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O PT E A LENDA DO BOTO COR DE ROSA

FRANCISCO URIBAM XAVIER DE HOLANDA

FORTALEZA – 2013
2

Para:
André Haguette, o mestre sereno.
E
Alba Carvalho, que casada com Gramsci tem uns fica com Boaventura.
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ÍNDICE

Introdução .......................................................................................................... 04

1 – Da nascente ao Poder ................................................................................... 11

2 – Do lula Paz e Amor à Perplexidade............................................................... 46

3 – Deixa o Homem Trabalhar ............................................................................. 83

4 – A Crise No Senado – O PT assume a cultura patrimonial ................................97

5 – Conclusões .......................................................................................................
4

INTRODUÇÃO

Há tempos venho me propondo a escrever sobre os sentimentos e percepções


que tenho sobre o significado moral e político da trajetória do Partido dos
Trabalhadores - PT. Parte da minha juventude e do meu aprendizado político partidário
aconteceu na tentativa de realizar, coletivamente, o sonho de construir uma sociedade
baseada em valores e relações não capitalistas e de, através da política partidária,
realizar ensaios e experiências com possibilidades de frear os múltiplos processos de
exploração da sociedade burguesa. Essas tentativas busquei executá-las por dentro do
PT e, desde 1998, quando deixei o partido, venho realizando-as em múltiplas formas de
ação política não partidária.

Atualmente sou crítico do PT e de sua administração, não sou inimigo, e tenho


mais afinidades com o governo Lula do que com todos os anteriores. E é desse ponto
de vista que me conduzo nessa reflexão que virou livro. Quando Lula chegou ao poder,
contando com meu voto e minha força individual de campanha, vibrei e fiquei na
esperança de que um “modo petista de governar”, bem mais amplo do que os êxitos
alcançados em algumas de suas administrações, como em Porto Alegre e Santo André,
fosse ampliado para toda federação. Todavia, em pouco tempo, veio à perplexidade, e
de simpatizante passei a ser um crítico.

O livro que agora apresento é fruto de um projeto de pesquisa, aprovado pelo


Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal do Ceará – UFC, em maio
de 2011, com o título “ Da nascente ao poder: um estudo político da trajetória do PT
do ABC paulista ao Palácio do Planalto” . Na condução da pesquisa, trabalhei com uma
tríplice dimensão: descritiva, interpretativa e avaliativa. Portanto, não me escondo ao
fazer uma avaliação crítica permeada por um juízo de valor, não tenho aqui a pretensão
weberiana da objetividade científica que se apresenta como neutra.
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Na qualidade de pesquisador, cumpro a função de ler e interpretar a trajetória


do PT a partir de suas mudanças em relação a sua origem e a sua atual condição,
observando, ainda, que parte expressiva de suas lideranças se coloca não só
compromissada como pertencente a um partido de natureza socialista. Portanto, não
se trata de negar alguns feitos ou ações importantes para os trabalhadores; não se
trata de negar que um programa como o Bolsa Família seja importante e necessário
para quem passa fome; não se trata de desconhecer que o crescimento econômico,
combinado com a geração de emprego, também traz benefícios para os trabalhadores.
Trata-se de avaliar se todos esses feitos se portam dentro de uma lógica de construção
do socialismo. Trata-se de avaliar que tipo de projeto de sociedade o PT está
construindo, que rumos ele está tomando em sua trajetória, e o que sua ação está
consolidando na história de nosso país.

Assim, cabe registrar que o melhor padrão de administração pública, de


promoção de um sistema de seguridade social e de qualidade de vida oferecido pelo
capitalismo, para parte dos habitantes da Europa, foi o modelo chamado welfare state.
E, no Brasil, por mais que se reconheça o que o PT tem feito, estamos muito longe de
chagar onde o capitalismo europeu chegou para, agora, diante da crise estrutural,
desmilinguir-se. Por isso, quero chamar a atenção do leitor para minha pesquisa, bem
documentada e fundamentada, que tem como referencial a promessa original do PT de
ser um partido de novo tipo: de lutar contra a exploração capitalista e de realizar um
novo modelo de se fazer política, como formulou Gramsci, ser uma nova direção
política e moral contra a hegemonia capitalista.

A pesquisa é apresentada através de quatro capítulos articulados em sequência,


mas cada um tem vida própria e pode ser lido separadamente, por isso apresento cada
capítulo com suas referências bibliográficas.

Depois que terminei de sistematizar minha pesquisa e de escrever o livro


,passei a ter mais segurança de que os fatos do cotidiano são bem mais fortes e
convincentes para demonstrar que o PT passou por uma significativa mudança. Trata-se
de uma mudança na qualidade de seus princípios; o partido abandonou seu
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compromisso com a organização e a luta dos explorados e passou a ser um


administrador e defensor da ordem capitalista no país.

Quem gostava de política ou acompanhava a vida do partido sabe que era uma
prática comum e uma marca sua a presença, de seus militantes e parlamentares nas
mobilizações de lutas dos trabalhadores de todas as categorias. Uma passeata, uma
caminhada, uma greve, uma ocupação ou um protesto, lá estavam os parlamentares
petistas ajudando com carro de som, panfletos, e fazendo discursos de apoio. Usavam
o espaço do parlamento para ampliar a voz dos trabalhadores, exerciam no parlamento
a representação dos explorados, acompanhavam e cobravam das instituições
governamentais o que era reivindicado pelos trabalhadores e setores organizados da
sociedade civil, e ainda denunciavam assassinatos de trabalhadores no campo e na
cidade.

A defesa dos direitos trabalhistas, o combate ao uso de repressão policial contra


mobilizações populares e a denúncia contundente contra crimes cometidos contra
trabalhadores eram princípios sagrados para o PT, seus parlamentares e sua militância.
Essas questões não são mais valores pelos quais o partido e parte da sua militância se
mobilizam. Aliás, são acontecimentos e fatos que deixam os parlamentares, hoje
burocratas, constrangidos quando são solicitados a se manifestarem diante deles. E o
pior, tem os que se posicionam contra as lutas trabalhistas por demonstrarem as
contradições do partido como governo. Listarei abaixo três casos do Ceará, mas que é
prática nacional, onde a faticidade se impõe como critério de verdade sobre a mudança
de princípio do PT.

No dia 21 de abril de 2010, na cidade de Limoeiro do Norte, foi assassinado com


21 tiros, segundo o exame de balística, o ambientalista José Maria Filho, conhecido
como Zé Maria do Tomé. Motivo da morte? Zé Maria denunciava e fazia protestos
contra o uso indiscriminado de agrotóxicos nos plantios do perímetro irrigado
Jaguaribe - Apodi, apoiado pelo governo do Ceará (aliança PSB, PT e PC do B) como
modelo de desenvolvimento. Pesquisa realizada pela Universidade Federal do Ceará,
através do Departamento de Medicina Comunitária, comprovou a presença de
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agrotóxicos na água da região e doenças causadas pelo veneno usado nos plantios. O
caso só não foi esquecido porque as pastorais sociais da Diocese de Limoeiro do Norte
e entidades ligadas à proteção ambiental cobram justiça e uma investigação por parte
do governo. E o PT, faz silêncio, finge-se de morto, sem manifestar qualquer um
pronunciamento ou questionamento sobre o modelo de desenvolvimento predatório,
em curso no Ceará, que causa danos à população local e deixa ricas as multinacionais
que exploram o perímetro irrigado na região.

No mês de agosto de 2011, os professores da rede estadual de ensino, depois


de várias tentativas de negociação com o governo, entraram em greve pelo
cumprimento da lei que garante o piso nacional do magistério. Após uma série de
assembleias, atos públicos, ocupações e greve de fome, o governador Cid Gomes
solicitou aos professores que ensinassem por amor e não por dinheiro. No dia 28 de
setembro, a Assembleia Legislativa votou um Projeto de Lei, enviado pelo governo em
regime de urgência, que não atendia as reivindicações dos professores. Nessa ocasião,
quando os professores tentaram ocupar a área de acesso da Assembléia, foram
recebidos com muita truculência pela polícia militar que usou e abusou de cassetetes,
spray de pimenta, arrastou professores no chão puxando pelos cabelos, prendeu e
feriu. No dia 30, em protesto, professores e sociedade fizeram uma grande marcha de
protesto com a participação de cinco mil pessoas. Notas repudiando a violência foram
publicadas nos jornais locais. O PT, que é governo, inclusive votou no Projeto de Lei que
tira direitos garantidos em lei aos professores, não fez um pronunciamento em defesa
da categoria, e nunca teve um de seus parlamentares acompanhado os mais de dois
meses de luta dos trabalhadores. Depois da violência, lançou uma nota pálida, típica de
pelego, sem condenar a violência, pedindo moderação das duas partes. E o líder do
governo, que é do PT, fez elogios ao comportamento do governador Cid Gomes (PSB).

O frisson em torno da copa de 2014 tem criado uma intimidade subserviente do


governo brasileiro com a FIFA e uma relação de promiscuidade com a indústria do
turismo e da construção civil; fruto dessa relação, uma onda de denúncias de
corrupção afloraram antes da realização dos jogos. No ceará, a construção do veículo
leve sobre trilhos - VLT, uma das obras para copa, desapropriará 2.700 imóveis, num
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desenho que pega apenas as casas de gente pobre, numa verdadeira ação de limpeza
étnica e racismo ambiental que passa por 22 bairros. Os moradores e as entidades que
os apoiam denunciam que o valor da indenização proposto não lhes permitem
construir outra moradia, fora suas perdas sentimentais, vínculos afetivos e proximidade
de trabalho que serão destruídos. Coube ao Ministério Público Federal mandar
suspender a execução da obra, exigindo que fossem feitos um estudo sobre os valores
da indenização, uma avaliação de cada imóvel, a realização de acordos
administrativos, bem como os pagamentos de indenizações fossem agendados e
realizados os procedimentos para o licenciamento ambiental. Em que lugar se
posiciona o PT? O PT acha que a Copa é uma conquista do governo Lula e que suas
consequências, seus custos exorbitantes bancados com recursos públicos, e tudo de
negativo que ela produz é fruto de uma impressa golpista e reacionária. Por que não
discutir quais obras são importantes para cidade? Por que não ter transparência no
processo? Por que desapropriar tal trajeto e não buscar alternativas? A resposta foi
dada pelo engenheiro responsável, o petista Edilson Aragão, ao jornal O Povo
(15.12.2011): “porque é mais barato e mais prático”.

No Brasil, os êxitos que o governo Lula obteve através de seus programas sociais
e pela sua política de estruturação econômica do setor produtivo e financeiro, levou os
petistas a uma posição de acomodação ao capitalismo, aderindo, sem assumir
conscientemente, a tese do fim da história1. O PT ficou arrogante e passou a tratar
como inúteis os que se colocam como críticos da administração petista. Os petistas e
muitos de seus apologistas, quando são arguidos sobre a prática de corrupção tão
constante no governo, saem com resposta do tipo: a corrupção, agora, aparece mais
por que o governo manda investigar e apura, como se não fosse petistas e aliados os
envolvidos nos escândalos de corrupção; no governo Lula se rouba menos, como se
crime e ética fossem uma questão de quantidade. Para muitos, pelos feitos alcançados
pelo governo Lula, a sociedade não tem razão nenhuma de criticar, pois “nunca na
história do país” se fez tanto pelos pobres; logo, quem crítica é reacionário ou golpista.
1
A teoria do fim da história parte do pressuposto de que com o fim da bipolaridade entre o bloco
capitalista e o bloco socialista, acontecido com o fim da guerra fria, houve uma vitória absoluta da
racionalidade capitalista e da forma capitalista de ser e de conduzir o mundo. Nesse sentido, a utopia de
transformação social, o socialismo, é uma ingenuidade, pois o único sistema possível em nossa
epocalidade é o capitalismo, e cabe ao governo o administrar bem.
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O “espetáculo do crescimento” do mercado capitalista, que por tabela vem


melhorando a vida do povo, é tão sagrado que parece fazer pouca diferença se no
processo tem corrupção ou não, se consolidamos um sistema democrático ou
patrimonialista. Se os fins justificam os meios, os críticos são, para os petistas e seus
aliados, neoliberais ou esquerdistas radicais desprovidos de propostas para melhorar o
país. Eles pensam que a popularidade e a boa avaliação da administração do governo
Lula, por parte da população, tornam o governo menos irracional ou que ele perde seu
caráter dominador.

Ao se construir numa alternativa neodesenvolvimentista ou social-democrata


mitigada no país, o PT tornou-se um partido à oposição. Essa metamorfose me fez
resgatar uma crença do povo ribeirinho do Rio Amazonas, a lenda do boto cor de rosa.
Conta uma lenda, da região norte do Brasil, que quando uma moça aparece grávida
sem ter contraído matrimônio e sem querer revelar quem é o pai, ela conta para
família que estava à beira do rio e que fora seduzida pelo boto cor de rosa, que lhe
apareceu na forma de um belo rapaz. O PT, em sua trajetória, é uma moça que nasceu
carregando uma estrela vermelha, símbolo do compromisso socialista com os
explorados pelo capitalismo, mas que ao decidir entrar a qualquer custo no rio do
poder – Palácio do Planalto – ficou grávida de trigêmeos: uma aliança conservadora
com os setores mais atrasados da política brasileira, o mensalão, e uma gestão social-
democrata. Bem, mas se o PT não assume que mudou, fica se escondendo no “me
engana que eu gosto”, de quem pode ser a culpa pela sua metamorfose? Só pode ser
do boto cor de rosa, ou seja, da sedução do poder capitalista que aparece na forma de
dinheiro, cargo, distinção e poder.

Assim, o PT perdeu o horizonte socialista que lhe normatizava a ação dentro da


sociedade e do parlamento. O PT, como ação coletiva criadora, desapareceu. O debate
está aberto, não desejo que o leitor tenha concordância com tudo, mas muitos dos
aspectos que abordo merece uma reflexão profunda e faz parte da verdade desse meu
tempo histórico. Boa leitura.
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Bairros de São Gerardo e Fátima


Fortaleza – maio de 2013
Uribam Xavier
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1- DA NASCENTE AO PODER

“PT: NOSSA VEZ, NOSSA VOZ”.

O Partido dos Trabalhadores (PT) nasceu da resposta política, contra os aspectos


antitrabalhistas e autoritários do Regime Militar, dada pelo Movimento Sindical, pelos
Novos Movimentos Sociais (bairro, estudantil, mulheres), pela ação de religiosos
influenciados pela Teologia da Libertação dos anos de 1970 e de 1980, e por
intelectuais e militantes, a maior parte saída de antigos grupos que fizeram parte da
guerrilha urbana e rural no país.

O PT colocou-se, no seu processo de gestação, também como resposta à crise


de identidade dos partidos políticos brasileiros e à forma tradicional de se fazer
política, marcada profundamente pela herança do clientelismo, do populismo, do
patromonialismo e do autoritarismo. Ele representou uma resposta positiva do Novo
Sindicalismo, surgido no ABC paulista, à redução das relações de poder aos canais
institucionais, à redução da representação política como mecanismo de exploração do
direito do eleitor (povo) de dirigir seu próprio destino. O PT, em seus argumentos
fundantes, colocou-se contra os políticos profissionais que alimentavam
continuamente a cisão entre governantes e governados.

O processo de Formação do PT tem seu marco histórico na chamada Tese 2 de


Santo André-Lins [dossiê-2009], resolução sindical que aponta a necessidade de
formação de um partido de trabalhadores. Pela sua importância histórica, passo a citar
um longo trecho:

2
A Tese de Santo André-Lins foi aprovada durante o IX Congresso dos Trabalhadores Metalúrgicos,
Mecânicos e de Material Elétrico do Estado de São Paulo, ocorrido na Cidade de Lins, em 24 de janeiro
de 1979.
12

“ Enquanto vivermos sob o capitalismo, este sistema terá como fim último o lucro, e
para atingi-lo utiliza todos os meios: da exploração desumana de homens, mulheres
e crianças até a implantação de ditaduras sangrentas para manter a exploração.
Enquanto estiver sob qualquer tipo de governo de patrões, a luta por melhores
salários, por condições dignas de vida e de trabalho, justas a quem constrói todas as
riquezas que existe neste país, estará colocada na ordem do dia a luta política e a
necessidade de conquista do poder político. A história nos mostra que o melhor
instrumento com o qual o trabalhador pode travar esta luta é o seu partido político
[...] Hoje, diante da atual conjuntura política, econômica e social que vive a
sociedade brasileira, essa necessidade, com o peso de sua importância, se faz sentir.
Crentes que já é hora de o trabalhador tomar em suas mãos as lutas pelas
questões que hoje angustiam a população brasileira, como a anistia ampla, geral e
irrestrita, a Assembléia Constituinte, democrática, livre e soberana, a reforma agrária
e a liberdade partidária [...] propomos o seguinte: 3. que se lance um manifesto, por
este congresso, chamando todos os trabalhadores brasileiros a se unificarem na
construção de seu partido, o Partido dos Trabalhadores; 4. que este partido seja de
todos os trabalhadores da cidade e do campo, sem patrões, um partido que seja
regido por uma democracia interna, respeite a democracia operária, pois só com um
amplo debate sobre todas as questões, com todos os militantes, é que se chegará à
conclusão do que fazer. Não um partido eleitoreiro, que simplesmente eleja
representantes na Assembléia, Câmara e Senado, mas que, além disso e
principalmente, seja um partido que funcione do primeiro ao último dia do ano,
todos os anos, que organize e mobilize todos os trabalhadores na luta por suas
reivindicações e pela construção de uma sociedade justa, sem exploradores e
explorados; 5. que seja eleita neste congresso uma comissão e junto com todos os
outros setores que, embora ausentes, também estão interessados na construção
desse partido, amplie os contatos e comece a encaminhar essa luta nacionalmente
em discussões com as bases, iniciadas desde já; que essa comissão fique
encarregada da redação de um manifesto aos trabalhadores brasileiros, chamando à
construção do Partido dos Trabalhadores, proposto no terceiro ponto.”
13

A grande novidade ou pretensão do PT era a de ser o primeiro 3 partido político,


na história do Brasil, construído e dirigido por e para trabalhadores com o objetivo de
fazer a classe trabalhadora chegar ao poder. O PT nasceu como um partido de base
operária vocacionado para elevar a classe operária à condição de classe dirigente e
dominante, nele não deveria ter lugar para burguesia e nem para os políticos
profissionais. Em uma entrevista ao Jornal L’Unitá – Itália -1980 [dossiê -2009], Lula
Afirma:
“O PT considera que, de um modo geral, os partidos de esquerda, aí incluídos os
comunistas, cometeram erros, riscos de que ninguém, obviamente, está afastado. E
um dos principais erros – e desse o PT faz questão de se manter afastado – é o de
desligar-se das massas, dos trabalhadores, é fazer da política uma atividade de
gabinete, intelectual, acadêmica, ou uma prerrogativa que só cabe às elites, sejam
dominantes ou dominadas [...] Portanto, é o trabalhador, o peão, como dizemos aqui
no ABC, que deve fazer política. Ele próprio, diretamente, e não através dos que não
sentem e não vivem essas condições e querem falar em nome deles, querem fazer
política em nome deles”.

Pela tese de Santo André-Lins fica claro que o PT foi criado porque algumas
lideranças sindicais do ABC paulista e dos movimentos sociais, no final da década de
1970, chegaram à conclusão de que os sindicatos e as lutas dos movimentos eram
insuficientes e incapazes de desenvolver um projeto político e de lutar pela tomada do
poder. Assim, a criação de um partido operário era uma oportunidade para
participarem da política com seus próprios meios e instrumentos, era uma
oportunidade de fazer política por melhores condições de vida e trabalho, de lutar pelo
poder com independência em relação aos patrões, aos políticos profissionais e às
elites dominantes do capitalismo. O PT nasceu para ser o partido dos trabalhadores das
mãos calejadas. O primeiro slogan do partido foi: “ PT: nossa vez, nossa voz.”

3
Há meias-verdades na afirmação dos petitas de que o PT era o primeiro partido na história brasileira a
emergir da classe operária. Tal afirmação se deve ao fato de que parte dos dirigentes petistas rejeitavam a
procedência do PC brasileiro na representação da classe operária. O PCB foi formado com a participação
e militância expressiva de operários. Para Lula, principal liderança do chamado “Novo sindicalismo”, a
classe operária brasileira dos anos 80 não tinha cultura socialista ou comunista, ao operariado não
interessava política, ao operariado interessava salário. Daí, ser o PT o primeiro partido político a
representar verdadeiramente os trabalhadores.
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Em seu Manifesto de Fundação, o PT estabelece que submeterá sempre “ a sua


atuação eleitoral/parlamentar à organização política das massas trabalhadoras e à
luta destas massas pelo socialismo”. O Manifesto ainda diz “ o poder não apenas se
toma, mas também se constrói”. Para José Dirceu ( in Sader,1986, p.39), as ideias de
construção do poder expressam:
Que o PT pretende constituir, desde já, o poder popular, colocando na ordem do
dia a construção do socialismo. Ou seja, o poder da classe trabalhadora, seja do
ponto de vista ideológico, disputando a hegemonia ideológica com a burguesia na
luta anticapitalista e pelo socialismo; seja disputando a direção e hegemonia sobre
outros setores sociais.

Além de se propor a construir um poder popular e socialista, o PT nasce


renunciando a estratégia marxista-leninista de tomada violenta do poder e se aproxima
das ideias de guerra de posição de Antonio Gramsci. Também é muito claro e forte sua
rejeição ao caminho reformista dos partidos social-democratas. No seu programa de
fundação [Gadotti, 1989], o PT afirma que “as correntes social-democratas não
apresentam, hoje, nenhuma perspectiva real de superação histórica do capitalismo
imperial”.

O PT foi oficialmente fundado no dia 10 de ferreiro de 1980 no Colégio Sion, em


São Paulo, mas só foi reconhecido como partido político pelo Tribunal Superior de
Justiça Eleitoral no dia 11 de fevereiro de 1982. Apresentando-se como socialista e
democrático, rejeitava qualquer ligação com o socialismo real soviético e chinês. Um
partido plural, que se orgulhava em dizer que não tinha uma ideologia oficial e dele
participavam diferentes correntes de opinião político-ideológica, as chamadas
tendências. Tal situação alimentou um longo debate interno sobre o seu caráter
institucional: o PT queria ser um partido ou uma frente? Opinando sobre o tema, José
Genoíno (in Sader, 1986, p.106), um dos membros fundadores do partido, expressou o
seguinte:
A existência de articulações e a disputa com base na democracia interna são vistas
como coisas normais e estão incorporadas na vida do PT. Todos pertencem ao PT,
defendem o PT, lutam pelo PT, constroem o PT. Mas é natural que as pessoas se
agrupem de acordo com as suas afinidades filosóficas e ideológicas e de acordo com
o projeto histórico mais geral que alas têm sobre os rumos da humanidade. O PT,
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enquanto partido de massa, não tirou uma definição oficial sobre essas questões e
incorpora várias visões sobre elas.

Os primeiros passos do PT serão dados dentro de uma conjuntura forjadora de


um processo dinâmico de democratização política, que produzirá profundas mudanças
na relação do Estado com a ordem social; e de uma liberalização econômica, que
produzirá profundas mudanças na ordem econômica. No primeiro processo, o PT
participará na qualidade de um protagonista radical na medida em que defende um
projeto de socialismo democrático. Em relação ao segundo processo, será um forte
crítico e opositor. Esses dois processos, berço da conjuntura política em que nasce o PT,
transformarão a forma autocrática e desenvolvimentista do Estado vigente no Brasil
desde a Era Vargas e dotarão o país de um novo padrão hegemônico de dominação.

A PRIMEIRA ELEIÇÃO

Em 19824, em plena vigência da ditadura militar, o país viveu uma campanha


importante - dentro do processo de estratégia de abertura lenta, gradual e segura –
para governadores de Estado, senadores, deputados federais e estaduais, prefeitos
(exceção para capitais e áreas consideradas de segurança nacional) e vereadores. O PT
enfrentou a campanha afirmando que pela primeira vez os trabalhadores podiam votar
em um partido construído e formado por trabalhadores. Apresentando-se como
“partido dos explorados do campo e das cidades”, recusou participar da “ Unidade das
Oposições”, por ser uma aliança comandada pelo PMDB que aglutinava num mesmo
bloco explorados e exploradores.

Muito eufórico, produzindo uma mescla de estética da pureza e do radical


revolucionário, o PT esperava obter um resultado extraordinário das eleições, esperava
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Em 1982 ocorreu as primeiras eleições diretas para Governador e vice, senadores, deputados federais e
estaduais. Desde a Ditadura Militar, em 1964, os governadores eram indicados pelo Presidente da
República e referendados em votação indireta pelas assembleias legislativas. Na eleição de 1982, valeu o
voto vinculado, ou seja, o eleitor teve que votar nos candidatos do mesmo partido para todos os cargos,
sob pena de anular seu voto. Os eleitos para deputado federal e senador comporiam o Colégio Eleitoral
que, em 1985, escolhera Tancredo Neves e José Sarney como presidente e vice do Brasil. Ao final das
eleições, a Câmara Federal ficou composta por 335 deputados do PDS, 200 do PMDB, 23 do PDT , 13
do PTB e 8 do PT. No Ceará, foram eleitos Gonzaga Mota governador, Adauto Bezerra vice e Virgilio
Távora Senador.
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que a maior parte da classe operária e camponesa do país votasse em seus candidatos.
Com a abertura das urnas, o partido vivenciou sua primeira derrota, praticamente não
existiu eleitoralmente, obteve 3,1% dos votos validos em todo país.Todavia, embora o
PT tenha tomado o que a direção nacional, à época, chamava de “ banho de água fria”,
conseguiu eleger 8 deputados federais: em São Paulo (6), em Minas Gerais (1)e no Rio
de janeiro (1). Não elegeu governador, senador e prefeito, mas conseguiu eleger 12
deputados estaduais em todo país: (9) em São Paulo, (2) no Rio de Janeiro e (1 )em
Minas Gerais.

Lula, nas eleições de 82, foi candidato ao governo de São Paulo. Com o slogan
de campanha “ trabalhador vota em trabalhador” e “ vote no três que o resto é
burguês” ( o primeiro número do PT foi o 3 e só depois passou a ser o 13), Lula obteve
próximo de 10% dos votos. Os operários paulistas votaram com a burguesia. O conforto
psicológico e o consolo moral para a derrota foram buscados num trabalho do
cartunista Henfil [Se não houver frutos, valeu a beleza das flores. Se não houver flores,
valeu a sombra das folhas. Se não houver folhas, valeu a intenção da semente]
,amplamente reproduzido em cartazes e camisetas usadas por militantes,
principalmente universitários e religiosos da teologia da libertação. Nessas eleições, o
PT enfrentou a resistência do chamado fenômeno do “ voto útil”. O PMDB, que
articulava a chamada “unidade de oposição”, argumentava que votar no PT era dividir a
luta contra a ditadura militar. O PT passou a ser acusado, principalmente pelo PC do B,
que na clandestinidade, atuava por dentro do PMDB, de divisionista, simplista e
sectário.

No início dos anos de 1980, o Brasil vivia uma crise muito profunda cujo
principal gargalo era a incapacidade de o Estado honrar os pagamentos dos juros das
dívidas interna e externa. A opção do governo para solucionar a crise do Estado, a
partir de uma estratégia que combinou ajuste externo, produção de saldo na balança
comercial para pagar o serviço da dívida externa, com um ajuste fiscal, diminuindo
recursos aplicados em políticas públicas e promovendo um galopante achatamendo
salarial, acabou produzindo uma crise política muito profunda. Os servidores públicos e
movimentos sociais, afetados pelo ajuste fiscal, passaram a se organizar e a fazer
17

manifestações públicas e greves. Todavia, a defecção do empresário privado, em


oposição à estratégia de saída para crise, debilitou a base de apoio que o governo
militar tinha na sociedade civil fortalecendo a atuação parlamentar de oposição no
congresso e materializando a sustentação política para as mobilizações em torno da
campanha das “Diretas Já”.

DIRETAS JÁ!

Em 19835, o senador alagoano, Teotônio Vilela (PMDB-AL), propôs a criação de


um amplo movimento cívico por eleições diretas para presidente da república. A
proposta ganhou materialidade quando , em março de 83, o Deputado Dante de
Oliveira, do PMDB de Goiás, apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional –
PEC-5 propondo eleições para presidente em 1984. A proposta ficou conhecida como
Emenda das Diretas e Emenda Dante Oliveira. O PT participou intensamente da
campanha.

A campanha pelas diretas ganhou as ruas, constitui-se no mais sólido processo


de mobilização da sociedade brasileira de rejeição à ditadura militar. Com o slogan “ Eu
quero votar para presidente”, no dia 27 de novembro de 1983, aconteceu o primeiro
comício Pró-Diretas na praça Charles Muller, em frente ao Estádio do Pacaembu (SP),
com a participação de 15 mil pessoas. Em abril de 1984, na Praça da Candelária (RJ),
um novo comício reuniu 1 milhão de pessoas, e, logo em seguida, no dia 16 de abril, no
Anhangabaú (SP), aconteceu o maior comício com a participação de 1,7 milhões de
pessoas. As principais lideranças do movimento “Diretas Já” foram Tancredo Neves,
Orestes Quércia, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Franco Montoro, Teotônio
Vilela, Leonel Brizola, Luiz Inácio da Silva (Lula), Pedro Simon, Ulysses Guimarães, Dante
Oliveira, além de cantores, jogadores, artistas e religiosos. Atos pelas “Diretas
Já!” se espalharam por todo o Brasil. Em abril de 1984, sob grande expectativa da
nação brasileira, a PEC-5 ou Emenda das Diretas foi rejeitada por não alcançar um

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O ano de 1983 foi muito importante para as organizações populares no Brasil. Em 23 de agosto, durante
a CONCLAT – Conferência Nacional da Classe Trabalhadora, é aprovada a fundação da Central Única
dos Trabalhadores – CUT. No ano seguinte, 1984, durante um congresso de trabalhadores rurais, em
Curitiba, é fundado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST.
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número de votos para sua aprovação. Votaram 298 deputados a favor, 63 contra, 3
abstenções e 112 não compareceram como forma de boicote; faltaram 22 votos para
aprovação da Emenda das Diretas.

Em 15 de novembro de 1985, no Colégio Eleitoral, Tancredo Neves e José


Sarney (braço direito da ditadura militar) são escolhidos, contra Paulo Maluf (outro
apoiador da ditadura) como Presidente e vice da República. Em seguida, Tancredo
Neves fica doente e morre. Em 15 de março, José Sarney toma posse como presidente
e vai conduzir, agora no PMDB, a chamada “Nova República”. A base de sustentação da
Nova República foi constituída pela formação da Aliança Democrática, composta pelo
PMDB e Partido da Frente Liberal – PFL. O PT considerou o Colégio Eleitoral como
ilegítimo e espúrio, expulsando dois de seus deputados federais (Airton Soares e Bete
Mendes) por votarem em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, e seguiu como oposição
radical ao governo da Nova República.

Durante a Nova República, o legado institucional autoritário, um dos pilares


centrais do Estado varguista que havia sido aprofundado pelo regime militar, foi
eliminado e medidas de ampliação e organização política, como expansão dos direitos
básicos de cidadania, foram garantidos em lei. Segundo Sallum Jr. (2003, p.38):
“ de fato, já no início do governo de José Sarney alterou-se um conjunto de leis que
bloqueavam a participação política popular. No primeiro semestre de 1985 foram
instituídos: a) eleições diretas em dois turnos para presidente da República; b)
eleições diretas nas capitais dos estados, áreas de segurança e principais estâncias
hidrominerais; c) representação política para o distrito Federal na Câmara dos
Deputados e no Senado Federal; d) direito de voto aos analfabetos; e) liberdade de
organização partidária, mesmo para os comunistas; e todo um conjunto de
alterações menores que iam na mesma direção. Além disso, a legislação sofreu
algumas mudanças que provocaram um enorme impacto na atividade política dos
trabalhadores, aumentando muito seus direitos de participação e liberando-os do
controle governamental: a) foram readmitidos líderes sindicais, antes demitidos por
mau comportamento; b) foi cancelado o controle do Ministério do Trabalho sobre
as eleições sindicais; e c) foi eliminado a proibição de associações inter-sindicais, o
que legalizou as atividades de centrais sindicais que, até então, eram apenas
toleradas”.
19

Em 1985 aconteceram eleições para capitais e áreas consideradas de segurança


nacional. Tratou-se de uma eleição com mandato tampão de três anos (1985-88). O PT
conseguiu eleger a primeira mulher prefeita de uma capital no Brasil, Maria Luiza
Fontenele, ao mesmo tempo em que conquistava o direito de governar, pela primeira
vez, uma capital, a cidade de Fortaleza, a quinta maior do Brasil. Além disso, o partido
obteve bom desempenho eleitoral em São Paulo, Goiânia, Vitória e Aracajú,
alcançando 10% dos votos válidos em todo país e se consolidou como a maior forte
voz de oposição ao Governo Sarney.

