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EMANCIPAÇÃO E LIBERTAÇÃO NO PENSAMENTO DECOLONIAL

PARA ALÉM DO CENTRISMO LATINO-AMERICANO

Francisco Uribam Xavier1 de Holanda

O pensamento decolonial, como teoria analítica e ação política, encontra-se


ligado e é inerente aos processos de resistência epistêmica, material e simbólica contra
a herança colonial e a ação contemporânea da colonialidade como parte constituinte
do padrão de poder do sistema-mundo colonial moderno iniciado com o processo de
conquista de Abya Yala (das Américas), em 1492. Como prática política, o pensamento
decolonial se encontra intimamente ligado aos processos de resistências pelos quais se
buscam, no Sul Global e nos suis do Norte Global, criar alternativas ao capitalismo e
tornar visíveis e legítimos outros padrões de civilizações que foram violentados,
subordinados, dominados e explorados em todas as dimensões de suas existências
por serem diferentes ao modelo eurocêntrico da modernidade que Ramón Grosfoguel
classifica como: sistema-mundo patriarcal, capitalista, colonial, moderno europeu.
Para os povos e civilizações violentadas, dominadas, exploradas e subordinadas
cultural, material e simbolicamente do Caribe, da América Latina, da África, da Ásia e
dos suis do Norte Global, o processo de decolonização não significa emancipação, mas
libertação, ou seja, horizonte utópico de construção de um mundo pluriversal.
Emancipação é um termo eurocêntrico que surgiu para se referir à luta nascente da
burguesia na Europa contra o decadente sistema feudal, contra a ordem monárquica
ou Antigo Regime. A burguesia que, primeiro, passou a dispor do poder econômico
através do acúmulo de capital e das novas relações trabalhistas, não tinha o poder
político e era desprezada e tratada como rude pela nobreza aristocrática. É nesse
contexto contraditório que a burguesia passa a se colocar como classe revolucionária e

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Uribam Xavier – gosta de café com tapioca e cuscuz, peixe frito ou no pirão, de frutas e verduras. Antes
da pandemia, frequentava o espetinho do Paraíba, no boêmio e universitário bairro do Benfica
[Fortaleza], e no pré-carnaval seguia o bloco Luxo da Aldeia. É professor, ativista político decolonial e
anti-imperialista, estuda e escreve para puxar conversa e fazer arenga política. Seu último livro escrito
foi “Crise civilizacional e pensamento decolonial. Puxando conversa em tempos de pandemia”. Dialética
Editora, Belo Horizonte, 2021.
portadora da possibilidade de realização universal da humanidade do homem
moderno.
A emancipação da burguesia em relação ao Antigo Regime, por meio
revolucionário, tem como marco simbólico a Revolução Francesa de 1789, que
anunciou a realização universal da humanidade do humano por meio da Declaração
Universal dos Direitos do Homem e do cidadão, em 26 de agosto de 1789. No seu
artigo primeiro, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 diz: "Os
homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só
podem fundar-se na utilidade comum". Do ponto de vista econômico, é a revolução
industrial inglesa, na metade do século XVIII, que é o grande símbolo da consolidação
do processo de formação do modo de produção capitalista na visão eurocêntrica.
Com a consolidação do poder da burguesia no campo econômico, político e
militar, logo ficou claro que ela não era portadora das condições universais de
realização da humanidade do humano, mas uma classe provinciana com vocação de
domínio cultural, político, econômico e militar do planeta. Como bem constata Marx e
Engels no “Manifesto do Partido Comunista” (2005, p. 46): “[...] a moderna sociedade
burguesa, surgiu das ruínas da sociedade feudal, não eliminou os antagonismos entre
as classes. Apenas estabeleceu novas classes, novas condições de opressão, novas
formas de luta em lugar das antigas”.
A história europeia demonstra que a emancipação, como uma invenção
burguesa, não é universal e não significa liberdade para todos e todas, não é a garantia
de realização das promessas do projeto civilizador moderno para todos, pois, como já
foi desvelado pelo pensamento decolonial, colonialidade/modernidade são partes
constituintes de um mesmo processo, não existe modernidade sem colonialidade, nem
existe colonialidade sem modernidade. Como afirma Agnes Heller e Ferenc Fehér
(1998, p. 12): “[...] a Europa sempre foi mais expansiva e expressamente universalista
que outros projetos culturais. Os europeus não apenas entendiam sua cultura como
superior às outras, e essas outras, estranhas, como inferiores a eles”.
A modernidade, como projeto de universalização de um modo de vida
particular, considera todas as outras civilizações como inferiores e bárbaras, que
devem ser colonizadas, e que, para existirem, devem incorporar os seus valores e
modo de vida, o que implica assimilarem ou copiarem o seu sistema econômico, o
capitalismo. Marx e Engels, fazendo uma conexão positiva entre colonização e
processo civilizador moderno, acreditavam que:
Com o rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produção, com
as comunicações imensamente facilitadas, a burguesia arrasta para a
civilização todas as nações, até mesmos as mais bárbaras [...] obriga-as a
ingressarem no que ela chama de civilização, isto é, a se tornarem
burguesas. Numa palavra, cria um mundo à sua imagem e semelhança
(MARX; ENGELS, 2005, p. 49).

