que expres sa realm ente é uma ordem discursiva.
A estrut ura das
figuras, bem como o s1gniflcado dos corpos nus, proclamam as vir-
tudes das similitudes: para mostrar os negros de Spnnger, o pintor
representou brancos enegrecidos, técnica que não era rara durante os
séculos dezasseis e t.lezassete, conforme revelam um grande número
de pinturas desse período. É este o caso, por exemplo, da quinta pin-
tura de Filippo Pigafetta, Relattone de/ Reame di Congo, de 1591, que
representava três mulheres afncanas italianizadas, e a do rei africano
no frontispício do livro de J. Ogilby, de 1670, sobre África. O que
é importante na pintura de Burgkmair bem como noutras pinturas
semelhantes é a sua dupla representação.
A primeira, cujo objectivo é assimilar os corpos exólicos da metodo-
logia da pintura italiana do século dezasseis, reduz e neutraliza todas
as diferenças na igualdade simbolizada pela norma branca, que, não
esqueçamos, tem mais a ver com a história religiosa do que com a simples
tradição cultural. Numa linguagem concreta, esta referência significa-
va "uma solução bíblica para o problema das diferenças culturais [que]
era considerada pela maioria dos homens como a melhor que a razão e
a fé poderiam propor" (llodgen, 1971, p.254); ou seja, a mesma origem
para todos os seres humanos, seguida da difusão geográfica e diversi-
ficação racial e cultural. Acreditava-se que a Bíblia estipulava que os
africanos apenas poderiam ser os escravos dos seus irmãos.
Há um outro nível. um ma1s discreto que identifica uma segunda
representação que une através da similitude e eventualmente articula
distinções e separações, classificando assim tipos de identidades.
Em suma, posso afirmar que na pintura de Burgkmair existem duas
actividades representativas: por um lado, sinais de uma ordem epis-
temológica que, silenciosa mas imperiosamente, indicam os processos
de integração e diferenciação das figuras no âmbito da igualdade nor-
mativa; por outro lado, a excelência de uma pintura exótica que cria
uma distância cultural, graças a uma acumulação de diferenças aciden-
tais, nomeadamente, a nudez, a negrura, o cabelo encarapinhado, as
braceletes e os fios de pérolas.
Pelas suas disposições, essas diferenças são sinais pertinentes. Por
causa da ordem fundamental que revelam e que testemunham, as
virtudes da semelhança apagam variações físicas e culturais, defen-
dendo e propondo que as diferenças superficiais são significativas
para a complexidade humana. juan de Pareja (1648), de Diego Velas-
quez, actualiza esta referência integradora, enquanto que importantes
pinturas como Study of Four 8/acks' Heads (1620), de Peter Paul Ru-
bens, Two Negroes (1697), de Rembrandt, e Young 8/ack (1697), de
Hyacinthe Rigaud, referem-se uma outra ordem que expressam ex-
plicitamente. Uma nova base epistemológica funcionava então no
Ocid ente . As teor ias de diversificação
dos sere s, bem com o as tabe las
classificatórias, explicam as orig ens da
cons truç ão de taxo nom ias e os
seus objectivos (Foucault, 1973 , pp.l
25-1 65). O enqu adra men to de
Systema Nawrae (173 5). de Linnaeus,
é apen as uma das classificações
para digm ática s de espé cies e van edad
es de Homo Saptens (europaeus,
asiaticus, ame rica nus ... ) que faz1a uma
dist inçã o de acor do com as
cara cter ístic as físicas e tem pera men
tais (Count. 1950 , p.35 5). Sen a
dem asia do fácil esta bele cer uma ligaç
ão, a mon tant e, com form açõe s
discursivas sobr e a gran de cadeia dos sere
s e sua hier ar4u ia e, ajus ante ,
prim eiro com a craniologia de Blumenba
ch e, em segu ndo lugar: com o
prec once ito anti -afri cano gera l da liter
atur a científica e filosófica dos
séculos XVIII e XJX (Lyons, 1975 , p.24
-85).
Duas formações disc ursi vas mui to dife
rent es- a desc ober ta da arte
afric ana e a cons titui ção do objecto dos
Estu dos Africanos. ou seja , a
"invenção" do Africanismo com o disc
iplin a científica - pod em ilus-
trar a eficácia de dife renc iaçã o de tais
mec anis mos de classificação
gera is com o o padr ão da reali dade , nom
eaçã o, disp osiç ões, estr utur a
e carácter. lá suge ri que a similitud
e foi afas tada das perc epçõ es dos
negr os segu ndo Ruben, Rem bran dt e Riga
ud. O que se enco ntra lá, ofe·
rece ndo uma desc riçã o deta lhad a, pod
e cons ider ar-s e com o uma no-
men clatu ra e uma anál ise de uma alte
rida de que se refe re a uma nova
orde m epistemológica: uma teor ia da
com pree nsão e da anál ise dos
sina is em term os de "a orga niza ção
de iden tida des e dife renç as nas
tabe las orde nada s" (Fou caul t,l97 3, p.72
).
Os nave gado res port ugu eses trou xera
m para a Europa, em finais do
século XV, os primeiro s feitiços, obje ctos
afric anos que supo stam ente
teria m pod eres misteriosos. Enc ontr amo
-los sobr etud o em arm ário s
raro s bem organizados, junt o com toma
haw ks ou seta s dos índios, arte -
factos egípcios e tamb ores . Alguns críti
cos cons ider am- nos sina is do
esta do de barb arism o (Hodgen, 1971
, pp.1 62-2 03). Porém, pod emo s
afirm ar segu ram ente que são com
mais freq uênc ia cons ider ados
simp les curi osid ades traz idas de acor
do com a déci ma tare fa do via-
jant e-ob serv ador da tabe la Geographia
gene ralis (165 0) de Varenius:
cons ider ar "hom ens famosos, artíf ices
e inve nçõe s dos nati vos de to·
dos os país es" (Hod gen, 1971 . p.16 7-16
8). De um mod o gera l, este s
objectos são cult ural mente neutros. Por
caus a das suas formas e estilos,
por veze s um pouc o assu stad ores , repr
esen tam a dive rsid ade mis·
terio sa do Mesmo (Bal, 196 3, p.67).
Só no sécu lo XVIII é que os ar-
tefac tos estr anh os e "feios" foram cons
ider ados no âmb ito da arte
afric ana.
O cont inen te negr o aind a surg1a nos
map as com o terra incógnita,
mas os seus povos e as suas produções
mate riais eram mais conhecidas
dos viajantes, dos estudantes da espécie humana, dos comercian tes
e dos Estados europeus. Desde o início do século XVIII, houve um
enorme aumento do comércio de escravos e de uma economia trans-
atlântica rentável que envolveu a maioria dos patses ocidentais . Na
África Ocidental, Dahomey foi um poderoso parceiro comercial dos
comercian tes europeus. O Império Ashanti foi alargado, dominand o
os Akans e o Reino de Oyo, mais a leste, e aumentan do o seu poder
à medida que crescia. Os escravos libertos e os africanos empobre-
Cidos estabelece ram-se na actual Serra Leoa por meio de organiza-
ções financiada s pela Europa. Na costa leste, em 1729, os africanos
expulsaram os portugues es das suas fortalezas na região norte de
Moçambiq ue; e no Sul, em 1770, houve a primeira guerra entre imi-
grantes holandese s e Bantus. Dois anos mais tarde, james Bruce,
viajando do norte para a África Central, chegou à nascente do Nilo
Branco exactamen te no mesmo ano em que o chefe de Justiça Mans-
field declarou em Inglaterra que a escravidão era proibida por lei
(Verger, 1968).
Nesta atmosfera de trocas intensas e violentas, os [e1tiços tornaram-s e
símbolos da arte africana. Eram considerad os primitivos , simples, in-
fantis, absurdos. Mary 11. Kingsley, no inicio deste século, resumiu tudo
com uma avaliação axiomática : "O africano nunca fez sequer um pano
da pior qualidade nem cerâmica" (Kingsley, 1965, p.669). Parece-me
que a partir do século XVIII decorreu "um processo de estetização "
(Baudrillar d, 1972). O que é denominad o arte selvagem ou primi-
tiva abrange uma vasta gama de objectos introduzid os pelo contacto
entre africanos e europeus durante o intenso comércio de escravos
no contexto do século XVIII. Estes objectos, que provavelm ente não
são realmente arte no seu "contexto nativo': tornam-se arte quando
se lhes confere simultane amente um carácter estético e a capacidad e
de produzir e reproduzir outras formas artísticas. Tendo em conta a
sua função inicial e o seu significado , poderiam estas ter criado uma
perspectivação radical da cultura ocidental ligada às classificaç ões
(Baudrillar d, 1972)? Isso é precisame nte uma impossibil idade. As artes
baseiam-se em criténos e é difícil imaginar que estes padrões possam
emergir do exterior do campo "conhecim ento-pode r" de uma dada
cultura, um campo que, num período histórico, institui a sua bíblia
artística. Portanto, é óbvio que os fetiches e outras peças "primitiva s"
de arte são fantásticas , porque a sua estrutura, carácter e organizaçã o
exigem uma designação (Laude, 1979; Wassing, 1969). São "selvagens "
em termos da cadeia evolutiva do ser e da cultura, o que estabelece
uma correspon dência entre o avanço no processo de civilização e a
criatividad e art!stica, bem como as realizaçõe s intelectuai s.
Nesle ponto, paradoxa lmente, a cele bração do a rtesanato a fri cano
confirma a minha análise. Ao adm1ra r a beleza de uma "escultur a de
um negro", o fa lecido R. Fry estava pe rplexo:

É curioso que os pessoas que produ11ram tao bons urmcas não tt·nham pruduzido
uma cultura nu nosso scnt1do da rol01•ra. Isto mo.çtra qui! são necessonos dms focrore:,
para produzir ~~~ culturas que diSLmyuem as pessoas civilizadas É necessário, claro, a
arti.fto cnauvo, mas camhcm o poder du apreciação crítiCo consCiente e da ccJmpara-
ção. (Fry~ 190, pp.90-91).