O presidente José Sarney assumiu o poder num momento em que a inflação


crescia em média 18% ao mês. Para enfrentar essa situação, em 1986, ele anunciou o
Plano Cruzado. Entre as medidas do plano, havia: a troca do nome da moeda de
cruzeiro para cruzado, onde cada cruzado correspondia a mil cruzeiros; a implantação
do ajuste salarial sempre que a inflação atingisse 20%; e o congelamento dos preços e
dos salários por um período de um ano. O lema adotado pelo governo da Nova
República era: “Tudo Pelo Social”.

Nos primeiros meses do Plano Cruzado, a inflação caiu e a popularidade do


governo cresceu, mas o aumento do consumo acabou levando ao desabastecimento,
ao aumento dos preços e à prática de ágio por parte dos empresários. Todavia, o plano
econômico de Sarney ainda permitiu ao partido do governo, o PMDB, vencer as
eleições, em 15 de novembro de 1986, na maioria dos Estados da federação.
Entretanto, logo em seguida, o governo reajustou os preços das tarifas públicas ( água,
luz, telefone, gás), da gasolina e de vários produtos. Assim, a inflação, que no ano de
1986 foi de 57,4% ao ano, atingiu 365,7% em 1987, chegou a 933,6% em 1988 e a
1764,8% em 1989. O governo Sarney perdeu completamente o controle sobre a
economia e caiu na impopularidade.

O descontentamento da população em relação à política econômica da Nova


República e as crescentes mobilizações de trabalhadores contra a inflação e contra os
achatamentos salariais, bem como o descontentamento de setores econômicos contra
20

a estagnação e o sucateamento do parque industrial nacional acabou produzindo o


fortalecimento dos centros de poder (congresso, judiciário e partidos) em relação à
presidência da república. A crescente mudança na correlação de forças nas instituições
políticas acabou por deflagrar um processo visando uma nova ordem constitucional
que desse sustentação a um novo modelo de desenvolvimento para o país.

ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE

Em 1986, tivemos eleições cassadas para governadores, deputados estaduais e


para a Assembléia Nacional Constituinte. O PT, na época, que defendia uma
Constituinte Livre e Soberana, colocou-se contrário ao casamento eleitoral e defendeu
uma eleição específica e exclusiva para o processo constituinte seguida de um amplo
debate com a sociedade. Além de defender eleições exclusivas para elaboração da
nova Constituição, o partido teve que enfrentar e fazer oposição ao Plano Cruzado da
Nova República, cuja medida mais visível, o congelamento dos preços, veio junto com o
apelo para que a população agisse como fiscal do Sarney.

Nas eleições de 86, o PT elegeu 39 parlamentares para as assembléias estaduais


e uma bancada de 16 para a Assembléia Nacional Constituinte. Um dos momentos de
glória para Lula, eleito o constituinte mais votado do Brasil com 656 mil votos. No dia 6
de maio de 1987, a bancada do partido na Assembleia Constituinte, apresenta à
sociedade um projeto de Constituição. Tratava-se de um conjunto de princípios
políticos e propostas programáticas, que deveriam nortear a sociedade brasileira.
Todavia, quando das conclusões e promulgação da nova carta constitucional, o
Diretório Nacional do PT decide que seus Deputados Federais deveriam assinar e dizer
não à Carta Magna. Na sua posição, justificada na deliberação interna de 07-08-1988,
diz o seguinte:
O PT, como um partido que almeja o socialismo, é por natureza um partido contrário
à ordem burguesa, sustentáculo do capitalismo. Disso decorre que o PT rejeita a
Constituição burguesa que vier a ser promulgada, da mesma forma que a
Constituição vigente, a qual, ainda por cima, é fruto de uma ditadura militar; por
extensão, o PT rejeita a imensa maioria das leis que constituem a institucionalidade
21

que emana da ordem burguesa capitalista, ordem que o partido justamente procura
destruir e, no seu lugar, construir uma sociedade socialista.

A Constituição de 1988, batizada por Ulysses Guimarães de Constituição Cidadã,


além da ampliação de poder de ação do Ministério Público, assegurou, contra a
ideologia neoliberal que aflorava como força condutora das relações mundiais do
capitalismo, uma articulação institucional entre Estado e mercado dando suporte a um
desenvolvimentismo democrático. Para isso:
“foram ampliadas as restrições ao capital estrangeiro, as empresas estatais
ganharam mais espaço para suas atividades, o Estado obteve mais controle sobre o
mercado e os servidores públicos e outros trabalhadores viram aumentar a
estabilidade no emprego e vários benefícios, inclusive os de aposentadoria.
Portanto, a Constituição de 1988 assegurou a permanência à velha articulação
entre o Estado e o mercado no momento mesmo em que o processo de
transnacionalização e a ideologia liberal estavam para ganhar uma dimensão
mundial em função do colapso do socialismo de Estado ( Sallum Jr. 2003, p.39)”.

Mesmo com os avanços da Constituição de 1988, o governo da Nova Republica


tornou-se um sistema de dominação política insustentável. As condições sociais e
econômicas do país impulsionaram a esfera política e os setores da economia nacional
a forjarem alternativas. Do ponto de vista institucional, as reformas da Nova República
tinham se completado, mas o governo Sarney não conseguia implementar um projeto
de desenvolvimento capaz de superar a crise fiscal do Estado.

Um dos principais motivos para o insucesso dos planos econômicos lançados


pelo governo Sarney foi o contexto externo adverso que promovia uma saída forte de
capitais para pagamento dos serviços da dívida externa. Do ponto de vista interno, o
governo sofria uma crescente pressão de demandas por políticas públicas que
esperavam respostas imediatas. Tal situação deixava o governo sem condições de
ofertar políticas sociais de impacto e realizar negociações políticas eficientes. Nesse
contexto, o PT levantou a bandeira de não pagamento da dívida interna e externa e da
reforma agrária sob o controle dos trabalhadores, e levantou as bandeiras do fora FMI
e fora Sarney.
22

ELEIÇÕES PARA PREFEITOS E A SAGA PELO PODER

As eleições para prefeitos em 1988 foram marcadas por uma onda de


descontentamento da população em relação à inflação galopante, aos preços abusivos
dos aluguéis, ao sucateamento dos serviços de saúde, à falência do Plano Cruzado e do
Plano Bresser e aos protestos contra o assassinato de operários na Usina de Volta
Redonda. Como partido de oposição à Nova República e como articulador dos
movimentos sociais, o PT obteve um crescimento espetacular nas eleições de 1988;
conquistou 36 prefeituras e elegeu 1.007 vereadores em todo país. Entre as
prefeituras, algumas com experiências importantes: São Paulo, Porto Alegre, Vitória e
Icapuí - CE.

O bom desempenho nas eleições de 1988 deixou o PT eufórico para disputa da


primeira eleição presidencial do Brasil no período de abertura política. O partido se
preparou para se apresentar como alternativa e formulou propostas concretas para
solução dos graves problemas sociais e econômicos vividos pela Nova República de
José Sarney.

O marxista italiano, Antonio Gramsci, defende a tese de que uma mudança


estrutural da sociedade deve ser antecedida por uma nova direção política e moral, ou
seja, pela construção de uma nova hegemonia que seja capaz de sustentar ou
empoderar um novo bloco histórico no poder. O Partido dos Trabalhadores, nascido do
desejo de ser o novo bloco histórico, elaborou um projeto denominado de
“Democrático e Popular” como instrumento orientador da disputa pelo poder político,
ou seja, uma nova direção política e moral para a sociedade brasileira através da
candidatura de Lula à presidência da república.

As eleições presidenciais de 1989 foi um marco no processo de mudanças nas


polarizações ideológicas do sistema partidário brasileiro. O confronto entre
autoristarismo e democracia, que alimentava os conflitos políticos desde a ditadura
militar em 1964, passou a perder força para a disputa de hegemonia em torno da
relação entre o Estado e o mercado. Nessa relação entre o Estado e o mercado, três
23

projetos políticos se configuraram em disputa: dois de fundamentação liberal:


desenvolvimentista (PMDB e PSDB), os herdeiros da Nova República; e um neoliberal
(PL, PRN, PSC, PTR, PST, PDC, PL, PSD, PDN), de oposição de direita; um outro,
democrático e popular ( PT, PC do B, PSB) , de oposição de esquerda.O Projeto
Democrático Popular, apresentado pela primeira vez na disputa presidencial de 1989
pela Frente Brasil Popular, e, em seguida, apresentado com modificações em seu
programa nas eleições presidenciais de 1994 e 1998, foi derrotado nas urnas. Na
primeira vez, por Fernando Collor de Mello; e nas duas seguintes, por Fernando
Henrique Cardoso.

PROJETO DEMOCRÁTICO E POPULAR – LULA LÁ.

Com a coordenação de José Dirceu, Plínio de Arruda Sampaio e Aluízio


Mercadante, foi elaborado um Plano Econômico Alternativo de Emergência (PEAE) e
um Plano Alternativo de Governo (PAG). O plano chamava atenção para a gravidade da
crise econômica e acusava o governo Sarney de praticar uma política econômica
desestimuladora dos investimentos, corrosiva de salários, desestruturadora do parque
produtivo, além de fracassar no combate à inflação. Acusavam, ainda, o governo
Sarney de clientelista, corrupto e de ser o maior responsável pelo endividamento
interno e externo do país.

O Plano Econômico Alternativo de Emergência - PEAE era um instrumento


político do PT oferecido ao governo Sarney e uma forma de dizer a sociedade que o PT
era um partido propositivo. O PEAE era um conjunto de propostas com o objetivo de
combater a hiperinflação, estancar a sangria de recursos do país para o exterior com o
pagamento da dívida externa, retomar o crescimento econômico e melhorar a vida da
população pobre.

Entre as proposta do PEAE constam: rompimento do acordo do Brasil com o


Fundo Monetário Internacional – FMI; suspensão imediata do pagamento da dívida
externa; estabelecimento de um efetivo controle de preços dos setores oligopolistas da
economia; saneamento financeiro das empresas estatais, democratização de sua
24

gestão e privatização das que não prestam serviços públicos e nem atuam em setores
estratégicos; e a criação de um fundo de investimentos em políticas sociais voltado
para o desenvolvimento de setores estratégicos da economia e formulação de políticas
sociais para os setores marginalizados da sociedade.

Já o Plano Alternativo de Governo (PAG), aprovado no VI Encontro Nacional do


PT, ocorrido em São Paulo nos dias 16,17 e 18 de junho de 1989, com participação de
600 delegados e personalidades nacionais e internacionais, foi o Projeto político
trabalhado durante a campanha. O PAG, em seus fundamentos e diretrizes, diz o
seguinte:
O primeiro compromisso da Frente Brasil Popular é o de construir uma democracia
efetiva da maioria, com a mais ampla participação popular nas decisões do governo
e da sociedade; é dar origem a um poder que seja expressão da vontade e dos
interesses dos trabalhadores e de todo povo. É somente assim que as profundas
mudanças contidas no Plano de Ação do Governo poderão ser viabilizadas.

O PAG foi o documento que cimentou a construção da Frente Brasil Popular -


FBP6 e estava distribuído em treze pontos:
1 – Democratização do Estado e da Sociedade;
2 – Distribuição de Renda e elevação dos salários;
3 – Suspensão do pagamento da dívida externa;
4 – Reforma agrária e um novo modelo agrícola;
5 – Desprivatização do Estado e moralização da administração pública;
6 – Combate à especulação financeira;
7 – Limites para a ação do capital estrangeiro;
8 – Subordinação do poder militar ao civil;
9 – Salvamento da Amazônia e defesa da vida;
10 – Uma nova política energética;
11 – Reforma urbana e política habitacional;

6
A Frente Brasil Popular – FBP foi o arco de alianças construído pelo PT que sustentou a campanha de
Lula para presidente do Brasil. A FBP foi composta pelo PT, PSB, PC do B e PV. Todavia, o PV decidiu
abandonar a frente devido à rejeição do PSB e do PC do B ao nome de Fernando Gabeira ( PV-RJ) que
havia sido indicado durante o VI Encontro Nacional do PT como o candidato preferencial para vice de
Lula. Com a saída do PV, o PSB e PC do B apoiaram o nome do Senador Paulo Bisol para vice na chapa
do Lula. Paulo Bisol aceitou o convite, desfiliou-se do PSDB e filiou-se ao PSB.
25

12 – Uma política externa soberana;


13 – Defesa dos direitos e conquistas dos trabalhadores.

Nas eleições de 1989, conforme ficou estabelecido pela Constituição de 1988,


as eleições aconteceram dentro de um sistema político organizado de forma
pluripartidária. Assim, ao todo participaram 22 candidatos 7 na disputa do cargo de
presidente. Os setores de esquerda lançaram três candidatos: Lula (PT), Leonel Brizola
(PDT) e Roberto Freire (PCB). Devido as várias tentativas frustradas de sanear a
economia, a direita não conseguiu se articular em torno de um candidato. Nesse
cenário, o jovem e desconhecido governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello,
surge com a promessa de modernizar a economia, promovendo uma política de cunho
neoliberal, abertura da economia a participação estrangeira, além de se autoproclamar
o Caçador de Marajás8. Lula perde e Collor torna-se o primeiro presidente do Brasil
eleito por voto direito do período pós-ditadura. Lívia Maria (PN) foi a primeira mulher a
disputar a presidência da república.

O primeiro turno das eleições aconteceu no dia 15 de novembro e o resultado


dos dez primeiros colocados é o seguinte:

CANDIDATO PARTIDO OU COLIGAÇÃO VOTOS %


Fernando Collor PRN, PSC, PTR e PST 22.261.011 28,5
Lula PT, PSB e PC do B 11.622.673 16
Brizola PDT 11.168.228 15,4
Mário Covas PSDB 7.790.392 10,7
Paulo Maluf PDS 5.986.572 8,2
Afif Domingos PL, PDC 3.272.462 4,5
Ulysses Guimarães PMDB 3.204.932 4,4
Roberto Freire PCB 769.123 1,0
Aureliano Chaves PFL 600,838 0,8
Ronaldo Caiado PSD, PDN 488,886 0,7
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral - TSE

7
Os 22 candidatos a presidente da república em 1989 foram: Collor (PRN), Lula (PT), Brizola (PDT),
Covas (PSDB), Maluf (PDS), Afif Domingos (PL), Ulysses Guimarães (PMDB), Roberto Freire
(PCB), Aureliano Chaves (PFL), Ronaldo Caiado (PSDD), Afonso Camargo (PTB), Enéas Carneiro
(PRONA), José Alcides (PSP), Paulo Contijo (PP), Zamir Teixeira (PCN), Lívia Maria (PN), Eudes Maria
(PLP), Fernando Gabeira (PV), Celso Brant (PNM), Antonio dos Santos (PPB), Manoel Horta (PDC do
B) e Arnaldo Corrêa (PMB).
8
Fernando Collor empreendeu estrategicamente um discurso de combate a funcionários públicos, os
marajás, que recebiam salários altos e desproporcionais em relação aos cargos; muitos, apadrinhados de
políticos, nem trabalhavam. Essa estratégia teve eco na sociedade e Collor se definiu como Caçador de
Marajás.
26

A disputa no segundo turno foi muito intensa e conflituosa, criou-se um clima


de que Lula seria realmente presidente, principalmente quando as pesquisa, na reta
final da campanha, indicavam empate técnico entre os dois candidatos. Nesse
momento, a euforia tomou conta da militância e dos simpatizantes petitas. Por outro
lado, o desespero bateu no comitê de Collor e o mais duro golpe sujo foi aplicado na
campanha contra Lula. Na propagada eleitoral de televisão do dia 12.12.89, apareceu
uma ex-namorada de Lula, Mírian Cordeiro, acusando-o de ter-lhe oferecido dinheiro
para ela fazer um aborto, de ser racista, de não gostar do Brasil. Disse Mírian: “não
apoio Lula, apoiar o Lula significa trair a mim mesma. E a Igreja Católica que é contra o
aborto está apoiando o homem certo?” E revelou: “ quando a criança nasceu ( Lurian,
na época tinha 15 anos) pedi para algumas amigas saírem do quarto para que pudesse
ficar sozinha com ele. Entreguei a criança para ele e disse: agora você mata”.

No dia seguinte, a jornalista Maria Helena Amaral, que assessorava o Comitê de


Collor, acusou a coordenação da campanha de golpe baixo. Disse ela: “não faço mais
parte do comitê de Collor. Eles são sujos, corruptos, pagaram Ncz$ 200 mil para a
Mírian depor contra Lula. O pagamento foi feito por Leopoldo Collor ( irmão de Collor)
e Marco Paulo Felipo. Me senti traída. Falei umas oito vezes com o Leopoldo nessa
semana e ele não me contou que usaria aquilo ( Isto É Senhor – nº. 1053, p.31)”.

O segundo turno9 das eleições aconteceu em 17 de dezembro com o seguinte


resultado:

CANDIDATO PARTIDO OU COLIGAÇÃO VOTOS %


Fernando Collor PRN, PSC, PTR e PST 35.089.998 49,9
Lula PT, PSB e PC do B 31.079.369 44,2
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral - TSE

9
Durante o segundo turno, a coordenação política da FBP fez várias articulações e criou um Movimento
Lula presidente que contou com a adesão de Brizola (PDT), Roberto Freire (PCB), Covas (PSDB) ,entre
outras lideranças políticas e personalidades públicas como políticos, artistas e cantores. Mas rejeitou o
apoio público declarado do PMDB por considerar um partido conservador e de direita. No final do
segundo turno, sentiu que os votos do PMDB fizeram falta para derrotar o Collor.
27

A revista Isto É Senhor, na sua edição de 27.12.89, em seu editorial (p.27), fez o
seguinte comentário sobre os resultados eleitorais:
“Conservador e populista – com estes qualitativos, muitos jornalistas norte-
americanos apresentam Fernando Collor de Mello, presidente eleito do Brasil, aos
seus leitores. Baseiam-se, principalmente, mais ainda nas origens familiares, no
figurino tradicionalista de sua campanha presidencial. Muitas promessas de combate
à corrupção e à politicagem, um grande e sistemático esforço para transformar o
oponente em um comedor de criancinhas, ateu e um tanto devasso [...] Um
programa social-democrático faltou ao candidato Lula na hora em que ele partiu
para negociação com outras forças políticas depois do primeiro turno, um programa
nítido que corrigisse os pontos de museu da Frente Brasil Popular e que colocasse a
escanteio o fanatismo do apocalipse das facções exaustivamente obsoletas, em
proveito da compreensão de que o Brasil não merece ser considerado uma imensa
Nicarágua”.

Em reunião do Diretório Nacional do PT, ocorrida em 27 e 28 de janeiro de


1990, para avaliação da campanha, o partido divulgou uma nota da qual destacamos:
Desde a campanha das Diretas, em 1984, o país não via mobilizações populares e
comícios como os realizados pela FBP e depois pelo Movimento Lula presidente.
Podemos afirmar, apesar de não termos eleito Lula presidente, que mudamos o
quadro político do Brasil e colocamos a luta político-social em outro patamar, mais
avançado, mais definido ideologicamente. [...] Entre as causas gerais ou estruturas
que contribuíram para a vitória de Collor, não podemos deixar de chamar atenção
para o caráter da candidatura Collor, planejada desde seu início para projetar-se
com a imagem de caçador de marajás, antipolítico e firme opositor a Sarney, com
o objetivo de esconder sua verdadeira natureza: garantir a continuidade do
controle do governo central pelas oligarquias e grupos econômicos que
comandam a transição conservadora.

A campanha cujo jingle era “Lula Lá – Quero ver Chegar”, foi considerada, antes
da eleição de Lula presidente em 2002, a mais importante, a mais politizada, a mais
mobilizadora e a mais emocionante, tanto para militância quanto para toda a
sociedade. Wladimir Pomar (1990, p.9), um dos coordenadores nacional da campanha
de 89, escreveu um livro onde registra o seguinte:
É muito provável que, passado bastante tempo dos resultados finais das eleições
de 1989, grande parte dos que se empenharam para que Lula fosse vitorioso não
28

se tenha dado conta das implicações da campanha e de suas conseqüências para a


sociedade em que vivemos. Nem sempre é possível perceber as dimensões do que
estava em disputa, ou o verdadeiro pânico que tomou conta das elites ao
entenderem, subitamente, que o metalúrgico barbudo poderia tornar-se
Presidente.

Com o governo Collor, o processo de liberalização econômica passou a conduzir


a agenda econômica e a pauta política. Durante o governo Collor:
“ as licenças e as barreiras não tarifárias à importação foram suspensas e as tarifas
alfandegárias foram redefinidas, criando-se um programa para sua redução
progressiva ao longo de quatro anos. Ao mesmo tempo, programou-se a
desregulamentação das companhias estatais que não estivessem protegidas pela
Constituição, a fim de recuperar as finanças públicas e reduzir aos poucos o papel
do Estado no incentivo à industria doméstica. Finalmente, deu-se seqüência à
política de integração regional com os países da fronteira sul, instituindo-se o
Mercosul (1991), com vistas a ampliar o mercado para os produtos domésticos de
seus participantes ( Sallum Jr. 2003, p.42).”

O governo Collor, que só durou meio mandato (março de 90 - dezembro de 92),


foi afastado temporariamente da presidência da república em 2 de outubro de 1992,
em decorrência da abertura do processo de impeachment na câmara dos deputados, o
que culminou com sua renúncia seguida de cassação, em 29 de dezembro de 1992, por
441 votos a favor, 38 contra e 23 ausências. Assume Itamar Franco e uma pressão
muito forte é feita para que o PT participe do governo, a ex-prefeita de São Paulo
(1989-1993), Luiza Erundina10, aceita um cargo no governo. O PSDB participa do
governo, FHC assume o Ministério da Fazenda e conduze o Plano Real, cresce dentro
do PT a posição em defesa de uma aliança do PT com o PSDB em função da secessão
de Itamar Franco. O debate foi polêmico e caloroso, mas o PT seguiu na oposição.

As medidas liberalizantes do Plano Collor tinham como objetivo final acabar


com a herança do modelo de desenvolvimento varguista, ao qual era atribuído a

10
A direção nacional acusou Luiza Erundina de rompimento com a disciplina partidária por ter aceitado o
cargo de ministra-chefa da secretaria de administração no governo Itamar Franco, e decidiu suspender por
um período de um ano seus direitos e deveres partidários. Sentido-se desrespeitada, saiu do partido e
filiou-se ao PSB.
29

responsabilidade pela crise fiscal do Estado na medida em que se usava a estrutura


estatal ineficiente para o protecionismo do mercado interno frente à economia
competitiva do mercado globalizado. Como as medidas neoliberais adotadas por
Collor não foram eficientes para fazer frente à crise fiscal do Estado, o governo
Itamar, diante de um quadro de alta inflação e de um processo de empobrecimento
da população e, ao mesmo tempo, de concentração de renda no setor financeiro,
lançou o Plano Real que teve um impacto positivo na economia e no imaginário
popular. O Plano Real passou a ser o elemento polarizador numa conjuntura de
hegemonia neoliberal. Nesse cenário, Fernando Henrique Cardoso, ministro da
fazendo do governo Itamar Franco, seria o catalisador da política de estabilidade
econômica.

O Plano Real foi resultado de uma bem sucedida negociação entre as elites
nacionais, representadas por partidos de centro e de direta, para garantir a
continuidade das reformas liberais, a estabilidade econômica e evitar a chegada do
PT ao poder.

FRENTE BRASIL POPULAR – ELEIÇÕES DE 1994

A década de 1990 foi um período em que, mesmo se mantendo como a


maior liderança popular do país, Lula sofreu duas derrotas seguidas (1994 e 1998) em
disputas presidenciais, embora o PT seguisse conquistando prefeituras, governos
estaduais e elegesse senadores, deputados federais e estaduais. Ao ir experimentando
o poder, o PT passou a se acomodar à normalidade institucional da política brasileira,
abandonou a postura crítica que alimentava em relação à chamada democracia
burguesa, retirou de seus documentos a análise sociológica marxista, em que a
sociedade brasileira era vista como uma relação entre exploradores e explorados, e
dilatou a sua política de alianças para incorporar os partidos da burguesia como aliados
e parceiros. O processo de acomodação do PT à institucionalidade e o seu afastamento
de uma política revolucionária (marxista leninista) ou reformista revolucionária
(grasmiciana) alimentaram um debate interno muito caloroso entre várias tendências.
A tendência Convergência Socialista – CS radicalizou o debate com um discurso em
30

defesa do “PT das origens” e acabou sendo expulsa do partido em 1992, dando início à
constituição do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados – PSTU.

Para as eleições de 1994, o PT teve uma preocupação especial com o seu


programa11 de governo. Uma comissão, tendo Marco Aurélio Garcia como coordenador
geral, e César Benjamin e João Machado, como coordenadores adjuntos, elaborou em
março de 1994, um “Programa de Governo” que, depois de uma ampla discussão e de
seminários estaduais, foi aprovado em maio de 1994, durante o 9º Encontro Nacional
do PT, em Brasília. O programa de governo, ainda denominado de Democrático e
Popular, promete uma revolução no Brasil e afirma que as eleições gerais se darão em
meio à maior crise que a história do Brasil já conheceu. Para o PT, a vitória de Lula em
1994 mudaria radicalmente o país, pois as reformas a serem realizadas pelo Governo
da Frente Brasil Popular alterariam as relações de poder no país.

O eixo do programa de governo da FBP para 1994 era a participação popular:


socialização da política, reformas institucionais, mecanismos de controle social,
democracia direta e democratização dos meios de comunicações. Diz o programa
(1994, p.13):
Não contrapomos, portanto, o nosso governo democrático e popular com a luta pelo
socialismo. Lutamos pelo fim da exploração e da injustiça. Lutamos para que homens
e mulheres de todas as etnias e origens sociais desenvolvam decentemente suas
potencialidades. Lutamos contra a fragmentação e a desigualdade, contra a
competição desenfreada da sociedade.

O Programa de governo apresentado para eleições de 1994 foi composto por


sete capítulos robustamente desenvolvidos. Os sete pontos ou eixos chaves eram:
I – A crise brasileira e a alternativa democrática e popular;
II – Política, Cidadania e participação popular;
III – Reforma e democratização do Estado;
IV – Mudança de vida;
V – Bases Ecológicas do projeto nacional de desenvolvimento;

11
Para o programa de televisão, o PT, que logo após a derrota de 1989, criou o governo paralelo e lançou
a Caravana da Cidadania, na qual Lula percorreu todo o país e registrou um conjunto de imagens sobre a
pobreza e as desigualdades regionais, sofreu um golpe quando criaram uma lei que proibia o uso de
imagens externas nos programas de televisão durante as eleições de 1994.
31

VI – Ciência, tecnologia e infraestrutura;


VII – Transformação da economia e da sociedade para construir a nação.

Apesar do otimismo, mais uma vez Lula é derrotado como candidato da FBP
para presidente da república, desta vez a eleição foi decidida já no primeiro turno,
ocorrido em 2 de outubro. O resultado foi o seguinte:

CANDIDATO - VICE PARTIDO OU COLIGAÇÃO VOTOS %


FHC – Marcos Maciel PSDB, PFL, PTB. 34.364.961 54,3
Lula – Aloísio Mercadante PT, PSB, PC do B, PPS, PV e 17.122.127 27
PSTU
Enéas – Roberto Gama PRONA 4.671.457 7,3
Orestes Quércia – Isis de Araújo PMDB, PSD 2.772.121 4,4
Brizola – Darcy Ribeiro PDT 2.015.836 3,8
Esperidião Amin – Maria Gardênia PPR 1.739.894 2,7
Carlos Gomes – Dilton Salomoni PRN 387.739 0,6
Hernani Goulart – Vitor Jorge PSC 238.197 0,4
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral - TSE

Em março de 1995, o PT publica um cardeno especial (TD – Documento Teoria e


Debate) dedicado à analise das eleições, editado pelo jornalista Antonio Martins, que
oferece uma visão de conjunto das dificuldades e diferentes opiniões no seio do
partido “ acerca dos motivos, da derrota, da posição da Frente ao Plano Real, do
governo FHC e do projeto socialista”. A seguir, apresentamos frases sintéticas das
principais lideranças da FBP sobre a derrota de 1994:

Aldo Rabelo (Deputado Federal do PC do B): “Embora o Plano Real estivesse


desde dezembro de 93, setores da esquerda preferiram não combatê-lo. A candidatura
de Lula subestimou a luta pela soberania nacional, e não apareceu para o povo como
alternativa contra os poderosos [...] Também pesou o fato de que, em 98,
enfrentávamos um governo desacreditado. Em 94, tínhamos diante de nós, a partir de
junho, o contrário: um governo que , à medida que os preços se estabilizavam, ganhava
credibilidade e imobilizava uma parcela das massas”.

Roberto Amaral (direção do PSB): “primeiro, as esquerdas não compreenderam


o valor da inflação para a sociedade brasileira. O resultado desta incompreensão foi a
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dificuldade de entender e enfrentar o Real. Segundo erro foi não termos tido
competência para ampliar a frente de apoio a Lula. O terceiro não ter sabido construir
uma frente política. Fomos apenas um conjunto de partidos, muitas vezes sem
articulação”.

Roberto Freire (senador pelo PPS): “O PT, núcleo hegemônico da Frente Brasil
Popular, errou ao avaliar que os efeitos do plano real seriam efêmeros e se volatizariam
antes da eleição. Com essa análise, a candidatura Lula ficou desarmada do ponto de
vista político e não conseguiu fazer o discurso coerente e concreto da busca da
estabilidade econômica – uma reivindicação de todos os segmentos da sociedade.”

Valério Arcary (direção do PSTU): “Vítima de uma estratégia de concessões ao


capitalismo, o partido não ofereceu combate ao Real. A estratégia de nova maioria,
seguida pela esquerda petista a partir do 8º Encontro, revelou-se uma fantasia [...] A
direção vai se tornar refém dos dirigentes que conquistam mandatos e posições dentro
do aparelho do Estado. A interlocução, o diálogo com a sociedade passa a ser
fundamentalmente conduzido a partir dessas posições dentro do aparelho do Estado”.

Eduardo Jorge (deputado federal PT): “ a responsabilidade da derrota é de todo


o PT. De Lula, dos candidatos, das direções e das bases que escolheram o caminho
estreito e não enxergaram que o povo e o Brasil não existem para o PT: o PT é que
existe para o povo e para o Brasil [...] Durante 1983 e 94, sustentei a tese de que Lula
poderia ter ganho ainda no primeiro turno as eleições presidenciais. Enfrentei uma
série de polêmicas no PT. Afirmava que a hipótese de vitória estava, no entanto,
vinculada à possibilidade da esquerda estabelecer já naquele momento um programa
comum com o centro-esquerda, incluindo o PSDB e setores democráticos do PMDB e
do PDT”.

José Dirceu (direção nacional do PT): “Cometemos um erro grave: subestimar o


governo Itamar e o apoio de um governo a um candidato. O PT errou nos dois
extremos. Aqueles que queriam fazer oposição ao Itamar fizeram, a meu ver, de modo
burro; e os que queriam fazer política diferenciada com o governo fizeram um tipo de
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oposição que beirava o adesismo. Um dos principais problemas da campanha foi a


divisão da direção. Ela se somou à visão de que a eleição estava ganha, o que
desmotivou a mobilização [ ...] Ao analisar a eleição em seu conjunto, não considero
que tenhamos sofrido uma derrota, com a eleição de dois governadores, quatro
senadores, 49 deputados”.

Marco Aurélio Garcia (direção nacional do PT): “a aliança PLF-PSDB, que atraiu o
PP, PTB e frações significativas do PMDB, neutralizou a direita clássica, mostrando para
suas bases – especialmente empresariais – que somente com uma cara moderna era
possível derrotar Lula, que ameaçava, quatro meses antes de outubro, vencer as
eleições no primeiro turno [...] O PAG apontava uma alternativa ao nacional-
desenvolvimentismo e ao neoliberalismo. Mas o país estava esgotado, e o Real
despolitizou a campanha e frustrou o esforço de polarização”.