Karl Marx classificou a burguesia como revolucionária e afirmou que ela “[...]
não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por
conseguinte, as relações de produção, portanto todo o conjunto das relações sociais”
(MARX, 2005, p. 48). Logo, portanto, fica claro que a revolução não é um instrumento
de emancipação e nem de libertação universal, mas um meio para alguns chegarem ao
poder, para que um grupo nacional torne um território dominado por um país
estrangeiro num território governado por um poder dominante local, como as lutas
ocorridas por independência nas colônias americanas dominadas pela Espanha no
século XIX ou as lutas por libertação nacional, ocorridas na África e na Ásia na segunda
metade do século XX. Agnes Heller e Ferenc Fehér afirmam (1998, p. 13): “[...] ao
denunciar a particularidade de todas as proposições universais europeias e daí passar
para a criação da mais universal das proposições universais, Marx só provou que foi o
último europeu”.
Em o “Discurso sobre o colonialismo”, escrito entre 1948 e 1955, período
histórico que marcou o fim da Segunda Guerra Mundial, Aimé Césaire afirmava que a
“Europa é moral e espiritualmente indefensável”, e ao ser provocado a falar sobre
colonização e civilização, afirmou:
O que é, em seu princípio, a colonização? Reconhecer que ela não é
evangelização, nem empreitada filantrópica, nem vontade de fazer
retroceder as fronteiras da ignorância, da enfermidade, da tirania; nem a
expansão de Deus, nem a extensão do Direito; admitir de uma vez por
todas, sem titubear pelas consequências, que na colonização o gesto
decisivo é o do aventureiro e do pirata, o do mercador e do armador, do
caçador de ouro e do comerciante, o do apetite e da força, com a maléfica
sombra projetada por trás por uma forma de civilização que em um
momento de sua história se sente obrigada, endogenamente, a estender a
concorrência de suas economias antagônicas à escala mundial (CÉSAIRE,
2020, p. 12-13).

Para Nelson Maldonado-Torres, a conquista e a colonização de Abya Yala (das


Américas) não foi apenas mais um episódio do imperialismo, mas, na realidade, o
marco de uma forma de ser, de saber e de poder no mundo, o que Aníbal Quijano
chamou de colonialidade, e implicou no genocídio dos povos originários das Américas
e de negros africanos nos fins do século XV e no século XVI. Contra essa forma de ser,
de saber e de poder, ergueu-se, como resistência, uma onda de pensamentos e de
práticas que hoje denominamos de pensamento decolonial e que tem a mesma
duração e existência que a colonialidade/modernidade. Para Maldonado-Torres:
Esse pensamento e essas práticas levam a marca de um sujeito fragmentado
e exposto as mais aterradoras consequências intencionais e não intencionais
da civilização moderna europeia, que por sua vez expressam o desejo
irreprimível de reconstruir um mudo humano. Esta é a dupla fase negativa e
positiva, de horror e desejo do pensamento filosófico decolonizador
(MALDONADO-TORRES, 2021, p. 204).