Te mo que Fry esteja completa mente errado. Os dois facto res não
explicam nem podem explicar tipos de cultura. Apenas constitue m
uma base para a produção de arte e as suas possíveis modifica ções
ao longo do tempo (ver La ude, 1979; Delange, 196 7). Não podem ser
completa mente responsá veis pelos padrões de cultura internos. De
todo o modo, é o "poder-c onhecime nto" de um campo epistemo lógico
que possibilita uma cultura dominant e ou modesta. Segundo esta perspec-
tiva, o ponto que Fry apresent a depois possu1 um grande se ntido: "É
muito provável que o artista negro, embora capaz de ... compree nsão
imaginat iva profunda da forma, aceitasse a nossa arte mágica mais
barata com modesto entusiasm o" (1940, p.91).
A minha tese é confirma da, quase ad absurdum , pelo estudo de arte
africana contemp orânea para turistas, de B. jules-Ros ette. Ela define
esta arte como uma "arte produzid a localmen te para s er consumid a
por estranhos " (1984, p.9) e insiste fortemen te na interacçã o para doxal
entre a sua origem e o seu destino, ou seja, a sua produção e o s eu
consumo:

Embora o conceito de s1stema de arte para wnstas enfatize o forma como os arriscas e
os suas audiências compreendem as Imagens e os convertem em bens económiCos, não
negligencia os componentes expressivos da interacção. No sistema, ambas as Imagens
e objectos consmuem fontes de permuta entre produtores e cons111111dores. Embora os
artistas tenham uma percepção dura do aud1ência turístico, os consumidores por vezes
tém um contacto d1recto multo limitado com os arclstos. (jules·Roseue. 1984. p.IO)

Este conceito de arte para turistas implica, em princípio , uma crítica


da compree nsão cláss ica da arte. Também significa explicitam ente uma
relativiza ção do que o autor denomin a "pressup ostos sobre a forma e a
qualidad e das produçõe s de arte para turistas" ; nomeada mente, o seu
carácter de produção e m massa, a rela tiva inexperiê ncia dos artesãos
actuais, a colectivização da produção artística e a sobrepos ição da pro-
cura do cons umidor relativame nte à criativida de artíslica.
A tese do estudo é sustentada por um argumento claro. A arte para
turistas é tanto um intercâmbio simbólico como económico. Isto pode
ser entendido, de acordo com )ules-Rosette, através da referência a
três modelos: em primeiro lugar. as artes tradicionais com um significa-
do social e cerimonial podem e tornam-se objectos produzidos princi-
palmente para o comércio externo. Em segundo lugar. na própria arte
para tunstas, há sinais de uma grande tensão existente entre "cultura
popular" e "alta culrura". Ou, como afirma )ules-Rosette: "cultura popu-
lar contrasta implicitamen te com outra coisa- a alta cultura ... Há uma
tensão inerente e assimetria entre os ideais da alta cultura e as causas
do lucro e as novas tecnologias reprodutivas que sustentam o cresci-
mento do mercado das culturas populares" (1984, p.23). Quanto aos
horizontes dessa produção artística, )ules-Rosette insiste na questão
da leitura ocidental da criatividade africana e as suas propostas para
inovações em oficinas africanas.

O mercado de arte mwrnacmnol para turisros depende da procuro oc1dencal de uma


lembrança "exonca ·e de presentes e o suposição de que eles devem ser adquimfos no
excenor. Os arnstos e artesãos utilizam essa procuro como um estimulo para a criação
de novas 1de1as e de tecnologias para dor resposta às necessidades do mercado em
expansão. Oules-Rosectt•. 1984. p.l192)

A arte para turistas e suas contradições (Será arte? Em que sen-


tido e de acordo com que tipo de classificação estética?) são apenas
uma consequênci a ad vallem do processo que, durante o período
do tráfico de escravos, classifícou os artefactos africanos de acordo
com a classificação ocidental de pensamento e imaginação, em que a
alteridade é uma categoria negativa do Mesmo. É significativo que
um grande número de representaçõ es europeias de africanos, ou mais
geralmente do continente, demonstrou essa ordem da alteridade. Por
exemplo, a pintura de Andreas Schulter; Africa (1700), é estruturada
com base numa relação complexa entre uma mulher negra nua e um
leão assustador que permanece de forma protectora por trás de seu
corpo voluptuoso. A African Allegory (1765), em lconologia (t. IV. Foi.
164), de Cesare Ripa (L rv, foi. 164) é um texto bíblico e cientifico. O
nome do continente está associado etimologicam ente a Afer, filho de
Abraão, porém contrastando com a peculiaridad e do continente ser
apresentada com símbolos poderosos: a cor preta de uma mulher com
clúfres, um monstruoso anima l com um rosto humano rodeado de ser-
pentes e de pássaros bizarros. O africano tornou-se não só o Outro,
que é toda a gente excepto eu, mas antes. a chave que, com as suas
diferenças anorma1s, especifica a identidade do Mesmo. Africa, de G. 8.
Tiepolo (175 0-17 53), Algericm Won wn, de
Delacroix (183 4) e uma in-
fintdade de outra s pintu ras pode m ser obse
rvad as pelas suas insm ua-
ções: vestígios de outra coisa murm uram , comb
inaçõ es de cor revel am
os slgnifícados. e degr aus de uma esca da secre
ta indicam a mag nttud e
de uma nova orde m.
Estas repre senta ções são cont emp orân eas
das discu ssõe s do Ilu-
mini smo sobr e prop ostas axio máti cas tais
como "os hom ens nasc em
desiguais" e ques tões como "o luga r do selva
gem na cade ia do ser"
(Duchet, 1971 ; Hodgen, 1971). Nos anos segu
intes , as saga s da explo -
ração tiver am início com a expe dição de J.
Bruc e
e a viagem de Mungo Park no rio Níger, em 1795 . na Etiópia, em 1770 ,
O texto roma ncea do
oriun do desta s expe diçõ es não é fund amen
talm ente original (ver, por
exemplo, Ham mon d & jablow. 1977 ). Reve
la carac terís ticas já bem
delim itada s e instituídas. A disti nção entre
"neg ro selvagem" e ''mao -
meta no civil", os come ntári os sobr e a indo lênci
a dos africanos, as suas
paixões dese nfrea das e a sua crue ldad e ou
atras o ment al já lá estav am
prese ntes. Eles integravam a série de opos ições
e de níveis de classifi-
cação dos seres hum anos exigidos pela lógic
a da cade ia do ser e pelas
fases de evol ução e dese nvol vime nto socia
l. Os expl orad ores apen as
troux eram nova s prov as que pode riam expl
icar a "infe riori dade afri-
cana". Uma vez que os afric anos não cons
egui am prod uzir nada de
valor; a técnica de estat uária Yoruba deve ter
tido orige m nos egipcios;
a arte do Benim deve ser uma criaç ão portu
gues a; as prod uçõe s arqu i-
tectó nica s do Zimb ábue deve ram- se a técn
icos árab es; e a arte de
gove rnar de Hausa e Buganda foram inve nçõe
s dos inva sores bran cos
(Davidson, 1959 ; Lugard, 1905 ; Randaii-Mciver
, 1906 ; Sand ers, 1969 ;
Mallows, 1984).
Esta tend ência tamb ém surg e nout ros camp
os. Dois botâ nico s fran-
ceses, A. Chevalier, em 1938 , e R. Porte res,
na déca da de l950 , suge ri-
ram que o cont inen te afric ano pode ria ter
sido muit o cedo um local
de dom estic ação de plan tas (ver por exemplo,
Porte res, 1950 e 1962 ).
Com base nos dado s linguísticos, o antro pólo
go G. P. Murdock apre -
sento u uma prop osta seme lhan te e argu ment
ou acerca do que chamou
"cultivos comp lexos suda nese s" (Murdock
, 1959 ). Esta s hipó teses
foram repu diad as e hoje "a visão de long e
mais popu lar sobr e as ori-
gens do cultivo de cerea is na África Subs aaria
na é que seria o prod uto
da migração hum ana ou alguma forma de difus
ão de cultu ra ou estím ulo
onun do do sudo este da Ásia" (Des mon d Clark
& Bran dt, 1984 , p.111;
Ver tamb ém Reed, 1977 ).
Aqui está uma última ilustração. O traba lho
de M. Griaule e dos seus
discípulos no país dos Dogon dem onst rou
a comp lexid ade do conhe-
cime nto astro nôm ico dos Dogon e o seu
simb olism o (por exemplo,

I OOiteul1odoPod.ertDCOtltwclmt!'n1o
<M Aht~ 19
Griaule, 1948, 1952; Griaule & Dieterlen, 1965, 1976; Dietcrlen, 1941;
Heusch, 1985). A Carl Sagan, professor de astronomia na Universi-
dade de Cornell, coube a tarefa de verificar a validade da cosmologia
dos Dogon. Sagan começa por expor a sua surpresa: "ao contrário de
quase todas as sociedades pré-cientificas, os Dogon acreditam que os
planetas bem como a Terra giram sobre os seus eixos e em torno do
sol..." (Sagan, 1983, p.81). Estranhamente, em vez de usar Griaule e a
documentação dos seus discípulos, Sagan explora um certo Templo,
que sintetizava as descobertas de Griaule: "os Dogon vão mais além.
Acreditam que Júpiter tem quatro satélites e que Saturno é envolvido
por um anel... Segundo se diz, ao contrário de qualquer asb·ónomo an-
tes de Kepler, os Dogon retratam os planetas a moverem-se correcta-
mente de forma elíptica, não circular" (1983, p.82). O mais espantoso
para Sagan parece ser o seguinte:

/Os Dogonsj afirmam que [Sinos] possui umo estrela companhe1ra mvisível que
descreve uma órbita em corno de Sinas... a cada cinquenca anos. Eles afirmam que
o estrela campanhe1ra é muno pequena e muito pesada, consciwfda por um metal
especial chamada 'Saoala' e que nõo se encontra na Terra. Ofacto espantoso é que a
estrela visfvel possui uma extraordinána companheira escura, Sirius 8, que descreve
uma órbita e/fpcica em torno daquela a cada 50,04::!: 0,09 anos. Sirius 8 é o primeiro
exemplo de uma estrela anã descoberta por astrofísicos modernos CUJO matéria se en·
contra num estado denominado "deoeneração relativista" que não existe na Terra e
uma vez que as electrões não esteio vinculados ao núcleo nessa matéria degenerada,
podl! ser precisamente descrito como metálico. (Sogan. 1983, p.83)

Como podemos explicar os conhecimentos de astronomia dos Dogons?