Paul Singer (economista membro do PAG): “O Plano Real não foi um


instrumento apenas para ganhar eleição – foi e é uma tentativa importante de
finalmente, livrar o país dessa enorme inflação que vem nos atormentado há tanto
anos. É uma tentativa como outras, está sujeita a falhar, mas é um grande erro de
avaliação supor que tenha sido um plano feito exclusivamente para eleger o Fernando
Henrique [...] O Programa de Fernando Henrique inclui alguma flexibilização de
monopólio – se não me engano das telecomunicações e certamente na área de energia
elétrica. Nós mesmos discutimos temas semelhantes, no 9º Encontro Nacional do PT. A
desoneração das folhas de pagamento e dos encargos trabalhistas também é,
explicitamente, uma proposta do programa de Lula”.

Além de ganhar no primeiro turno, FHC tinha a seu favor a vitória de aliados
políticos na maioria dos estados da Federação e um Congresso Nacional composto por
parlamentares favoráveis a construção de uma ampla aliança em torno da estabilidade
econômica promovida pelo Plano Real. Nessa conjuntura, FHC prometia livrar o país da
herança do Estado varguista e implantar um processo de desenvolvimento com
combate à pobreza. Para se livrar dos resíduos do modelo varguista, propôs novas
formas de regulamentação da relação entre Estado e mercado. A escolha do modelo de
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regulamentação do mercado gerou uma divisão dentro do PSDB entre uma ala política
neoliberal (FHC, Pedro Malan, Henrique Meirelles e Tasso Jereissati), continuadores das
reformas iniciadas por Collor, e uma outra que defendia um modelo social-
democrata( Serra, Bresser Pereira, Rubens Ricupero, Mario Covas).

Fernando Henrique, logo em 1995, tendo que enfrentar os efeitos da Crise no


México, muda a política cambial e adota o sistema de bandas 12, depois altera para
banda larga,e assim, leva o país a perder mais de dez bilhões de dólares de suas
reservas para a especulação financeira mundial. Diante dos efeitos negativos de sua
política cambial, sua equipe econômica eleva as taxas de juros com o objetivo de evitar
a evasão fiscal e garantir a estabilidade do Real. Logo em seguida, tem início um
período de estabilidade econômica combinado com uma política de defesa setorial nas
áreas automobilísticas, têxteis, e nas áreas de eletrodomésticos e calçados. Esse parece
ter sido o melhor momento do governo de FHC, em que, ancorado numa política de
combate à inflação que demonstrava ser eficiente, deixava a esquerda sem discurso e
sem eco para oposição na sociedade. Nesse período, orgulhoso, FHC desabafou: “no
meu governo os pobres passaram a consumir iogurte”.

Em agosto de 1996, numa entrevista dada ao sociólogo Brasilio Sallum Jr.


(1997), FHC afirma que a estratégia de desenvolvimento do seu governo era preparar o
país para competir no mercado internacional e segurar a inflação. Para isso, manteve
como ação de governo algumas ideias apresentadas durante a sua campanha no
Projeto “Mãos à Obra, Brasil”. Diz ele:
“mantivemos a idéia de que o Estado é o grande sugador de recursos, de que
precisamos segurar o gasto público, e privatizar para segurar o gasto e também
porque não havia condição financeira no Estado de ampliar investimentos. O Estado
está enxágüe, o Congresso não quer mais impostos e a sociedade chegou ao limite
para suportara a pressão tributária. Por outro lado, a carga de pessoal
administrativo e da previdência, sobretudo dos estados e municípios, é muito
12
Para FHC, o resultado dessa medida foi uma grande discussão para saber se o câmbio estava apreciado
ou não. Para ele: “esteve muito apreciado, mas depois foi-se acertando o câmbio e hoje não existe mais
pressão dos exportadores, porque a exportação cresceu e porque houve grande aumento da produtividade,
e também porque houve desvalorização de outras moedas. Então, no conjunto, foi possível manter essa
política, mas ela teve conseqüências. Ela desorganizou setores da economia. Isso dificultou o que nós
queríamos fazer antes, que era passar da estabilização asfixiante para processos já de crescimento
( in Sallum Jr. , 1997,p.16).”
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grande. Então é preciso fazer as reformas para colocar o Estado em uma condição
mais enxuta, para poder funcionar. É preciso acelerar as privatizações, porque a
infraestrutura do país está em pandarecos, e é preciso, ao mesmo tempo, ampliar o
grau de abertura e criar condições de competição ( Sallum Jr. 1997, p.14)”

O Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado – MARE de FHC,


Bresser Pereira, defendia que a crise fundamental vivida pelo Brasil era uma crise do
Estado e as alternativas que se colocavam para resolvê-la eram três: liberal, populista e
social-democrata. A primeira era a alternativa do Estado mínimo, defendida pela direita
neoliberal, que fazia uma crítica aguda e inteligente da crise, mas que se equivocava ao
querer reduzir o Estado ao mínimo, criando obstáculo para políticas de justiça social. A
populista – do PT e CUT – era a alternativa da esquerda arcaica que não compreendia a
natureza da crise e nem as mudanças dos novos tempos. Já a social-democrata era a
alternativa da esquerda contemporânea, que compreendia que temos que reformar e
reconstruir o Estado porque é a crise do Estado que provoca a crise econômica. Para
Bresser ( 1997, p.68):
“temos que partir dessas idéias para pensar o PSDB e o Brasil. E para rebater as
críticas de que o PSDB e a grande coalizão de centro que hoje apóia o governo
Fernando Henrique Cardoso esteja realizando uma reforma neoliberal. Que as
reformas sejam conservadoras.... Desde quando eliminar monopólios estatais,
desde quando eliminar privilégios na previdência e recuperar seu equilíbrio
financeiro, desde quando reformar o aparelho do Estado e tornar a burocracia mais
responsável perante o governo e a nação, desde quando privatizar, desde quando
abrir o país comercialmente de forma pragmática, desde quando lutar dia a dia pelo
ajuste fiscal e a estabilidade da moeda é estar engajado em reformas neoliberais?
Essas são reformas liberais apenas para uma esquerda arcaica e populista. Ou para
um patrimonialismo conservador, que quer manter o Estado a serviço de suas
clientelas.”

Durante o primeiro governo de FHC, mudanças profundas foram aprovadas e


colocadas em práticas com o objetivo de mudar a relação entre o Estado e o mercado.
Nesse sentido, FHC foi um seguidor do governo Collor em seu objetivo de liquidar a
herança do modelo nacional-desenvolvimentista. Pelo que podemos observar, das
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medidas e opções realizadas 13, no seu primeiro mandato, predominou uma política
liberalizante em sintonia com o que se passava em toda América Latina, que adotava as
políticas de ajustes estruturais indicadas pelo Banco Mundial e sintetizadas no
famigerado Consenso de Washington. Quando acusado pela oposição de adotar
políticas neoliberais, FHC tentou ridicularizar seus opositores com frases polêmicas: “
estamos deixando de ser caipiras”, ‘ nhenhenhém “, “ neobobos”.

UNIÃO DO POVO MUDA BRASIL – ELEIÇÕES DE 1998

Em 1998 Lula é candidato à presidência da república mais uma vez, agora o


projeto democrático e popular foi abandonado. A ideia de uma frente por um Brasil
popular sede espaço para uma coligação com um mote considerado, pelas correntes
mais radicais do partido, como despolitizado: “união do povo muda Brasil”. Em julho de
1998, o PT lançou uma Carta Compromisso, na qual, além de assumir um acordo com o
eleitor por um país melhor, Lula afirma: “ no meu governo a luta contra corrupção será
um imperativo ético irrenunciável. A corrupção mina a democracia e degrada a
política. Não permitirei a prática do “toma-lá-dá-ca”.

O Programa de Governo de 1989 afirma que “só a união do povo e uma nova
maioria podem formar um governo capaz de tirar o país da crise e prepará-lo para o
século XXI”. Afirma também que a união das esquerdas expressa o sentimento de todos
aqueles que condenam o atual estado de coisas e que querem superar os problemas
que afligem o país há séculos e que foram sumariamente agravados pelo governo FHC.
Pela primeira vez, o PT fala da herança FHC: “o povo está inquieto, intranqüilo e
inseguro; o país sofre com a arrogância, o autoritarismo e a irresponsabilidade de FHC;
a nação vive crescente dependência externa, instabilidade e crise”.

13
Segundo Sallum Jr. (2003, p.44) “os projetos de reforma constitucional e infraconstitucional
submetidos ao Congresso foram quase todos aprovados, entre os quais se destacaram: a ) o fim da
discriminação constitucional ao capital estrangeiro; b) a exploração, o refino e o transporte de petróleo e
gás, monopolizado pela companhia estatal de petróleo (Petrobrás), foram transferidos para a União e
convertidos em concessão do Estado às empresas, principalmente a estatal, que manteve grandes
vantagens em relação a outras concessionárias privadas; e c) o Estado foi autorizado a conceder direitos
de exploração dos serviços de telecomunicação ( telefonia fixa e celular, exploração de satélites, etc.) a
companhias privadas”.
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O Programa de Governo afirma que o governo Lula será um novo governo e


construirá o novo Brasil. O Programa foi composto por três grandes eixos:

1.º - Promover o desenvolvimento com estabilidade e distribuição de renda –


fortalecer a autonomia nacional com o objetivo de defender: a produção e o emprego;
a educação e saúde digna;a renovação da produção industrial e agrícola; o apoio a
micros e pequenas empresas; e a formação de bancos populares;
2.º - Enfrentar com urgência a crise social – combate ao desemprego;
recuperação dos salários mais baixos; adoção de programas de renda mínima;
enfrentamento do problema da fome; combate à violência urbana; e iniciação de uma
efetiva reforma agrária e agrícola;
3.º - Mudar o dia-a-dia dos trabalhadores – mais e melhores empregos; melhor
distribuição de renda; nenhuma criança fora da escola; programa de combate à fome;
habitação, urbanização, saneamento e transporte; direito ao direito; controle social do
Estado; cultura; meio ambiente; e presença soberana no mundo;

Mesmo com um programa menos radical, mesmo abrindo mão de um projeto


democrático popular, mesmo abdicando do socialismo e costurando um arco de aliança
mais amplo, Lula é derrotado para presidente da república. Mais uma vez a eleição foi
decidida já no primeiro turno, ocorrido em 4 de outubro, e o resultado foi o seguinte:

CANDIDATO - VICE PARTIDO OU COLIGAÇÃO VOTOS %


FHC – Marco Maciel PSDB, PFL, PPB, PTB, PSL. 35.936.540 53
Lula - Brizola PT, PDT, PSB, PC do B, PCB 21.475.218 31,7
Ciro Gomes – Roberto Freire PPS, PL, PAN 7.426.190 11
Enéas – Irapuan Teixeira PRONA 1.447.090 2,1
Ivan Frota – João Ferreira PNM 251.337 0,37
Alfredo Sirkis – Carla Piranda PV 212,984 0,35
José Maria – José Galvão PSTU 202.659 0,29
João de Deus – Josmar Oliveira PSDC 171.1831 0,25
Thereza Timajo – Eduardo Gomes PTN 166.138 0,23
Sérgio Bueno – Ronaldo Azazo. PSC 124.659 0,18
Vasco Neto – Alexandre dos Santos. PSN 109.003 0,15
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral - TSE
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Em um artigo avaliativo com o título de “ O PT e o governo Lula”, Emir Sader, um


dos fundadores e intelectuais orgânicos do partido, assim se refere ao processo de
campanha de 1998:
A campanha de 1998 elaborou três eixos: social, nacional e democrático,
sistematizando um conjunto de propostas econômicas, sociais e políticas, centrado
na ruptura com o neoliberalismo. É preciso recordar que ainda na campanha
presidencial de 1994, uma coalizão de tendências consideradas de esquerda tinha
maioria na Direção Nacional do PT, situação que foi radicalmente transformada a
partir daquele momento, com um isolamento relativo dessas tendências, que
passaram a se limitar a um patamar próximo aos 20% dos votos, enquanto as
tendências mais à direita – de que José Genoino sempre foi o melhor representante
– se somaram à Articulação, ajudando a fortalecer a nova maioria. Quando o partido
chega às eleições presidenciais de 1998, esse novo quadro interno já estava
consolidado. O impacto da derrota de 1994 levou a um abrandamento de posições
e, ao mesmo tempo, incorporando os traumas da eleição anterior.
(http://alainet.org, acessado em 08.11.2010)

Embora tenha garantido a reeleição, seu governo cada vez mais passou a ser
identificado como neoliberal pela oposição. Além disso, durante os oito anos do
governo FHC (01/01/1995 – 01/01/2003) vários escândalos de corrupção alimentaram
a agenda política dando fogo para oposição, citamos alguns: 1 – o escândalo
envolvendo o sistema de vigilância do Amazonas – Projeto Sirvan, envolvendo a
empresa nacional Esca e a norte-americana Raytheon; 2 – Prática de caixa-dois nas
campanhas de 1984 (R$5 milhões) e 1998 (R$ 10,1 milhões); 3 – esquema de
pagamento de propina, durante o processo de privatização do Sistema Telebrás (RS 90
milhões), para ajudar na montagem do consórcio Telemar e da Vale do Rio Doce (R$ 15
milhões), recebido do consórcio do empresário Benjamim Steinbruch; 4 – Divulgação
de uso de grampos telefônicos onde FHC aparece articulando apoio da Previ para
beneficiar o consórcio do Banco Opportunity – BO; 5 – Escândalo envolvendo o ex-
secretário do Palácio do Planalto, Eduardo Jorge Caldas, acusado de ter liberado verbas
para o TRE paulista ( o caso do juiz Nicolau), de manipular recursos de fundo de pensão
e de fazer lobby para empresas privadas; 6 – Constatação de rombo ( R$ 2 bilhões) na
Sudam e de desvio de dinheiro ( R$ 1,4 bilhões) na Sudene. Para evitar apuração dos
fatos, FHC extinguiu os órgãos; 7 – Escândalo financeiro Marka/FonteCindar, onde o
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Banco Central repassou R$1,6 bilhão para bancos privados durante o processo de
desvalorização do Real. Foram presos o ex-presidente do BC, Chico Lopes, e o
banqueiro Salvatore Cacciola, ex-dono do Banco Marka; 8 – Escândalo da operação
araponga, conduzido pela Polícia Federal ,que descobriu uma rede de espionagem para
vasculhar a vida dos adversários do governo. A candidatura de Roseana Sarney foi
abortada numa ação dos arapongas; 9 – Obras irregulares: o TCU apresentou um
levantamento em 2001 onde constata a existência de 121 obras federais cm indícios de
irregularidades.

Numa entrevista, publicada pelo jornal O Valor, edição de 11/04/2011, Bresser


Pereira anuncia seu rompimento político com o PSDB fazendo uma autocrítica e
revelações surpreendentes, diz ele: “ no governo Fernando Henrique, ou nos anos 90, a
hegemonia neoliberal foi muito violenta. Foi tão violenta que também atingiu a mim.
Não escapei dela”. E depois relativiza, afirmando que FHC passou por dois azares: “ o
primeiro foi que governou o país no auge absoluto do neoliberalismo, enquanto Lula
governou no momento em que o liberalismo começa a entrar em crise; o segundo é
que não gozou do aumento dos preços das commodities de que o Lula desfrutou”.

O governo de FHC , que assumiu tendo que enfrentar os rebatimentos da crise


financeira mexicana (1994) em nossa economia, e ainda, a crise asiática de 1997 e a
moratória russa de agosto de 1998, as quais se seguiram numa onda constante de
ataques especulativos, teve seu dois mandatos sempre marcados por turbulências e
pela marcação cerrada da oposição e dos movimentos sociais que gravitavam em
torno das lideranças petistas. Para sair das turbulências provocadas pelas constantes
crises no mercado internacional, que afetavam diretamente as reservas cambiais e
ameaçava a estabilidade da nossa moeda, FHC optou por uma política econômica de
aumento dos juros. Com a adoção da política de juros altos para atrair o capital
estrangeiro, na maior parte capital especulativo, o governo FHC fortaleceu o setor
financeiro e enfraqueceu o setor produtivo e o comercial, desarticulando o consumo
interno e gerando desemprego.
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Com o segundo mandato marcado por desgastes e por conflitos com a


oposição, FHC ficou isolado e sem condições política para segurar em torno de si sua
base aliada. Enquanto se enfraquecia a base de apoio do governo no Congresso,
internamento, no PSDB, a ala neoliberal passou a perder força para a ala
desenvolvimentista (paulista) que tomou de assalto a direção do partido gerando
conflitos que até hoje não foram solucionados internamente pelo partido. No final do
governo e durante a campanha política, o PSDB alimentou para a população e para
setores do mercado, o sentimento de que não tinha mais capacidade de manter a
estabilidade econômica. Assim, a hegemonia neoliberal perdia força seguindo uma
tendência que aflorava em toda América Latina.

COLIGAÇÃO LULA PRESIDENTE 2002 – UM BRASIL PARA TODOS

Para ser candidato novamente, Lula impôs três condições ao PT: i – o


estabelecimento de um arco de alianças amplo e não ideológico; ii – a contratação de
Duda Mendonça como marqueteiro para sua campanha; iii – e a concessão de poderes
para tomar decisões ao longo da campanha sem consultar a direção do partido. A
primeira condição lhe permitiu escolher José Alencar, do Partido Liberal, como seu vice.
Alencar foi um empresário do setor têxtil, ex-presidente da Federação das Indústrias de
Minas Gerais, dono de onze fabricas e teve, como papel na campanha, a função de
avalista de Lula junto aos empresários e investidores. A segunda condição lhe autorizou
a famosa campanha de mídia “Lulinha, Paz e Amor”, na qual Lula apareceu com um
novo visual, não mais com a imagem de operário, mas de um líder da conciliação, do
entendimento e da negociação. A terceira condição consentiu que Lula, sepultando as
resoluções aprovadas pelo 12º Encontro Nacional do PT, lançasse a “ Carta ao Povo
Brasileiro”.

Com maior peso político no partido do que a Direção Nacional, Lula seguiu
firme no seu propósito de ser presidente do Brasil, sabendo que era a ultima vez que
podia ser candidato, passou por cima das diretrizes e princípios históricos do partido.
Inicialmente, indica Celso Daniel, prefeito da Cidade de Santo André (SP), para
41

coordenar o novo programa de governo. Contudo, com a morte misteriosa de Celso


Daniel, em janeiro de 2002, Antonio Palocci, prefeito de Ribeirão Preto (SP), assume a
coordenação geral do programa e a responsabilidade pela articulação do PT com os
empresários. O PT, que nasceu contra a burguesia e o empresariado, agora muda de
rumo em busca do poder. O novo programa se chama “Um Brasil de Todos”.

A novidade do programa é a proposta de um novo contrato social que favoreça


o nascimento de uma cultura política em defesa das liberdades civis, dos direitos
humanos e de um país mais justo econômica e socialmente. Um novo contrato social
como meio de promoção da independência entre os três poderes da república e de
uma relação respeitosa entre a União, estados e municípios. O Novo pacto, diz o
programa, deve obedecer aos seguintes princípios: “uma política tributária justa; pleno
cumprimento do orçamento federal; novos critérios de financiamento compatíveis com
o modelo de desenvolvimento que buscará a integração equilibrada do país; respeito à
diversidade e às especificidades regionais e locais nas suas dimensões econômica,
social, política, ambiental e cultural; e reconstituição de agências regionais
encarregadas de aplicar políticas de desenvolvimento”.

A campanha de 2002 foi um reflexo das mudanças na estrutura e na correlação


de forças dentro do PT, representou, na realidade, uma refundação dos princípios e do
programa do partido sem que a militância tenha sido chamada para participação dessa
redefinição. A campanha de 2002 marcou o fim do PT das Origens, e Lula, em grande
parte, é o responsável, como nos esclarece Emir Sader:
É certo que desde 1989 Lula foi se distanciando das estruturas partidárias,
construindo o que acabou se tornando o Instituto de Cidadania que, de governo
paralelo, se transformou em um uma estrutura dirigida por Lula e assessores diretos,
tendo como função elaborar políticas alternativas. Até que passou a ocupar
formalmente o lugar de espaço de elaboração da plataforma da candidatura de Lula
para as eleições de 2004. Quando o documento foi divulgado na sua primeira versão,
dirigentes do PT se apressaram a dizer que aquele projeto ainda teria que passar
pelas estruturas oficiais do partido, mas se consolidava ali uma separação que foi se
dando ao longo do tempo entre Lula e as estruturas oficiais do PT. Não que estas não
aprovassem o programa de Lula e seus pronunciamentos, mas Lula tinha autonomia
42

para colocar em prática definições programáticas que só posteriormente chegariam


ao partido. ( http://alainet.org, acessado em 08.11.2010)

Lula finalmente conquista o poder. Todavia, sua vitória só veio a se consolidar


no segundo turno.
Primeiro turno – realizado no dia 6 de outubro.
CANDIDATO PARTIDO OU COLIGAÇÃO VOTOS %
Lula – José Alencar Coligação Lula Presidente: PT, 34.455.233 46,4
PL, PC do B, PRAN, PCB
José Serra – Rita Camata Coligação Grande Aliança: 19.705.455 23
PSDB, PMDB
Antony Garotinho – José Antonio Coligação Brasil Esperança: 15.180.097 17
PSB, PGT, PTC.
Ciro Gomes – Paulo Pereira Coligação Frente Trabalhista: 10.170.882 12
PPS, PDT, PTB
Zé Maria – Dayse de Oliveira PSTU 402.236 0,5
Rui costa – Pedro Paulo PCO 38.619 0,04
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral - TSE

Segundo turno – realizado no dia 27 de outubro14


CANDIDATO PARTIDO OU COLIGAÇÃO VOTOS %
Lula – José Alencar Coligação Lula Presidente: PT, 52.793.364 61.3
PL, PC do B, PMN, PCB
José Serra – Rita Camata Coligação Grande Aliança: 33.370.739 38,7
PSDB, PMDB
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral - TSE

Como conclusão desse resgate histórico que compõe a primeira parte da minha
pesquisa, cito as constatações de Emir Sader, em O PT e o Governo Lula, um artigo
lúcido e chamativo ao debate:
Os resultados eleitorais confirmaram que o "fenômeno Lula" era muito maior que
o PT. Antes de tudo porque os votos com que Lula conseguiu superar o patamar
histórico do PT vieram depois da divulgação da "Carta aos brasileiros", eram votos
que com isso deixaram de "temer" a Lula, pelos compromissos que ele havia
assumido. Mas ao mesmo tempo eram obtidos pelas mudanças introduzidas no
programa do PT e na sua plataforma original, antes em confronto com o capital
14
No segundo turno, vencendo com 52.793,364 votos, Lula se tornou o segundo presidente mais votado
do mundo, apenas atrás de Ronald Reagan nas eleições estadunidense de 1980.
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financeiro e agora estabelecendo um pacto com ele. Em segundo lugar, porque


vários dos outros dirigentes importantes do PT foram derrotados – Genoino, Tarso
Genro, Olívio Dutra, Benedita da Silva, entre outros -, abrigados no governo, mas
como perdedores [..]A apologia do "carisma" de Lula, promovida ao longo da
campanha eleitoral e, especialmente, depois da vitória do segundo turno, agora
também pela grande mídia, favoreceram a postura "bonapartista" de Lula,
individualizando a campanha, a vitória e o governo. Seus discursos cada vez mais
acentuaram o tom individual da empreitada, dispensando o sujeito coletivo do PT
e dos trabalhadores. "Eu não posso perder", "Eu não tenho o direito de errar" –
afirmações como essas, fomentadas com histórias de vida de Lula deixavam claro
que quem triunfava era Lula e não o PT. Estavam dadas as condições para a
subordinação do partido ao governo [...] Já o Congresso do PT de 2001 revelou
uma composição da militância partidária que refletia abertamente uma
modificação substancial: mais de 70% dos membros era vinculado a estruturas
administrativas – secretarias, governos, assessorias, organismos partidários -, com
uma minoria vinculada a movimentos sociais ou a outra forma de prática de base.
Deslocava-se a maioria dos membros para idades mais avançadas, com a
diminuição relativa dos jovens. A composição social revelava pouca participação
de operários, assim como de representantes dos setores mais pobres da
população. A institucionalização do PT expressava-se na sua fisionomia interna,
reafirmando como as transformações políticas estão estreitamente associadas a
transformações organizativas.

As avaliações de Emir Sader, como fundador e intelectual orgânico do partido,


são bastante esclarecedoras do processo de mudança pelo qual o PT passou até chegar
ao poder. Com certeza essas mudanças são responsáveis, em parte, pela formatação de
um novo padrão de organização estrutural do partido e pela condução do governo.
Finalmente, no início do século XXI, o PT chegou ao Palácio do Planalto.

BIBLIOGRAFIA:

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Revista Perseu nº4 – dezembro 2004.

GADOTTI, Moacir e PEREIRA, Otaviano. Pra que PT – Origens, projetos e consolidação


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44

PARTIDO dos Trabalhadores. Diretório Nacional - diretrizes para elaboração do


programa de Governo, São Paulo, abril de 1985.

__________. A nossa vez, a nossa voz. Belo Horizonte, Movimento Pró-PT, 1981.

__________. A posição do PT sobre a nova Constituição. Circular interna, DN do PT, São


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_________. Plano Econômico Alternativo de Emergência (as saídas do PT para crise).


DN do PT, São Paulo, abril 1989.

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________. Documento Teoria e Debate (Eleições 1994). Diretório Nacional do PT, São
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Movimentos Populares, Agrária e Sindical, São Paulo, 1995.

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Perseu Abramo, São Paulo, 2010. (Acesso: www.fpabramo.org.br).

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46

DO LULA PAZ E AMOR À PERPLEXIDADE

Durante a década de 90, o PT consolidou-se como oposição às políticas


neoliberais e como defensor de uma política de desenvolvimento nacional autônoma.
No encontro do Diretório Nacional do PT, ocorrido entre 27 e 28 de fevereiro de 1999,
em São Paulo, três “resoluções sobre o PT e a crise” são esclarecedoras da postura
crítica do PT em relação à política econômica adotada pelo Governo Fernando
Henrique Cardoso, vejamos:

“1º - De joelhos diante do FMI, cujas políticas fracassam no mundo inteiro, como
reconhecem até mesmo economistas conservadores, FHC e seus tecnocratas
preparam receitas que significam hipotecar a soberania de nossa política
econômica e frustra definitivamente as possibilidades de um desenvolvimento
nacional.
2º - Chegamos a uma situação limite em que começa a ficar evidente toda a
perversidade das políticas econômicas aplicadas desde a guinada neoliberal que
Collor de Mello impôs ao país. Tolerar esta política significa renunciar a um projeto
de desenvolvimento nacional capaz de eliminar as profundas distorções que
afetam secularmente a sociedade brasileira. Mais do que isto, implica consagrar
um tipo de organização econômica e social que só poderá se manter apoiada por
uma ampla coalizão conservadora, que será forçada a lançar mão, pelo caráter
excludente de suas políticas, de procedimentos crescentemente autoritários.
3º - É evidente que qualquer programa das oposições exigirá mudança radical com
relação à dívida externa, ao FMI e à banca internacional. O país renegociará a
dívida, por razões de soberania. Além disso, não têm como pagá-la a curto prazo
(...) A centralização do câmbio defenderá nossas reservas e impedirá uma
moratória selvagem imposta pelos credores. É preciso defender o mercado
interno, reorientar o sistema tributário criando condições para o financiamento
público da economia, redefinindo não só o papel dos recursos do governo federal
mas também das agências de desenvolvimento como o BNDES, o Banco do Brasil e
outros Bancos Públicos. Nesse programa de governo se dará prioridade à
formação da poupança interna, à renegociação da dívida interna para permitir,
inclusive, o respeito ao pacto federativo. A reforma tributária e a renegociação da
dívida interna, com o alongamento do seu perfil, são bases para o
restabelecimento da capacidade de financiamento do Estado.”

Durante meio século (1930–1980), as elites brasileiras se agarraram às políticas


desenvolvimentistas cimentadas por ideologias que colocavam o Estado como o
indutor do processo de industrialização e modernização do mercado interno. Esse meio
século de nacional-desenvolvimentismo foi articulado através da conjugação de três
atores econômicos: as empresas nacionais privadas, as multinacionais e as empresas
estatais. Agora, na era da economia mundializada, os grandes atores sociais, os
47

condutores do processo de dominação são os bancos, os fundos especulativos, as


seguradoras e os fundos de pensão. Atualmente, parte dessa elite aderiu ao processo
de globalização, quer se inserir na mundialização econômica, opondo-se a todo projeto
de desenvolvimento focado na satisfação das necessidades básicas da nação brasileira.

A elite brasileira não consegue ver vantagens em projeto de desenvolvimento


nacional porque acha que seus interesses imediatos encontram no mercado
internacional o núcleo organizador que os colocará no centro da nova ordem mundial.
Assim sendo, não cabe ao Estado o papel de regulamentar o mercado, mas lhe cabe o
papel de fomentar a formação de seus cidadãos para que se tornem empreendedores
de uma economia pós-industrial. O Estado é cada vez mais chamado a assumir o seu
papel de agência estratégica de consolidação do processo de mundialização da
economia. As viagens tão frequentes de FHC e Lula ao exterior, como articuladores dos
interesses mercantis da elite brasileira, fazem parte dessa lógica de se fazer política
interna mundial. O governo de uma nação passa a fazer política interna mundial
mesmo na ausência de um governo planetário. Portanto, parte da elite brasileira aderiu
à ideia política de que o capital se desvinculou dos espaços nacionais e não pôde mais
ser domesticado, cabendo ao Estado ampliar o consumo interno através de acesso ao
crédito e, como segundo plano, amenizar os processos negativos do capital financeiro
nos territórios nacionais por meios de políticas compensatórias de combate à pobreza.

As duas funções do Estado – ser uma agência de estratégia de consolidação do


processo de mundialização da economia e ser um formulador ou implementador de
políticas compensatórias nacionais, via parceria com parte da sociedade civil, para
amenizar os processos de empobrecimento e exclusão social promovidos pelo capital
financeiro – exigem a formação de uma hegemonia ideológica e política, isto é, a
direção do poder por um grupo intelectual e economicamente ativo. Durante oito
anos, o Governo FHC, através do Plano Real, manteve o bloco histórico dominante
coeso e em sintonia com os interesses do mundo globalizado. Sua aliança política, além
do PL, incorporou as alas mais conservadoras do PMDB e PFL.
48

No último ano de seu mandato, FHC deu sinal de que sua opção era mesmo
pelo capital financeiro; tal opção ficou evidente na sua política de juros altos, o que
gerou descontentamento nos setores nacionais que compunham seu arco de alianças
(oligarquias regionais, setor comercial e agropecuário), que, além disso, sonhavam em
ser o herdeiro do trono, principalmente a ala mais conservadora do Partido da Frente
Liberal – PFL, que tentou emplacar a governadora do Maranhão, Roseana Sarney, como
candidata própria do partido à presidência. As primeiras propagandas de Roseana,
destacando o seu lado de mãe, mulher e de coragem para fazer, tiveram impactos
positivos, mas a candidatura foi execrada pelo partido do governo FHC (PSDB), que
viam em Roseana um entrave à candidatura de José Serra. Frente a esse fato, as bases
conservadoras do PFL e do PMDB, articuladas por José Sarney que desejava sua filha na
presidência, descontentes com o governo federal, voltaram o seu apoio lentamente à
campanha de Lula.