O pensamento filosófico decolonial é crítico da colonialidade, e busca afirmar e


assegurar o projeto de decolonialidade como um projeto pluriversal aberto e
incompleto para além da independência e da emancipação outorgada pela
modernidade. Em sua dimensão internacional forte, o pensamento filosófico
decolonial se relaciona com os múltiplos projetos que buscam, frente ao contexto de
crise e legitimidade do projeto civilizador moderno, forjar um mundo onde múltiplos
mundos sejam possíveis. Dentro dessa compreensão, esclarece Maldonado:
Utilizamos os conceitos de giro decolonial e de giros decoloniais para dar
conta do caráter internacional e do significado de formas de pensamento
que se inspiram simultaneamente nas crises do pensamento e do projeto
civilizador europeu, por um lado, e na afirmação de possibilidades de ser, de
poder e de conhecer que superem os limites constitutivos da modernidade
eurocêntrica, por outro. O pensamento filosófico decolonizador é parte
central destes giros, todavia temos que a eles eventos históricos de grande
envergadura para o pensamento. Assim consideramos, aqui, a relevância
não somente de pensadores específicos, mas também de eventos que
desafiem a forma hegemônica de pensar e que abram horizontes possíveis
de superação da colonização e de seus legados no mundo moderno
(MALDONADO-TORRES, 2021, p. 205).

Para Maldonado-Torres (2021), o Renascimento europeu deu continuidade às


concepções de ser, poder e saber medieval. A diferença que existia entre ser cristão e
não cristão passou a orientar a diferença entre “descobridores” e “não descobridores”,
modo diferencial que Cristóvão Colombo utilizou para se referir aos povos originários
que habitavam os territórios considerados pelo mundo medieval como não existentes,
portanto, não habitados.
Por volta de 150 d.C., Cláudio Ptolomeu escreveu sua obra “Geographiké
Hyphêgesis”, que ficou conhecida simplesmente como “Geografia”, na qual o mundo
aparece dividido em três continentes: Europa, África e Ásia. As terras e povos da parte
do mundo que hoje chamamos de Continente Americano não existiam, nem como
hipótese de imaginação da época. Na descrição do mundo de Isidoro de Servilla (560 -
636), ele recorre ao mapa “T em O” para descrição do mundo de acordo com a
cosmologia cristã que estava em sintonia com a obra “A Cidade de Deus” de Santo
Agostinho, que afirmava que não podia haver existência de homens em outras partes
do mundo diferente da Orbis Terratum (terra habitada e já conhecida), e, caso
houvesse habitantes em alguma ilha desconhecida, eles não poderiam ser classificados
como humanos. Portanto, a não existência dos antípodas decretava a não existência e
o não povoamento de Abya Yala (das Américas); essa possibilidade era considerada
uma heresia contra a revelação divina registrada na Bíblia.
Ao achar que haviam “descoberto um mundo novo”, os europeus passaram a
entender que os povos originários que viviam nas américas eram povos sem religião,
mas que poderiam conhecer a única religião verdadeira (a cristã católica). Portanto,
diferente dos argumentos que alimentaram as Cruzadas contra a civilização
muçulmana, considerada constituída por povos que cultivava religiões falsas e, por
isso, deveriam ser combatidos e convertidos ao cristianismo, os povo originários de
Abya Yala foram tratados como povos desprovidos de capacidades cognitivas, tábula
rasa, que não eram descendentes de Adam e Eva, mas que neles poderiam ser
imprimidos a verdadeira religião e o processo civilizador moderno que os tirariam da
condição de primitivismo, de atraso cultural e da condição de bárbaros praticantes do
canibalismo. Violentar os povos originários por meio da evangelização e da
eurocentralização desses povos, ou seja, negar o direito deles serem diferentes, era
entendido como um ato de caridade e amor.
A tese do “descobrimento” deu os fundamentos para a ideia de que o “Mundo
Novo”, conquistado pelos sentidos e a bravura do homem branco cristão europeu,
tinha sido um presente, uma espécie de recompensa deixada por Deus para o desfrute
e bem-estar dos descobridores e para o engrandecimento dos reinos cristãos. Assim
sendo, os conceitos e práticas da modernidade, como projeto civilizador, e o
capitalismo, como o seu sistema econômico, reconhecem a diferença entre
colonizadores (descobridores) e colonizados (descobertos) e entre exploradores e
explorados que podem ser escravizados e tratados como coisa, podem ser
apropriados, juntamente com o seu território, como um achado.
Apoiando-se nas reflexões de Silvia Winter, Maldonado-Torres afirma que se
estabeleceu, com a conquista das Américas em 1492, a noção de que a “salvação” não
significava apenas o destino da alma depois da morte, mas o desfrute e o benefício do
mundo terreno por meio da exploração e uso dos recursos supostamente descobertos.
Portanto, uma mudança na visão de mundo teocêntrica que passa a fazer parte do
processo de acumulação, ou seja, um novo significado de salvação que abre espaço e
cria condições para que o capitalismo, que existia apenas em algumas zonas da
Europa, passasse a ser um modo de produção dominante.
O problema fundamental com a ideologia do descobrimento não é só de ordem
epistemológica, mas também ontológica, afirma Maldonado-Torres, pois diz ele:
O mundo moderno/colonial se construiu, assim, a partir da propagação
violenta e da transformação criativa de hierarquias antigas, tais como a
diferença entre o Deus cristão e a humanidade, entre o cristianismo e outras
crenças, entre o rei e o súdito, entre homem e mulher e na criação de novas
concepções ancoradas em noções de maior e menor humanidade que
usualmente se aplicavam entre homens europeus, por um lado, e sujeitos
coloniais considerados como hiper- sexualizados e com gêneros incertos,
por outro. A esta nova ordem social a chamamos, utilizando um termo de
Walter Mignolo, mundo moderno/colonial, e as relações de poder que nela
operam as denominamos não meramente de colonialismo, mas, seguido
Aníbal Quijano, colonialidade (MALDONADO-TORRES, 2021, p. 207).