Sagan apresenta uma hipótese: "Imagino um visitante gaulês junto do
povo Dogon ... Pode ter sido um diplomata, um explorador, um aventu-
reiro ou um antropólogo precoce..." (1983, p.87). Este homem leu, ou
melhor ainda, possui uma cópia do livro do Si r Arthur Stanley Edding-
ton, The Nature of the Physical World, publicado em 1928, no qual se
discute a densidade das estrelas anãs brancas.

A conversa transforma-se em sabedoria astron6mica. Strius é a estrela mats brilho me


do céu. Os Dogon presenteiam o VISitante com a sua mitolog10 sobre a Sinus. DepoiS,
sornndo educada mente, com ansiedade, questionam o seu VISitante sobre o que poderá
ser o mito da sua Smus ... Sendo a companherra anã e branca de Sirius uma sensação
astronómica corrente, o viajante permuta um mito fantástico por um rotineiro. Quan·
do parte, a sua versão é recordada, recontada e eventualmente incorporada no corpo
da mitologia dos Dogon ... Quando Mareei Grioule procede a pesquisas mitológicas nas
décadas de 1930 e 1940, apareceu-lhe o mito europeu de Sirius
Tud o isto é pura especulação. Se Saga
n tivesse cons ulta do cuid ados a-
men te fontes reco nhec idas (por exem
plo, Gnaule, 1948; Dieterlen,
1971; Griaule & Dieterlen, 196 5) não
teria conf undi do os factos e os
níveis Simbólicos para tece r cons ider
açõe s sobr e um "ret orno do mito
após um ciclo com pleto ". Analisemos
três factos. Em prim eiro lugar, o
ciclo orbi tal de Siriu s B é repr esen tado
por meio de anal ogia s e re-
flecte-se na cele braç ão do s1gui, um
ritua l intro duzi do por um ante -
pass ado mítico dos Dogons, Dyongu Seru
. É cele brad o a cada sess enta
anos ; um perí odo simbólico que integ
ra cinq uent a anos de revo luçã o
de Sirius B (par a os Dogons, a "est rela
de fonio"), mais dez anos . o que
faz o ritua l coincidir com o antig o siste
ma Mandé de num eraç ão por
sess enta e com os seus símb olos esot
éric os (Dieterlen. 1971 . pp.2-3).
O últim o ritua l sigui deco rreu em 196
7 e foi filmado por ). Rouch e
G. Dieterlen e edit ado com o docu men
tário com o titul o La Caverne de
Bongo (1969, 35m m. a core s). A ceri môn ia
s1gui ante rior foi em 190 7 e,
ante s disso, em 184 7. "O rito é cele brad
o sob o 'signo' da 'estr ela do fo-
nio'. Na verd ade. esse 'com panh eiro ' de
Siriu s é a repr esen taçã o no céu
da pequ ena sem ente fonio ... " (Heusch,
1985 . p.l4 7). Em segu ndo lugar,
se quis erm os vali dar a hipó tese de Saga
n, deve mos , de facto, dem on-
stra r que um viaja nte euro peu se dirig
iu à região dos Dogon apen as
após a desc ober ta em 1844 , por F. W. Bess
el, do mov imen to seno idal de
Sirius. Deve-o ter ensi nado bem aos Dog
ons, pois este s rapi dam ente o
inte grar am nos seus mitos, de tal form
a que funcionou perf eita men te
com o conj unto dos prin cipa is símb olos
fund ador es a temp o do ritua l
de 184 7 do sigui. Em terc eiro lugar, a
supo siçã o ante rior pare ce difícil
uma vez que Sirius B foi, na ciência ocid
ental, real men te desc ober ta em
1862 , por A. G. Clark. Os Dogons Já havi
am usad o o simb olism o do fonio
nos ritua is sigui de 184 7 e 1787 . Os espe
ciali stas de "civilizações orai s"
pode m facilmente confirmar este facto.
Ao mes mo tempo, deviam avaJiar
a cred ibili dade histó rica e o cont exto
de Dyongu Seru, que de acor do
com a trad ição Dogon é o "res pons ável
pela perd a da imo rtali dade " e o
inve ntor do ciclo sigui (Heusch, 1985
; Griaule & Dieterlen, 1965 ). Por
outr o lado, vejo outr o prob lema : o conc
eito de sagala dos Dogons, um
met al que não exis te na terr a e que
con stitu i a natu reza do com -
pan heir o de Sirius, está prof und ame
nte asso ciad o ao ciclo mítico do
sigui. Assim, pare ce recu ar rela tiva men te
longe na histó ria do ritual,
enqu anto na ciência ocid enta l a hipó
tese da "nat urez a rela tiva men te
dege nera da" de Sirius B apen as foi
adia ntad a pela prim eira vez na
déca da de 1930 . A maioria dos den tista
s não acei tou entã o o conceito.
o qual foi prop osto pelo acad êmic o indi
ano S. Chandrasekkar.
Para conc luir esta longa ilust raçã o
de um etno cent rism o epis te-
mológico, pens o que ficou agora claro
com o as hipó tese s de Carl Sagan

1 OOt 'CUtJOdQPQ.dereoConhtctmtnto
ct.i AII r rKf~t 11
são controversas. Vamos então resumi-las. Em primeiro lugar, não
acredito que os Dogons tenham recebido o conhecimento em astrono-
mia dos extraterrestres. A "má-fé" (no sentido de Sartre) com a qual
Sagan destrói as teses e fantasias de E. von Daniken que reivindica
estas ideias em Chariots of tlle Gods (1970) e Gods from Ou ter Spnce
(1978) faz-me suspeitar que Sagan e E. von Dãniken estavam provavel-
mente mais perto um do outro do que eles próprios suspeitavam. Em
segundo lugar, a forma como Sagan trata os Dogons ilustra o poder
de uma verdadeira vontade. Uma metáfora pode generalizar este caso.
Imaginemos um teórico que está rodeado pela geometria euclidiana.
Ele pensa, acredita e escreve sobre a impossibilidade de sistemas não
euclidianos. Estes, com efeito, encarnariam a possibilidade de con-
tradições incríveis, como a realidade intelectual de uma verdade in-
trfnseca (por exemplo, um teorema demonstrado de forma váJida na
geometria eucl idiana), que seria simultaneamente um erro extrfnseco,
isto é, uma suposição negada de forma válida na lógica de uma geome-
tria não euclidiana. Como sabemos, existem coisas como geometrias
não euclid ianas. Assim, a minha metáfora poderia pelo menos tomar-se
um símbolo: pode não fazer realmente sentido reduzir sistemas
não-euclidianos a Euclides, uma vez que os sistemas brotam de axi-
omas e conjuntos de axiomas radicalmente diferentes.
Em suma, embora apresentadas na segunda parte do século XX, as
hipóteses de Ca1·1 Sagan pertencem ao pensamento do século XIX sobre
"primitivos". Em nome do poder e conhecimento científico, revelam
de uma forma maravilhosa o que definirei no próximo capítuJo como
um etnocentrismo epistemológico; nomeadamente, a crença de que
cientificamente não há nada a aprender com "eles", excepto se já for
"nosso" ou surgir de "nós".
Os exploradores não revelam a alteridade, comentam a "antropolo-
gia", ou seja, a distância que separa a selvajaria da civilização na linha
diacrônica do progresso (ver Rotberg, 1970). R. Thomton reivindica
que "a descoberta de África foi também uma descoberta pelo papeL
Se os grandes viajantes vitorianos não tivessem escrito nada hoje não
se diria que eles tinham 'descoberto' nada". No entanto, estritamente
falando, parece ser difícil provar de forma convincente que "Livingstone,
Stanley, Burton, Grant, Speke e outros embarcaram nesta iniciativa por
causa do texto" (Thornton, 1983, p.509). Outros estudiosos podem
invocar outros motivos como os clássicos de curiosidade, coragem,
generosidade e desdém (Killingray, 1973, p.48).
De qualquer forma, o texto do explorador não é epistemologicamente
inventiva. Segue um caminho prescrito por uma tradição. Os relatórios
das expedições apenas determinam uma representação muito concreta e

31 V'I Mudtmbe A lnvençio de Afr1ca GI')(Kf, Filosoflt f" • Ordem do Cot\hedmento


vívida do que as pintur as e teonas de progre sso social sugeri
am desde
o períod o barroc o. Relativamente ao que o texto do explor ador
revela,
este não aprese nta nada de novo para além das 1<1zões visívei
s e recen-
tes para valida r uma disciplina já bastan te definid a pelo Ilumin
ismo
(Lévi-Strauss, 1973, pp.45-56). A novida de reside no facto
de o dis-
curso sobre ''selvagens" ser, pela primei ra vez, um discur so em
que um
poder político explicito pressu põe a autori dade de um conhec
imento
científico e v1ce-versa. O colonialismo torna- se o seu projec
to e pode
ser pensad o como uma duplic ação e um cumpn mento do
poder dos
discur sos ociden tais sobre varied ades human as.
O desenv olvime nto da antrop ologia , que até ao final do seculo
XVIII
foi pesqui sado nas narrati vas dos viajan tes, dá agora uma
virage m
rad1cal. De agora em diante ele evolui rá para um sistem a polftic
o de
poder- conhec imento claram ente visível. Como Foucault refere:

11 l!rnologia cem os suas raizes,


170 verdade, numa pCISsibiltdode que pertenc
e concre-
tamente á htstona da cultura europera. ainda mars no que dtz respetto
a sua relação
jundamencal com todo a htstono .. '/lá uma certa posição do ràcro
ocidental qui! se
constituiU no sua histnna e proporciona uma base para a relação
que pode ter com
todas as outras socredades:. Obvtamente, tsso não sigmfica quL•
a colontzaçcio é
rndtspensável poro a ecnologta. nem a htpnose. nem a alienação do pacient
t dentro da
pcrsonagemfantasmátrca do médico, mtegra o psrcanáltse; mas tal
como esta liltrma
pode ser implantada apenas no ~·toléncw calma de uma relação especific
a e na trans-
feréncra que produz, wmbém a ·ernologra pode ossumtr as suas dimensõ
es adequadas
apenas dentro da soberania h1stórica- sempre repnmida. mas sempre
presente- do
pensamento europeu e da relação que podefaz~-la enfrentar todas as
outras culturas,
bem como a próprra: (Foucaulc, 1973, p.377)

Géne se Afric ana


Gostaria de usar a expres são African genesis (1937) de Froben
ius
para formu lar hipóte ses sobre o local epistem ológic o da invenç
ão de
África e o seu significado nos discur sos sobre África.
A génese da ciência antrop ológic a ocorre u no contex to da ideolog
ia
mercantilista. Sabem os que durant e o século XVIII, confor
me refere
G. Williams, "as colónias eram ... de valor apenas por trazere m
vantagens
materi ais para a pátria" (1967, pp.17-30). Por outro lado,
é durant e
este mesmo século que, parado xalme nte, as Interp retaçõ es iniciai
s so-
bre os "selvagens" são propos tas pelos cientis tas sociais do Ilumin
ismo
(Duchel, 1971). E eu concor do com R. L. Meek quand o refere
que se
observ armos os seus trabalh os, "o que se destac a são as suas
virtude s,

I O OiJ,{UnQ do PoMr t oCon~«unf>ntod.IAhtodidt


)]
ma1s do que os seus vicios. as suas instituições brilhantes, mais do que
os lapsos lóg1cos ocasiOnais, a sua capacidade de se aventurarem e a
novidade. mais do que o seu dogmatismo" ( 1976. p.242). Para justifi-
car esta opinião, Meek c1ta Marvin Harris. The Rise ofAnthropological
Theory (1968), BenJamin Keen. The Aztec Imoge in Western Thought
( 1971 ). e Sidney Pollard, The ldea of Progress (1958). Posso ainda
acrescentar Claude Lévi-Strauss, Anthropologie structurnle 11 (1973) e
M. Duchet, Anthropologie et histoire ou siecle des lumieres (1977).
A questão é que durante este per!odo tanto o imperialismo como a
antropologia ganhavam forma, possibilitando a reificação do "primi-
tivo". O importante é a ideia da História com um "H" maiúsculo que
primeiro integra a noção de providentia de Santo Agostinho e depois
manifesta-se na evidência do Darwinismo Social. Evolução, conquis-
ta e diferença tornam-se sinais de um destino teológico. biológico e
antropológico que atribui às coisas e aos seres as suas áreas naturais e
missão social. Os teóricos do capitalismo. como Benjamin Kidd e Karl
Pearson, na Inglaterra, Paul Leroy-Beaulieu, em França. Friedrich Nau-
mann e Friedrich von Bernhard, na Alemanha, bem como filósofos,
comentam dois paradigmas principais e complementares. Estes são
a superioridade inerente à raça branca, e, como já foi explicitado em
Philosophy of Right, de Ilegel. a necessidade das economias e estruturas
europeias se expandirem para as "zonas virgens" do mundo (Mom-
msen, 1983).
A partir deste momento. várias escolas de antropologia desen-
volveram modelos e técnicas para descrever o "primitivo" de acordo
com tendências em mutação no contexto da experiência ocidental.
Estas tendências diversas podem ser facilmente explicadas a partir de
dois ângulos: o primeiro é ideológico e diz respeito à relação entre a
projecção de consciência de um indivíduo, as normas exemplificadas
pela nossa sociedade, e o grupo social e científico dominante (ver, por
exemplo, Baudrillard, 1972, p.l74). Por outro lado, sobretudo a partir do
fim do século XVIII, as ciências naturais serviram como modelos para
a implementação progressiva e hesitante das ciências sociais (Duchet,
1971, pp.229-473). Pensamos. m concreto. nos "interesses ideológicos
das camadas que são de várias formas privilegiadas num sistema e, de
facto, privilegiadas pela sua própria existência" (Weber, 1978. p.920).
Por outro lado, o convite de Aristóteles para estudar os seres do "plano
da natureza'' (Animal, 1. 5) matematizados (Veyne. 1984, p.63). Novas
classificações metodológicas ligam factos sociais a fenômenos físicos.
As leis de organização e distribuição estrutural e os padrões de desen-
volvimento individual ou colectivo são responsáveis pelas transfor-
mações históricas. O cientista social tende a imitar o naturalista e a
concentr ar os comport amentos sociais e as culturas humanas ern
"paradig mas c1entfficos". Na verdade, estes continua m Integrado s pelo
ObJectivo do conhecim ento definido. Paul Veyne produziu recente-
mente afirmaçõ es fortes sobre a confusão que advém deste legado:

Buffon pensai'O que a mosca não devena ocupar um lugar ma1s lmtmrtante nas preo·
cupações do IICIWraflsta do que aquele q11e ucup11 na natut cza; pm outro lado, manteve
uma relação tmportantt com o ca1•ulo e o Cisne... Mas 11 Zoologto mudou bartante
desde então c depois de Lamarck ter defendido a causa dos ammws mfenores, cada
orgur~~smo wmou-se ele mreresse para a Ciência.

Wcber esco,•a md1gnudo por a histórra dos Bumus poder .~er estudada tanto como o dos
gregas. Não rcspondamM que os tempos mudaram, que o Terce1ro Mundo e seu patno·
ttsma nusce11tl.!... que o clespertar do povo afnrano que se mteressa pelo passculo ... seno
um momento adequado poro 1•er que a consideração parruínco de\'e ser o cmeno do
inrert'sse mtelectual e qut• os afnconos cem mms razões para desprezar a 0111 1guidade
grega do que os europeus paro desprezar a a11t1guidade Buntu. fVt:vne, 1984. (1.62}

Ao nível da organizaç ão dos discursos , estes dois factores- o impac-


to da ideologia e o modelo das ciências naturais - podem orientar a
unidade epistemo lógica relativa das ciências sociais desde o século
XIX. Por exemplo, sena mais fácil traçar um paralelo entre a filologia
e a antropolo gia. Hoje em dia tendemo s erradam ente a consider ar o
primeiro, e particularmente um dos seus ramos, a linguística, como
mais científica do que a última. O historicis mo de Morgan em Systems
o[Consanguinity and Afftnity ofthe Human Family (1871) correspo nde
ao positivism o de Max Muller em Lectures on the Science of Language
(1861 e 1864), no qual a fidelidade a August Schleicher, Stammbaum-
theorie, está integrada nos pressupo stos gerais de Darwin. Da mesma
forma, a Wellentbeone é crucial no trabalho de). Schmidt (por exem-
plo, Die Verwandtschaftsverhdltnisse der lndo-Germanischen Sprachen ,
1872) e é semelha nte à perspect iva difusion ista de Ankerma nn,
Frobemu s e Graebne r na antropolo gia. Os princípio s de associaçã o e
diferença evocados por Boas e Lowie assemelh am-se a muitas hipóte-
ses do campo filológico. Os exemplos são as interpret ações de analogia
"]unggrammatiker" na evolução da linguage m, exemplif icados no rra-
balho de Meyer-Lubke ou as perspecti vas abertas por 11. Schuchar dt,
em Uber di e Lautgesetze, no qual o conceito principal - Sprachmischung
- implica quer a necessida de de subordin ar leis gerais, como as pro-
movidas pelos discípulos de Darwin, quer complexi dade e alteridad e
dos objectos descritos e estudado s.
Não quero com 1sto dizer que existe uma dependên cia genealógica
inqueslio nável ou uma hgação sincrónic a óbvia entre estas teorias.
É evidente, por exemplo, que Schuchardt lida extensivamente com a
comparação multidimensional, enquanto Boas a evita. Simplificando,
pretendo com isto dizer que a antropologia e a filologia e todas as
ciências sociais podem ser efectivamente compreendidas apenas no
contexto da alternativa epistemológica. As histórias destas ciências
bem como das suas tendências, as suas verdades bem como as suas
expe1iências, derivando de um dado espaço, falam dai e, sobretudo,
sobre esse mesmo espaço. Assim, também poderíamos concordar que
desde a antropologia de Buffon, Voltaire e Rousseau e Diderot aos
esh1dos mais modernos, tais como o estudo de). Favret-Saada sobre
a feitiçaria em França (1977), a preocupação básica da antropologia
não é tanto a descrição de sociedades "primitivas" e das suas realiza-
ções, mas sim a questão dos seus próprios motivos e a história do
campo epistemológico que a torna possível e na qual flo resceu como
discurso filosófico retrospectivo ou perspectivista (ver Sebag, 1964;
Diamond, 1974). Assim, o etnocenlrismo é tanto a sua virtude como a
sua fraqueza. Não é, como algw1s acadêmicos referem, um lamentável
acidente nem um acidente estúpido, mas um dos sinais mais impor-
tantes da alternativa da antropologia.
Alguns pensadores, como Lévi-Strauss, defendiam que o estudo da
diversidade de culturas reduzia o peso da ideologia e possibilitava aos
antropólogos lutar contra falsidades como as relacionadas com a supe-
rioridade natural de algumas raças e tradições relativamente a outras.
Deste ponto de vista ético, alguns acadêmicos questionaram-se se seria
possível pensar numa ciência antropológica livre do etnocentrismo
(por exemplo, Leclerc, 1972). É decerto possível, conforme provaram
o funcionalismo e o estruturalismo, ter trabalhos que parecem respeitar
as tradições indígenas. E poderíamos esperar mudanças ainda mais
profundas na antropologia, conforme propõe R. Wagner (1981). Con-
tudo, muitas vezes, continua a parecer impossível imaginar qualquer
antropologia sem uma ligação epistemológica ocidental. Por um lado,
não pode ser completamente eliminada do campo da sua origem epis-
temológica e das suas raízes; e. por outro lado, como ciência, depende
de uma estrutura precisa sem a qual uma ciência não existe, nem a
antropologia.
Distingo dois tipos de "etnocentrismo": uma filiação epistemológica
e uma ligação ideológica. De facto, estas são com frequência comple-
mentares e inseparáveis. A primeira é uma ligação à episteme, ou seja,
uma atmosfera intelectual que confere à antropologia o seu estatuto
como discurso, o seu significado como disciplina e a sua credibilidade
como ciência no campo da experiência humana. A segunda é uma ati-
tude intelectual e cornportamental que varia de indivíduo para indi-