Numa entrevista muito lúcida, publicada pelo jornal Folha de São Paulo, Perry
Anderson (2002) fez uma avaliação do Governo FHC e alertou para o que vinha
ocorrendo com os governos de oposição que chegavam ao poder. Segundo Anderson:

“A hiperinflação foi derrotada, o que sem dúvida beneficiou as camadas mais pobres
da população. O analfabetismo diminuiu, a mortalidade infantil foi reduzida e houve
um certo grau de redistribuição da terra. Houve avanços na área social e
administrativa. O aparelho do Estado passou por uma modernização genuína, sob
alguns aspectos, tornando-se menos opaco e mais eficiente. Os níveis de corrupção,
embora continuem altos, caíram. As informações estatísticas são mais confiáveis, os
controles orçamentários estão mais rígidos, o clientelismo regional foi reduzido (...)
Seria um erro menosprezar esses avanços. Mas eles são muito modestos quando
comparados à escala dos danos provocados pelas políticas macroeconômicas do
governo. A característica que define o governo de FHC tem sido o neoliberalismo
light, do tipo que predominou nos anos de 1990, quando as doutrinas da Terceira Via
distanciaram-se ostensivamente das versões mais rígidas de neoliberalismo
introduzidas por Reagan e Thatcher nos anos 80, ao mesmo tempo em que, na
prática, levaram adiante – na realidade, muitas vezes acentuaram – o programa
original, acompanhado apenas de concessões sociais secundárias e de um discurso
mais flexível.
49

Já temos muitos exemplos de políticos ou partidos vencendo eleições em


plataformas que se opõem frontalmente ao neoliberalismo mas que, uma vez
chegando ao poder, passam a implementar políticas neoliberais, com frequência
ainda mais drasticamente do que tinham feito aqueles que o denunciavam.“

A eleição presidencial aconteceu dentro de um cenário de esgotamento do


modelo neoliberal sintetizado tecnicamente no “Consenso de Washington”, tendo a
bancarrota Argentina como maior vitrine. O resultado das eleições, de outubro de
2002, consolidou a vitória popular do PT e de seus aliados e, simbolicamente,
representou a catalisação dos interesses populares identificados na personalidade
carismática de Lula. A vitória de Lula alimentou, no pensamento mais crítico da
sociedade brasileira, a esperança num processo de ruptura com as orientações
macroeconômicas do neoliberalismo e com as formas tradicionais de se fazer política
no país. Todavia, o primeiro ano do Governo Lula foi caracterizado pelo não
deslocamento do novo governo em relação à política econômica que vinha sendo
adotada pelo governo FHC. A vulnerabilidade do país ao capital financeiro nacional e
internacional e a tutela do FMI, tornando o Brasil refém dos mercados internacionais,
passaram a impressionar o Governo Lula numa dimensão grandiosa que transformou o
governo de oposição radical num governo cordial. Assim, a agenda econômica e
política do país foram sendo montada para garantir os interesses do mercado: reforma
da previdência, reforma fiscal, reforma trabalhista, preservação dos contratos lesivos
ao país.

Diante da vulnerabilidade econômica do país e da ausência de um candidato


capaz de construir uma continuidade para o sistema de dominação, parte da elite
brasileira ligada ao capital financeiro internacional estabeleceu uma estratégia de
cooptação do grupo político que se comportava como oposição ao projeto dominante.
Lula foi sendo aos poucos credenciado pela elite como o novo condutor do processo de
dominação. O PT tornou-se confiável ao contemplar em sua campanha os interesses
dos setores internacionalizados da economia (setor financeiro, industrial, agronegócios
e de comunicação) na medida em que flexibilizou seu discurso político e sinalizou
algumas questões importantes, como destaca o professor Roberto Leher (2003):
50

“Em um ambiente de forte pressão do mercado, a candidatura de Lula sofreu a


maior inflexão política dos 20 anos de história do PT: Lula publicou, em 22 de
junho de 2002, a Carta aos Brasileiros, que, em essência, reafirma o compromisso
do futuro governo com os contratos e acordos firmados com os organismos
internacionais, implicando: (a) adotar o regime de metas de inflação; (b) manter o
câmbio flutuante: (c) praticar superávits primários elevados, e (d) manter altos
juros. A reação do setor financeiro foi imediata: o economista sênior do banco de
investimentos ABN-Amaro comemorou: “são declarações muito encorajadoras, em
especial a declaração-chave de que vai preservar o saldo primário o quanto for
necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança dos
investidores na capacidade do governo honrar os seus compromissos (O ESP -
24/6/02).

Diante da dificuldade das elites para encontrar um representante, saído do


próprio berço para conduzir o seu projeto, a incorporação 15 de Lula e do PT, numa
verdadeira estratégia de ocupação de posição ideológica dentro de setores da
sociedade civil, representou o caminho mais seguro para a reconstrução do bloco
histórico de dominação política no Brasil. Dominação política que ampliou a
participação dos setores conservadores (Antônio Carlos Magalhães, Jader Barbalho,
Renan Calheiros, José Sarney, PMDB, PL) em torno dos projetos de reformas e na
condução de instituições públicas, mas que continuou a contar com o apoio popular e
de setores da sociedade que pensavam que o Governo Lula tinha autonomia em
relação aos interesses das elites. Basta ver o comportamento do PT e de Lula em
relação aos transgênicos, à reforma da previdência, e a postura conservadora no
enfrentamento das questões ambientais para vermos que algo não combina com a
trajetória histórica do PT e de Lula. Vejamos a reconstituição da equipe de governo no
primeiro mandato comentada pelo professor Roberto Leher (2003):

“A área econômica do governo Lula foi buscada no mercado. O quadro mais


relevante buscado nas hostes do capital (Wall Street), seguramente, foi o presidente

15
Apesar de ter sido de iniciativa do PT a formação de sua política de aliança, falamos de incorporação do governo Lula porque o
controle do poder político de uma nação passa pela direção intelectual e moral da sociedade. Lula era governo, mas não estava
sendo capaz de conduzir um projeto político que contrarie ou ganhe espaço em relação ao capital financeiro. Um grupo é
ideologicamente hegemônico quando consegue manter articulado – mesmo que de maneira conflitiva – grupos sociais heterogêneos,
difundindo e fazendo aceitar a sua concepção de mundo e sociedade. No governo Lula, é a ideologia de mercado que cimenta as
relações, o social é subordinado ao crescimento econômico. Não se esperava do PT uma ação aventureira contra o capital financeiro,
mas se exigia uma ação reformista para redistribuir riqueza, renda e conhecimento.
51

do Banco Central (BC), Henrique Meirelles16, deputado eleito pelo PSDB e ex-
presidente mundial do Bank of Boston, atual Boston Fleet, o 7º maior banco nos EUA
e, após o Citigroup, a segunda maior instituição credora do Brasil. A despeito das
críticas de que poderia haver conflitos de interesses principalmente pelo fato de
Meirelles ter presidido um banco credor do país, envolvido em operações obscuras
que levaram ao default argentino, Lula não apenas o confirmou no cargo, como
acatou sua exigência de que o BC teria de ter autonomia em relação ao Executivo. O
ministério da Fazenda foi entregue a um petista com fortes afinidades com as
políticas neoliberais, Antonio Palocci, um ex-prefeito de uma cidade paulista de
médio porte, que promovera a intensa privatização, incluindo a distribuição de água,
e que tornou-se o braço das novas alianças do governo com o capital financeiro. O
ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e o Ministério da
Agricultura foram confiados ao setor de agrobusiness, por meios de dois grandes
empresários do setor. O Ministério da Integração Regional, responsável pela a
interface da área econômica com as diversas regiões do país, foi entregue ao ex-
candidato à presidente Ciro Gomes.”

A campanha de Lula foi vitoriosa, em parte, pela força do dinheiro do capital


financeiro, do apoio dos meios de comunicações, do resgate de sua história de pobre
vitorioso (uma forma de encontrar identidade na maioria do povo) e da imagem do
“Lula Paz e Amor”, ou seja, do governo que não veio para fazer rupturas com as elites.
Simbolicamente, a ideia “Lula Paz e Amor” é uma linguagem articulada para passar
confiabilidade para as elites. É o PT dizendo para as elites: “nós estamos com vocês,
seus interesses se fizeram os nossos, nós pensamos o Brasil como vocês”. A formação
dessa aliança ficou restrita à campanha presidencial. Nos estados onde os interesses
locais predominaram, as alianças ganharam formatos diferentes. No final, o PT venceu
em apenas três estados e perdeu no estado mais importante que já governou, o Rio
Grande do Sul.

Além da força do dinheiro e da sinalização que não iria haver rompimento de


contratos, a campanha foi conduzida por uma estratégia de marketing muito

16
A indicação de Henrique Meirelles para presidência do BC gerou polêmica dentro do PT. A senadora
Heloísa Helena se colocou contrária à sua indicação argumentando que ele servia aos interesses
financeiros internacionais. Como o nome indicado para presidir o BC deve ser sabatinado pelo Senado, o
PT fechou um acordo para que a senadora Heloísa Helena se ausentasse da seção de sabatina de
Meirelles.
52

sofisticada. Lula foi produzido com um visual humanizado, passou a usar ternos caros,
barba feita e trocou a aparência de operário por uma de executivo. Além disso, o
marketing focou de forma muito forte na questão do combate à corrupção. Duda
Mendonça, o marqueteiro de Lula, criou uma campanha de forte impacto moral. Em
uma das peças de publicidade, vinculada por várias vezes na televisão, mostrava ratos
(PSDB, PMDB, PLF) comendo a bandeira brasileira e finalizava assim: “ou a gente acaba
com eles ou eles acabam com o Brasil. Xô corrupção – uma campanha do PT e do povo
brasileiro”.

O MODO PETISTA DE GOVERNAR

A eufórica vitória de Lula e sua posse triunfal 17 tiveram a pujança necessária


para ofuscar o início de um governo sem a criatividade e o charme que produziram as
primeiras administrações petistas. As experiências administrativas municipais (Icapuí,
Porto Alegre, Santo André e outras) e estaduais (Acre, Mato Grosso do Sul e RS)
construíram um chamado Modo Petista de Governar, dando credibilidade ao PT como
um partido de oposição propositiva e com um modelo de governar pela inclusão social.
O orçamento participativo, posto em prática pela prefeitura de Porto Alegre, foi um
sucesso como política de empoderamento de cidadãos, garantia de direitos e
desprivatização da esfera pública. A esperança era de que esse modelo pudesse sair da
esfera municipal para esferas estadual e federal.

O Governo Lula teve sua ação voltada para a administração do mercado através
da priorização de medidas centradas na revisão do papel do Estado (reforma da
previdência: aprovada; e tributária: protelada) e na manutenção da estabilidade
econômica. Todavia, os objetivos de um Estado democrático tendem a ser objetivos
sociais, mas, para efetivação de objetivos sociais, faz-se necessário uma expansão
funcional do Estado orientado por uma agenda social.

17
Mais de 150 mil pessoas de todo Brasil compareceram à festa de comemoração e posse do governo
Lula, em Brasília.
53

A expansão, e até mesmo a manutenção funcional do Estado, se constituiu


como o calcanhar de Aquiles do Governo Lula. A falta de um programa operacional de
políticas públicas juntamente com a nomeação de militantes e aliados políticos, sem o
critério técnico e sem competência, para cargos administrativos, criaram transtornos e
uma sensação de que nada andava no novo governo. Esse fenômeno teve o seu reflexo
mais visível nas áreas de saúde, habitação e segurança. Por outro lado, dos parcos
recursos disponíveis, parte foi sendo contingenciado para realizar o pagamento da
dívida externa, numa generosidade maior do que o Governo FHC.

De cada R$ 1,00 arrecadado pelas loterias federais, R$ 0,35 deveriam financiar


projetos nas áreas de educação, cultura e combate à violência. Para obter o superávit
acordado com o FMI18, o governo reteve, durante os primeiros seis meses de seu
mandato, R$ 500 milhões de dinheiro da loteria que deveriam ser repassados para
projetos sociais. Durante esse período, o trabalho infantil no governo Lula aumentou
em 50%, pois o programa de erradicação do trabalho infantil teve seus recursos
cortados para engordar o famigerado superávit acordado com o FMI. Nesse momento
delicado, o secretário de política econômica do ministério da fazenda, Marcos Lisboa,
afirmou: “o ex-ministro Pedro Malan merece uma estátua em praça pública (FSP –
23/11/03) – b1)”.

A postura do Governo Lula de não romper ou flexibilizar contratos com o


mercado, honrando compromissos que garantem a continuidade da concentração de
renda, de terra e de conhecimento, colocou duas questões de fundo: tanto do ponto
de vista analítico como do ponto de vista dos valores da justiça social, a administração
do mercado é a condição primeira de um processo de distribuição de renda, de terra e
de conhecimento? Será que realmente o país estava diante de uma situação em que as
opções se restringiam ao crescimento do mercado ou estagnação com exclusão social?

Diante da incapacidade do governo Lula, na metade do seu mandato, de se


diferenciar principalmente em relação à política econômica, do governo FHC, e diante

18
Como disse Lula, na carta aos brasileiros (22/6/02): “ vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir
que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos”.
54

da constatação da total integração do PT à ordem institucional burguesa, cuja principal


característica foi a consolidação da perda do chame revolucionário que o PT trazia em
sua origem, três intelectuais orgânicos do partido, Carlos Nelson Coutinho, Emir Sader
e João Machado, apresentaram um conjunto de argumentos para justificar a situação
naquele momento, pois acreditavam que o governo Lula era um projeto em disputa
dentro do PT.

Para Coutinho (2002), os motivos que justificavam a situação do PT e do


governo Lula estavam ligados: i – ao refluxo das esquerdas no mundo; ii – à
vulnerabilidade externa vivida pelo país, herança deixada pelo governo FHC, que
obrigava o governo Lula a negociar com os agentes do mercado em condições
extremamente desfavoráveis; iii – e ao processo de privatização e reforma do Estado,
promovido pelo PSDB, que desativaram muitos dos instrumentos necessários a Lula
para implementar o novo modelo econômico prometido durante a campanha.

Para Emir Sader (2003), o esgotamento do neoliberalismo gerou uma crise de


hegemonia que exigia práticas políticas novas e capacidades de elaboração teórica,
mas como o PT não estava preparado para essas duas tarefas, passou a seguir o
caminho do pragmatismo. Para ele, as dificuldades enfrentadas durante o primeiro
mandato do governo Lula é fruto: i – da miséria teórica imposta pelo pensamento
único (neoliberal) durante a década de 1990. No Brasil, o desprestígio da política, pela
ditadura econômica, e a desqualificação da oposição, promovidos pelo governo FHC,
foram responsáveis pela morte da teoria crítica; ii – do distanciando do PT do meio
intelectual, que passou a formular suas posições mais em função do debate político do
que de uma produção teórica. O afastamento do PT do Fórum Social Mundial, pólo
inovador e aglutinador das novas produções teóricas sobre a resistência social, cultual
e política ao neoliberalismo, é um reflexo do pragmatismo do PT; iii – da chegada do PT
ao governo sem contar com uma teoria de saída do neoliberalismo e sem contar com
uma produção teórica que lhe possibilitasse construir uma sociedade pós-neoliberal.

Para João Machado (2004), os fatores que impulsionaram o deslocamento do


PT de uma posição de esquerda radical para uma situação conciliadora de classe
foram : i – a crise mundial das esquerdas após a queda do Muro de Berlin promovendo
55

a desintegração da União Soviética, e o fim da guerra fria; ii – a hegemonia do


pensamento liberal no mundo e o ajuste estrutural vividos pelo Brasil durante os
governos Collor e FHC; iii – a fragmentação e debilidade dos movimentos sociais que
gravitavam em torno da CUT e do PT; iv – e a insistência da corrente majoritária –
tendência interna do PT da qual Lula faz parte – em promover uma posição moderada
e em diluir as referências socialistas do partido.

É preciso reconhecer que o Estado, o mercado e a sociedade civil podem ser


combinados de múltiplas maneiras. A criatividade política, através de uma orientação
estratégica, pode transformar a administração pública num indutor e catalisador dos
capitais (social, humano, financeiro e natural) necessários ao desenvolvimento
sustentável com justiça social. Nesse processo, compete ao Estado definir e fazer
cumprir um mínimo de ação ética necessária para a realização da produção e
distribuição dos direitos sociais.

No lugar da criatividade política e da radicalização da democracia, esta vista


como um valor universal, tão defendida pelo PT, o governo Lula dando continuidade a
política de estabilidade da economia herdada de FHC e a aprovação da reforma da
previdência, considerada uma reforma neoliberal, o que atraíram um conjunto de
críticas oriundas de vários setores da sociedade. Todavia, um grupo de militantes do PT
passou a fazer críticas internas e públicas as políticas adotadas pelo governo Lula e
alguns parlamentares passaram a votar contra, em projetos enviados pelo governo ao
Congresso ,e, resgataram, como fundamento de legitimidade de seu discurso e prática
o “PT das origens”. Acabaram sendo expulsos do partido e fundando, em junho de
2004, o Partido Socialismo e Liberdade – PSOL.

Em agosto de 2003, José Genoino, presidente nacional do PT, declarou ter


ficado perplexo diante das críticas do Presidente do Supremo Tribunal Federal - STF,
Maurício Correia19, ao Governo Lula. E José Dirceu, ministro-chefe da casa civil, disse
19
Os atritos de Maurício Correia com Lula começaram durante sua posse na presidência do STF, em
junho de 2003, quando ele conclamou os juízes a se mobilizarem contra a reforma da presidência
56

ter ficado estarrecido com a concordância do senador Eduardo Suplicy com parte das
críticas feitas por Maurício Correia. Já o Presidente Lula, durante as festas de
comemoração do Dia da Independência, não cumprimentou o presidente do STR, com
quem dividia o mesmo palanque, mas cumprimentou o governador do Distrito Federal,
Joaquim Roriz, acusado, pelo próprio PT, de corrupto, mas cujo partido, O PMDB de
Jader Barbalho, já era alvo de negociações de cargo no governo Lula em troca de apoio
político. No mesmo período, no Piauí, o Programa Fome Zero é usado por militantes
petistas como uma correia de transmissão para filiação partidária (Fonte Jornal FSP –
7/9/2003).

Punição para os rebeldes, expulsão dos radicais ( Heloísa Helena, João Batista –
o Babá e Luciana Genro), intolerância para com os críticos, uso dos programas
governamentais para o fisiologismo partidário, corrupção dos princípios e vaidade. O
que estava acontecendo com o PT, e com o governo, que venceu as eleições embaladas
pela ideia de que a “esperança venceria o medo”? O que estava acontecendo com o
governo de origem popular que, na condução do processo de reformas, fez opção por
manter alianças com os setores do capital financeiro, partidos patrimonialistas, ao
mesmo tempo em que adotava uma postura de distanciamento em relação aos grupos
que representavam os interesses de setores populares e da classe média?

Mesmo conduzindo-se por uma avalanche de contradições 20 em relação a sua


história e a seu programa partidário, o governo Lula chegou ao final de seu primeiro
ano gozando da confiança do povo e das elites. A ação do governo para o ano de 2004
foi orientada para assegurar a reeleição de Lula. Do ponto de vista econômico, o
governo anunciou a chegada do “espetáculo do crescimento”.

proposta pelo governo Lula, que, aprovada, retirou à direito de aposentadoria integral dos servidores
públicos. Em seguida, acusou Lula de “cometer impropérios que precisavam ser corrigidos pelo ministro
da casa civil” e de se empenhar para impedir a criação das CPIs dos casos Valdomiro Diniz e Santo André
( corrupção na prefeitura e morte do prefeito do PT)
20
Alguns analistas políticos na época diziam que Lula havia conseguido, no imaginário popular, se
separar do PT e do mundo político. Assim, passou a ser blindado em relação a toda e qualquer acusação
de corrupção. Numa linguagem da umbanda; Lula tinha o corpo fechado.
57

AS ELEIÇÕES DE 2004

A maioria dos analistas da conjuntura política brasileira, sejam jornalistas ou


acadêmicos, prognosticaram, em suas avaliações conjunturais, que as eleições
municipais de 2004 seriam pautadas por uma avaliação do desempenho do governo
Lula ou pela disputa polarizada entre dois projetos de poderes: um projeto de centro-
esquerda, representado pelo PT e seus aliados; outro, centro-direita, representado
pelo PSDB e os seus aliados. Esses analistas não tiveram suas opiniões confirmadas.
Todavia, a resolução sobre tática eleitoral do PT, aprovada pelo Diretório Nacional, em
14/12/2003, teve uma percepção mais adequada da realidade e das expectativas do
eleitorado. A resolução sobre eleições municipais diz:

“A centralidade das eleições municipais será definida pelo seu caráter local e
municipal. O eleitorado estará mais preocupado em eleger prefeitos, em escolher
boas propostas para solução de seus problemas municipais do que julgar o
desempenho do governo federal. Além disso, os fatores que determinam a decisão
do voto do eleitorado são multidimensionais (...). O objetivo central na disputa
eleitoral de 2004 consiste em vencer as eleições. Vencer as eleições significa manter
e aumentar as administrações nas capitais e nos grandes centros urbanos e avançar
nos médios e pequenos municípios. Vencer as eleições significa também aumentar o
número de vereadores eleitos pelo PT. Vencer as eleições significa agregar aliados,
consolidar alianças e aumentar o grau de apoio e de sustentabilidade política e
social ao governo Lula.”

Ao final do primeiro turno das eleições municipais de 2004, criou-se um clima


de que o PT tinha sido um partido absolutamente vitorioso ao eleger 388 prefeitos,
sendo seis em capitais (Belo Horizonte, Recife, Aracaju, Macapá, Rio Branco e Palmas),
e ao manter a participação na disputa política em 24 grandes cidades no segundo
turno. Todavia, no segundo turno, a derrota em cidades administradas pelo PT,
principalmente em Porto Alegre e em São Paulo, bem como a derrota em outras
cidades importantes, como Salvador, e o comportamento do PT em relação à cidade
de Fortaleza, onde a candidata do PT( Luizianne Lins), não apoiada pela direção
nacional e seus aliados no Ceará, saiu vitoriosa, derrotando, inclusive, o candidato
58

Inácio Arruda – do PC do B, apoiado pela direção nacional, criou um sentimento de


derrota eleitoral na leitura feita pelos que faziam oposição interna ao PT.

O fato de o PT não ter mantido suas principais administrações, São Paulo (uma
das maiores âncoras de projeção e poder político do país) e Porto Alegre (força
simbólica do modo petista de governar), como previa um dos seus objetivos táticos,
não significa que o partido saiu derrotado. É claro que localmente há derrotas e perdas
de espaço importantes, mas há espaços para reflexões e especulações sobre os
motivos de tal fenômeno. Todavia, no geral, o PT saltou de 187 para 411 prefeituras,
passou de 2.485 vereadores para 3.679, mesmo que alguns ponderem que ele reduziu
o número de eleitores a serem governados de 21.590.995 para 17.055.262. Os
resultados eleitorais demonstram que o voto foi multidimensional, mas que foi
formatado um quadro político equilibrado, onde nem PT e nem PSDB, os maiores
vitoriosos nas eleições, se tornassem hegemônicos.

Na primeira reunião do Diretório Nacional do PT, depois das eleições


municipais, ocorridas entre 20 e 21 de novembro de 2004, as teses apresentadas
giravam em torno da avaliação do governo Lula e das eleições. Para as tendências
internas, denominadas de esquerdas, o PT sofreu uma derrota eleitoral por causa da
política econômica neoliberal que vinha sendo implantada no país pelo Ministério da
Fazenda (comandado por Antônio Palocci) e pelo Banco Central ( comandado por
Henrique Meireles). A tese apresentada pela Tendência Ação Popular Socialista, da qual
fazia parte o Deputado Federal Ivan Valente (SP), critica também a gestão do próprio
partido, o texto diz o seguinte:

“A gestão atual da cúpula partidária foi desastrosa porque transformou o PT em


uma correia de transmissão do governo. Em vez da cúpula e o presidente do partido
serem os porta-vozes do partido e da bancada junto ao governo, eles fizeram o
caminho inverso: foram os porta-vozes do governo junto à bancada e ao partido.”

Do processo eleitoral e da situação política institucional do país em 2004,


podemos tirar algumas conclusões parciais:
59

As eleições municipais consolidaram o processo, em curso, na descaracterização


ideológica dos partidos. O fato de os partidos se moverem mais focados em seus
projetos de poderes fez se perder o sentido das referências como “direita” e
“esquerda”, “ liberalismo”, “social-democracia” ou “socialismo”. De forma esdrúxula, o
PFL e o PMDB fizeram campanha defendendo bandeiras sociais que eram parte do
programa do PT contra as medidas adotadas pelo governo petista, cujo principal foco
foi a Reforma da Previdência e a adoção de um salário mínimo em 2004. O governo
Lula era favorável à reforma da previdência e defensor de um salário mínimo de R$
210,00, já o PFL e PMDB se posicionaram contra a reforma e propunham um salário
mínimo de R$ 260,00.

As alianças políticas, com a descaracterização ideológica, tornam-se, de forma


clara, táticas conjunturais de enfrentamento eleitoral, manutenção do poder e
conquista de forças para eleições seguintes. Sem foco ideológico ou programa de
governo consistente, as campanhas viraram programa de marketing político; os
debates políticos são ancorados em regras para proteção da maquiagem, do cinismo e
das fragilidades dos candidatos. O comportamento aético dos publicitários comandam
o espetáculo da política em substituição à competência dos candidatos e ao programa
partidário;

Mesmo com a descaracterização ideológica, devemos reconhecer que no PT,


PSDB, PC do B e PSB prevalece um nível de eficiência administrativa e institucional mais
próximo do desejado numa democracia, além de possuir um trato com a coisa pública
e com o discurso social menos pálido do que nos demais partidos. PMDB, PFL, PTB e PL
- partidos conservadores e com forte vocação para serem coadjuvantes do Rei em troca
de cargos, “o toma lá dá cá”- parece que vão continuar sendo rebocados pelos
interesses eleitorais de petistas e de tucanos. A novidade é o PT justificar o “o toma lá
dá cá” como sendo sua forma de manter a responsabilidade com a governabilidade do
país.

A PROMESSA DO ESPETÁCULO DO CRESCIMENTO


60

No dia 16 de dezembro de 2004, José Dirceu, Ministro-chefe da Casa Civil,


apresentou, em nome do Presidente Lula, através de pronunciamento público 21na
televisão, um balanço administrativo das ações governamentais e destacou as
prioridades do governo para o ano de 2005. Tomando como referência tal
pronunciamento, destacaremos três aspectos: as ações do governo voltadas para o
fortalecimento do mercado; as ações voltadas para o social; e as ações prioritárias para
o ano de 2005. Nessas ações o governo retoma a ideia do “espetáculo do crescimento”.

I – AÇÕES VOLTADAS PARA O FORTALECIMENTO DO MERCADO

Segundo avaliação do ministro José Dirceu, o aspecto mais importante do


governo Lula foi o crescimento econômico, o maior dos últimos dez anos. Para tal feito,
o governo adotou:
“Uma série de medidas de isenções tributárias para incentivar o investimento, o
mercado de capitais, o mercado imobiliário, os fundos de pensão e estimular o
consumo popular abatendo impostos da cesta básica. Assim, o crescimento
econômico estimulou investimentos privados em 20,1% no terceiro trimestre em
relação com o mesmo trimestre em 2003, o Brasil obteve o menor risco-Brasil nos
últimos sete anos, houve um crescimento do PIB e uma taxa de desemprego menor
que 10%.”

Dentro de suas ações de fortalecimento do mercado e dos setores econômicos,


o governo comemora outras medidas consideradas importantes: a Lei de Falências,
mecanismos de recuperação das empresas falidas; a aprovação da Lei de Criação de
Parceria Público-Privada (PPP); a Lei de Inovações, cujo objetivo é a integração da
universidade com as empresas no financiamento da produtividade, da eficiência e do
crescimento econômico; a criação da Agência de Desenvolvimento Industrial e a
aprovação da Lei de Informática. Mais de um bilhão foram destinados para programas

21
O Ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, fez um balanço no dia 16/12/2004 sobre as ações do
governo federal durante o ano. Ele aproveitou ainda para destacar as prioridades para 2005. O ministro
fez um pronunciamento longo (18 laudas) e, em seguida, concedeu entrevista coletiva no Palácio do
Planalto. O pronunciamento e a entrevista foram disponibilizados no site do PT (www. pt.org.br).
61

permanentes (Funtec, Prosoft, Profarma, Modermaq) de desenvolvimento tecnológico.


Nas palavras do Ministro José Dirceu:

“O governo tem política industrial e de comércio exterior que retoma o papel do


sistema público de alavancar o desenvolvimento científico e tecnológico, as
exportações, a pequena e média empresa, o setor produtivo nacional, e dar aos
setores que impulsionam o desenvolvimento do país condições de crescimento e
desenvolvimento tecnológico (...) Exportações, isso significa país forte, país com risco
- Brasil cadente, um país que honra seus compromissos externos, um país que tem
superávit comercial e em conta corrente, uma inversão total da situação que o Brasil
tinha antes, de um déficit de mais de 30 bilhões nas contas correntes. Noventa e
cinco bilhões de exportações, 32 bilhões de superávit. E o Brasil, hoje, é um país que
através da APEX tem um programa vasto de promoção no exterior da marca Brasil –
410 eventos foram realizados esse ano e 500 serão realizados no ano que vem. Os
recordes são históricos e o agronegócio tem papel fundamental, mas para o
agronegócio avançar foi preciso criar condições para o financiamento da agricultura,
o governo apoiou e sustentou a agroindústria.”

II – AÇÕES VOLTADAS PARA O SOCIAL

. No balanço realizado pelo governo Lula sobre a questão social, foram


destacadas as seguintes ações e medidas:

Na área da saúde, foram criadas 4.911 equipes de médico da família e 20 mil


novos agentes de saúde. O governo implantou 26 farmácias populares com 84
medicamentos cujo valor é até 80% menor que a rede varejista. Foi implantado ainda o
programa “Brasil Sorridente”, que já somam 4.551 equipes de saúde bucal.

A merenda escolar passou a atender 881 mil crianças de 18 mil creches, além
de toda a rede básica de ensino fundamental, que teve um aumento de 15% no valor
de repasse em 2002. O bolsa-família, cujo valor médio era de R$28,00, passou para R$
75,00.

O BNB destinou US$ 720 milhões, entre 2003 e 2004, para o crediamigo,
financiando a pequena agricultura e o trabalhador autônomo. O governo também
62

criou o crédito popular destinado aos aposentados e servidores públicos. O Programa


Luz para Todos já beneficiou 617 mil famílias.

A reforma agrária não atingiu as metas planejadas, segundo José Dirceu, porque
o governo recebeu 500 mil famílias assentadas com passivo e teve que dar
financiamento para água, habitação, estrada e assistência técnica. Todavia, no ano
passado, assentou somente 36 mil famílias das 80 mil previstas, e em 2004 somente 68
mil famílias das 120 mil prometidas nas metas. E, conclui o ministro José Dirceu, no
social:
“O governo continua com a política consistente de afirmação da mulher, do negro e
da negra e o Programa Quilombola, que é uma realidade no país, saneamento
básico, obra de eletrificação rural, universidade e políticas públicas para aldeias
indígenas.”

III – PRIORIDADES PARA OS PRÓXIMOS ANOS (200 -2006)

Em relação à continuidade do governo Lula, diz o Ministro José Dirceu:


“Nossa primeira prioridade é a infra-estrutura, porque o país não crescerá se nós
não resolvermos o estrangulamento na infra-estrutura. Em 2006, o governo vai
recuperar as estradas que servem de corredores de exportações e corredores
turísticos, vai investir em segurança e modernização dos portos (...) O papel do
governo é, para além da política monetária e fiscal, tomar medidas efetivas que
viabilizem a infra-estrutura, a educação técnico-profissional e o avanço do
crescimento tecnológico.”

Apesar de ressaltar que na última reunião ministerial de 2004 o presidente Lula


deixou claro que 2005 e 2006 serão dois anos de desenvolvimento com inclusão social
e criação de empregos; no balanço administrativo, José Dirceu, ao definir prioridades
e o foco da ação governamental para os próximos dois anos, foi enfático:
“ o governo deve criar um marco regulatório, criar um ambiente jurídico, criar um
ambiente propício aos investidores, garantir que a dívida interna esteja sob controle
cadente, que o risco-Brasil esteja cadente, sustentar o crescimento das exportações é
o papel que o governo pode fazer (...) O Brasil deve um trilhão de reais para
sociedade brasileira ( dívida interna) e temos que honrar esse compromisso e temos
que pagar os juros dessa dívida, pelo menos dois terços desses juros, que é o
63

razoável para garantir a sustentabilidade desse endividamento com rigor fiscal, mas
também audácia e criatividade. O que o presidente exige de nós, do governo, é
criatividade e trabalho.”

Em cadeia nacional de rádio e televisão, na noite do dia 2 de janeiro de 2005, o


Presidente Lula reafirmou sua prioridade em promover o espetáculo do crescimento.
Para o presidente, foi graças ao incremento das exportações e ao controle dos gastos
públicos com políticas sociais que o país encerrou o ano com mais de 5% de
crescimento econômico frente a uma projeção inicial de 3,5%. Para Lula, o ano de 2004
foi o ano da arrancada do crescimento. Entusiasmado disse, como saudação de ano-
novo, ao povo brasileiro:

“O mundo se surpreendia positivamente cada vez mais com o esforço do novo


governo brasileiro em controlar seus gastos, apertando o cinto e fazendo as coisas
sem pressa e com segurança.”

No seu pronunciamento à nação, o Presidente em nenhum momento falou em


reforma agrária, nem falou em prioridade social. A prioridade do governo é
infraestrutura para que os setores que dominam o mercado no país possam crescer e
realizar o progresso. É priorizando o mercado que o governo Lula pretende fazer do
“Brasil um País de Todos”.