O mundo da modernidade/colonialidade criou a ideia de emancipação que foi


incorporada pelo pensamento crítico eurocentrado, principalmente pelo movimento
socialista influenciado pelo marxismo, como sinônimo de realização do fim da história
por meio da revolução socialista que permitiria a materialização do comunismo,
quando o homem reconquistaria o seu ser genérico. Todavia, emancipação é um
termo burguês que tem referências históricas mais limitadas do que a alimentada pelo
pensamento crítico eurocentrado. Cinco dessas referências históricas são bem visíveis,
como veremos a seguir.
A primeira, a emancipação como movimento epistêmico, que aconteceu na
Europa por meio de três movimentos históricos interligados: Renascimento,
Humanismo e Iluminismo, cujo resultado foi o triunfo da razão ocidental moderna
como base de fundamento da superioridade do homem branco e cristão europeu, que
se colocou como sujeito universal do progresso e da liberdade individual. Nesse
processo, a emancipação significou o uso da razão em todas as questões da
consciência moral e a capacidade de fazer uso do entendimento sem a direção de
outro indivíduo ou vontade divina. Significou que o homem atingiu a sua maioridade.
Todavia, fora da Europa, os indivíduos continuavam em situação de menoridade, ou
seja, incapacitados de fazer uso da razão. Em relação a essa situação, Kant foi
categórico:
A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos
homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção
estranha, continuem, no entanto, de bom grado menores durante toda a
vida, São também as causas que explicam porque é tão fácil que os outros se
constituam em tutores deles (KANT, 1985, p. 100).