36 VY Mudrmbe A lnveoção de Africa GnoJ.tt, FtloiohJ. e a Ordnn do Conhec•me11to


vfduo Esta atitude e basicam ente uma conseq uência e uma expres
são
de uma ligação complexa entre a projecç ão da consciência do ac::tdém
i-
co, os modelo s científicos do momen to e as normas cultura is e sociais
desta socieda de. Ass1m, por exemplo, relativa mente ao século XVlll,
poderia mos pensar nas diferen ças existen tes entre Goguet, Quesna
y
e Helvétius, indepe ndente mente do conteú do das suas interpr etaçõe
s
das etapas evolucionistas (ver Duchet, 1971; Meek, 1976). Froben ius
e
Lévy-Bruhl diferem da mesma forma e o seu etnocen trismo é bastan
te
diferente do de, por exemplo, Michel Lei ris, Margaret Mead ou Carl Sagan.
Poderia dizer que a filiação epistemológica mantém e suporta a antro-
pologia como sistema de conhec imento e como ciência em desenv olvi-
mento; o etnocentrismo cultural explica as mudan ças ideológ icas
e as
lutas na história, bem como a prática da disciplina da ciência social.

O jacto de o ctv1ilzoção unti'Crsa/ ter tido origem durante mutto wmpo


no centro
europeu conservou o tlusão de que o cultura europeta fot. de facco e por dtrelta,
uma
cultura um1•ersal. A suo superlortdodc sobre outras ciwllzaçoes parecta proporCi
onar
uma vertfteoção experimental desta supostção Alem dts.m, u encontro com
uutras
culturas foi em si o resultado tio avanço e mais geralmente o resultado do
próprio
ctência ocidental Não foi a Europa que im•entou a htstória, a geografia, a etnograf
ia e
a soctolagio nas suas formas Clentf[tcas exp/fcl(as? (Ricoeur. 1965, p.277).

Na experiê ncia colonizadora, 'a fusão destes dois aspecto s de etna-


centris mo tendia, quase natural mente, a ser comple ta no discurs
o
do poder e no do conhec imento , ao ponto de transfo rmar a missão
da disciplina num project o de acultur ação. E o antropó logo decidiu
encarre gar-se do control o dos process os evolutivos: "A Antrop ologia,
que costum ava ser o estudo dos seres e coisas antigas, gradua lmente
e, ao contrár io, depara -se agora com a difícil tarefa de record ar como
o 'selvagem' se torna um partici pante activo da civilização modern
a"
(Malinowski, 1938, p.vii).
Ainda assim, é claro que, desde o infcio do século XIX, os relatóri os de
explora dores tinham sido úteis para a abertur a do contine nte african
o
aos interes ses europe us. Mitos sobre "selvagens bestiais". "esplen
-
dores bárbaros", ou o "túmul o do homem branco" condizi am muito
bem com a "teoria da tropica l casa do tesouro", as promes sas da Terra
de Ouro ou Novo Orphir e os princíp ios human itários para reprim
ir o
tráfico de escravos e para cristian izar e civilizar os africanos (Hamm
ond
& jablow, 1977; Leclerc, 1972).
As teorias da expans ão colonial e os discurs os sobre o primiti vismo
africano enfatizam uma certa historic idade e a promoção de um modelo
espedf ico da história. O}ourna/ ofa Mission (1815), de Mungo Park,
ou
relatório de Richard e John Lander (1838), abordam essencialmente
as mesmas questões que R. E. Burton, V. L. Cameron, 11. M. Stanley e
E. D. Lugard apontaram por outras palavras, e na qual a Antropologia
do século XX se concenlra. Esta é a discrepáncia e ntre "civilização" e
"cristianismo", por um lado, "prim itivis mo" e "paganis mo': por outro,
e os meios de "evolução" ou "conversão" da primeira fase para a se-
gunda. Deste ponto de vista. pode dizer-se que, por exemplo, a teoria
programática das etapas da colonização, de ). Chaillet-Bert, (agricul-
tura, comércio, indústria) tem o mes mo significado que as opiniões
de Lugard sobre a presença europeia em África. O que propõem é uma
explicação ideológica para forçar os africanos a uma nova dimensão
his tórica. Afinal, ambos os tipos de di scurso são, essencialmente,
reducionistas. Eles não falam de África nem dos africanos, mas antes
justificam o processo de inventar e conquistar um continente designando
o seu "primitivismo" ou "desordem': bem como os meios subsequentes
da sua exploração e métodos para a sua "regeneração".
De facto, a questão poderá ser mais complicada, e também dramáti-
ca, para o poder imperial do Mesmo, se tomarmos em consideração,
por exemplo, a meditação de Ricoeur s obre a irrupção do Outro na
consciência europeia:

Quando descobrimos que há várias culturas em vez de apenas uma, consequente,


quando reconhecemos o fim de uma espécie de monopólio cultural, seja ele ilusório
ou real. somos ameaçados de destru1ção pela nossa própria descoberta. Depa1s do
sigmficado e do abJecCivO desaparecerem. torna-se passive/ vaguear pelas civilizações
como se fossem vescfg1os e ruínas. iodo a humanrdade se torna uma espéc1e de museu
ímagrnar1o: ande devemos 1r este fim-de-semana- VISitar as ruínas Angkar ou passear
rra Tívoli de Copenhaga? (Ricoeur, 1965, p.Z78)

Para além dos juízos de angústia de Paul Ricoeur, é de notar ainda o


forte espírito antropológico exemplificado no pequeno livro de N. Bar-
ley, Adventures in a Mud Hut (1984). Em 1978, Barley decid iu dedicar a
sua atenção aos Dowayos, "um grupo de pagãos da montanha, no norte
dos Camarões, estranhamente negligenciado ... Eles eram interessantes
[para ele]: tinham, por exemplo, cultos do crânio, circuncisão, uma lin-
guagem de apitos, múmias e uma reputação de serem recalcitrantes e
selvagens" (1984, p.13). O resultado é uma breve memória que há pou-
co mais de trinta anos atrás seria vista como arrogante ou, na melhor
das hipóteses, desrespeitosa do trabalho de campo e das pessoas
descritas. Entre comentários sobre "a s ua versão profundamente afri-
canizada de Marianne, a heroína revolucionária francesa" (1984, p.17)
e o facto de ser "ridículo que em África as pessoas de diferentes raças se

10 VY Mud•mbf' A lnvtnçio de Afric• .GnOS@, F1los.cl\a ta Ordem do Conh~&c •mento


conse guiss em encon trar de forma fácil e desco mplíc
ada" (1984 , p.21),
obtem os lições escla reced oras. Entre elas, as duas
seguj nles res umem
o interesse cienti fico do projec to. Acerc a da "activ
idade integr al" da
antro polog ia, o autor afirm a:

Francamente, pareCia entuo e parece ayara, que u JUStljic


açuo para u trabalho de
campo, como para todos oi esforços acudém~eos, res1de ncio
numa contnbwçao pura a
calcctlvtdodc, mas sun nalgum t1po de desen1•alvim1.'11to
e.qaista Coma a vida monósti-
ccl, a pesqUisa academ1ca lt!m realmente rudo a ver rom
a per{c1ção da própnu alma.
Isso pode mwto bem serv~r algum propclSito maior mas
não deve ser Julgado apenas
poresses. (Bar/e)~ 1984,p.JO)