Para Gramsci, a contribuição mais significativa que um partido popular


(príncipe moderno) pode oferecer a uma sociedade é a construção de um processo de
reforma intelectual e moral. Para ele 22: “uma reforma intelectual e moral não pode deixar de
estar ligada a um programa de reforma econômica; aliás, o programa de reforma econômica é
precisamente o modo concreto no qual se apresenta qualquer reforma intelectual e moral (1981,

pg.210)”. Nesse sentido, o PT, ao priorizar uma política de mercado voltada para o
fortalecimento do setor financeiro, subordinando o desenvolvimento social ao
crescimento econômico, rompe as esperanças de adotar uma postura de governo
comprometida com a transformação social e com a construção de uma reforma política
e moral.
22
Elementos para uma Teoria do Partido Político, Gramsci in Carlos Nelson Coutinho: Fontes do
Pensamento Político de Gramsci, Editora L&PM, Porto Alegre, 1981.
64

VALDOMIRO E SEVERINO: PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

O ano de 2005 iniciou-se com o acirramento das disputas pelo poder, cuja
reeleição presidencial foi posta como foco pelo próprio governo durante os seus dois
primeiros anos de governo. Ao ser empossado, Lula já manifestava o desejo de ser
reeleito. A estrutura montada para o funcionamento de suas ações foi configurada à
moda de um “Parlamentarismo Presidencial”, onde Lula passou a se comportar como
se fosse um Primeiro Ministro a comandar a política internacional, a participar de
eventos internacionais e nacionais, a pousar de público com celebridades. O papel de
presidente, de homem forte, de comando político, de negociações com políticos e
partidos, de nomeações e acompanhamento da agenda do Congresso Nacional, ficou
com o ministro da Casa Civil, José Dirceu.

O sistema de “parlamentarismo presidencial” confundiu muita gente, analistas


políticos pensaram na existência de dois comandos no governo: Um comando político
comprometido com o projeto social original do PT, representado pela Casa Civil; e um
comando econômico neoliberal comprometido com o ajuste estrutural e com a política
de juros altos, representado pelo Ministro da Fazenda, Antônio Palocci. Dentro do PT,
as correntes mais ideológicas achavam que o governo Lula era um governo cuja
concepção política estava em disputa e aceitavam, assim, o argumento de que a
política econômica era apenas uma necessidade de transição do governo FHC para o
governo Lula.

Em fevereiro de 2004, a publicização do Caso Valdomiro Diniz 23, envolvendo


diretamente o ministro da Casa Civil, enfraqueceu o esquema do “Parlamentarismo

23
Valdomiro Diniz foi acusado de pedir propina ao empresário Carlos Augusto Ramos, conhecido como
Carlinhos Cachoeira. A propina foi para campanha política do PT de 2002. Valdomiro, homem de
confiança de José Dirceu, ocupava cargo de confiança sob a chefia de Aldo Rabelo ( PC do B) na
Coordenação Política e Assuntos Institucionais do Governo Lula. Carlinhos Cachoeira gravou a conversa
que foi divulgada pela revista época. O dinheiro sujo vinha do jogo de bingos e o PT se mobilizou para
evitar a CPI dos bingos.
65

Presidencial”. O governo ficou sem comando político, e o estrago só não foi maior
porque o governo contava com o Deputado João Paulo (PT-SP) na presidência da
Câmara dos Deputados para conduzir uma agenda política de interesse do governo.

Um ano depois, em fevereiro de 2005, distanciado dos movimentos sociais,


sofrendo com as críticas e saída de vários intelectuais que ajudaram na formação do PT
(Chico de Oliveira, César Benjamim, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder), com a
desfiliação de vários sindicatos importantes da CUT, como a ANDES, e atrapalhado pelo
autoritarismo stalinista da direção nacional, o PT saiu dividido com dois candidatos
para disputa da presidência da Câmara dos Deputados. Crente de que a base aliada
garantiria a vitória do seu candidato, Luís Eduardo Greenhalgh (PT-SP), contra o rebelde
Virgílio Guimarães (PT-MG) e os candidatos de oposição, acabou sofrendo uma
derrota24 de 300 votos contra 195 para o deputado Severino Cavalcanti (PP - PE).

Além da derrota, o PT também ficou fora da mesa diretora da Câmara. Severino


Cavalcanti, identificado como representante do baixo clero, teve sua eleição explicada
pelo tratamento dispensado pelo presidente Lula ao Congresso. Lula não havia dado a
devida atenção aos parlamentares e às lideranças partidárias, e abusando do excesso
de medidas provisórias, passou a legislar no lugar do Congresso e a impor uma pauta
política que não era discutida com deputados e senadores.

A humilhante derrota que a Câmara dos deputados impôs ao Palácio do


Planalto elegendo o deputado Severino Cavalcanti, demonstrou a falta de articulação
política do governo e sinalizou que o governo estava refém de sua base de aliados. A
derrota deixou o governo Lula em estado de alerta.

A Direção Nacional do PT, que muitas vezes se comporta como se fosse governo,
em parte porque o presidente Lula não assumia o comando político do país, quis

24
A votação para presidência da Câmara aconteceu no dia 16/02/2005. No primeiro turno, os resultados
foram os seguintes: Luis Eduardo Greenhalgh (PT-SP), 207 votos Severino Cavalcanti (PP-PE) 124 votos,
Vírgilio Guimarães (PT-MG) 117 votos; José Carlos Aleluia (PFL-BA) 53 votos; Jair Bolsomaro (PFL-
RJ) 2 votos, brancos 3 votos, nulos 4 votos. No segundo turno: Severino Cavalcanti 300 votos, Luis
Greenhalgh 195 votos, branco 1 voto, nulo 2 votos. O Candidato oficial do PT, mesmo com o apoio do
candidato “rebelde” no segundo turno, teve menos votos do que o obtido no primeiro turno.
66

amenizar a derrota afirmando que Severino Cavalcanti fazia parte da base de aliados.
Todavia, essa mesma base aliada impôs mais duas derrotas ao governo: uma na
indicação do Conselho Nacional de Justiça, órgão responsável pelo controle externo do
poder judiciário: após acordo político, o PT apoiou o nome de Sérgio Renault, mas o
eleito foi Alexandre Moraes, indicado pelo PFL/PSDB. A outra derrota foi na indicação
do Presidente do Tribunal de Contas da União: após acordo político para indicação do
nome do deputado José Pimentel (PT-CE), o indicado foi o deputado Augusto Mendes
(PP - RS); Augusto bateu Pimentel por 203 a 137 votos. Mesmo assim, José Genoíno,
presidente nacional do PT, declarou, por várias vezes, que essas derrotas faziam parte
do jogo democrático, que a relação com a base aliada estava firme e forte.
67

MENSALÃO: O XEQUE ÉTICO

A revelação da existência de um vídeo (pela revista Veja, edição de 14.05.2005),


que depois foi divulgado na televisão, flagrava um funcionário dos correios, Maurício
Marinho, recebendo propina. Maurício Marinho fazia parte de um esquema de
corrupção sob o comando do deputado Roberto Jefferson (PTB – RJ), presidente do PTB
e um dos principais articuladores da base aliada do governo federal. A gravação foi
uma armação conduzida pelo advogado Joel Santos, que se fez passar por empresário
para colher provas materiais do crime. Na negociação, Maurício expôs, com riqueza de
detalhes, o esquema de corrupção de agentes públicos existente nos Correios. As
denúncias focavam principalmente dirigentes dos correios indicados pelo presidente
do PTB, deputado Roberto Jefferson.

Acuado, Roberto Jefferson divulgou em detalhes a existência de um esquema


de corrupção de parlamentares que compunham a base aliada do governo Lula. Na
Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI da Corrupção, Jefferson confessou que havia
negociado pagamentos num total de 20 milhões de reais com dirigentes do PT em
nome do PTB, mas que recebera apenas R$ 4 milhões em dinheiro vivo numa primeira
e única prestação dos pagamentos feitos em malas de dinheiro. Suas denúncias
acabaram desencadeando uma enxurrada de revelações de fraude, lavagem
internacional de dinheiro, financiamentos ilegais de campanha, contratos
governamentais envolvendo empresas privadas, governo federal e fundo de pensão
ligado ao setor público.

Em julho de 2008, a Polícia Federal, que vinha fazendo investigações sobre o


banqueiro Daniel Dantas, revela que o Banco Opportunity – BO foi uma das principais
fontes de recursos do mensalão. Através do Banco Opportunuty Daniel Dantas fazia a
gestão da Brasil Telecon, controladora da Telemig e da Amazônia Telecon. As
investigações apontaram que essas empresas de telefonia injetaram R$ 127 milhões
68

nas contas da DNA Propaganda, administrada por Marcos Valério, o que, segundo a
Polícia Federal, alimentava o valerioduto, esquema de pagamento ilegal a
parlamentares.

Marcos Valério administrava 18 empresas e 150 contas bancarias. Seu grupo de


agências de publicidade em Belo Horizonte servia de intermediário para a lavagem de
dinheiro e pagamento de propina aos políticos da base aliada do governo Lula. Os
serviços prestados ao PT por Valério incluíam desde o financiamento da festa de posse
de Lula, em janeiro de 2003, até os honorários advocatícios de Aristides Junqueira para
defender o PT na investigação do assassinato de Celso Daniel, prefeito petista de Santo
André. Já na CPI, a ex-secretária de Valério, Fernanda Karina, revelou que ele enviava
malas de dinheiro em jatinhos particulares para serem distribuídos entre políticos em
Brasília. Às vezes mandavam tirar R$ 1 milhão do Banco Rural, revelou Karina. Além
disso, Marcos Valério ganhou um contrato de publicidade para a Câmara dos
Deputados depois que entregou R$ 50 mil em dinheiro a João Paulo Cunho (PT-SP),
presidente da casa.

Na primeira declaração de Lula sobre o caso, ele afirmou que assinava um


cheque em branco para o deputado Roberto Jefferson, e foi mais além, disse: “nós
temos de ser parceiros, e parceiro é solidário com seu parceiro”. A partir daí,
juntamente com o PT, passou a empreender esforços para evitar a abertura de uma
CPI, articulada pelo PFL e PSDB, para apurar as denúncias de corrupção.

Um dos argumentos mais fortes e racionais para impedir a CPI dos correios foi
a afirmação de que o governo já havia tomado todas as medidas para apurar os fatos,
entre elas , as seguintes: afastou o diretor financeiro dos correios, Maurício Marinho,
do cargo e mandou instalar sindicância interna; mandou instalar inquérito policial; e
suspendeu a licitação sob suspeita. Como retórica política, usou o seguinte argumento:
“CPI não existe, trata-se de uma estratégia do PSDB e do PFL para desgastar o governo
e antecipar o debate das eleições de 2006”.
69

Na tentativa de barrar a CPI dos correios, o governo e o PT fizeram várias


manobras. Nesse processo, o governo foi acusado de liberar verbas de emendas
parlamentares em troca da retirada da assinatura do requerimento que pedia a
instalação da CPI dos correios. Na véspera da criação da CPI, o governo liberou R$12,2
milhões do orçamento previstos para emendas parlamentares. Os partidos mais
contemplados com o recurso foram o PMDB, PC do B e o próprio PT (Jornal O Povo,
p.18, 28/05/2005). O PT chegou a ameaçar com punição os seus deputados que
assinaram o pedido de CPI. Tal ameaça levou o senador Cristovam Buarque (PT – DF) a
fazer um pronunciamento afirmando que entregaria o cargo de Presidente da
Comissão de Relações Exteriores do Senado caso houvesse punição para seus colegas
de partido. Além disso, Cristovam acusou José Dirceu de errar por não ter feito
filtragem das nomeações e indicações de cargos de confiança apresentadas pela base
aliada. No dia 27 de maio de 2005, José Dirceu divulgou uma nota oficial rebatendo as
declarações de Cristovam Buarque. Os deputados ameaçados chegaram a planejar uma
campanha junto a militantes do PT contra o título de “Traidores” que receberam da
direção nacional do PT, mas foram atropelados pelos efeitos provocados pelas
declarações de Roberto Jefferson sobre a existência de um “mensalão”.

As denúncias do deputado Roberto Jefferson ganharam credibilidade pública


em parte porque o líder do governo no senado, Aluízio Mercadante (PT – SP), o
ministro da coordenação política, Aldo Rebelo (PC do B – SP), e o ministro da
integração nacional, Ciro Gomes, acabaram confirmando que Jefferson já havia
anteriormente falado sobre o “mensalão”. Além disso, Mito Teixeira, ex-ministro das
comunicações, declarou: “Jefferson está omitindo fatos muito mais graves”. O Jefferson
diz que contou ao Lula e ele chorou; Mercadante diz que não houve choro, mas que o
fato havia sido mencionado sem as apresentações de provas.

As denúncias do deputado Roberto Jefferson deixaram o cenário político


perplexo e caótico: o ex-presidente Fernando Henrique chegou a falar em crise de
institucionalidade; o PT ameaçou instalar uma CPI para investigar a compra de votos
que o PSDB realizou por ocasião da votação da emenda de reeleição (1997) de FHC; e o
PFL chegou a falar em pedir impeachment do presidente Lula. E, naa terça-feira,
70

14/06/2005, Roberto Jefferson compareceu para depor no Conselho de Ética e Decoro


Parlamentar da Câmara e confirmou as denúncias sobre a existência de um esquema
de pagamento do “mensalão” pago pelo PT aos partidos da base aliada. Os mais
envolvidos nas denúncias de Jefferson são José Dirceu, Delúbio Soares, tesoureiro do
PT, Sílvio Pereira, secretário geral do PT, e José Genoíno Neto, presidente nacional do
partido, este acusado de negociar o repasse de vinte (20) milhões para campanha
municipal de 2004 do PTB, dos quais o deputado Jefferson recebeu quatro milhões em
mãos do publicitário Marcos Valério de Souza a pedido do PT.

No dia 8 de julho de 2005, agentes da Polícia Federal de São Paulo detiveram,


no aeroporto de Congonhas, José Adalberto Vieira da Silva, assessor parlamentar do
deputado estadual José Nobre Guimarães (PT – CE) e irmão do presidente nacional do
PT, José Genoino, com R$ 200 mil em uma valise e U$ 100 mil na cueca. A notícia caiu
como uma bomba, pois além de enfrentar o escândalo do mensalão, no qual
envolveria transporte de dinheiro em malas para compra de deputados, o PT estava
reunido em São Paulo, na mesma data em que Adalberto foi preso, para decidir o
futuro de José Genoíno, acusado de corrupção. Logo em seguida, o Ministério Público
no Ceará concluiu que o dinheiro transportado na cueca era propina proveniente de
um contrato de financiamento de R$ 300 milhões fechados entre o Banco do Nordeste
(BNB) e o consórcio ALUSA/STN – Sistema de Transmissão do Nordeste.

Numa reunião extraordinária, realizada pela Comissão Executiva Nacional do PT,


no dia 8/06/2005, foi decidido divulgar uma nota que diz o seguinte:
“Neste momento de dificuldades políticas, em que alguns setores da oposição
procuram criar artificialmente uma crise institucional, o PT se declara sereno e
tranqüilo e convicto do pleno funcionamento das instituições democráticas e de
que os órgãos competentes apurarão todas as denúncias e que, inclusive,
estabelecerão a inverdade das falsas acusações. O PT lutará, com sobriedade e
responsabilidade, para que a democracia não se desvie do seu curso de
aperfeiçoamento e consolidação e agirá para impedir que a CPI se desvie das suas
funções para se transformar num instrumento de ataque ao governo Lula e de
agressão à governabilidade do país”.
71

Na tarde de quinta-feira, 16/06/2005, José Dirceu fez um pronunciamento de


despedida da Casa Civil, e afirmava: “eu não me arrependo de nada que fiz no governo
do presidente Lula. Tenho as mãos limpas, o coração sem amargura e com a mente
colocada naquilo que sempre lutei, que é pelo Brasil, pelo povo brasileiro. Por isso saio
de cabeça erguida do ministério”. Para o lugar de José Dirceu, foi indicada Dilma
Rousself, ministra de Minas e Energia. No domingo, 19/06/2005, o Data Folha publicava
uma pesquisa nacional que mostrava que 65% dos petistas acreditavam em corrupção
no governo, e 77% criam que o presidente Lula tinha alguma responsabilidade no
caso.

No Programa Roda Viva, da TV cultura do dia 20/06/2005, Roberto Jefferson foi


o entrevistado e esclareceu que os motivos de suas denúncias se deviam ao fato de
José Dirceu, o comandante do maior esquema de corrupção que ele já havia visto, ter
pedido para a Agência Brasileira de Informação – ABIN armar o vídeo das propinas dos
correios como forma de incriminá-lo e de lhe transferir a culpa por um processo de
corrupção comandando pela Casa Civil e por parte da cúpula nacional do PT.

Alguns dias depois, outra revelação agravaria os problemas de Lula. Duda


Mendonça, criador da campanha “Lulinha, paz e amor”, encontrou dificuldades para
ser pago depois da eleição. Sua sócia, Zilmar Fernandes, em 11 de agosto, foi
convocada para depor diante da CPI. Mas o próprio Duda Mendonça apareceu de
surpresa e passou a revelar que os R$ 10,5 milhões da conta de R$ 25 milhões que ele
cobrou pela campanha de mídia foram pagos ilegalmente, num esquema de lavagem
de dinheiro escondido em outros países. Ele contou que para receber o dinheiro que
lhe era devido, foi instruído a abrir uma conta sob o nome de Dusseldorf no
BankBoston nas Bahamas. Disse Duda Mendonça, na CPI, com transmissão nacional
pela televisão: “era dinheiro de caixa dois e nós sabíamos. A gente não é bobo. Mas ou
recebíamos assim, ou não recebíamos nada. E não tinha mais poder de barganha, uma
vez que a campanha já havia terminado.”
72

Desde que passou a enfrentar a maior crise política da sua história, a crise do
mensalão, o PT criou algumas falácias que não suportam um ligeiro confronto com os
fatos produzidos por suas práticas no comando administrativo da coisa pública no país:

A primeira falácia: “o governo não rouba e não deixa roubar”. Nessa retórica, o
PT aparece como o guardião da ética, mas não precisamos recorrer aos fatos vindo à
tona, com a denúncia sobre a existência do “mensalão”, para que tal falácia caísse por
terra, bastava rever alguns casos anteriores. O caso Benedita da Silva, ex-ministra
acusada de usar o dinheiro público, para fins privado ao participar na Argentina de um
evento evangélico. Diante do caso, a postura da direção do PT foi que a imprensa
estava fazendo uma tempestade num copo de água. A ministra só caiu devido à
pressão da opinião pública e pelo fraco desempenho de sua pasta. O presidente do BB,
Cássio Casseb, acusado de evasão de divisas e de gastar dinheiro público na aquisição
de ingresso de uma festa cuja renda era destinada à compra de uma sede para o PT no
DF. O ex-ministro, Humberto Costa, acusado de conduzir de forma irregular a compra
de hemoderivados no Ministério da Saúde. Luiz Candiota, diretor de política monetária
do Banco Central, acusado de sonegação fiscal.

Mais do que ser conivente com o roubo e d fazer uso do tráfego de influência, o
governo Lula legitimou a corrupção através da Medida Provisória nº 207, de
13/09/2004, que elevou o Presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, à condição
de Ministro de Estado para que ele passasse a ter foro privilegiado, não podendo ser
julgado criminalmente por instâncias inferiores ao Supremo Tribunal Federal – STF. A
Medida Provisória foi motivada porque Henrique Meirelles enfrentava acusação de
crime contra o sistema financeiro e evasão de divisas.

A segunda falácia: “tem gente incomodada com o sucesso do governo Lula”.


Sabemos que a especulação financeira, os donos de bancos, os controladores de
fundos de pensões, os exportadores e os agronegócios sempre apoiaram a política
econômica do governo. Um governo frouxo que não comprou conflitos com o
latifundiário, que não peitou banqueiros, que aprovou os transgênicos, que não pôs os
que praticam crime ambiental na cadeia, é um sucesso que incomoda a quem? Será
73

que os catadores de lixo, os sem-terra, os sem-teto, os sem-universidade, os


ecologistas, os funcionários públicos e os desempregados estavam incomodados com o
sucesso dos dois primeiros anos de governo Lula?

A terceira falácia: “existe uma onda de conspiração contra o governo com o


intuito de antecipar o debate eleitoral de 2006”. Se a segunda falácia é um delírio, a
terceira é um caso de esquizofrenia. Desde o primeiro ano de governo que o Brasil
sabe que o PT fala em reeleição do Lula, e que tal reeleição, antes do caso “Valdomiro
Diniz”, era tida como líquida e certa. O PT, naquele momento, era o único partido que
tinha candidato para eleição de 2006. Portanto, se alguém antecipou a agenda de
eleições de 2006, foi o PT. Mesmo diante da “crise do mensalão”, o PT se comportava
como um Prometeu Acorrentado aos conservadores (PP, PL, PTB e PMDB), de forma
utilitária, para garantir a reeleição de Lula e a tal de “governabilidade”.

A quarta falácia: “o governo Lula é um governo republicano”. O Brasil já foi a


“república do café com leite”, a “república das bananas”, a “república dos paulistas”, “a
república dos marajás”, “a república das alagoas”. Com o governo Lula, passamos a
viver a “república petista”, em torno da qual já gravitou uma constelação de pseudo-
republicanos: Marcos Valério, avalista do PT; Roberto Jefferson, parceiro da base aliada
para quem Lula disse assinar cheque em branco; Delúbio Soares, Sílvio Pereira, José
Genoíno e José Dirceu, os estrategistas da república, os engenheiros que fundiram o
partido (interesses privados) com administração (coisa pública).

No dia 21 de junho de 2005, MST, CUT, ABONG, UNE, CPT e outros movimentos
sociais entregaram ao governo Lula e divulgaram em Brasília uma “ Carta do Povo
Brasileiro” contra a desestabilização do governo e contra a corrupção: por mudanças
na política econômica, pela prioridade nos direitos sociais e por reformas políticas
democráticas. A carta propôs ao governo Lula, ao Congresso e à sociedade civil as
seguintes medidas:
74

1 – Realizar e apoiar uma ampla investigação de todas as denúncias de


corrupção que estão sendo analisadas no Congresso Nacional e punir os
responsáveis.
2 – Excluir do governo federal setores conservadores que querem apenas
manter privilégios, afastar autoridades sobre as quais paira qualquer suspeita e
recompor sua base de apoio, reconstruindo uma nova maioria política e social em
torno de uma plataforma anti-neoliberal.
3 – Realizar mudanças na política econômica no sentido de priorizar as
necessidades do povo e construir um novo modelo de desenvolvimento. A
sociedade não suporta mais tamanhas taxas de juros, as mais altas do mundo, sob
o pretexto de combater a inflação. A sociedade não sustenta a manutenção de um
superávit primário, que apenas engorda os bancos. Os recursos públicos têm de
ser investidos, prioritariamente, na garantia dos direitos constitucionais, entre
eles, emprego, salário-mínimo digno, saúde, educação, moradia, reforma agrária,
meio ambiente, demarcação das terras indígenas e quilombolas.
4 – Realizar, a partir do debate com a sociedade, uma ampla reforma política
democrática. Uma reforma que fortaleça a democracia e dê ampla transparência
ao funcionamento dos partidos políticos e aos processos decisórios. Por isso,
somos favoráveis à fidelidade partidária, ao financiamento público exclusivo das
campanhas, à exclusão das cláusulas de barreira, e à apresentação de
candidaturas em listas fechadas com alternância de gênero e etnia, obedecendo
critérios de representação política pluriétnica e multiracial. Queremos também a
imediata regulamentação dos processos de democracia direta, que implica o
exercício do poder popular mediante plebiscitos e referendos, conforme proposta
apresentada pela CNBB e a OAB ao Congresso Nacional.
5 – Fortalecer os espaços de participação social na administração pública e criar
novos espaços populares nas empresas estatais e de economia mista, viabilizando
o controle social e real compartilhamento do poder.
6 – Fortalecer as iniciativas locais em favor da cidadania e da participação e da
educação popular, como por exemplo os comitês pela ética na política, conselhos
de controle social, escolas de formação política.
7 – Enfrentar o monopólio dos meios de comunicação, garantindo sua
democratização, inclusive através do fortalecimento das redes públicas e
comunitárias.

A resposta do governo Lula veio no dia 24/06/2005, quando Lula convidou o


PMDB para compor um governo de coalizão. O PMDB foi convidado a desempenhar
um papel fundamental na governabilidade do país, o partido de Michael Temer, Renan
75

Calheiros e José Sarney passou a ter um maior controle sobre os ministérios. Isso só
confirma o que José Genoíno havia dito (FSP-10/06/2005): “governamos com aliados.
Não é um caso isolado que vai contaminar essa aliança”. A aliança do PT não era com a
sociedade civil, a aliança tinha como foco garantir a reeleição do Lula. Quem faz
oposição, bem como quem governa, não o faz com base em projeto político para o
Brasil, mas na defesa de seu projeto de poder.

O PT, por várias vezes, diante do cenário de crise, acusou haver uma
conspiração das elites em curso no país para derrubar o governo Lula. Todavia, Norman
Gall (2005, p.6) nos esclarece que:
Empresários, banqueiros e líderes políticos da oposição, de maneira quase unânime,
se colocaram contra um impeachment do presidente, embora muitos digam que
existiam bases legais de sobra para isso. Ao afastar a ameaça do impeachment, a
oposição renunciou ao uso do principal instrumento de pressão contra Lula.
Enquanto isso, a economia segue bem, com a inflação caindo. As finanças públicas
melhoravam e as contas internacionais registraram superávits crescentes. Os bancos
e os fornecedores estrangeiros de Hot Money obtiveram lucros enormes com os
empréstimos ao governo com as taxas de juros reais mais altas do mundo, 14%
acima da inflação. Os homens temiam que a queda de Lula também assinalasse a
queda do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, como o pau que mantém o circo de
pé.

Maquiavel diz que além da virtude é preciso sorte para governar. Lula parece
ter tudo isso e algo a mais, pois se os representantes do mercado, mesmo diante de
tantos escândalos, apoiaram Lula enfraquecendo a vontade da oposição de instalar um
processo de impeachment, o homem que dava segurança de lucro fácil aos setores do
mercado, o ministro da fazendo Antonio Palocci, viria a cair quase um ano depois, mas
a conjuntura já era bem mais favorável ao governo.

A queda de Antonio Palocci do Ministério da Fazendo teve inicio quando


Francenildo Santos Costa, caseiro de uma mansão alugada por assessores de Palocci,
declarou, numa entrevista ao Jornal o Estado de São Paulo (em 14.03.2006), que na
mansão acontecia reuniões para organizar a distribuição de dinheiro e festas com
garotas de programas. Disse ainda ter visto malas e maços de dinheiro na mansão e
76

que testemunhou o motorista da casa entregar um envelope cheio de dinheiro para


Palocci no estacionamento do Ministério da Fazenda. No dia 16 de março de 2006,
Francenildo confirma tudo o que declarou no jornal na CPI dos Bingos. No dia seguinte,
a revista Época divulga o extrato da conta bancária do caseiro onde ele aparece como
beneficiário de R$ 38.800,00. A revista sugere que o caseiro foi pago para fazer as
denúncias contra o ministro da fazenda. No mesmo dia, Francenildo apresenta recibos
bancários e explica que recebeu o dinheiro de um acordo com o seu pai biológico para
entrar com um processo de paternidade. Todavia, o fato de a revista ter tido acesso e
divulgado o extrato da conta bancária configurou crime de quebra de sigilo bancário
previsto na Constituição. Diante do fato, o senhor Jorge Mattoso, presidente da Caixa
Econômica Federal – CEF, banco onde o caseiro tinha a conta, colocou o seu cargo à
disposição do presidente Lula. Acusado de ser o principal mandante 25 da autorização
para quebra do sigilo bancário, em 27 de março, Antonio Palocci pede afastamento do
cargo e é substituído por Guido Mantega.

Uma análise das políticas sociais do governo Lula, no período de 1992 a 2002,
nos foi apresentada pela professora de Ciência Política da USP, Maria Hermínia Tavares
de Almeida (2002), na qual ela constata o seguinte:

“O analfabetismo foi reduzido; melhoraram o acesso e os níveis de educação; a


mortalidade infantil baixou; diminuiu também a proporção de pobres e indigentes
(...) Em resumo, quando as eleições nacionais entregaram o governo federal ao PT
e a seus aliados, o país implementara parte importante da agenda de reformas do
sistema de proteção herdado do regime autoritário, lograra êxitos limitados contra
a pobreza, melhorara as condições da educação e saúde e fracassara na redução
das desigualdades (...) Até o momento, a reforma da previdência, o Fome Zero e o
Bolsa-Escola (implantado no início de 2004) constituíram as principais iniciativas
do governo Lula na área social. O Programa Primeiro Emprego, destinado a
incentivar o emprego de jovens pobres e lançado pelo Ministério do Trabalho em
2003, não conseguiu sair do papel, enquanto as políticas de saúde foram

25
Em 1º de abril de 2006, a revista Veja n.º. 1950, cuja capa denuncia o “ golpe sujo”, afirma que a CEF
chegou a oferecer um milhão de reais para que alguns de seus funcionários assumissem a culpa pela
quebra do sigilo bancário do caseiro. A revista ainda, afirma que Jorge Mattoso recebeu pessoalmente de
Palocci a ordem para quebra do sigilo bancário de Francenildo. A ordem havia sido dada na tarde do dia
16 de março, quando, numa sala do Planalto, Palocci assistia, pela TV, o depoimento do caseiro na CPI
dos Bingos.
77

marcadas por forte continuidade em relação ao governo anterior (..) Ao mesmo


tempo, a ênfase da atividade governamental parece ter se deslocado das políticas
universalizantes e habilitadoras, como educação e saúde, para os programas
assistenciais aos mais pobres, como o bolsa-família. Nesse sentido, a atual política
social em parte se distingue e se afasta do curso seguido desde meados dos anos
1980, aproximando-se das concepções mais limitadas de proteção social.”

É óbvio que os técnicos do governo podem demonstrar com dados estatísticos


que os investimentos foram ampliados para algumas áreas sociais, e isso é verdade,
mas esse é um fenômeno que vem ocorrendo desde a Constituição de 1988 no país e
está relacionado ao processo de institucionalização das políticas públicas iniciado com
o processo de democratização do país. Foi a partir da mobilização que a sociedade civil
conseguiu dar às políticas públicas uma âncora institucional. Na área da saúde com o
SUS, na assistência social com a LOAS, na educação com a LDB, na proteção da infância
e da adolescência com o ECA e no orçamento público o trio: PPA, LDO e LOA.

No quinto volume do Atlas da Exclusão Social, fruto de uma pesquisa


apresentada no V Fórum Social Mundial e coordenada por Márcio Pochmann,
professor de economia da Unicamp, constata-se que o Brasil precisa investir, até o ano
de 2020, sete trilhões de reais nas áreas de educação, saúde, habitação, previdência
social, reforma agrária, emprego, informática e cultura para que possa reverter o
quadro de exclusão social em curso. Os investimentos sociais realizados pelo governo
Lula, segundo Pochmann, são insuficientes para enfrentar a dívida social do país.
Naquela época, o governo federal investia 20% do BIP em programas sociais, quando
deveria investir 47,6%.

O governo Lula e o PT, por não conseguirem justificar suas ações com base
numa ética de princípios e nem de responsabilidade republicana, transformaram a
instrumentalidade em um valor: o compromisso com as mudanças sociais se
transformou num utilitarismo. A maioria dos parlamentares petista 26 se moldou ao

26
Em maio de 2006, a Polícia Federal deflagrou a operação Sanguessuga para desmontar um esquema de
irregularidades em licitações na área de saúde que envolvia a compra de ambulâncias para prefeituras.
Uma CPI foi instalada e investigou 90 parlamentares e 25 ex-parlamentares,e, ao final dos trabalhos, a
78

mesmo comportamento dos conservadores que sempre sustentaram a base de


dominação econômica, política e cultural no país. Assim, o PT foi deixando de ser uma
referência política e moral para a sociedade, um vazio foi se ampliando e o espaço para
a novidade política foi sendo ampliado. Todavia, o vazio não foi ocupado, como
nenhuma opção se apresentou, para maioria da população, como o melhor caminho, o
povo reelegeu Lula presidente.