A segunda, que é simultânea à primeira, refere-se ao processo pelo o qual a


burguesia nascente na Europa pôs em questão e derrotou o Antigo Regime. Nesse
processo, emancipação apareceu como constituinte do poder político por meio de
uma classe social em relação a uma anterior, cujo ato simbólico foi a Revolução
Francesa de 1789. Todavia, num segundo momento, o Antigo Regime foi restaurado
por Napoleão Bonaparte. Foi com o Antigo Regime que teve início o processo de
colonização da modernidade e que se manteve com a burguesia.
A terceira, refere-se à experiência dos povos africanos escravizados na sua luta
pela abolição do regime escravista. A luta contra o regime escravista moderno,
segundo Maldonado-Torres, seguindo o pensamento de Fanon, não significou uma luta
contra a limitação da liberdade, mas contra uma forma brutal de desumanização
praticada pela modernidade/colonialidade, numa total contradição com a sua
anunciada declaração universal dos direitos do homem e do cidadão. O que deixa claro
que o universal da declaração era o provinciano homem europeu, cristão, branco,
racista, patriarcal, heteronormativo e burguês. Tratava-se, pois, de uma luta ocorrida
no seio de territórios colonizados por nações europeias.
A quarta, a emancipação, refere-se aos processos de independência política na
América Ibérica ocorridos no século XIX e aos processos de libertação nacional
ocorridos em territórios da Ásia e África na segunda metade do século XX, processos
que demonstraram que, mesmo com o fim do colonialismo e do neocolonialismo, a
dominação e a exploração continuaram vigentes por meio da colonialidade do ser, do
saber e do poder.
A quinta, refere-se à emancipação como lutas por conquista de direitos e
ampliação de liberdades em determinadas conjunturas políticas e ciclos específicos da
economia, o que significam que são conquistas provisórias e que podem sofrer
retrocessos, como, por exemplos: conquista dos direitos trabalhistas (carteira
assinada, férias remuneradas e aposentadoria), conquista dos direitos das mulheres
por meio das lutas dos movimentos feministas, as políticas de cotas, etc.
A emancipação é um processo de ampliação de liberdades e direitos inerente
ao processo civilizador moderno e ao seu sistema econômico, o capitalismo, mas sem
rupturas com eles. Nesse sentido, não é o horizonte o pensamento decolonial que se
orienta pela construção de um mudo pluriverso e rejeita a ideia de uma classe social
como portadora de um projeto universal que possa levar o homem à sua condição de
ser genérico com a efetivação do comunismo pelo proletariado, como expressa Karl
Marx nos “Manuscritos econômicos e filosóficos”.
O fim da história como emancipação humana – seja na versão de Hegel, com a
efetivação do Estado capitalista moderno, seja na versão do Marx, com o fim da luta
de classes, da divisão do trabalho e da propriedade privada (comunismo) – significa a
perda de sentido do passado e do futuro, implica viver num eterno presente sem
possibilidade de projetos. É ser condenado a viver num presente eterno marcado pelo
caráter político totalitário e opressivo do consenso político.
A experiência histórica demonstra que a colonialidade do ser, do saber e do
poder, padrão mundial de poder, como denomina Quijano, continua mesmo com as
chamadas revoluções que ocorrem na modernidade, e que o seu projeto
emancipatório não pode ser universalizado. Logo, não se tata de um projeto
inacabado, como diz Habermas, mas uma civilização decadente, como diz Aimé
Césaire.
A emancipação, para a modernidade, é um processo que é outorgado como
conquista de um grupo ou vanguarda que é apresentado como uma conquista de e
para toda a sociedade, como foi a conquista por independência política das colônias
ibéricas nas Américas, comandada por crioulos, que depois passaram a controlar o
poder e atuar como classe eurocentrada sobre a maioria da população, reproduzido o
mesmo sistema de exploração e dominação. As revoluções socialistas, que foram
conduzidas pelas chamadas vanguardas revolucionárias, que, ao se apossarem do
poder, passaram a explorar e a dominar camponeses e operários, enquanto viviam dos
privilégios e benefícios do poder.
A decolonialidade ou giro decolonial não pode ser outorgado, pois implica a
ação por parte dos que são vítimas da herança colonial e da colonialidade do ser, do
saber e do poder em curso. Assim, a decolonialidade está diretamente conectada com
a ideia de libertação.
A libertação, como horizonte do giro decolonial, deve ser obra não de uma
classe social, mas de todos os sujeitos e grupos humanos que foram considerados
menos humanos a partir da ideia de humanidade da modernidade. Trata-se de sujeitos
e grupos humanos que possuem múltiplas subjetividades; múltiplas formas de produzir
conhecimentos e manifestações culturais e múltiplas práticas produtivas e modelos