Quan to ao estud o dos Dowa yos, as avent uras de


Barle y numa caban a
de terra deram -lhe mollv os a para acred itar que
"na tental iva de com-
preen der a visão do mund o dos Dowa yos eu tinha
testad o a relevâ ncia
de certo s mode los de interp retaç ão e simbo lismo
cultu ral muito gerais .
De um modo geral eles encon trava m-se muito bem
e senti- me muito
mais feliz com a sua posiç ão no esque ma das coisa
s" (1984 . p.l88 ).
Isto, escre veu um colun ista do The Daily Teleg
raph, foi "prov avel-
mente o livro mais engra çado publi cado este ano".
Esta avalia ção da
impre nsa tem servid o desde então para divul gar
o ensai o. De uma
forma mais neutr a, diria que este livro é episte molo
gicam ente signifi-
cativo , na medi da em que ilustr a convi ncent emen
te as minh as duas
dimen sões do etnoc entris mo nas ciênc ias socia
is descr itas anter ior-
mente : a pertin ência da proje cção da consc iência
de um indiv íduo e
a perce pção de uma discip lina do ponto de vista
norm ativo da sua
prátic a e da histór ia; come nta-s e a si própr ia a partir
de dentr o de um
mode lo cultur al parad igmát ico. Barle y assum e
uma posiç ão magn í-
fica que alego ricam ente indic a o espaç o da sua
intros pecçã o e da sua
antro polog ia africa na: "Fren te a frente com África
, as difere nças entre
um botân ico franc ês e um antro polog ista inglês
parec em mínim as e
conve rsámo s pela noite dentr o" (1984 , p.106 ).
Desta forma , não lidam os com um event ual muse
u imagi nário , mas
com const rangi mento s concr etos produ zidos por
duas orden s princi -
pais: uma dimen são topog ráfica que explic a como
e porqu ê os discu r-
sos sobre o Mesm o e o Outro são interp retad os,
e uma ordem cultu ral
que, na desor dem do que hoje parec e ser uma
huma nidad e comu m,
ind1ca claras divisõ es, fronte iras subti s e por vezes
as denom inada s
abert uras à singu larida de.
Penso que é agora claro que o probl ema do texto
de Barle y não é
a sua orien tação ideoló gica. De facto, não parec
e haver nenhu ma, ou
pelo meno s uma explícita, para além do seu sober
bo quest ionam ento
da antropologia como uma actividade de "histórias antigas". O que
revela, no final, é um hipercriticismo absoluto e quase amoral e uma
metaforizaçào da leitura culluraJ. Por isso, por exemplo, este "estranho
inglês': na Europa, redescobre a cidade eterna e afirma: "percorri as
ruas de Roma como um feiticeiro Dowayo cuja lentidão sobre-humana
desencadeia o seu ritual de actividades diárias". (1984, p.l83). Salvo de
ladrões italianos e enviado para a Inglaterra pela embaixada britânica
em Roma, uma das coisas mais importantes de que se lembra é de ser
estranho: "uma hora após a minha chegada, um amigo ligou-me para
apenas observar laconicamente: 'Olha, eu não sei onde foste, mas
de1xaste um pulôver em minha casa há quase do1s anos. Quando vens
buscá-lo?' Em vão, sente-se que tais questões subjazem à preocupação
de um profeta que está de regresso" (1984, p.186). Com efeito, o dis-
curso de Barley é onginado por uma configuração topográfica e o seu
vício por bolos com creme e pela Antropologia dever-se-á a uma
atmosfera cultural. Quanto à sua mensagem impressionista, é urna
lição modernizada impressionante sobre as perguntas de Conrad em
Heart of Darkness: Por que é que a cu ltura africana é uma experiência
"bárbara"? O que é a civilização europeia e em que sentido é diferente?
Para se obter a história dos estudos e discursos africanos é, portanto,
importante observar que alterações aparentes dentro dos símbolos
dominantes nunca modificou substancialmente o sentido da con-
versão de África, mas apenas as políticas para a sua expressão e prática
ideológica e etnocêntrica. As categorias intelectuais actuais podem
permitir, como demonstrado por Copans na sua penodização, uma
distinção entre a líteratura de viagens, etnologia e antropologia apli-
cada (Copans, 1971a). No entanto, é erróneo depender deste tipo de
distinção teórica, que se preocupa com as diferenças de condições
ideológicas, a fim de distinguir os gêneros de "conhecimento africano."
Os viajantes no século XVIJI, bem como os do século XIX e seus suces-
sores no século XX (conselheiros coloniais, antropólogos e coloniza-
dores), recorreram ao uso do mesmo tipo de sinais e símbolos e agiram
em função deles. Durante a era colonial, estes envolveram consistente-
mente a redução das diferenças para com uma histoncidade ocidentaL
Isto não implica que os inventores ocidentais de uma "génese africana"
não distingam níveis e tipos de interpretações de África. O autor de
Ursprung der Afrikanischen Kulturen, por exemplo, pôde, num artigo
sobre a origem das civilízações africanas, perceber que as exigências
da sua disciplina não eram satisfeitas pela informação dos viajantes.
"Longe de nos darem respostas às nossas perguntas, os viajantes au-
mentaram em muito os nossos enigmas" (Frobenius, 1988, p.637). Hoje,
os melhores alunos, confrontados com os relatórios contraditórios,
farão perguntas pertinentes: O que é que estes relatórios testemunham?
Contribuem para um melhor conhecimento do passado de África? São
cientificamente crediveis e aceitáveis? (ver Vansma, 1961) Se forem
correctamente respondidas. estas questões conduzem, em principio, a
um novo conhecimento da história humana. Conforme afirmou Veyne,
"se se provou que o 1/omo historicus Bantu era um organismo mais
primitivo do que o ateniense, apenas aumentana o mteresse, pois
revelaria uma parte menos conhecida do plano da Natureza. Quanto
a saber- Weber... faz demasiadas perguntas- quantas páginas devem
ser dedicadas à história do povo Bantu e quantas ao Grego, a resposta
é simples ... Tudo depende do volume da documentação" (1984, p.62).
A questão que debato é então aquela que poderia ser responsável
pela possibilidade do conhecimento antropológico, e do seu signifi-
cado, para a criação tanto dos discursos africanistas como da gnose
africana. Proponho, por isso, formulá-la através de uma síntese crítica
da tese de Foucault sobre a última ruptura arqueológica na epistemo-
logia ocidental, uma breve interpretação da noção de savage mind
de Lévi-Strauss e, por fim. um apelo relativo à importância do objecto
nas ciências sociais; um assunto que o estruturalismo reivindica ter
eliminado demasiado facilmente. Estas questões filosóficas de método
deveriam, espero, confirmar a utilidade quer da análise epistemológi-
ca quer a compreensão critica do Africanismo.
11. Questões de Método

Proposta de Foucault sobre o Desaparecilnento


do Sujeito
Recordei as conclusões de um b16logo célebre
relativamente a uma expenénc1a semelhante:
era posslveJ, dizia ele, ao abusar de um animal.
produz1r nele perturbações emocionais que recordem
estranhamente a neurose nos homens,
e por vezes deixá-lo louco através da repetição
destas manobras com muita frequência.

P. Boulle, Planet o[ che Apes

De acordo com a arqueologia de Foucault (1973), na Idade Clássica


Europeia o centro do conhecimento constituía o princípio da ordem.
Este conhecimento é organizado por meio do discurso, da tabela e da
troca. Neste cenário epistemológico podemos observar três sistemas
principais: (a) Gramática geral, "o estudo da ordem verbal relativamente
à simultaneidade cuja função é representar"; possui, no seu objecto, o
djscurso no qual domina o nome: "a função do 'discurso' Clássico é atri-
buir um nome às coisas e através desse nome nomear a sua existência".
(b) História natural ou uma teoria da natureza entendida como caracter-
ização, ordenamento e nomeação do visível. O seu projecto é o de "criar
uma tabela geral e completa das espécies, géneros e classes." (c) Uma teo-
ria da Jiqueza, mais do que uma economia política, que anaUse o "valor
em termos de troca de objectos necessários", ou "em termos da formação
e origem dos objectos cuja permuta irá mrus tarde definir o seu valor em
termos da prolixidade da natureza" (Foucault, 1973, p.79-211).
Por outras palavras, durante a Idade Clássica há apenas uma episteme
que "define as condições de possibiUdade de todo o conhecimento, quer
expresso em teoria quer aplicado silenciosamente na prática" (Foucault,
1973, p.168). Nos últimos anos do século XVIII surgiu uma ruptura. A
episteme que possibilitou a gramática geral. a história natural e a teoria da
riqueza desaparece gradualmente. Existe uma mutação radical do tema

11 Oues&6tsdoii~Lodo 4J
da ordem para o da história. No espaço nunca ocupado pelos sistema~
do conhecimento clássico, definem-se novas formas de conhecimenLo.
graças a novos transcentlentais: trabalho, vida e linguagem. A econo-
mia substitut a teon a da riqueza e, desde Adam Smith, o trabalho "revela
uma unidade de medida irredutível e absoluta", e a riqueza "é repartida
de acordo com as unidades de trabalho que na realidade a produziram"
(Foucault, 1973, pp.217-236). A biologia ultrapassa a história natural.
Com Lamarck, Jussieu e Vicq d'Azyr, o princípio da estrutura orgânica
torna-se a base das taxonomias e assim separa o orgânico do inorgâni-
co: o pnmeiro, os vivos, e o segundo, os não vivos. No campo da análise
da linguagem, a filologia ocupa o lugar da gramática geral: "a lingua-
gem já não consiste apenas em representações e sons que por sua vez
simbolizam as representações e são ordenados entre eles conforme
as associações do pensamento o requerem; também inclui elementos
formais, agrupados num sistema, que se sobrepõem aos sons, silabas
e constituem a base de uma organização que não é a das representa-
ções" (Foucault, 1973, p.235).
A partir deste cesura epistemológica desenvolve-se um novo cenário.

O espaço de ordem, que serviu de 'lugar-comum à representação e às coisas, à I'ISÍ·


b1lidade empfnca e ás regras essenCiais. que unia as re.qulandades da natureza e os
semelhanças da imogmação na grelha das semelhanças e diferenças, que expunha a
sequéncio empfnco das representupie~ num quadro Simultâneo e permitia percorrer,
posso o passo. de acordo com uma sequéllCIO lógu·a, o conjunto dos elementos da na-
tureza ass1m tomados contemporâneos deles própnos - esse espaça dr ordem passo
agora o ser diSperso; haver·d coiSas, com o sua orgamzoção própr1a, as suas VISÕes
disSIInuladas, o espaço que as articula. o tempo que as produz; e, depois, a represen-
tação, uma sucessão puramente temporal, em que se d~rigem (sempre parcialrnencc)
a uma subjeCtiVIdade o uma conscienc/0. oo esforço srngular de um conhee~menco. ao
rnd1viduo 'ps1Cal6g1Ca que, da profundidade da sua própría h1Stor1a, ou baseada no
relação que se lhe transn11t1t1, tento saber (Foucau/r, 1973. p.240)

Assim, tmpõe-se uma nova episteme, diferente e contrária à sua


própria história e pré-história. Atnda mais importante, de acordo com
Foucaull, na própria mutação que a origina- a metamorfose da teoria
da riqueza na economia, da história natural na biologia e da gramática
geral na filologia - pela primeira vez, o "homem aparece com a sua
posição ambígua de objecto de conhecimento e de sujetto que conhece"
(Foucault, 1973, p.330). Foucault afirma que no início do século XIX o
homem é constituído da seguinte forma:

A ongem. para o homem, não e de modo algum o começo- uma espéCie de aurora da
h1stóno o partir da quo/ se cenam acumulado as aquiSIÇÕes subsequent.es. A origem.
para o homem. é mull~ mo1s do que o formo como o IJOmt'm em yt!ml, como quolquct
homem. se artiwla com o trabolho. 11vido e a llnnuayt>m que JÓ começaram deve set
procurada nt•.ua dobra onde o honwm aplica o seu rroball1a com toda a ~1mplicidade
num mundo onde se trabalha há mllhure.s de unas, I'ÍI't' no frescura du sua existencw
únteo, recentt•tm.'ntt• precàrw, uma 1•1da que tem a~ suas raízes no.~ pnme1ras formu·
ções orgõmcos, cmnpiíe soh a forma dt! frases nunca antes ditas ... palavras muts 1·elhas
da que toda a memória (Foucuult, 1973, p.330)

Falando cla ra mente, desde a mutação epis temológica no final do sé-


culo XVIII, três modelos impuseram-se como paradigmas essenciais:
fu nção e norma, conflito e regra. s ignificado e s istema. Constituem e
Simultaneame nte a brangem o campo de tudo o que pode ser conhe-
cido e dito sobre os humanos. Definem exactamente o que o conhe-
cimento pode oferecer ace rca dos seres huma nos. Foucault pensa a té
que a breve his tória das ciê ncias sociais e huma nas pode ser estudada
"com base nestes três modelos". Bastará aos estuda ntes "seguire m a
dinastia dos seus privilégtos", centrando-se na sucessão temporal dos
modelos (biológico, económtco, filol ógico e linguístico) ou a nalisando
as mudanças regulares de categorias e o significado da s ua deslocação.
Um exemplo poderá ser o retrocesso de fun ção. conflito e significado
e a emergê ncia de norma, regra e sistema com Goldstein, Mauss e Du-
mézil. Foucault ta mbém a presenta duas consequências importantes
desta mudança.