Resultado do primeiro turno ocorrido em 1 de outubro de 2006

CANDIDATO COLIGAÇÃO VOTOS %


Lula PT, PRB e PC do B 46.663. 365 48,6
Geraldo Alckmin PSDB e PLF 39.968.369 41,6
Heloísa Helena PSOL, PSTU e PCB 6.575.393 6,8
Cristovam Buarque PDT 2.538.844 2,6
Ana Maria Rangel PRP 126.404 0,13
José Eymael PSDC 63.294 0,07
Luciano Bivar PSL 62.064 0,06
Rui Costa Pimenta PCO - 0,00
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral - TSE

As eleições aconteceram em meio a uma nítida reorganização das forças política


no país. Pela primeira vez o PSOL, formado por militantes expulsos e saídos do PT,
disputou a presidência da república. O PT foi para as urnas tendo que enfrentar uma
série de denúncias de corrupção em relação às suas práticas no governo e de ter traído
seus ideais históricos. A candidata do PSOL, senadora Heloísa Helena, bateu pesado no
PT e em Lula. Alguns intelectuais e analistas políticos de vários periódicos sustentaram
a tese de que o PT havia se deslocado para o campo da social-democracia. Além disso,
nas eleições de 2006, passou a vigorar a regra da verticalização, pela qual os partidos
que faziam alianças nacionais não podiam fazer arranjos diferentes nas disputas
estaduais. O objetivo da verticalização, segundo a Justiça Eleitoral, era o de garantir
uma maior coerência ideológica entre os partidos.

CPI dos Sanguessugas recomendou a cassação de 72 parlamentares. Do Ceará, José Airton (PT) estava
entre os mais envolvidos.
79

As eleições parecia que seriam resolvidas a favor de Lula logo no primeiro


turno, quando, na reta final surgiu o “escândalo dos aloprados”. A Polícia Federal
aponta Hamilton Lacerda, assessor do senador Aluízio Mercadante (PT – SP), de
fornecer uma mala com R$ 1,7 milhão para compra de dossiê ( planilhas, fotos e fitas
de vídeo) contra tucanos. Pressionado pela cúpula petista, Lacerda pediu desfiliação
logo após a PF apreender o dinheiro em um hotel de São Paulo em setembro de 2006.
Lula pediu explicações sobre a origem do dinheiro para compra do dossiê ao partido e
afastou Ricardo Bezzoine da coordenação de sua campanha nomeando Marco Aurélio
Garcia como novo coordenador. Com a vitória no primeiro turno frustrada pelo caso, o
presidente Lula chamou Lacerda e os demais envolvidos no caso de aloprados.

Resultado do segundo turno ocorrido em 29 de outubro de 2006

CANDIDATO COLIGAÇÃO VOTOS %


Lula - José Alencar PT, PRB e PC do B 58.293,042 60,8
Geraldo Alckmin – José Jorge PSDB e PLF 37.543,178 39,2
Fonte – Tribunal Superior Eleitoral - TSE.

Lula se apresentou à reeleição através da Coligação Lula de Novo com a Força


do Povo, composta pelo PT, PRB e PC do B. No Programa de Governo 2007-2010, Lula
diz: “o nome do seu segundo mandato será desenvolvimento com distribuição de renda
e educação de qualidade”. Coordenado por Marco Aurélio Garcia, homem de confiança
de Lula, o Programa de Governo afirma que no primeiro mandato o governo Lula
apontou o caminho do desenvolvimento, caberá ao segundo mandato avançar mais
rumo ao novo ciclo do desenvolvimento. O compromisso que assume Lula, agora, é
com:

um desenvolvimento de longa duração, com redução das desigualdades sociais e


regionais, respeito ao meio ambiente e à nossa diversidade cultural, emprego e
bem-estar social, controle da inflação, ênfase na educação, democracia e garantia
dos direitos humanos, presença soberana no mundo e forte integração continental (
2006,p.7)
80

A grande polêmica sobre o processo de desenvolvimento no Brasil tinha como


questão axial o diagnóstico da crise vivida pelo país desde os anos de 1970. Para os
setores liberais, a causa da crise estava centrada no processo exagerado de intervenção
do Estado no mercado, no desperdício de recursos públicos por parte do setor
produtivo estatal, na incapacidade do governo em gastar bem os recursos destinados
ao social, bem como na suscetibilidade da máquina administrativa aos processos de
corrupção investidos tanto por funcionários públicos como pelo setor privado. Para os
liberais, a retomada do desenvolvimento passava pela adoção de uma política de
privatização do setor produtivo estatal e pela implementação de um conjunto de
ajustes e reformas estruturais com objetivos de criar condições para uma integração do
país no mercado internacional. Para o PT, a causa da crise estava nas tentativas dos
governos passados para estabilizar os preços à custa da remuneração do trabalho,
estreitando o mercado interno, fragilizando as finanças públicas e estrangulando o
financiamento público e privado.

O desenvolvimento sustentável deveria ser implementado através de medidas


capazes de redistribuir renda, resgatar a dívida social e por um processo de integração
responsável no mercado internacional. A retomada do crescimento econômico deveria
ser impulsionada pelo alargamento da demanda interna, e o processo de integração
com o mercado internacional deveria estar necessariamente subordinado à
distribuição de renda e à expansão dos serviços sociais. Para que haja um processo de
desenvolvimento econômico e social, o programa de campanha do PT dizia que era
preciso radicalizar a democracia: “ o propósito de radicalizar a democracia faz com que
o PT coloque a participação popular como elemento tão importante quanto os
mecanismos da democracia representativa”.

Uma estratégia de Lula durante todo seu mandato foi a de deslocar, junto à
sociedade, a sua imagem dos escândalos e do seu partido. Diante dos escândalos, Lula
sempre afirmou não saber nada, afirmou que foi traído pelo PT, afirmou que um pai não
sabe tudo que passa em casa com seus filhos. Sua estratégia deu tão certo que, em 12 de
julho de 2005, pesquisa divulgada pela CNT - Sensus revelava que 45,7% dos
81

entrevistados achavam que Lula não tinha conhecimento do mensalão, e apenas 33,6%
achavam que ele sabia. Já no final de seu primeiro mandato, Lula conseguiu um feito
extraordinário: pesquisa do IBOPE, realizada entre 7 a 10 de dezembro de 2006, mostra
que a avaliação da administração entre setembro a dezembro, entre boa e ótima, subiu
de 49% para 57%; ruim e péssima caiu de 16% para 13% no mesmo período. Nessa
mesma pesquisa, Lula obteve média 7 (sete) pelo seu desempenho. Com esse resultado,
Lula tornava-se o presidente mais bem avaliado na história do Brasil. Além disso, a
mesma pesquisa registrava que para 59% dos entrevistados o segundo mandato de Lula
seria bom ou ótimo.

O grande aprendizado que ficou foi que, na disputa de poder, ganhar espaço
significa criar fatos que alimentem as condições para emplacar um candidato com reais
possibilidades de derrotar quem está no governo; e, quem está no governo, isolar a
oposição. O PT conseguiu isolar a oposição, conseguiu usar dos mecanismos
tradicionais e do marketing político para ter sintonia com a sociedade. Nesse sentido,
quem apostou que, com a vitória do PT, a cultura política iria mudar, ficou , além de
perplexo, decepcionado.

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82

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Paulo, 2006.

SADER, Emir. A Vingança da História. Boitempo Editorial, São Paulo, 2003.


83

DEIXA O HOMEM TRABALHAR

A ambição pessoa de Lula de chegar ao poder e de evitar uma quarta derrota


consecutiva o colocou na contramão do que estava escrito nas estratégias de
campanha elaboradas pelo partido e no seu programa de governo. Sua estratégia para
ser o condutor da direção política no país o levou a uma aliança compromissada com o
projeto dos setores econômicos – do setor financeiro, do agronegócio, da construção
civil e do setor de serviços – para neutralizar as resistências políticas compostas por
interesses econômicos difusos e para manter a economia fora do alcance de pressões
sociais. Nesse sentido, Lula, controlando o PT contra a ala esquerda do partido, abre
mão da mobilização popular para implantação de um projeto social-democrata
mitigado no país. Num balanço sobre os dois mandatos do governo Lula, dois petistas
de carteirinha, Emir Sader e Marco Aurélio Garcia (2010, p.27), descrevem dois
momentos traumáticos da relação de Lula com sua base de apoio:

O primeiro deles ocorreu quando houve a reforma da previdência, praticamente a


primeira iniciativa política do governo que se chocou diretamente com as posições
do movimento social organizado. Isso se deu nos marcos do ajuste fiscal (...) O
segundo momento foi a crise de 2005, em que, sob acusações de uso de recursos
para compra de apoio de aliados, o governo chegou ao risco de sofrer
impeachment. Isso sem ter sequer saído do modelo econômico herdado.

A estratégia de adoção pragmática de um projeto social-democrata tinha como


objetivo consolidar uma longa hegemonia do lulismo no país, e Lula, mais do que o PT,
compreendeu que a estabilidade monetária, construída pelo governo FHC 27, estava
sedimentada e legitimada no imaginário da população brasileira. Assim, sua opção foi a

27
Para os petistas Emir Sader e Marco Aurélio Garcia (2010, p.27), “ o governo Lula manteve alguns
elementos das políticas do governo anterior (...) Na primeira fase, primaram os elementos de
continuidade, mantendo-se um rígido ajuste fiscal, que possibilitou os superávits primários e a
independência de fato do Banco Central...Manteve tanto a política econômica financeira como a política
agrícola tradicional.”
84

de combinar a continuidade da política econômica do governo anterior, agradando as


classes médias e o mercado, com a potencialização das políticas compensatórias
implantadas por FHC de forma fragmentada como o programa Bolsa Família,
estruturado como um grande programa de inclusão social das camadas mais pobre e
como um dinamizador do mercado interno.

Durante o primeiro mandato, como já foi visto, a insuficiência de representação


do PT no Congresso Nacional, a aliança com uma base parlamentar composta de
partidos conservadores (PP, PTB, PL) de baixa densidade eleitoral e política, o
loteamento dos cargos a aliados políticos sem compromisso com um programa de
mudanças e a corrupção pareciam levar ao fracasso a estratégia intuída e conduzida
por Lula com o voto de confiança do PT. Todavia, o governo, numa combinação de virtú
e fortuna, virou o jogo e se reelegeu , consagrou-se como mito.

A reeleição de Lula, que parecia impossível depois do escândalo do mensalão,


pode ser explicada pela coexistência de um conjunto de fatores que, somados sem
seus aspectos positivos, foram suficientes para garantir a continuidade de Lula no
poder. Entre os fatores destaco:

1.º - O programa Bolsa Família, cujo objetivo anunciado era ajudar a tirar da
miséria parte da população em situação de risco por meio do mecanismo da segurança
alimentar. O programa atingiu, em junho de 2006, 12 milhões de famílias; e, entre 2003
a junho de 2006,28 o governo investiu 11 bilhões de reais no programa;

2.º - A multiplicação de formas de créditos populares com desconto em folha.


Em junho de 2006, o crédito consignado representava 46,2% das operações de crédito
pessoal realizadas no país por trabalhadores, aposentados e pensionistas;

3.º - Uma conjuntura internacional favorável e de valorização das commodities


brasileiras, o que consolidou o apoio dos setores conservadores ligados ao

28
Todos os dados dos fatores aqui apresentados têm como fonte o caderno: Mais Desenvolvimento. Uma
publicação da Casa Civil da Presidência da República, ano III, número 7, junho de 2006.
85

agronegócio, como os ruralistas, ao governo e vice-versa. As exportações de


commodities, em março de 2006, registraram o montante de 44,6 bilhões de dólares,
colocando o setor como responsável por 33% do produto interno bruto – PIB;

4.º - O deslocamento de Dilma Rousseff, com a queda de José Dirceu, do


Ministério das Minas e Energias, para a Casa Civil, dando uma nova ofensiva ao
governo e estruturando um conjunto de ações estratégicas do ponto de vista do
desenvolvimento econômico e da articulação política das demandas dos aliados;

5.º - A implantação de uma política de elevação do salário mínimo recompondo


as perdas ocorridas no período de inflação alta. Tal medida fez parte de uma política de
transferência de renda que ajudou a dinamizar o mercado interno. O aumento
acumulado do salário mínimo real foi de 11,7% entre 2003-2005 e de 24,7% entre
2000-2008;

6.º - A apropriação de uma política desenvolvimentista deixou o PSDB sem


bandeira política e sem um eixo propositivo para se articular como oposição. Se PT,ao
adotar o projeto desenvolvimentista do PSDB originário de fundação, obteve êxito, o
PSDB, ao tentar imitar a prática do denuncismo do PT como oposição, não logrou êxito.
Todavia, cabe ressaltar que o elemento mais decisivo para reeleição de Lula foi a sua
popularidade consolidada entre as camadas pobres beneficiadas pelo programa Bolsa
Família. Nesse setor Lula foi blindado; os beneficiados não acreditavam, e muitos ainda
não acreditam, que Lula estivesse metido em corrupção, e ,se a corrupção existia no
governo, ele não sabia.

A campanha para reeleição de Lula foi marcada por uma orientação tática e
eleitoral; o PT colocou a seguinte questão como foco nas eleições de 2006: o Brasil
precisa decidir se o capitalismo segue sendo administrado por um projeto de esquerda
ou se retornará a um projeto neoliberal. Nesse sentido, o que marca a diferença entre
os capitalistas de esquerda e os de direita é a concepção de Estado. Com os capitalistas
de esquerda, temos um Estado que intervém na economia, temos um Estado que
amplia os serviços públicos; com os de direita, temos um Estado mínimo através do
86

avanço das privatizações. Portanto, o que tivemos com a reeleição de Lula (2006) e a
eleição de Dilma (2010) foi uma disputa de hegemonia entre capitalistas de esquerda e
de direita, ou seja, tivemos uma disputa de poder e não de projeto sistêmico de
sociedade. A esquerda capitalista, que saiu vitoriosa, construiu sua campanha com a
seguinte estratégia: caracterizar a direita de privatista e mostrar para a população um
balanço positivo do governo Lula como sendo superior ao do governo FHC. Durante a
campanha, o governo FHC foi caracterizado como neoliberal e condutor de uma
nefasta política de privatizações29. Todavia, apesar de considerar as privatizações como
sendo uma política criminosa por parte do governo tucano, o PT e o governo Lula
nunca falaram sobre política de desprivatização e nem tomaram nenhuma iniciativa
para investigar as formas como se deram as transações privatizantes.

Quando era oposição, o PT, através da deputada federal Drª Clair (PT-PR) fez
parte da Frente Parlamentar pela defesa do patrimônio público e integrou a CPI das
privatizações. A deputada Clair foi uma das autoras de uma das ações populares que
pedia a anulação do leilão da companhia Vale do Rio Doce ocorrido no ano de 1997. Já
em 2007, durante a semana da pátria, foi realizado um plebiscito popular com o lema
“ A Vale é Nossa”, uma reedição da campanha “ O Petróleo é Nosso”. O plebiscito foi
antecedido de um ano de campanha de sensibilização popular em torno da proposta
de reestatização da empresa. A campanha foi organizada pelo MST, CUT, ABONG,
pastorais sociais, Via Campesina e setores do PT. A reestatização da Vale foi aprovada
na consulta popular, mas o governo Lula fez de conta que tal mobilização não existiu.

Durante o segundo turno das eleições de 2006, logo após o escândalo dos
aloprados, o marqueteiro da campanha, João Santana, adotou como mote, na reta final
o seguinte bordão: “ deixa o homem trabalhar”, retirado da música que o forrozeiro
Lázaro Piauí havia feito para campanha. O jingle de Lázaro descreve o presidente como
humilde, carinhoso, predestinado e defensor do povo. A letra não cita o PT e ressalta: “
olha Lula aí de novo. Tá tudo andando direitinho. Deixa o homem trabalhar”. O

29
José Prata Araújo (2006, p. 13) registra que , nos dois governos de FHC, tivemos um “ amplo programa
de privatizações nas áreas de telefonia, mineração, siderurgia, energia elétrica, bancos, ferrovias,
produção de aviões, saneamento básico etc., que implicou a transferência para o setor privado de uma
importante fatia do patrimônio público, em torno de US$ 105 bilhões ”.
87

processo de blindagem do Lula passava de forma envergonhosa, pela desvinculação do


Lula do próprio partido, querendo demonstrar que se a corrupção campeou no
governo foi por culpa dos aloprados do PT e não do predestinado Luís Inácio Lula da
Silva.

Assim, a reeleição de Lula é um mérito muito mais dele do que do PT. É muito
significativo que o primeiro encontro do presidente com dirigentes do PT, depois da
vitória, foi para pedir que o partido não lhe criasse problemas, que evitasse cobranças
públicas de cargos, bem como críticas a sua política econômica. Lula foi muito mais
além ao diminuir a participação do PT nos ministérios durante o seu segundo
mandato. No primeiro mandato, o PT havia ocupado 21 dos 31 ministérios. Já o PMDB,
que no início do mandato ficou sem ministério e depois chegou a ocupar dois, passou a
ocupar seis e sete cargos no primeiro escalão.

Lula inicia o segundo mandato querendo mostrar trabalho. No dia 22 de janeiro


de 2007, lançou o programa de aceleração do crescimento – PAC, um conjunto de
medidas visando acelerar o ritmo do crescimento econômico no Brasil. O PAC é uma
política de estruturação do processo de desenvolvimento econômico pensado pela
equipe do governo e foi lançado com uma previsão de investimentos no valor de 500
bilhões de reais ao longo de quatro anos. Com o programa, o governo previa um
crescimento do PIB de 4,5% para o ano de 2007 e de 5% ao ano até o final de 2010.
Além do PAC, foi lançando o Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE, cujo
objetivo anunciado era o de nivelar a qualidade da educação brasileira ao padrão dos
países desenvolvidos até o ano de 2021.

Na economia, a melhor notícia foi o retorno do bom desempenho de vários


setores, com destaque para a agropecuária, cujo desempenho foi puxado pela
demanda internacional de commodities e pelo aumento de consumo interno de
alimento, que ocorreu graças à recuperação da renda da população e pela expansão de
créditos. Houve melhorias significativas também no setor industrial, com recordes na
produção e venda de automóveis, e no setor de construção civil.
88

O início do segundo mandato foi de glória para o presidente Lula, ele chegou a
afirmar que sua política econômica seria bem diferente, que seria necessário destravar
o país, para ele: “destravar o país significa a gente ter uma lógica econômica com
menos tensão do que tivemos no primeiro mandato”.

O ano de 200830 foi singular para o Brasil e de temor para o mundo, pois a crise
estrutural do capitalismo explode em forma de crise do sistema finan

ceiro internacional originada nos Estados Unidos. Aqui, o aquecimento da demanda e


das atividades econômicas ganhavam embalo, parecia que havia chegado o tão
anunciado espetáculo do crescimento, que obrigava a equipe econômica a monitorar
os cumprimentos das metas de inflação, obrigando também o Banco Central a apertar
a política monetária através da taxa de juro. Com a explosão da crise, enquanto o
mundo todo caiu na perplexidade, Lula anunciava que a crise no Brasil não passaria de
uma marolinha.

Frente à explosão da crise31, o governo Lula procurou legitimar uma nova


agenda econômica que se adequasse ao novo cenário internacional. Com essa nova
agenda, o governo Lula passou a se diferenciar da política econômica do governo FHC.
Das medidas tomadas para o enfrentamento da crise do sistema financeiro
internacional, destaco entre outras, as que os economistas consideram de maior
impacto: leilão de dólares, num valor de 500 milhões, com o objetivo de assegurar o
valor do dólar que chegou a oscilar entre 5% a 11%; aumento de financiamento para
produção agrícola, o BB liberou 5 bilhões de reais para financiamento da safra agrícola;
liberação para pequenas e médias empresa e o setor automotivo de 6,9 bilhões de

30
O ano de 2008 teve início com o escândalo dos cartões corporativistas, o qual derrubou a ministra da
promoção da igualdade racial, Maltide Ribeiro, e obrigou o ministro dos esportes, orlando Silva, a
devolver 32 mil reais aos cofres públicos. A filha de Lula, Lurian Cordeiro, é acusada de gastar 55 mil
reais na compra de pneu e material de construção usando o cartão corporativo. O caso dos cartões
corporativos chegou ao ponto mais quente, quando, para intimidar a oposição que ameaçava abrir uma
CPI para apurar os fatos, a casa civil, comandada por Dilma, foi acusada pela oposição de montar um
dossiê com detalhes dos gastos da família do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
31
“ Iniciada no centro do sistema econômico mundial, por ocasião da explosão da bolha imobiliária, a
crise rapidamente alcançou os bancos, gerando uma ameaça de default do crédito e de risco sistêmico. Em
pouco tempo, dos Estados Unidos ela se espraiou para outros países centrais e depois para o resto do
mundo, afetando a produção e o comércio internacionais”, Jorge Matoso (2010, p32) in Sader, Emir &
Garcia, Marco Aurélio (orgs.).
89

dólares em créditos; lançamento de um pacote com cortes de tributos e isenção para


fabricação de carros modelo 1.0; o governo decidiu zerar o Imposto sobre Operações
Financeiras – IOF, na liquidação do câmbio com o objetivo de atrair investidores
externos; através de medida provisória alterou os prazos de pagamento do imposto de
renda na fonte, da contribuição previdenciária, do PIS - Confis e do IPI. A equipe
econômica do governo estimulou que, com essa mudança de datas, daria um alívio de
21 bilhões de reais aos caixas das empresas brasileiras; e Lula usou sua popularidade
para conclamar o povo brasileiro a consumir.

Sob as influências dos impactos da crise financeira, algumas pesquisas


registraram aumento do desemprego no país. Todavia, a forma como o país enfrentou
a crise permitiu a ele fechar o ano de 2008 com uma taxa de crescimento de 5,1%. A
avaliação da administração de Lula, que em dezembro de 2008 era de 70% ,teve uma
ligeira queda para 65% em março de 2009. Contudo, foi uma queda efêmera, pois a
administração de Lula chegou ao final do ano de 2009 com recorde de 72% de
aprovação entre ótima e boa.

O PT, ao renunciar a luta pelo socialismo - seguindo a opção já adotada pelo PSB
, PPS e PC do B – passou a ser um partido acomodado com a administração da ordem
burguesa. Como um competente e íntimo condutor dos interesses do capital, Lula
anunciou e conseguiu, durante o seu governo, fazer da crise no Brasil uma marolinha.
Lula, como diz Maquiavel, teve astúcia e sorte para articular virtú e fortuna, pois suas
medidas funcionaram gerando não só popularidade nacional e admiração internacional
como capital político e eleitoral para o seu partido e seus aliados. Todavia, uma das
grandes características de nossa epocalidade é que a manutenção da dominação do
capital sobre o conjunto das relações sociais acontece através de uma boa
administração do Estado como promotor de políticas que estimulem o consumo de
massa como uma ação que une interesses opostos. Como já nos alerta Herbert
Marcuse ( 1978, p.234) sobre a nova forma de dominação do capitalismo:
em seu estágio mais avançado, a dominação funciona como administração e,
nas áreas superdesenvolvidas de consumo de massa, a vida administrada
90

tornar-se a vida perfeita do todo em defesa da qual os opostos se unem 32. Essa é
a forma pura de dominação.

Como administrador do capital, tanto a fertilidade teórica como a criatividade


administrativa do PT, que apostavam na radicalização da democracia e num reformismo
revolucionário, ficaram empacadas que nem mula; o mais grave é que não é um
empacamento de uma mula cansada, que nos deixa a esperança de que vai se levantar
e seguir no cumprimento de sua missão. Trata-se de um empacamento de uma mula
com a perna rota. E a perna que ficou rota foi a dos princípios socialistas e do
compromisso com a formação de uma nova cultura política.

O PT tornou-se um partido social-democrata comprometido com uma “boa


administração”, a nova forma de dominação, que articula o gerenciamento dos
interesses do mercado com a distribuição de migalhas para os setores empobrecidos.
Assim, o sucesso que o governo Lula obteve com o programa Bolsa Família,
complementado por um conjunto de políticas sociais compensatórias, permite-lhe
construir um simulacro no qual ele aparece como o agente da grande transformação, o
defensor de políticas não privatizantes. Esse sucesso é tão grande que parte da
intelectualidade fica encantada e colonizada pela dominação mercantilista petista.
Porém, o que a política econômica e social do PT não faz é colocar em risco a dinâmica
na qual os ricos (banqueiros, construtores, ruralistas, mineradores e operadores de
empresas de serviços) ficam cada vez mais ricos. O combate à exploração do
capitalismo é coisa de um PT inocente dos anos 80, do século passado. O PT atual,
seduzido pelo boto cor de rosa, é um PT que, quando pressionado pelos interesses
privados, coloca em risco o meio ambiente, como na aprovação do novo código
florestal, realiza privatizações, como as que vêm sendo feitas nos aeroportos do país e
em outros setores. Tudo isso em nome do equilíbrio possível, da união de interesses
opostos. Uma cordialidade, onde os mediadores ganharam a confiança do lado de lá e
querem ser como eles: ricos, corruptos e poderosos.
Nas críticas que fazemos ao PT e ao governo Lula não fazemos coro com os
críticos conservadores que fortalecem a tese da perversidade (Hirschman, 1992)

32
O lema do governo Lula durante os seus dois mandatos foi: “Brasil, um país de todos.”
91

quando sustentam que as ações do governo para melhorar as condições econômicas e


sociais do país só servem para exacerbar a situação que se deseja remediar. Além do
mais, quando focamos nossa crítica na origem socialista do PT, não estamos
imaginando o governo Lula fazendo rupturas com todos os setores do capitalismo ao
mesmo tempo, e nem querendo uma administração que organiza e arma a população
para uma revolução contra a propriedade dos meios de produção. Estamos, sim,
pensando em ações factíveis a um governo socialista com a popularidade atingida pelo
governo Lula, ações como uma reforma agrária profunda; a taxação de impostos para
as grandes fortunas; a moralização e a eficiência da coisa pública; uma radicalização da
democracia com a criação de esferas públicas que deliberem sobre parte das políticas
públicas; a implantação do orçamento participativo no âmbito da federação; uma
ampla política que valorize a diversidade cultural e regional; uma ação que limite os
lucros dos bancos a um patamar que quando ultrapassado, sejam investidos em
políticas públicas de saúde e educação; uma política que limite a transferência de
lucros das empresas internacionais para o exterior. São medidas possíveis, medidas que
apontam para uma distribuição de renda e riquezas mais próxima de uma política de
justiça social, porém tais ações implicam em rupturas com a lógica de acumulação
exorbitante de lucro dos capitalistas, e o PT não quer deixar seus aliados e amigos
furiosos.

Durante toda década dos anos de 1990 até chegar ao Palácio do Planalto
(2002), o Partido dos Trabalhadores (PT), juntamente com a Central Única dos
Trabalhadores (CUT) e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra ( MST) se
colocaram como defensores das lutas antineoliberais catalisadas pela rejeição a
práticas de ajuste fiscal. O PT chegou ao poder numa crise das políticas neoliberais,
numa conjuntura que, na América Latina, levou ao poder vários partidos de esquerda
( Bolívia, Venezuela, Equador, Uruguai, Chile,Argentina , Nicarágua, Paraguai). Alguns
jornalistas chegaram a dizer que vivíamos, na entrada no século XXI, uma onda
vermelha latinoamericana.
No contexto da onda vermelha na América Latina, as vitórias de Lula no Brasil e
de Hugo Chávez na Venezuela foram muito importantes para enfraquecer a hegemonia
política americana na região, sepultando a proposta americana de construção da
92

Aliança do Livre Comércio das Américas – ALCA. Emir Sader (2003, p.61), constata que
“a entrada no século XXI é a da disputa por uma nova hegemonia e contra a
hegemonia norte-americana, pela emancipação e contra a dominação”. Todavia,
enquanto a Venezuela, Bolívia e Equador se mantiveram firmes numa política de
enfrentamento e rupturas com o sistema capitalista, o governo Lula buscou consolidar-
se como líder latinoamericano e mundial, apostando em relações multilaterais, onde o
Brasil, como país capitalista emergente, pudesse exercer um protagonismo importante
ao perseguir a conquista de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Assim,
em vez de apostar na Aliança Bolivariana para as Américas – ALBA, Lula não mediu
esforços para se tornar o líder dos países emergentes.

Apologistas do governo Lula, como Emir Sader e Marco Aurélio Garcia,


escrevem coisas que parecem atos falhos quando dizem s que as forças de direita que
se opõem ao governo Lula “sobrevivem porque são as mesmas que ganham com a
hegemonia do capital financeiro, com o agronegócio, com a mídia oligárquica (2010, p.
28)”. O que nos leva a concluir que se o governo Lula tivesse mudado sua política, que
permite a esses setores ganhar lucros exorbitantes e a viverem de rendas, eles se
enfraqueceriam e o governo não teria mais oposição forte de direita. Por que Lula não
fez essas rupturas? Se esses setores continuam ganhando com a política econômica
implantada pelo PT, que sentido tem eles de se oporem ao governo? O único motivo
que eles têm para se oporem ao governo é o de impedir que o governo mude a sua
forma de governar.

Dentro do PT existem correntes de pensamento, aglutinadas na forma de


tendências, que sustentam que o grande desafio da conjuntura latinoamericana do
início do século XXI era o de derrotar o neoliberalismo. Todavia, o neoliberalismo é
apenas uma das formas com a qual o capitalismo orienta o seu processo de reprodução
e expansão em determinados momentos históricos. Assim, podemos combater o
neoliberalismo e não combater o capitalismo. Minha tese sobre o PT é a de que alguns
setores, que juntamente com Lula, controlam o partido, assumiram não fazer rupturas
com o neoliberalismo para se credenciar junto ao sistema financeiro internacional
como os melhores condutores da expansão do capital, daí a carta ao “povo brasileiro”
93

prometendo não fazer rupturas. Depois, já no poder e diante de um conjuntura


internacional favorável, que beneficiou toda América Latina e os países emergentes
(Brasil, Rússia, índia e China) , passou a incorporar de forma mitigada ou possível o
projeto social-democrata abandonado pelos tucanos. É bom lembrar que, antes da
campanha, já havia setores dentro do PT pregando uma aliança entre petistas e
tucanos alegando que ambos tinham muitas semelhanças em suas propostas para o
Brasil.

Quando afirmamos que o PT aderiu ao programa social-democrata do PSDB,


não estamos falando que ele copiou suas políticas específicas ou propostas técnicas
sugeridas para orientar a condução das ações, serviços e a organização institucional do
governo. Estamos confirmando apenas a adoção do modelo desenvolvimentista que
marcou a fundação do PSDB no Brasil como alternativa ao modelo “ reformista
revolucionário ou democrático popular” do PT e ao modelo liberal conservador do
PMDB. A descaracterização da orientação ideológica do PSDB se deu com a eleição de
FHC, quando o partido se aliou ao PFL, cedendo as pressões de uma conjuntura
internacional marcada pela imposição, por parte do capital financeiro especulativo, de
uma política de ajustes estruturais para o conjunto da América Latina, tal como estão
fazendo, agora, com a Europa, depois da crise de 2008.

É verdade que o PT foi e é um crítico ferrenho do neoliberalismo, mas não é um


partido anticapitalista, pois aderiu à tese do fim da história, onde o horizonte último
da ação política é a democracia liberal e a economia de mercado. Quando João
Santana, marqueteiro da campanha de Lula, criou o bordão “deixa o homem
trabalhar”, o mercado entendeu e o povo foi enganado. Faltou alguém perguntar:
trabalhar para quem? A teoria capitalista teria uma resposta clássica para a mão
invisível do mercado, pois Lula trabalhando para o mercado gera progresso para todos,
seu lema de governo era: Brasil, um país de todos. O boto cor de rosa realmente é
sedutor.
Poderíamos até considerar, em tese, a hipótese de que o PT mantenha algum
compromisso com um modelo de sociedade anticapitalista, mas, para isso, ele precisa
sinalizar algum tipo de ruptura ou, pelo menos, assumir que a sua luta contra o
94

neoliberalismo é, num primeiro momento, uma forma de arrumar a casa para depois
iniciar, num patamar mais favorável, as transformações mais profundas com o sistema.
Não obstante, se assumir tal discurso, volta a restabelecer a velha teoria etapista da
esquerda comunista, dos anos 50, que já foi sepultada por Caio Prado. Emir Sader,
quando achava que o PT não era um partido neo-etapista, que primeiro queria derrotar
o neoliberalismo para depois romper com o capitalismo, apresentou um argumento
que merece melhor atenção, mesmo que não justifique a acomodação do partido ao
ideário capitalista, cito-o:
O Partido dos Trabalhadores chegou ao governo sem contar com uma teoria de
saída do neoliberalismo e sem contar com uma produção teórica que possibilite
construir uma sociedade pós-neoliberal (...). A crise hegemônica gerada pela
realização e pelo conseqüente esgotamento do neoliberalismo – como política e
como modelo de sociedade – é ao mesmo tempo uma crise política e teórica, que
requer práticas políticas novas e novas capacidades de elaboração teórica (2002,
p.17)”.