econômicos que são demasiadamente ricos para pensar o humano e sua relação com a
natureza de forma pluriversal. A libertação não pode se confundir com a ideia de
emancipação, exclusiva para homens e mulheres burguesas ou dos aburguesados, do
processo civilizador moderno.
Quando a vida em sociedade se torna mais complexa, mais múltiplas também
se tornam as interpretações sobre a realidade social, os projetos de sociabilidade em
disputa e as formas de conhecimento do mundo. O conhecimento de um pensador só
ou de um modelo de razão único perde força transformadora e se não se renova e
dialoga com outras formas de pensamento, só se reproduz como doutrina. O
pensamento decolonial não é uma doutrina, por isso seu horizonte utópico é uma
aposta num mundo onde vários universais existam juntamente com uma ecologia de
saberes e sem um centro aglutinador, nem uma classe como portadora de um
verdadeiro universal emancipatório para a humanidade. A luta pela libertação, ou seja,
pelo pluriversal, é uma luta que tece junto os vários movimentos contra a
colonialidade do ser, do saber e do poder no sistema-mundo patriarcal, cristão,
heteronormativo, capitalista, colonial, moderno e europeu.
O pensamento decolonial não é um tipo de pensamento específico da América
Latina ou de algum outro território em particular, mas uma atitude crítica de
resistência contra a modernidade em suas várias expressões. Nas Américas, é possível
identificar, segundo Maldonado-Torres (2021), três vertentes do pensamento
decolonial: a vertente caribenha, a latino-americana e a dos latinos nos Estados
Unidos.
O Caribe foi uma das primeiras zonas formadas pela modernidade e onde o
processo civilizador moderno mostrou, de forma muito clara e contundente, o seu
poder imperial e colonial fundado numa divisão ontológica entre o colonizador e o
colonizado. O Caribe, junto com parte do território que passou a ser chamado de
América Latina, foi o laboratório onde a modernidade desenhou e pôs à prova suas
tecnologias de controle social, de produção econômica e de dominação epistêmica e
cultural que deram suporte para a Europa deslocar o Mediterrâneo como centro
cultural e econômico do mundo e se constituísse como império, primeiro com a
Espanha, depois com a Holanda e, por último, com a Inglaterra, que veio a perder o
posto para os Estados Unidos em meados do século XX.
Nelson Maldonado-Torres, em “El Caribe, la colonialidad, y el giro decolonial”
(2020), destaca a importância do Caribe para o entendimento da colonialidade, da
decolonialidade e do giro decolonial, seu argumento é o de que passou a existir um
certo centrismo latino-americano nas formas usuais de entender o giro decolonial na
América Latina. Para isso, contribuiu o foco nos estudos na produção dos intelectuais
organizados em torno da rede modernidade/colonialidade e o artigo de Arturo Escobar
(2003), que classificou a rede como sendo um programa de investigação em torno da
modernidade/colonialidade na América Latina.
Para Maldonado, o Caribe é o espaço-tempo no qual a colonialidade tem início
e de onde passa a se expandir no que depois vai ser chamado de Mundo Novo. O
Caribe foi a base da formação da colonialidade e do mundo moderno Ocidental. Para
Maldonado, do ponto de vista da sociogênese, a Revolução do Haiti foi o primeiro
movimento de giro decolonial. O giro decolonial ou pensamento decolonial, pensando
de forma ampla, faz referência ao Sul Global e aos suis existentes no Norte Global.
Portanto, quando se tomar como referência o pensamento decolonial, deve-se evitar o
centrismo latino-americano, pois o pensamento decolonial não é um pensamento
especificamente latino-americano.

REFERÊNCIAS
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Santa Catarina, Letras
Contemporâneas, 2020.

ESCOBAR, Arthuro. Mundos y conocimientos de outro modo: el programa de


investigación Modernidad/Colonialid latinoamericano. Tabula Rasa, Bogotá, nº 1, p.
51-86, 2003. Disponível em: http://www.revistatabularasa.org/numero-1/escobar.pdf.
Acesso em: 01 dez. 2021.

HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. A condição política pós-moderna. Rio de Janeiro,


civilização brasileira, 1998.

MALDONADO-TORRES, Nelson. El Caribe, la colonialidad, y el giro decolonial. Latin


American Research Review, v. 55, n. 3, p. 560-573. Disponível em:
https://www.researchgate.net/publication/344698342_El_Caribe_la_colonialidad_y_el
_giro_decolonial. Acesso em: 01 dez. 2021.

MALDONADO-TORRES, Nelson. El giro decolonial. Nuevos acercamientos a los


estudios latinoamericanos. Cultura y poder, p. 193-221, Editor Juan Pobles,
CLACSO/UNAM, BuenosAires, 2021.

KANT, Emmanuel. Textos Selecionados. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin
Claret, 2005.

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