(a) enquanto o ponw de ''ISCa funcional cont1nUO\'O a cer mais peso do que o ponw
de v1sta normauvo é claro que era necessóno, de facw, para partilhar as funções
normo1s com as ncio narmo1s; assim foi aceite uma psicologia patológica a par de uma
psicolog1o normal... da mesmo forma, fo ram w mhém aceites uma pacalagia dos so·
ciedades (Durklreim), deformas de crença wraciortaiS e quase-mórbidas (Lévy-Brulrl.
8/onde/);
(b) da mesmo modo, desde qut o pont~ de \'ISW elo conflito nvesse m01s peso do que a
da norma, .wp6s-se que cerws con{lnos não poderiam '>er superados, que os mdivfduos
e as sociedades comam o nsco de se destruirem a st através dos mesmos,
(c) par fim, desde que o ponto de wsca da Slgmjteoção tivesse ma1s peso da que o do
Sistema, procedeu-se a uma d1visão entre Significante e não significante, ace1Wu-se
que havta senudo em certos domfmo~ do comportamento humana ou de certas zonas
da area soc1ol, mos noutras não.

2.
Quando, por outro lado, a anál1se fo1 realizada a partir do panca de \'Isto da norma. da
regra e do SIStema, cada órt>a proporcionou a suo próprta coeréncw e o sua própna
mórb1da' (me~mo n1erm du-se aos
\'uildade· JÓ não era poss{vel falar de 'consctêncro
afudm do a sociedades deixados pelo
doentes), de ·mentalidades prrmw vas' (mesm a
referm da-se o hiStórias ab~urdas nu
h1scóno) ou de 'discu~o ms1gni{icante' (mesm o
ser pensa do no úmb1ta do ordem do
o lendas apare nteme nte mcoerentes). Tudo pode
uma 1•ez que os sistem as são 1solodos,
Sistema. da regra e da norma Por se plurol tzar-
os, uma vez que us norma s são pro-
uma 1•ez que os regras forma m conJuntos {cchad
as huma nas un1{icou-se, uma vez que Jâ
postas no sua autono mia -o campo das Clénc1
mia de valores. (Faucau/c, 1973. pp.360·
não possu1a rupruros na _çua anten or dicoto
361 a organ ização da citação t! minha).

meto dológ icas, clas-


Com estas suge stões . pode riam os, por ques tões
rsos em socie dade s não ocide ntais em
sificar o conju nto dos discu
e no prim eiro quar to
dois grup os principais. Dura nte o sécul o XIX
norm alme nte por uma
do século XX, os discu rsos carac teriza vam- se
nante que se enco ntra
persp ectiv a funcional e uma intol erânc ia domi
confl ito e significado.
nas conc lusõe s filosóficas dos parad igma s de
da cade1a do ser e
Assim, a análise, atrav és de uma temp orali zação
; Meek, 1976 ), podia ser
das civilizações (Duc het, 1971 ; Hodgen, 1971
de, dinam is mo criati vo
simu ltane amen te respo nsáve l pela norm alida
anorm alida de, desvi o e
e realiz ações do "mun do civilizado" contr a a
as". Este desej o de ver-
prim itivid ade de "soci edad es não alfabetizad
do - graça s às con-
dade só recen teme nte come çou a ser ques tiona
ões de Dumézil, Mauss,
clusõ es do traba lho de Freud e às contr ibuiç
ordar mos facilm ente
Dum ont e Lévi- Strau ss - ao ponto de hoje conc
ríam os dizer que um
com a afirm ação de R. Wagner: "Na verda de, pode
rio acred ita que estud a,
antro pólog o 'inve nta' a cultu ra que ele próp
actos e as expe riênc ias
que a relaç ão é mais 'real' por serem os seus
relac iona (1981 . p.4).
parti cular es em vez de as coisa s com que se
de uma arque ologi a do
Contudo, enca remo s a hipót ese de Fouc ault
não é a arque ologi a, mas
conh ecim ento. A ordem das coisas, afirm a ele,
n-
0, p.82) . Pode mos pergu
a arque ologi a das ciências huma nas (198 que, de
que é esta arque ologi a
tar em prim eiro lugar: na realid ade o
histó ria das ideia s (Fou-
acord o com o autor . é difer ente da tradic ional
olog1 a pode trata r cada discu rso
cault, 1972 , pp.13 5-140 )? A arque
izar a análi se diferencial das suas
como um "mon umen to" e pode enfat
s que lider am as práti cas discu rsi-
moda lidad es e as norm as silenciosa
ade e espec ificid ade são relativas. No
vas. Ainda assim , a sua origi nalid
ade são de certo modo
entan to, a sua origi nalid ade e a sua espec ificid
são dete rmin adas geog rafic amen te
relat ivas, na medi da em que
insis te na impr ecisã o
e integ rada s cultu ralm ente. Sim, Fouc ault
0). Mas a suce ssão de
do que o "seu" Ocid ente realm ente é (198
plina s por elas
epistemes, assim como os proc edim entos e disci
histór ica e, m-
possi bilita dos, são respo nsáve is por urna activi dade
o conhe cimen to
direc tamen te, legitimam uma evolução social na qual
. É verda de que
funciona essen cialm ente como uma forma de poder
tado atrav és de
Foucault procu ra opor metod ologi came nte esse resul
nhece r a activ1dade
quatr o grand es prind pios: a inversão, para "reco
nlinu idade , para
negativa resul tante da cessa ção do discu rso"; a desco
desco nt{nu a"; a especi-
comp reend er o discu rso corno "uma activi dade
uma violên cia que exerc emos
ficidade, para "conc eber o discurso corno
como uma prátic a que lhes
sobre as coisas, ou, em todas as situaç ões, nas
varm os "as condi ções exter
impomos", e, a exter iorida de, para obser
1982, p.229 ). Estes princ ípios.
da existência" do discu rso (Foucault,
ibuem para uma
em conjunto com as noções que trans porta m, contr
ocide ntal, ao mesm o temp o que in-
nova comp reens ão da experiência
idade de aprox imare m o conhe cimen to
dicam clara ment e a sua capac
e o poder.
"ter aband onad o
A histó na poder á, confo rme afirm a Foucault,
termo s de causa
as suas tentat ivas de comp reend er os event os em
inform e de um grand e proce sso evolutivo, quer
e efeito na unida de
do". A iniciativa
vagamente homo géneo quer rigida mente hierarquiza
horiz ontes nesta
de Foucault explica notav elmen te a conqu ista dos
antro pológ icos
histó ria. Desd e finais do sécul o XVIII, os discu rsos
volve m-se no
repre senta m-na . São discu rsos subor dinad os e desen
possu i uma relação
seio de um sistem a geral de conhe cimen to o qual
olo social. As dis-
interd epend ente com os sistem as de pode r e contr
ações, as teses de
posições de Durkheim sobre a patologia das civiliz
o, bem como as
Lévy-Bruhl sobre sistem as pré-lógicos de pensa ment
um testem unho,
hipót eses de Fraze r sobre socie dades primitivas, são
moló gico no qual
do ponto de vista funcional, do mesm o espaç o episte
as suas diferenças
as histór ias sobre Outros e os come ntário s sobre
conhe cimen to.
são apena s eleme ntos na histór ia do Mesmo e do seu

O Rein o da Men te Selv agem


"Os homen s!" exclam ou Phyllis de novo.
"Sim. os homen s," aril mou )lnn . · ~o que dl'z."

P Boulle, Planec of thc Apes

ordem discre ta,


O que une Foucault a Lévi-Strauss é a busca de uma
obJec tivos de Lévi- Strauss para
mas essencial. Num sentid o lato, os

11 OvHt6e1 dt Mêtodo 41
a compreensão da história e da antropologia baseiam-se em quatro
princípios: (a) a realidade verdadeira nunca é 6bv1a e "a sua natureza
já é aparente no cuidado que tem para iludir a nossa atenção"; (b)
as c1ências sociais não se baseiam em eventos; (c) a realidade e a
experiência podem ser complement ares. mas "não há nenhuma con-
tinuidade na passagem entre elas": e (d) a missão do cientista social é
"compreend er que se relaciona com ela e não consigo mesmo" (Lévi-
Strauss, 1963, 1966).
De acordo com Lev1-Strauss, as semelhanças que existem entre a
história e a antropologia são mais Importantes do que as suas dife-
renças. Em primeiro luga1~ ambas as disciplinas tratam o afastamento
e a alteridade: enquanto a história aborda o afastamento no tempo, a
antropologia lida com o afastamento no espaço. Em segundo lugar, o
seu objectivo é o mesmo. ou seja, uma melhor compreensã o de socie-
dades diferentes no tempo ou no espaço e, assim, uma reconstrução ,
uma "reescrita" do que "aconteceu'' ou do que "está a acontecer"
naquelas sociedades. Por fim, em ambos os casos, os cientistas enfren-
tam "sistemas de representaçõ es que diferem para cada membro do
grupo e que, no seu conjunto, diferem das interpretaçõ es do investi-
gador".