A tese de que o PT chegou ao poder despreparado teoricamente para construir


uma sociedade pós-neoliberal pode ser um ponto de investigação na busca de uma
resposta que explique porque ele, em nome do realismo político, caiu no pragmatismo,
como afirmam os petistas Nelson Barbosa (secretário de política econômica do
Ministério da Fazendo do governo Lula) e José Antonio Pereira de Souza (economista
do BNDES e assessor de política econômica do governo Lula): “nos três anos iniciais do
governo Lula, a visão neoliberal predominou nas ações de política econômica, 2010, p.
68, in SADER & GARCIA (orgs.).” Portanto, o governo Lula aderiu ao neoliberalismo.

A adoção do projeto desenvolvimentista, que gerou bons resultados


econômicos para o país que produziu um capital político elevado para Lula e seus
aliados e que transformou Lula num mito, é fruto de sorte e do pragmatismo que
orientou a equipe econômica do governo após a constatação do fracasso da opção
neoliberal nos três primeiros anos de governo, principalmente quando perceberam que
o ajuste fiscal33 realizado não surtiu o efeito esperado por Lula: a realização do
33
Segundo Nelson Barbosa e José Antonio Pereira de Souza ( 2010, p. 60, obra citada): “ O ajuste fiscal
de 2003-2005 não acelerou substancialmente o crescimento da economia, tampouco ajudou o
compromisso de melhorar a renda e o emprego, o que fez a visão neoliberal ir se esgotando nos primeiros
três anos de governo Lula. Destaca-se outro ponto ainda mais relevante: a proposta neoliberal de novos
95

espetáculo do crescimento. Assim, constata Nelson Barbosa e José Antonio Pereira de


Souza (2010, p.69 in SADER & GARCIA – orgs.):
a visão desenvolvimentista do governo Lula combinava vários argumentos, sem
refletir uma escola de pensamento econômico homogênea. Em contraponto ao
caráter teórico e ideologicamente mais coeso da visão liberal, os
desenvolvimentistas então adotaram uma postura pragmática em torno da defesa
de três linhas de atuação para o governo federal. Foram elas: a adoção de medidas
temporárias de estímulo fiscal e monetário para acelerar o crescimento e elevar o
potencial produtivo da economia; a aceleração do desenvolvimento social por
intermédio do aumento nas transferências de renda e elevação do salário mínimo;
e o aumento do investimento público e a recuperação do papel do Estado no
planejamento de longo prazo.

Na crise atual do capitalismo globalizado, iniciada em 2008, é a primeira vez que


a recuperação de uma crise mundial vem sendo realizada por países emergentes e não
por países desenvolvidos. Para Marcio Pochmann (2010), as crises estruturais do
capitalismo geram momentos apropriados para países periféricos assumirem algum
grau efetivo de protagonismo. Segundo ele, para que o Brasil possa administrar a crise
obtendo melhor posicionamento no mundo, precisa enfrentar, ainda, a árdua tarefa de
refundação do Estado. Para essa refundação, são três os eixos estruturantes por ele
formulados: reorganização administrativa e institucional que reprograme todas as
políticas públicas; ampliação das políticas distributivas para as redistributivas;
reinvenção do mercado, tendo em vista diminuir o poder dos grandes grupos
econômicos sobre o Estado. Para Marcio, com a implantação desses três eixos, teremos
uma refundação do Estado capaz de efetivar o tão desejado projeto nacional de
desenvolvimento, pois o que foi sonhado por muitos, de Getúlio a FHC, com a crise
estrutural do capitalismo pode se tornar realidade.

Para administrar bem o capitalismo, é preciso, além de competência, fazer


reformas árduas. As reformas para crise já não podem ser feitas pelo Lula, mas o PT
continua com Dilma, que tem possibilidades de reeleição e no momento, vai bem
ajustes recessivos acabou fortalecendo a visão desenvolvimentista sobre política econômica ao final de
2005 .” Aqui estamos diante de uma explicação do motivo que levou Lula a mudar sua posição neoliberal
para desenvolvimentista: o pragmatismo.
96

melhor do que o início do primeiro governo Lula. De toda forma, se,ao ser seduzido
pelo boto cor de rosa, o PT produzir uma sociedade capitalista menos perversa,
próxima a de um Estado de bem-estar social, e avançar com um modelo de
desenvolvimento menos agressivo ao patrimônio ambiental, será um ganho muito
grande. Cabe, portanto, aos que continua com o sonho de um modelo de sociedade
anticapitalista provar sua viabilidade. Contudo, nesse momento, não devemos ter
vergonha de admitir que o PT esteja melhorando as condições de vida, principalmente
dos pobres, no país, mas devemos ser críticos e construir as bases para o projeto
anticapitalista.

BIBLIOGRAFIA
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional.
Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978.

HISCHMAN, Albert. A retórica da Intransigência. Perversidade, futilidade, ameaça. São


Paulo, Companhia das Letras, 1992.

ARAÚJO, José Prata. Um retrato do Brasil. Balanço do governo Lula. São Paulo,
Fundação Perseu Abramo, 2006.

SADER, Emir. A vingança da história. São Paulo, Boitempo Editorial, 2003.


SADER, Emir & GARCIA, Marco Aurélio (orgs.). Brasil entre o passado e o futuro. São
Paulo, Boitempo Editorial, 2010.

POCHMANN, Marcio. O Estado e seus desafios na construção do desenvolvimento


brasileiro. Revista Margem Esquerda, nº 15, via carta maior, publicado em 16.12.2020,
por www.fpa.org.br
A CRISE NO SENADO:
O PT ASSUME A CULTURA PATRIMONIA
97

O Brasil foi bem-sucedido no seu processo de democratização. A sua


constitucionalidade tem se mostrado eficiente no trato das crises políticas ocorridas no
período pós-ditadura; o principal teste foi o impeachment do Presidente Fernando
Collor de Mello em 1992. A Constituição de 1988, além de garantir formalmente um
conjunto de direitos sociais, típicos de uma sociedade de bem-estar social, criou alguns
mecanismos (referendo, plebiscito e emenda de iniciativa popular – artigo 14 da
Constituição) que complementam o processo eleitoral da democracia representativa. A
sociedade civil brasileira cresceu, ganhou maior capilaridade tanto no campo do setor
financeiro e produtivo quanto no campo social e trabalhista.

Mesmo tendo sido bem-sucedido no seu processo de democratização, no


Brasil, como em quase todos os países do mundo, no Brasil, também é visível a crise do
sistema representativo. A crise vivida, em meados de 2009, pelo no Senado
demonstrou graves problemas no funcionamento do sistema político, demonstrou
que ainda não temos um sistema adequado para garantir uma governabilidade
comprometida com os desafios mais profundos da democracia: transparência, o
controle sobre o sistema representativo e a garantia da soberania cidadã.

De chofre, na época podemos perguntar: a crise no Senado abre alguma


possibilidade de aperfeiçoamento da democracia no Brasil? A crise no Senado abriu
parte dos segredos administrados num porão do qual todos os senadores sabiam da
sua existência e usavam de forma diferenciada,a suas benesses, sem se importar com a
sujeira que lá se acumulava. Enquanto alguns se omitiam, não dando importância ao
processo de putrefação, outros contribuíam cada vez mais para aumentar a sujeira.
Não obstante, um fato que a crise nos permitiu perceber foi que temos um Ministério
Público, uma Polícia Federal e uma imprensa com grande capacidade para investigar,
comprovar e publicizar escândalos envolvendo instituições públicas e privadas
(empresas, bancos, consultorias, ONGs), bem como seus agentes, mas, ao mesmo
tempo, por paradoxal que seja, também temos um conjunto de instituições com um
padrão de interação política capaz de garantir a impunidade e, até mesmo, a absolvição
dos culpados. Podemos citar dois exemplos da época: um foi o caso do senador Renan
Calheiros (PMDB-AL) que, mesmo com a recomendação, pelo Conselho de Ética do
98

Senado, de que fosse cassado, ele foi absolvido pelos seus pares em setembro de 2007;
o outro foi o caso do Deputado Edmar Moreira (sem partido – MG), acusado de quebra
de decoro parlamentar por uso indevido da verba indenizatória; ele usou a verba para
pagar despesas com empresa de propriedade da própria família. Edmar Moreira ficou
famoso por ter um castelo de 25 milhões não declarados no Imposto de Renda e por
ter sido absolvido pelo Conselho de Ética, mesmo tendo o relatório do Deputado
Nazareno Fonteles (PT-PI) pedindo a sua cassação.

A abordagem da corrupção pode ser feita por meio de três perspectivas. A


primeira, de natureza jurídica, é classificada como delito passivo de penalidade.
Instituições como o Ministério Público, Polícia Federal e o Superior Tribunal de Justiça –
STJ são órgãos competentes no campo da ação judiciária. A segunda, de natureza
institucional, pode ser percebida como resultado da ausência de uma
institucionalização política eficiente, ou da manutenção de uma burocracia excessiva
que produz dispêndios de gastos suscetíveis a práticas ilícitas. Como exemplo mais
corriqueiro, temos a prática de suborno para redução de trâmites de documentos ou
eliminação de multas, e os processos de licitações viciados. A terceira, de natureza
ética e cultural, a corrupção é reproduzida por meio de relações patrimoniais que
aproximam e fundem a esfera pública com a esfera privada. Nesse processo, as redes
de contravenção formam-se na imbricação de relações entre integrantes de cargos
públicos (políticos, funcionários e assessores) com setores da iniciativa privada, e com
relações de amizades e parentesco.

A atitude de omissão na fiscalização da coisa pública, combinada com o uso


indevido do patrimônio público, reflete a ação de uma cultura política que ficou à
margem de uma das promessas da razão iluminista: a construção de uma ordem
política racional baseada no consentimento e na justiça; reflete, principalmente,
aspectos de um comportamento patrimonial que se manifesta pela negação da
ampliação do exercício pleno da cidadania; reflete a perpetuação do “herói sem
nenhum caráter” como valor; e , ainda, reflete as contradições de uma ordem política
híbrida composta por instituições normatizadas, por legislações avançadas, interesses
políticos plurais e padrões de interação política oligárquica e autocrática.
99

A PERMANÊNCIA DA CULTURA PATRIMONIAL

Num país em que máximas como “ é dando que se recebe”, “ toma lá, dá cá “,
“roubo, mas faço” são explicitadas publicamente por seus políticos e têm força na
modelagem das relações políticas é porque os valores republicanos são hostis à visão
de mundo e aos interesses de parte dos que participam do mando político.

A prática política do “é dando que se recebe” e do “ toma lá, dá cá” é antiga no


país, mas foi explicitada publicamente na mídia durante o Governo de José Sarney
(março de 1985 - março de 1990). Já a máxima “roubo, mas faço” foi cunhada pelo
ex-prefeito de São Paulo, Paulo Maluf. Essas três máximas são símbolos que expressam
a materialidade de um comportamento político que produz e reproduz relações
patrimoniais em seus vários formatos: clientelismo, nepotismo, fisiologismo, casuísmo,
troca de favores, tráfico de influências, uso de cargos públicos por barganha política e o
“jeitinho”.

A máxima “é dando que se recebe” foi cunhada, em março de 1988, pelo ex-
ministro da Indústria e Comércio e ex-líder do Centrão, Deputado Roberto Cardoso
Alves (PMDB – SP), durante os debates sobre a prorrogação do Mandato do presidente
José Sarney. Para obter a prorrogação por mais um ano, Sarney abriu os cofres da
União de forma muito generosa. No seu governo, que teve como Ministro das
Comunicações Antonio Carlos Magalhães (PDS e PFL - BA), o “toinho malvadeza”, foram
1250 canais de rádio e TV distribuídos por critérios políticos partidários. No período, a
família de Sarney passou a controlar duas emissoras de TV e sete de rádio (Revista Veja
25.07.1990). O presidente Sarney, assim, estabeleceu o “ toma lá, dá cá” no período de
redemocratização do país.

Os escândalos que culminaram com a crise moral e política no Senado


comprovam a institucionalidade da prática patrimonial no modo de fazer política no
100

Brasil. As denúncias, que se iniciaram com o problema das passagens 34, passaram pela
questão das horas extras e chegaram ao seu ponto mais crítico com o esdrúxulo caso
dos atos secretos.

O que são atos secretos no Senado? São atos de nomeações e medidas


administrativas que constam em Boletins Administrativos de Pessoal (BAPs) não
disponibilizados no site da internet do Senado. Tais medidas sigilosas permitem, entre
outras ações, a nomeação de parentes e a criação de cargos. As ordens para manter
atos administrativos no Senado vinham, de acordo com declaração de Franklin
Albuquerque Paes Landin, chefe de publicação do boletim pessoal do Senado,
diretamente do Ex-diretor Geral, Agaciel Maia, e do Ex-diretor de Recursos Humanos,
João Carlos Zoghbi. Franklin contou que guardava os atos secretos numa pasta e só
publicava quando recebia nova orientação dos diretores (Folha Online, acessada em
19.06.2009).

Os boletins não eram disponibilizados na data em que eram assinados; alguns


só eram divulgados depois, e outros nunca haviam sido publicados, até serem motivo
de denúncias. Segundo relatório da Comissão, criada para investigar o caso, entre 1995
a março de 2009, foram 663 o número de Atos Administrativos não publicados. Nesse
período, Agaciel Maia esteve à frente da Direção Geral do Senado. Sua indicação para o
cargo foi feita por José Sarney (PMDB – AP), que presidiu o Senado em três ocasiões
durante o período de edições dos atos secretos. O trabalho da comissão de
investigação, em seu relatório, revelou, entre outras coisas, o seguinte:

1 – Cinco pessoas ligadas à família do presidente do Senado, José Sarney, foram


nomeadas por meio de Atos Secretos;

34
O escândalo das passagens envolveu todo o Congresso Nacional. Sem fiscalização, há suspeita de
desvio, fraudes e comércio ilegal das contas que todo parlamentar tem direito. O Senador Tasso Jereissati
(PSDB-CE) foi acusado de ter gasto 469 mil para fretar jatinhos entre 2005 e 2007, ele admite ter gastado
358 mil reais. Já em relação às horas extras, em janeiro de 2009, período de recesso parlamentar, o senado
pagou R$ 6 milhões em hora-extra a 3.800 funcionários. Já entre dezembro de 2008 e fevereiro de 2009,
9.512 funcionários do Senado receberam R$ 83,4 milhões de ajuda de custo.
101

2 – A Verba Indenizatória35 teve seu valor aumentado de 12 para 15 mil reais


por meio de ato secreto assinado pela Mesa Diretora do Senado em junho de 2005. A
medida só foi tornada pública no dia 14 de maio de 2009;

3 – O diretor geral do Senado, Agaciel Maia, criou 15 cargos comissionados no


lugar de postos reservados para servidores concursados;

4 – O filho do ex-diretor de recursos humanos João Carlos Zoghbi, o dentista


Ricardo Zoghbi, foi nomeado para o Conselho Editorial do Senado a partir de fevereiro
de 2006;

5 – Silas Rondeau, ex-ministro das Minas e Energias, derrubado do cargo por


denúncias de corrupção, e apadrinhado político de José Sarney, teve sua filha nomeada
para um cargo no Conselho Editorial do Senado;

6 – Alexandre Araújo Rocha, assessor do senador Renan Calheiros (PMDB-AL),


teve sua demissão adiada, o que lhe permitiu disputar eleições em 2006 sem deixar o
cargo. Ele foi candidato a Deputado Estadual pelo PMDB em Alagoas. A legislação
obriga o servidor a se afastar do cargo.

7 – Troca de nomeações entre os gabinetes do senador Marcelo Crivella (PMDB


– RJ) e de Edison Lobão (PMDB – MA), atual ministro de Minas e Energia indicado ao
cargo por José Sarney;

8 – Agaciel Maia, ex-diretor geral do Senado, elevou seus próprios vencimentos,


por várias vezes, mediante atos secretos chancelados por ele próprio.

As denúncias contra os atos ilícitos praticados no Senado colocaram o seu


presidente numa situação de desconforto e fragilidade para continuar conduzindo o
35
Verba Indenizatória é um dinheiro recebido pelo senador para ser usado para pagar despesas com
aluguel de escritórios nos Estados, combustíveis e divulgação da atividade parlamentar. Além da verba
indenizatória, no valor de 15 mil reais, um senador recebe 16,5 mil reais, na forma de salário, e a cota de
gabinete para custear passagens aéreas, telefone, correio e material gráfico para divulgação do mandato. A
cota de gabinete, os valores e a prestação de contas são sigilosos.
102

cargo. Nesse cenário, no dia 16 de junho de 2009, José Sarney ocupou a tribuna do
Senado para apresentar sua defesa e isentar-se de qualquer culpa. Na sua fala, Sarney
destaca, segundo a interpretação que faço de seu discurso, cinco eixos:

1.º - O presidente do Senado desconhece o que são atos secretos, diz Sarney:
“eu não sei o que é ato secreto. Aqui, ninguém sabe o que é ato secreto”.

2.º - Para o presidente do Senado, a crise do Congresso faz parte de uma


articulação mundial de grupos de interesses com o objetivo de enfraquecer as
instituições legislativas para nelas ocuparem espaço e imporem seus interesses :

“ nunca tive meu nome associado a qualquer das coisas que são faladas aqui dentro do
Congresso Nacional, ao longo do tempo, porque isso é uma crise mundial. O que se fala aqui no Brasil
sobre o Congresso fala-se na Espanha, fala-se na Inglaterra, fala-se na Argentina, fala-se em todos os
lugares [...] Eu acredito que muita gente está interessada em enfraquecer o senado e as instituições
legislativas. Por quê? Porque ao enfraquecê-las, elas passam a ser exercidas por outros, que não mais:
são grupos econômicos, são alguns setores radicais da mídia, são radicais corporativistas que passam
exercer, pressionar e ocupar o lugar das instituições legislativas. É aqui só? Não. É no mundo inteiro que
está se vendo esse processo.”

3.º - José Sarney declara que a crise não é sua e que não tem responsabilidade
administrativa no senado:

“A crise do Senado não é minha, a crise é do Senado [...] Eu não vim para administrar, para
saber, da despensa do Senado 36, o que havia lá. Eu vim, eu sou presidente do Senado para exercer uma
função política, para exercer uma função que a Casa deve ter representação.”

4.º - O presidente do Senado se declara um homem público injustiçado:

“ Ora, Srs. Senadores, quais foram os fatos de que estou sendo acusado? Depois de 50 anos de
vida pública. Então, vê-se agora a pessoa sendo julgada, porque uma neta minha e um neto meu... E, por

36
Essa declaração em si já caracteriza quebra de decoro parlamentar, pois fere frontalmente a Resolução
n.° 20, de 1993, que instituiu o Código de Ética e decoro Parlamentar, que no art. 2° diz : “são deveres
fundamentais do Senador: I - Promover a defesa dos interesses populares e nacionais; II – zelar pelo
aprimoramento da ordem constitucional e legal do país, particularmente das instituições democráticas e
representativas, e pelas prerrogativas do Poder Legislativo; III – exercer o mandato com dignidade e
respeito à coisa pública e à vontade popular”.
103

isso, querem me julgar perante a opinião pública deste país? É de certo modo a gente ter uma falta de
respeito pelos homens públicos que nós temos [...] Não tenho nenhum motivo ou problema na
consciência que não seja o de ter cumprido o meu dever e acho que não posso ser julgado. É uma
injustiça do país julgar um homem como eu, com tantos anos de vida pública, com a correção que tenho
de vida austera, de família bem composta, que tem prezado a sua vida para a dignidade de sua carreira.”

5.º - José Sarney afirma que o Senado vai fazer tudo o que for necessário para
moralidade da instituição:

“Fiquem absolutamente tranquilos quanto uma coisa: nós faremos tudo que for necessário,
tudo que for para a moralidade e o bem do Senado.”

O discurso de Sarney não foi suficiente para evitar que um conjunto de novas
denúncias sobre casos de desmandos e de corrupção no Senado fossem divulgadas.
Todavia, agora o teor das denúncias envolviam diretamente o próprio Sarney e sua
família. O quadro abaixo demonstra o conteúdo das acusações.

ACUSAÇÕES QUE PESARAM SOBRE JOSÉ SARNEY:

DATA CONTEÚDO DAS ACUSAÇÕES


20.05.2009 Sarney recebia irregularmente o auxílio-moradia mensal de 3.800
(três mil e oitocentos reais).
10.06.2009 Nomeação do neto de Sarney, João Raimundo Michels Sarney, para
integrar o quadro de servidores da casa por meio de um Boletim
Administrativo Secreto.
14.06.2009 Sarney nomeou a sogra, Vera Portela Macieira Borges, para um
cargo no Gabinete do senador Delcídio Amaral (PT-MS), em Campo
Grande.
15.06.2009 Maria do Carmo de Castro Macieira, prima da Governadora
Roseana Sarney, é nomeada no Senado por meio de Ato Secreto.
16.06.2009 Sarney continuava recebendo de forma irregular auxílio-moradia,
mesmo possuindo casa em Brasília, e tendo emprestado um
apartamento funcional, que estava em seu nome, ao ex-senador
Bello Braga (ex-PFL –MA)
17.06.2009 Sarney emprega uma prima e uma sobrinha do genro, Jorge
104

Murad, marido de Roseana Sarney (PMDB – MA)


18.06.2009 Ato Secreto esconde a exoneração do irmão de Sarney, Ivan
Sarney, transferido para o Gabinete do Senador Epitácio Cafeteira
( PTB – MA), um dos aliados de Sarney.
20.05.2009 Salário do mordomo de Roseana Sarney, Amaury de Jesus
Machado, é pago pelo Senado.
23.06.2009 Sarney usa verba indenizatória para contratar uma empresa para
organizar seu acervo pessoal de livros e documentos.
25.06.2009 Sarney empregou seu primeiro suplente, Jorge Nova da Costa,
como assessor parlamentar em seu Gabinete.
30.06.2009 O neto de Sarney, José Adriano Cordeiro Sarney, que tem esquema
de empréstimo consignado no Senado, também intermediava
seguro de vida para servidores.
03.07.2009 Sarney oculta da Justiça Eleitoral mansão avaliada em R$ 4
milhões.
09.07.2009 Meio milhão (500 mil reais) de recursos repassados pela Petrobras
à Fundação José Sarney, em São Luís (MA), teriam sido desviados
para empresas fantasmas da família do presidente Sarney.
18.07.2009 O Instituto Mirante, criado por Fernando Sarney, teria recebido
250 mil reais da Eletrobrás, segundo investigação da Polícia
Federal, como parte de pagamento de benefícios sedidos a
empresas privadas, em contratos com o governo, mediados por
Fernando Sarney.
22.07.2009 Diálogos grafados pela Polícia Federal, durante a Operação Boi
Barrica, mostram a prática de nepotismo e ligam Sarney ao ex-
diretor geral do Senado, Agaciel Maia, e a Atos Secretos. Em um
deles, Fernando Sarney, filho do senador, diz à filha, Maria Beatriz
Sarney, que mandou Agaciel reservar uma vaga para o namorado
dela, Henrique Dias.
25.07.2009 Investigação realizada pela Receita Federal, na empresas da Família
Sarney, constata a prática de crimes contra a ordem tributária,
como remessa ilegal de recursos para o exterior, falsificação de
contratos de câmbio e lavagem de dinheiro.
27.07.2009 Diálogos, captados pela Polícia Federal – PF, com autorização
judicial, ligam o empreiteiro Zuleido Veras, dono da construtora
105

Gautamo, a José Sarney. As investigações são frutos da Operação


Navalha, deflagrada em abril de 2007. A polícia apura sobrepreço
de R$ 17 milhões na ampliação do Aeroporto de Macapá, obra do
Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, orçada em R$ 112
milhões de reais. A obra foi um pedido de José Sarney ao
presidente Lula. Na agenda do empreiteiro, em poder da PF, há
uma anotação: “Roseana – R$ 200 mil. Ajuda de campanha
política”.
28.07.2009 Maria Beatriz, neta de Sarney, antes de pedir emprego para o
namorado, ocupou, por dois anos, um cargo de confiança no
Gabinete da Presidência do Superior Tribunal Federal - STF.
Recebia R$ 6 mil reais por mês e, ainda, não tinha concluído o
curso superior.
Fontes: Jornal Folha de São Paulo (SP) e Jornal O Povo (Fortaleza). As datas correspondem ao
dia em que a denúncia foi publicada nos jornais.

Tendo seu nome ligado a várias denúncias e se sentido fragilizado, o PMDB


resolveu eleger o dia 5 de agosto como a data da reação articulada em defesa de
Sarney. A estratégia constou de dois momentos: o primeiro, na tribuna do Senado; o
segundo, no Conselho de Ética e Decoro Parlamentar.

Na tribuna do Senado, Sarney proferiu um discurso onde voltou a negar ter


cometido qualquer erro que justificasse a crise moral e política vivida pelo Sanado, e se
colocou, mais uma vez, como vítima de uma campanha sistemática e agressiva.
Vejamos seu discurso:

“Até hoje não usei esta tribuna para rebater as inverdades contra mim disseminadas
aqui mesmo e na mídia nacional [...] Avaliei que as críticas eram só rescaldos da
eleição, mas eram mais profundas. Faziam parte de um projeto político e de uma
campanha para desestabilizar-me. Das acusações que me foram feitas nas diversas
representações apresentadas ao Conselho de Ética, nenhuma se refere a qualquer
coisa relacionada com dinheiro ou prática de atos ilícitos.[...] Todas são respaldadas
apenas por recortes de jornal. O Conselho de Ética é um órgão julgador. Há inúmeras
decisões da Justiça que não autorizam a abertura de processo por recortes de jornal
106

[...] Na coerência do meu passado, não tenho cometido nenhum ato que desabone
minha vida, não tenho senão que resistir. [...] Acusam-me de favorecer um
namorado de minha neta por atos secreto[...] É claro que não existe um pedido de
uma neta, se pudermos ajudar legitimamente, que deixemos de atender [...] Assim,
Senhores Senadores, não está se desejando melhorar nem pensando no Senado.
Está-se numa campanha pessoal contra mim, sem respeitar minha privacidade,
meus 55 anos de vida pública, de muitas e cruéis lutas, sem nódoa. Todos aqui,
repito, somos iguais. Ninguém é melhor do que outro. Quero resumir. Em nenhum
momento de minha vida faltei com o decoro parlamentar. Logo eu, que prezo a
liturgia, cidadão de vida ilibada, de hábitos simples, ter falta de compostura e
decoro. Não favoreci neta ou neto meu. Não abusei de minha autoridade ao
requisitar o envio de seguranças a minha residência. Não menti ao dizer que não
tinha responsabilidade por atos administrativos na Fundação José Sarney. Sou , isto
sim, vítima de uma campanha sistemática e agressiva. Humildemente, peço aos
meus colegas que me julguem pela conduta,austera, sem arrogância, respeitando
todos e com todos mantendo boa convivência, e não pelas mentiras, calúnias,
montagens, acusações levianas e desrespeito às pessoas. Peço justiça para que
possamos sair da crise e voltarmos ao ambiente de tranqüilidade.”

No Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, seu presidente, Senador Paulo


Duque (PMDB – RJ), decidiu arquivar quatro pedidos de investigação contra o
presidente do Senado e um contra o líder do PMDB-AL, Renan Calheiros. Em entrevista
ao jornalista, em relação ao discurso de Sarney na Tribuna do Senado, declarou Paulo
Duque: “ foi um discurso bonito e cheio de verdades”. Na sexta-feira (07.08.2009), ele
decidiu pelo arquivamento das sete representações que restavam contra Sarney.

Representações contra Sarney arquivadas por Paulo Duque no dia 5 de agosto:


I – Representação do Senador Arthur Virgilio (PSDB-AM) contendo dezenove
acusações. Entre elas, a de favorecer a empresa de seu neto com operações de
empréstimos a funcionários do Senado, e a de ser condescendente com a publicação
de atos secretos;
107

II – Representação que acusa José Sarney de usar o advogado do Senado no


Supremo Tribunal Federal em ação envolvendo causa própria. Apresentada por Arthur
Virgilio em 10 de julho;
III – Representação que acusa Sarney de ter mentido ao negar ter ligações com
a administração da Fundação José Sarney. Apresentada por Arthur Virgilio em 14 de
julho;
IV – Representação que acusa José Sarney de usar atos secretos para conceder
benefícios e aumentar salários. Apresentada pelo PSOL em 30 de julho.

Representações contra Sarney arquivadas por Paulo Duque no dia 7 de agosto:

I – Representação que acusa José Sarney de usar ato secreto para nomeação do
namorado de sua neta. Apresentada por Arthur Virgilio em 23 de julho;
II – Representação que acusa José Sarney de obter favorecimento por meio de
atos secretos. Apresentada pelo PSDB em 28 de julho;
III – Representação acusando José Sarney de favorecer o neto com operações
de empréstimos a funcionários do senado. Apresentada pelo PSDB em 28 de julho;
IV – Representação que acusa Sarney de desviar recursos públicos da Fundação
José Sarney e mentir ao negar ter ligações com a administração da Fundação .
Apresentada pelo PSDB em 28 de julho;
V – Representação acusando o presidente do Senado de omitir para Receita
Federal uma casa no valor de 4 milhões de reais e de ter conta no exterior gerenciada
por Edemar Cid Ferreira. Apresentada pelo PSOL em 29 de julho;
VI – Representação acusando Sarney de vender terras nunca registradas em seu
nome, como forma de não pagar impostos. Apresentada em 29 de julho por Arthur
Virgilio e Cristovam Buarque (PDT - DF);
VII – Representação acusando Sarney de se beneficiar de recursos na operação
Boi Barrica. Apresentada por Arthur Virgilio em 14 de julho.

Os argumentos utilizados por Paulo Duque, para arquivar as representações


referentes à verificação da quebra do decoro e da ética parlamentar por parte do
presidente da casa, foram os de que o Supremo Tribunal Federal – STF tem um
108

entendimento de que recortes de jornais não podem justificar ações de ética, e que o
regimento determina que denúncias referentes a fatos acontecidos em períodos
anteriores ao mandato devem ser arquivados. Ao anunciar o arquivamento, disse
Duque:
“é uma decisão pessoal do presidente. Quero avisar que são dois dias para
recorrer da minha decisão após a publicação. Feito isso, o Conselho em sua
totalidade vai julgar, se não estiverem de acordo. Essa é a regra e não fui eu
quem fiz. Quero dizer ainda que procurei caprichar nos pareceres feitos para os
cincos processos. É um despacho muito jurídico, baseado em decisões do STF, a
instancia adequada para julgar parlamentares ( Folhaonline, 05.0.8.2009.)”

Por não ter tido a grandeza moral e nem assumido a responsabilidade política
para nomear uma comissão de investigação das acusações que lhe chegaram em forma
de representação, oferecendo para sociedade uma satisfação esclarecedora, o
Conselho de Ética apenas reforçou as evidências de que foi montado com o propósito
de absolver José Sarney, ou seja, tratou-se de um joguete de faixada. Na composição
do conselho, apenas cinco membros, de um total de quinze, são da oposição.

Atos sigilosos para nomear parentes, criar cargos e aumentar salários sem
publicação oficial resultam em crime de improbidade administrativa [Lei 8.429, de
06.06.1992] e são passíveis de punição. Pelo Código de Ética e do Decoro Parlamentar,
mentir em plenário pode levar a perda do mandato. A oposição recorreu contra o
arquivamento de onze acusações contra o Senador José Sarney. Das quinze vagas de
titulares no Conselho de Ética, cinco são da oposição, que esperava o apoio dos três
senadores do PT para que as investigações fossem instauradas. Assim, o PT passou a
ser visto como o fiel da balança. Em depoimento dado à imprensa, no dia 11.08.2009,
Aluízio Mercadante, líder da bancada do PT no Senado, disse: “cada senador petista vai
votar de acordo com a sua consciência. O sentimento da bancada é contrário à tese do
arquivamento sumário das denúncias e representações”. No mesmo dia, dos doze
petistas que integram a bancada, cinco assinaram um manifesto pedindo que José
Sarney se licencie da presidência do Senado.
109

A Direção Nacional do PT, orientada por Lula 37, passou a tratar do isolamento do
senador Mercadante. Lula colocou em cena o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que,
sendo do PMDB, ocupava o cargo de líder do Governo Lula no Senado. Jucá defendeu a
substituição dos petistas no Conselho de Ética. No dia 18.08.2009, um dia antes da
reunião do Conselho para analisar o recurso da oposição, ele se dispôs a ocupar uma
das vagas do PT no colegiado. No seu discurso, ele foi categórico: “não estou me
oferecendo, mas estou à disposição do governo para qualquer missão. O Conselho de
Ética não é partidário. É um júri individual. Não se pode puxar para o PT a decisão. O
Conselho deveria ter gente de vários partidos”. A declaração, rica em contradições, fala
por si mesma.