O melhor escudo emográftco nunca tornará o /e1tor um nativo... Tudo o que a h isto·
riador ou ewógrafo pode fa?:er, e tudo o que podemos esperar de qualquer um deles é
o olargamenco de umo expenência especfftca para as dimensões de uma ma1s geral,
o qual se toma a~sim acessivcl coma expenéncia para homens de outro pa1s ou de
outro epoca F JIOra ter suce.~so, canto o h1stonador como o etnógrafo devem possuir
as mesma~ qualidades: aptidão, prec1.~õo. uma abordag('m sensível e obJectiwdotlc.
(L.év1-Strauss, 1963, pp.l(í-17)

Lévi-Strauss conhece a distinção clássica das metodologia s. As téc-


nicas do historiador baseiam-se em dados precisos e em documentos ,
enquanto o antropólogo constrói um conhecimen to de uma "civili-
zação oral" com base na observação. Contudo, Lévi-Strauss não con-
sidera esta distinção pertmente:

A diferença fundamental entre as duas d1scrp/inas noo eo ussunco, o objectlvo nem o


método. Escas partilham a mesmo assunto, que é o VIda soc10l; o mesma objecuvo, que
é uma melhor compreensão do homem, e de facto, o mesmo método, no qual apenas a
proporção de cécmcas de mvestigaçào varia. A história oryaniza os seus dados relu C/·
vomente às expressões conscientes da vida social, enquanto a antropologia segue com
a análise das suas bases mconsc1entes. (L.éw-Strauss, 1963, p.lB)
Relembramos imediatamente as seguintes arirmações de Foucault
Acerca da história, este observa: "todo o conhecimento está enra1zado
numa vida, numa sociedade e numa Hngua que tem uma histona, e é
nessa própria história que o conhecimento encontra o elemento que
lhe permite comunicar com outras formas de vida, outros tipos de
sociedade e outros significados" (1973, p.372). Acerca da antropolo-
gia, assegura: "a etnologia situa-se na dimensão da historicidade (da
oscilação perpétua que leva as ciências humanas a serem sempre con-
testadas. do exterior, pela sua própria história)" {1973, p.376). No en-
tanto, a diferença entre as duas posições é evidente. Foucault enfatiza
a possibilidade de uma nova antropologia e da sua dependência da his-
toricidade ocidentaL Quanto a Lévi-Strauss, este distingue a questão
metodológica da epistemológica. A primeira relaciona-se com o futuro
da antropologia, a última com formas de descrever a solidariedade
que poderá existir entre históna e antropologia, se levarmos a sério
a afirmação de Marx: "os homens criam a sua própria história, mas
sem saberem que a estão a criar" (Lévi-Strauss, 1963, p.23). Conse-
quentemenle, Lévi-Strauss pensa que seria incorrecto opor o método
do historiador ao do antropólogo.

{O anrropologo e os historiadoresf fizeram o mesmo wo_qem pelo mesma estrada t' nu


mesma d1rec:ção. apenas a orientação d1{ere. O ancropólo.qa avanço. através ela
conscu!ne~a l' estando consciente d1sso, e procura alcançar cada vez mais a mconsc1en·
cio, enquanto o h/Stonador ovaiiÇO, d1gamos, para tros. mantendo os seus olhos fi.~ado~
em occtv1dudes concretas e elpeCif/Cas das quais ele se ret1ra apenas para nbsL•rvá-las
de uma pcr.çpectfva ma1s completa e rica. {Lév1-Strauss. 1963, p.24)

Esta concepção da história e da antropologia como sendo duas faces


da mesma moeda tem implicações importantes. Significa uma reor-
ganização das disciplinas sociais: história, sociologia, filologia soc1al,
etnografia e antropologia. Mai s importante, significa quer um distanci-
amento da antropologia face os paradigmas explicativos da primitivi-
dade quer um olhar diferente relativamente às "sociedades primitivas"
e à "mente selvagem". Ex hypothesi, a sua força reside na rejeição de
antinomia entre a lógica e a pré-lógica. De acordo com Lévi-Strauss, a
mente selvagem é lógica (1966, p.268).
O que é concretamente a "mente selvagem"? Lévi-Strauss afirma que
"a mente primitiva não é a mente do homem primitivo ou da humani-
dade arcaica, mas um pensamento não domesticado" (1962, p.289).
Discordando de Levi-Strauss, Maurice Godelier afirma que "pensamento
mítico" não é apenas o pensamento de selvagens, mas também, pelo
seu estatuto, um pensamento primitivo. Ele escreve: "Penso que discordo
de Claude L.év1-Strauss, porque acredito que o pensamen to mítico é
tanto o pensament o não domesticado como o pensament o dos primiti-
vos" ( 1973, p.385). Godelier afirma que o pensament o mítico é, essencial-
mente, constituíd o por processos de analog1as, dominado por relações
de semelhanç a, como foi, de acordo com Foucault, o campo episte-
mológico do Ocidente no século XVI (1973, pp.17-44).

São estas as analoy1as que nos permitem tirar canclusães a partir da campo de 'per-
cepção: desde o conheciment o utilizável, que constitui a base com a qual o pensam-
ema dos pr1m1cn·os. nacuro/mente submetido aos prmrípio.ç [orma1s do 11cnsamento
nau domesocado. nryamza as ide1as na~ qua1s se rt~flecte mfimtomente a 1mayem
rccfproca dos humanos e do mundo, no qual nascem e funcionam as Ilusões que o ser
pnm1t1vo tem de SI e do mundo. (Godel1er 1973, p.386}

A opinião de Godelier é estimulant e, na medida em que indica uma


hipótese radical e controvers a: a possibilida de de comparaçã o inter-
cultural de sistemas de pensamen to dominado s por temas de simili-
tude e assim um estudo comparati vo de tipos de conhecime nto defini-
dos no seio de uma reproduçã o infinita de semelhanç as (por exemplo,
Mudimbe. 198lb, pp.l95-19 7). Por outro lado, podemos temer que
apenas disfarce o materialis mo histórico das teses mais tradicionai s e
controvers as do evolucioni smo sociaL 1. Goody propôs a implement a-
ção de mudanças na comunicação, como critérios para compreen der
este tipo de alteridade . Uma vez que essas mudanças são essenciais na
natureza e são "de carácter múltiplo em vez de singular", estas mvaJi-
dam a dicotomia entre "primitivos" e "evoluídos" (Goody, 1977, p.lO).
Além disso, Goody aponta como um grande problema a necessidad e de
revelar as transforma ções sociais observada s e os tipos de domestica -
ção (1977, p.16).
De facto, à primeira vista, ficamos perplexos pelo carácter aparente-
mente estático da análise de Lévi-Strauss da mente selvagem. Passemos
então a resumir os três principais princípios.
Em primeiro lugar, cada linguagem humana é exclusiva e expressa de
uma forma original os tipos de contactos que existem entre o homem
(produtor de cultura) e o seu ambiente (natureza) . Assim, cada Hngua
é delimitada pelos seus próprios conceitos de forma, sistemas de
classificação e de conhecime nto. Tradiciona lmente, a oposição entre
"primitivos" e "evolufdos" tem sido explicada através da oposição de
dois sistemas de "ordem": magia e ciência. Lévi-Strauss substitui outra
oposição, ciência do concreto versus ciência do abstracto.
Em segundo lugar, Lévi-Strauss pensa que a magia e a ciência não de-
veriam ser considerad as etapas diferentes de uma evolução cronológi-
ca, a primeira primitiva e apenas mensageira da segunda. Existem dois
sistemas diferentes e paralelos do conhecimento. "A magia postula
um determinismo completo e abrangente" e é possivelmente "uma
expressão da apreensão inconsciente da verdade do determinismo, o
modo que origina o fenómeno científico". A ciência, por outro lado,
"baseia-se numa distinção entre níveis: apenas alguns destes admitem
formas de determinismo; noutros, as mesmas formas de determinismo
existem para não serem aplicadas" (Lévi-Strauss, 1966, p.ll). Assim,
o paralelismo contribuiria para a ciência poder coexistir com a magia.
O período neolítico, que se caracteriza pela magia e, ao mesmo tempo,
por importantíssimas descobertas e resultados obtidos, como a inven-
ção da agricultura e a domesticação de animais, mostra isto.
Em terceiro lugar, uma oposição mais pertinente seria, portanto, a
ciência do concreto versus a dência do abstracto, ou, falando de forma
análoga, uma oposição entre "bricolagem" e "engenharia", que poderia
introduzir e significar a oposição entre "pensamento mítico" e "ciên-
cia". Estas não são "duas etapas ou fases na evolução do conhecimento.
Ambas as abordagens são igualmente válidas" (Lévi-Strauss 1966,
p.22). Lévi-Strauss insiste na relatividade da distinção clássica entre
estes dois sistemas de requerer e adquirir conhecimento.

Por conseguinte, em vez de contrastar a magia e a ciéncia, é melhor compará· las como
dois modos paralelos de adquirir conhecimento. Os seus resultados teóricos e práticos
diferem em valor. pois é verdade que a ciência é mais bem-sucedida do que o magia
segundo este ponto de vista, embora a magia pressagte o ciéncia, sendo também por
vezes bem-sucedida. No entanto, tanto a eténcia como a magia requerem o mesmo
ttpo de operações mentais, as quais diferem não tanto quanto ao tipo como quanto aos
ttpos de fen6menos diferentes a que se aplicam. (Levi-Strauss, 1966, p.J3)

Esta declaração sobre "a ciência do concreto" exprime as razões de


Lévi-Strauss para a promoção e celebração dos mitos "primitivos",
como' sistemas de relações abstractas e como objectos de contempla-
ção estética" (1964). O estudo dos mitos "primitivos" pode não só abrir
caminhos para compreender a lógica oculta por detrás do pensamento
mítico (no seu aspecto dual enquanto lógica de qualidades e lógica de
formas), mas também pode potenciar a descoberta de sistemas éticos,
que Lévi-Strauss julga poderem "dar-nos uma li ção de humildade"
(1979, p.507).

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