O presidente do Conselho de Ética e do Decoro Parlamentar, Paulo Duque,


marcou para o dia 19.09.200938 a reunião para colocar em votação os onze recursos
apresentados pela oposição contra o arquivamento sumário das acusações contra o
presidente do Senado. No início da sessão, o senador João Pedro (PT-AM) leu nota
enviada pelo presidente nacional do PT, Ricardo Berzoini, justificando o voto da
bancada a favor de Sarney. Diz a nota:

“A crise política pela qual passa o Senado Federal tem raízes em práticas
administrativas inaceitáveis, que colidem com princípios constitucionais que
fundamentam a administração pública [...] No entanto, não podemos ignorar que
essa mesma crise é alimentada pela disputa política relacionada às eleições de
2010 [...] Por entender que essa crise tem raízes reais, mas é manipulada de forma
hipócrita para interesses eleitorais [...] oriento 39 os senadores do PT que fazem

37
No dia 13.08.2009, numa sessão calorosa , os senadores Tasso Jerreissati (PSDB-CE) e Renan
Calheiros (PMDB-AL) protagonizaram um bate-boca vergonhoso que poderia ter sido caracterizado
como quebra de decoro. No dia seguinte, o Presidente Lula encaminhou ao Congresso para aprovação um
pedido de concessão de rádio FM para a família de Renan Calheiros. No processo, figuram como
acionista da rádio, José Renan Calheiros filhos, Prefeito da Cidade de Murici (AL), e dois Assessores do
Senador: Carlos Ricardo Santa Rita e Ildefonso Tio Uchoa.
38
Nesse dia, a Senadora Marina Silva (PT- AC) anunciou sua saída do PT. O Senador Flávio Arns também
disse que sairia do PT.
39
A nota do presidente nacional do PT se constitui numa peça que fundamenta um dos aspectos que
tento aqui demonstrar, a saber: que o PT virou um partido vazio de projeto em torno do qual se possa
construir uma governabilidade programática. O PT passou a disputar o poder pelo poder. Daí, mesmo
reconhecendo que existia uma crise, que ela tenha raízes reais e revelava práticas inaceitáveis que
colidem com os princípios constitucionais; era preferível a falta de zelo para com a coisa pública, praticar
e ser cúmplice da corrupção, a correr o risco de não continuar no poder. O mais grave, a nota chega a
negar o papel político da oposição de fiscalizar o governo e de buscar alterar a correlação de forças a
partir das próprias contradições do governo e de seus aliados. Esse fato é o mais grave porque pode
110

parte do Conselho de Ética que votem pela manutenção do arquivamento das


representações em relação aos senadores representados, como forma de repelir
essa tática política da oposição, que deseja estabelecer um ambiente de conflito e
confusão política [...] Aqueles que desejam investigações efetivas podem buscar as
instituições apropriadas, que não faltam à nação.”

A interferência do Poder Executivo no Senado foi decisiva para rejeição dos


recursos da oposição. Por nove votos a seis, o “Conselho de Ética” confirmou o acordo
entre o governo Lula e seus aliados para salvar o presidente do Senado. Votaram a
favor de José Sarney: Ideli Salvatti (PT-SC), Delcídio Amaral (PT-MSD), João Pedro (PT-
AM), Inácio Arruda (PC do B-CE), Gim Argello (PTB-DF), Romeu Tuma (PTB-SP),
Wellington Salgado (PMDB-MG), Almeida Lima (PMDB – SE) e Gilvam Borges (PMDB –
AP). Votaram contra: Demóstenes Forte (DEM-PI), Eliseu Resende (DEM -MG), Marisa
Serrano (PSDB – MS), Sérgio Guerra ( PSDB – PE), Rosalba Ciarline (DEM-RN) e Jefferson
Praia (PDT –AM).

A família Sarney mantém a hegemonia no Estado do Maranhão há 40 anos. O


seu domínio está em todos os locais. O Maranhão dos Sarney é uma tristeza, uma
matéria publicada pela Revista Época40 ) descreve bem o Maranhão de Jose Sarney:

“ Para nascer, Maternidade Marly Sarney;


Para morar, escolha uma das vilas: Sarney, Sarney filho, Kiola Sarney ou Roseana Sarney;
Para estudar, há as seguintes opções de escolas: Sarney Neto, Roseana Sarney, Fernando Sarney, Marly
Sarney e José Sarney;
Para pesquisar, apanhe um táxi no Posto de Saúde Marly Sarney e vá até a Biblioteca José Sarney, que
fica na maior universidade particular do Estado do Maranhão, que o povo jura que pertence a José Sarney;
Para inteirar-se das notícias, leia o Jornal O Estado do Maranhão, ou ligue a TV na TV Mirante, ou, se
preferir ouvir rádio, sintonize as Rádio Mirante AM e FM, todas do tal José Sarney. Se estiver no interior do

indicar indícios de comportamento totalitário.


40
Revista Época - de 27 julho de 2009, nº584 (pg. 39-40) - , numa matéria assinada por Ricardo Amaral,
que acrescenta: “ o problema real de José Sarney é que ele não pode responsabilizar ninguém por tudo
aquilo que o acusam de ter feito antes de voltar a presidir o Senado. Foi ele quem nomeou o ex-diretor
Agaciel Maia, em 1995, distribuiu empregos para parentes e amigos, fez e desfez ministros nos últimos
governos, indicou os responsáveis por compras e investimentos no setor elétrico. Manteve uma relação
íntima com o ex-banqueiro Edmar Cid Ferreira, tentou proteger o filho Fernando das investigações da
Polícia Federal. Nada disso é rigorosamente novo, mas tudo isso está saindo dos arquivos nos últimos seis
meses”.
111

Estado ligue para uma das 35 emissoras de rádio ou 13 repetidoras da TV Mirante, todas do mesmo
proprietário, do tal José Sarney;
Para saber sobre as contas públicas, vá ao Tribunal de contas Roseana Murad Sarney (recém batizado
com esse nome, coisa proibida pela Constituição, Lei que no Estado do Maranhão não tem nenhum valor);
Para entrar ou sair da cidade, atravesse a Ponte José Sarney, pegue a Avenida José Sarney, vá até a
Rodoviária Kiola Sarney. Lá, se quiser, pegue um ônibus caindo aos pedaços, ande algumas horas pelas
“maravilhosas” rodovias maranhenses e aporte no município José Sarney.
Não gostou de nada disso? Então quer reclamar? Vá, então, ao Fórum José Sarney, procure a Sala de
Imprensa Marly Sarney, informe-se e dirija-se à Sala de Defensoria Pública Kiola Sarney.”

Junto à crise moral e política do Senado, surgiu a crise do executivo, conhecida


como “O Caso Lina Vieira ou o Escândalo da Receita Federal”. No dia 15 de julho de
2009, Lina Vieira foi demitida do cargo de Secretária da Receita Federal. Entre os
motivos alegados, estaria a revelação, por parte de Lina, de que uma mudança contábil
feita no final de 2008 pela Petrobras permitiu uma redução de quatro bilhões de reais
na contribuição da estatal. Esse fato motivou a criação de uma Comissão Parlamentar
de Inquérito – CPI da Petrobras pela oposição 41. No dia 9 de agosto, numa entrevista ao
Jornal Folha de São Paulo, Lina Vieira afirmou que num encontro reservado com a
Ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, ocorrido no final de 2008, esta havia lhe pedido
que a investigação, realizada pela Receita Federal nas empresas da família do senador
José Sarney, fosse concluída rapidamente. Para Lina, o pedido de Dilma era um recado
para encerrar as investigações. A reação de Lula e de seus aliados foi partir para
desqualificação do fato.

O escândalo da Receita Federal foi bem explorado pela mídia e capitalizado pela
oposição. No dia 12 de agosto, a oposição aprovou convite para que Lina prestasse
depoimento à Comissão de Constituição e Justiça. No seu depoimento, ocorrido no dia
18, ela confirmou o encontro com Dilma e o teor da conversa, mas não apresentou
provas do encontro. No dia 24 de agosto, doze integrantes da cúpula da Receita Federal
colocaram o cargo à disposição do governo em solidariedade a Lina Vieira. Num
agravamento da crise, 60 (sessenta) funcionários de carreira da Receita, em postos de
chefia, distribuídos em cinco das dez superintendências regionais, deixaram suas
41
Numa entrevista, em 15.07.2004, o presidente Lula disse que não estava preocupado com a Instalação
da CPI da Petrobras, instalada no dia 14.07.2009, pois, para ele, os membros da CPI “ são bons
pizzaiolos. A CPI é interessante para quem quer fazer um carnaval”.
112

funções alegando como motivo do desligamento a mudança de foco na fiscalização. Na


avaliação dos técnicos, que entregaram os cargos de confiança, a Receita Federal não
iria mais priorizar a fiscalização dos grandes contribuintes, mas voltar a sua mira e o
seu foco para os pequenos contribuintes, trabalhadores assalariados e profissionais
liberais.

LULA COMO CÚMPLICE DE SARNEY

Quando, em 2002, o PT resolveu flexibilizar seu projeto político – cujas


propostas iam desde a luta intransigente pela expansão de políticas públicas, política
radical de proteção ao meio ambiente, radicalização da democracia, garantia de
Direitos Humanos, até a moralização institucional do poder público para conquistar o
poder e nele se manter, mudou seu comportamento, e passou a ser cúmplice de
aliados escroques e sem escrúpulos que atuam na política brasileira, cedendo, assim,
aos princípios para experimentar o “realismo político 42”, assumindo a cultura
patrimonialista que marca a forma conservadora de ser fazer política no Brasil.

Ao mudar sua prática política, protagonizou ações vergonhosas, como o


Mensalão, a balcanização dos cargos públicos e a espetacularização das campanhas
políticas. Ao ampliar seus aliados, elegendo o PMDB como preferencial, ressuscitou e
fortaleceu gente como José Sarney e Collor de Melo. Com a ajuda do PT, os atos de
corrupção de Renan Calheiros ficaram impunes. Diante da crise institucional vivida pelo
Senado, Sarney foi defendido pelo Presidente Lula, pelo PT e pelos capachos da
corrupção, como o PC do B. A omissão ou defesa da manutenção de Sarney na
presidência do Senado foi um exemplo claro de que parte da esquerda aderiu a uma

42
“Realismo político” significa perceber a realidade política como ela é, não como deveria ser. Significa
apartar a ética da política, usar dos meios disponíveis ou possíveis para impor seus interesses. Significa
ser bom e coerente até quando a bondade e a coerência permitam a manutenção do poder; ser
contraditório e corrupto quando conjunturalmente for necessário para se manter no poder. Cair no
realismo político é não agir em função de princípios, mas de interesse e resultados. O realismo é a arte de
ser pragmático.
113

43
prática de conquista do poder pelo poder. Para Lula: “Sarney tem história no Brasil
suficiente para que não seja tratado como se fosse uma pessoa comum”.

Por que o Governo Lula e o PT não tomaram uma postura corajosa e decente
frente à crise do Senado? Porque o PMDB fazia parte da rede de interesses do PT. Entre
eles, a troca de favores e a lealdade política significam compensação e retribuição,
principalmente enquanto se enxergam como portadores de utilidades recíprocas. E
quais eram os interesses que envolvem Lula e o PMDB? Os mais visíveis eram:
aprovação das Medidas Provisórias e Projetos do Governo; impedimentos das CPIs que
tentam apurar irregularidades cometidas pelo governo; e garantia da eleição de Dilma
Rousseff como sucessora de Lula. Logo, a saída de Sarney criaria condições para a
oposição disputar e ganhar a presidência do Senado, atrapalhando os interesses do
governo Lula e do PT.

E por quê, mesmo com tantos escândalos, o Governo Lula foi bem avaliado e
não gerou grandes conflitos com os setores sociais? Porque o governo articulou bem
um tripé que garantiu a sua manutenção. No campo econômico, o governo manteve
uma política que, no macro, além de bem-sucedida, representava os interesses do
capital financeiro, dos agronegócios e do setor da construção civil. No campo social, o
governo promoveu políticas compensatórias importantes, como o Programa Bolsa
Família; a expansão do ensino superior e tecnológico; o Projeto Luz para Todos; e os
Pontos de Culturas que fazia parte do Programa Cultura Viva. Na sua relação com a
sociedade civil, em vez de abrir canal de participação e negociação, o governo
transferiu recursos, para várias atividades, por meio de convênios com sindicatos,
institutos, fundações e ONGs, prática que funciona como instrumento de cooptação,
profissionalização de lealdades políticas e engessamento. Além disso, tanto em relação
à boa avaliação do governo Lula quanto à sua blindagem contra os escândalos de
corrupção, penso que a hipótese de Guillermo O’Donnell (1991) sobre a democracia
em alguns países da América Latina tem validade para o Brasil, ou seja, no Brasil, temos

43
Opinião emitida durante uma entrevista dada em 16.06.2009, quando da sua visita ao Estaca
(Cazaquistão), publicada em vários jornais do país.
114

uma democracia duradoura, mas não concluída, que se caracteriza por ser delegativa 44,
onde o mandatário passa a ser uma síntese da nação. E o complemento, para
explicação da blindagem feita em torno do Governo Lula, é dado pela constatação de
Martins (1999, Pg.38):

“Muito do que parece aos olhos da classe média letrada como arbítrio e roubo, não
aparece com a mesma conotação aos olhos da grande massa pobre, rural e urbana.
Até porque essa massa, de um modo ou de outro, está inteiramente integrada na
política do favor: praticamente tudo passa pela proteção e pelo favorecimento dos
desvalidos. Mesmo nos setores dos serviços públicos onde se situam os focos mais
conscientes da crítica à corrupção, e de elaboração do discurso abstrato sobre a
cidadania, como é o caso da Universidade, e mesmo a impressa, os mesmos críticos
estão muitas vezes envolvidos em práticas cotidianas de troca de favores com
superiores, colegas e funcionários administrativos, seja para receberem benefícios
pessoais, como promoções ou facilidades, ou aliciamento para conseguir que um
chefe ou colega se omita no cumprimento de um dever funcional que se
transformaria em exigências de trabalho que muitos preferem evitar (...) Tudo
perfeitamente integrado na lógica das concepções oligárquicas relativo a troca de
favores”.

A ausência de decisões políticas que moralize e promova a atualização


institucional do Senado está, em parte, relacionada com as formas de dominação
instituídas pelo PT no interior da República. O escândalo do Senado revelou que a
instituição é utilizada não para o bem do País, mas no interesse daqueles que ocupam
cargos, ou de grupos favorecidos, o que pode ocorrer não só com os mecanismos de
favorecimento deste ou daquele grupo de particulares, mas com decisões institucionais
equivocadas, como os atos secretos.

Apesar da avalanche de denúncias contra o presidente do senado,


principalmente as publicadas pela imprensa entre os dias 22 e 27 de julho de 2009, o
44
“As democracias delegativas se fundamentam em uma premissa básica: o candidato que ganha uma
eleição presidencial é autorizado a governar o país como lhe parecer conveniente. O que ele faz no
governo não precisa guardar nenhuma relação com o que ele disse ou prometeu durante a campanha
eleitoral [...] Tipicamente, os candidatos presidenciais vitoriosos nas democracias delegativas se
apresentam como estando acima de todas as partes; isto é, dos partidos políticos e dos interesses
organizados. A idéia de obrigatoriedade de prestar contas (accountabillity) a outras instituições – como o
Congresso e Judiciário – aparece como impedimento desnecessário à plena autoridade que o presidente
recebeu ( O’Donnell, 1991, p.30)”.
115

Presidente Lula, mesmo considerando que a situação de Sarney era delicada, manteve
firme seu apoio pela permanência do presidente no Senado. Lula não quis que a CPI da
Petrobras entrasse em funcionamento, se entrasse que não se apurasse nada, para isso
precisa do apoio do PMDB. O temor de Lula era que, ao abandonar Sarney, o PMDB se
aliasse ao PSDB inviabilizando a candidatura de Dilma Rousseff, que presidia o
Conselho Administrativo da Petrobras. Todavia, seguindo conselho de seus assessores,
a partir das denúncias que ligam Sarney aos Atos Secretos, Lula passou a atuar mais
nos bastidores, restringindo suas manifestações públicas em defesa de Sarney.
Contudo, uma pergunta inquieta: o que a CPI da Petrobras poderia ter revelado de tão
danoso que apavorou tanto o Presidente Lula?

UMA ANÁLISE DA OFENSIVA PATRIMONIAL

Na política brasileira, temos uma circulação de dinheiro do setor privado


(bancos, empresas, construtoras, consultorias, sindicatos, ONGs) para campanhas dos
políticos. Um trânsito de dinheiro público, via tráfico de influências para o setor
privado e para o próprio político, e um movimento de dinheiro do político para os
eleitores, assessores e cabos eleitorais. Essa engenharia financeira é um dos pilares da
formação de lealdades políticas que impedem a distinção ou reflexão, de forma densa,
sobre aquilo que é da ordem do público e do privado, do que seja da ordem dos
direitos individuais (da pessoa) e da ordem da cidadania (comum a todos). É dentro
dessa ordem patrimonial onde o clientelismo político impera. Como nos esclarece
Martins (1999 pg. 28):

“O clientelismo político sempre foi e é, antes de tudo, preferencialmente uma


relação de troca de favores políticos por benefícios econômicos, não importa em que
escala. Portanto, é essencialmente uma relação entre os poderosos e ricos e não
principalmente uma relação entre os ricos e os pobres. Muito antes de que os
pobres pudessem votar e, portanto, negociar o preço do voto, já o Estado tinha com
os ricos, isto é, os senhores de terra e escravos, uma relação de troca de favores: a
Coroa portuguesa, por pobreza ou avareza, recorria ao patrimônio dos particulares
para realização dos serviços públicos, pagando, em troca, com o poder local e
honrarias [...] No fim das contas, esses mecanismos não eram apenas os
116

complicados mecanismos do poder numa sociedade sem representação política.


Eram também os complicados e tortuosos mecanismos da acumulação da riqueza.”

A política no Brasil sempre caminhou contra as suas potencialidades regionais,


naturais e do seu povo. Não obstante, cada vez mais as pessoas (opinião pública)
exigem a eliminação de privilégios e monopólios para que se abram oportunidades
para todos, o que denota é uma atitude comum aos princípios do liberalismo político e
republicano. Todavia, o que tomamos conhecimento pela mídia, sobre o que foi
praticado no Senado revela uma política exclusiva de privatização de privilégios para
parte dos que detêm o monopólio do poder. Para Weber, a política sem cultura e
sensibilidade moral seria pouco mais do que cobiça privada realizando-se graças aos
meios públicos. No Congresso Nacional, encontramos uma situação em que a cobiça
privada de alguns se realiza mediante o uso indevido da coisa pública.

O PT nasceu historicamente como partido com um projeto novo de sociedade,


não queria o capitalismo, nem o “socialismo real” e nem a social-democracia europeia.
Acreditava numa sociedade de economia socialista, articulada com a democracia,
defendida como valor universal. Nasceu para fazer a ruptura com a cultura política
patrimonial, mas, ao chegar à presidência da república, se encantou com o poder, viu
no “realismo político” o melhor caminho para se perpetuar no poder, e passou a aderir
à prática clientelista.

O PT é um partido que completou um ciclo 45. O charme do “ Modo Petista de


Governar”, implantado na Prefeitura de Porto Alegre (RS), e nas duas primeiras
administrações em Icapuí (CE) e em Santo André (SP), foi deixado de lado. O PT, hoje, é
um partido sem projeto, todavia, o que alguns de seus parlamentares mais gostam é o
que a cultura autoritária mais busca: a obediência. Assim, tratam os críticos como

45
Nesse sentido, o PT, através de vários comportamentos, parece sinalizar para um percurso inverso à sua
trajetória, ou seja, depois de ter se transformado num Partido de Massas caminha, agora, para um Partido
de Quadros. Na clássica elaboração de Maurice Duverger (1970), os Partidos de Massas são fundados a
partir de princípios ideológicos, na militância ativa de seus filiados e em formas organizacionais
complexas. Já o Partido de Quadros tem sua base em grandes personalidades carismáticas, tem orientação
marcadamente eleitoral e as decisões de sua direção têm mais força de que as manifestações de suas
bases. O modelo dos Partidos de Massas se caracteriza por uma orientação socialista, pela distribuição
social do poder e pelo engajamento na transformação social, enquanto os Partidos de Quadros têm suas
ações marcadas pela disputa de poder na dinâmica do capitalismo.
117

inimigos, negando-lhes o direito ao exercício pleno da cidadania. O PT, embora possua


várias instâncias de participação e deliberação de sua militância, é controlado pelo
presidente Lula e seu grupo. Dois casos servem de exemplo: a imposição de Dilma
Rousseff como sua sucessora e o enquadramento da bancada de senadores do PT
diante da Crise do Senado. Como diz Max Weber: “o domínio de um grande homem
nem sempre é um meio de educação política”.

O PT não é um partido monolítico, é composto por várias tendências, tem,


ainda, uma militância orgânica, continua sendo o partido mais organizado da sociedade
brasileira. No seu interior, encontramos ainda vozes com posições que discordam de
certas posições tomadas. O Depoimento do Deputado Federal Domingos Dutra,
Presidente do PT do Maranhão, em entrevista a Maurício Savarese, do UOL notícias em
23.07.2009, é um exemplo:

“As lideranças nacionais estão evitando fazer críticas ao Presidente Lula, mas não
têm como dizer de outro jeito: esse apoio é uma vergonha. Temos um presidente
com 80% de popularidade. Temos um partido com 30% de preferência, o segundo
colocado tem 8%. E aí, depois de sete anos de governo bem avaliado, a gente tem de
pedir esmola para o Sarney? O governo já deu seis ministérios para eles. O Sarney
tem os cargos nos estados, mais agências. O governo tem credibilidade e a gente
ainda tem de ficar de joelhos para eles? É claro que não tem [...] Só nas últimas
semanas uns dez ministros passaram por aqui. Nos governos de dois adversários de
Sarney, o Jacson e o Zé Reinaldo (Tavares, PSB), não vinha ninguém. E estão
esperando para as próximas semanas a primeira visita do Lula a São Luís, com Dilma,
todo mundo.”

Em Max Weber (1982), temos uma teoria da política que ressalta a liderança e
a responsabilidade ética. Para ele, uma política sem consciência se corrompe,
transformando-se em poder. No meu entendimento, ao flexionar o seu projeto
político, o PT passou a disputar o poder pelo poder, ou seja, passou a fazer da política
a expressão de poder e conflito para fins de controle e dominação. Isso é tão patente
que Lula abriu mão de fazer da política um debate aberto de ideias e confronto de
projetos políticos, além de antecipar a campanha de 2010, apresentando Dilma
Rousseff como sua sucessora (já em 2008).
118

O patrimonialismo, um dos fundamentos da formação histórica do Brasil, ainda


é uma presença forte em nossa vida política, talvez nunca seja eliminado de todo;
mesmo em democracias mais avançadas, encontramos formas de sua manifestação,
todavia, no caso do Brasil, no período de redemocratização, a prática patrimonial vinha
sendo inibida, inclusive com a fiscalização do PT. Lamentavelmente, durante o Governo
Lula, não tivemos indicação de nenhuma ação ou esforço deliberado de inibição das
práticas patrimoniais, pelo contrário, encontramos todo um esforço para sua
expansão46, esforço que ficou patente nas disputas internas do PT por cargos todas as
vezes que o partido ganhava uma fatia do poder. Esse comportamento passou a
prevalecer desde quando o PT abandonou a luta anticapitalista, abriu mão do
socialismo como objetivo político e, desde a famosa “ Carta ao Povo Brasileiro”, que era
, na realidade, para tranquilizar os banqueiros e empresários, passou a viver da
concessão apaziguada.

Particularmente, acho mais saudável para a democracia os embates e conflitos


abertos que ocorreram entre o MST e o Governo de FHC do que o processo de
negociação silenciosa que marcou a prática política do Governo Lula com vários setores
da sociedade. A guinada do PT ao encontro da cultura patrimonial, alegando a
necessidade de governabilidade, talvez se explique melhor pela aguçada observação
de Martins (1999, pg.31):
“As novas classes prontamente se ajustam aos mecanismos do clientelismo, tanto a
burguesia quanto a classe operária. A História da moderna burguesia brasileira é,
desde o começo, uma história de transações com o Estado, de troca de favores. O
que talvez explique a apatia da burguesia brasileira, que nunca se pôs claramente o
problema da sua responsabilidade política como classe dominante. Ela atua por
delegação, por interpostas pessoas, através dos mecanismos do clientelismo político.
O mesmo se dá com a classe operária.”

46
Uma declaração de Lula, no dia 30.07.2009, em São Paulo, na Sede da FIESP, em uma entrevista
concedida ao lado da presidenta do Chile, Michelle Bachalet, ele afirma não ter responsabilidade pelos
desmandos no Senado e que não cabe a ele decidir sobre a permanência do Sarney na presidência do
Senado. Depois do apoio público dado pela manutenção de Sarney, diz Lula: “não é problema meu. Eu
não votei para eleger Sarney presidente do Senado, nem votei em Temer, nem votei no Arthur Virgilio.
Votei nos Senadores de São Paulo. Quem tem que decidir se ele continua presidente do Senado é o
Senado, não sou eu”.
119

Na Alemanha, Bismarck tornou a burguesia contente por ter atendido aos


interesses dela a ponto de não mais precisar disputar o poder político real ou a
representação parlamentar. Por outro lado, com suas minguadas políticas sociais,
acomodou os trabalhadores e os setores sociais, tornando-os complacentes com o
governo. Otto Bismarck apagou a centelha de liberdade política, ao tornar o povo
submisso a sua autoridade política quando deveria torná-lo corajosamente subversivo.
Assim, Bismarck deslocou-se de um desejo de ser livre para vontade de controlar.
Então, não seria Lula e o PT o nosso Otto Bismarck?

O ESVAZIAMENTO DA FUNÇÃO DE REPRESENTAÇÃO

A propaganda política nos faz aceitar, sem questionar, a contradição entre o


discurso de que o presidente da república pode tudo e o de que, se não conta com
uma maioria no Congresso, é forçado a buscar alianças com partidos políticos que
compõem o Legislativo. Sem maioria, um presidente não tem como governar, por
isso toda aliança pode ser justificada em nome da governabilidade. O primeiro
discurso é alimentado pelos candidatos, em tempo de campanha, ao prometerem
tudo e ao dizerem que vão fazer tudo. O segundo é produzido depois da vitória, no
ato de governar. Além de contraditórios, os dois discursos são falaciosos, porém,
aqui, nosso foco é o segundo. Pesquisas e estudos recentes (Limongi - 1998; Santos -
2003) demonstram que o segundo argumento não é tão verdadeiro, pois o
presidencialismo no país dota o Executivo de amplos poderes, inclusive de legislar. O
Executivo se encontra em uma posição estrategicamente favorável para negociar com
os partidos, tem vantagem de proposição e o monopólio de acesso aos cargos e
recursos públicos.

A Constituição Federal – CF define que o Poder Legislativo (art. 44) será exercido
pelo Congresso Nacional, composto pela Câmara dos Deputados (art. 45),
representando o povo, e pelo Senado (art. 46), representando os Estados e o Distrito
Federal. Os deputados são leitos pelo sistema proporcional e os senadores pelo
sistema majoritário. Não obstante, no período de eleições, o critério de escolha é o
mesmo, os candidatos ao Senado apresentam-se como representantes do povo; sua
120

campanha é descolada de um projeto de desenvolvimento e integração nacional para


sua unidade federativa. Para os partidos políticos, o cargo ao Senado é um
instrumento de barganha para articulação de alianças em torno das candidaturas
para o governo estadual. Em muitos dos casos, o candidato é alguém desconhecido
ou sem expressão política e técnica para representar o Estado; o suplente pode ser
qualquer um, nem votado pelo eleitor é. São poucos, ou quase inexistentes, os
candidatos que se preparam para disputar uma vaga no Senado como primeira
opção. A primeira opção para o Senado é sempre comum em caso de reeleição. Há
quem defenda que a competência atribuída ao Senado poderia ser desempenhada
pela Câmara Federal, não tendo, portanto, sentido sua existência.

A tese de Fabiano Santos é a de que o sistema político brasileiro, que


emergiu da Constituição de 1988, passou por uma transição entre um sistema
presidencialista fragmentado em facções para um sistema presidencialista de
coalizão racionalizado. Quanto à questão da estabilidade da formulação de política
pelo legislativo, ele assim se pronuncia (2003, pg.22):

“Defendo a tese de que somente o direito exclusivo de iniciativa em matéria


orçamentária pode explicar por que os partidos parlamentares brasileiros se
projetam como uma importante instituição para a coordenação do comportamento
legislativo, desde a promulgação da Constituição de 1988 [...] O monopólio do poder
executivo em assuntos distributivos retirou da alçada dos congressistas um
instrumento fundamental para manter e ampliar sua influência política. Com o
monopólio, a única fonte de distribuição de benefícios paroquiais é o próprio
Executivo, o que significa que o presidente ganha um enorme poder de barganha
perante cada parlamentar [...] Mudanças institucionais introduzidas como forma de
incrementar a capacidade do Executivo de superar possíveis obstáculos congressuais
à implementação de políticas promovem, como uma conseqüência não prevista, um
comportamento mais disciplinado dos partidos nas votações em plenário.”

No sistema presidencialista de coalizão, o presidente articula os apoios para


aprovação de seus projetos ou para formação de uma base de aliados que sustentem
seu governo mediante a distribuição de cargos e de recursos orçamentários entre um
ou alguns partidos. Por certo período, foi hegemônica, no Brasil, a ideia desenvolvida
por estudiosos do sistema político brasileiro, como Abranches (2002), de que a
combinação de presidencialismo e representação proporcional produz,
necessariamente, a ingovernabilidade. Em meados dos anos de 1990, pesquisas
121

empíricas vêm fazendo tal argumento perder força. O cientista político, Fabiano
Santos, argumenta que a tese da ingovernabilidade é frágil e tem como fundamento
conceitual a teoria do voto personalizado. Essa teoria afirma que a transferência de
prerrogativas do Legislativo para o Executivo decorre do paroquialismo dos
representantes eleitos no contexto do sistema proporcional de listas abertas.

O principal elemento do nosso sistema político, segundo Fabiano Santos, é o


sistema de transferência de votos. A teoria do voto personalizado não tem validade
para o Brasil porque os parlamentares eleitos para o Congresso Nacional não
possuem ideia clara de onde vieram os votos que contribuíram para sua eleição, pois,
no sistema de transferência de votos, que ocorre interpartidos e entre partidos nas
alianças e coligações, a totalidade dos votos de eleitores que não conseguiram eleger
seus representantes contribui para eleger outro candidato. Assim, os eleitos não
conhecem a sua verdadeira constituency eleitoral, logo não sabem a quem
representar, não sabem qual a preferência de seus eleitores e não sabem a quem
prestar contas (accountability).

No nosso sistema eleitoral, os deputados e senadores têm um problema de


representação a resolver. Como fazer para tornar-se accountable? Como identificar
sua constituency eleitoral? É nestas circunstâncias, segundo Fabiano Santos (2003,
p.45):

“Que o presidente assume importância crucial, pois nele residem as respostas às


dúvidas de deputados em busca de constituency e accountability. As eleições
presidenciais produzem um ator de grande visibilidade e capacidade política. Sobre
ele incidem expectativas de desempenho governamental incomparáveis às de
qualquer outro agente ou instituição. O número de cargos à disposição, o poder de
agenda e da mobilização dos meios de comunicação tornam o presidente figura
ímpar em qualquer sistema presidencialista. A posição dos deputados em relação
às políticas propostas e realizadas pelo Executivo é fonte essencial de sinalização
para sua base virtual. Em outras palavras, nessas condições o presidente se
transforma no intermediário dos representantes junto a seus representados.”
122

Florestan Fernandes, intelectual de formação marxista e deputado


constituinte pelo PT, num balanço da sua participação na política, afirmou que a
burguesia no Brasil não precisa dos partidos para dominar, pois a hegemonia burguesa
no país é exercida de forma direta. No parlamento, os políticos profissionais dominam
as técnicas parlamentares como técnicas de estado a serviço da monopolização do
poder. As mudanças que ocorrem são frutos de acordos que fazem parte de uma
estratégia de dominação política e não de um processo de rupturas com a ordem
institucional burguesa. Para ele (1989, p.128), as medidas provisórias são uma
demonstração clara de que o executivo está interessado em desmoralizar o
parlamento, cito-o:
A introdução das medidas provisórias – artifício que permitiria ao poder executivo
enfrentar um problema emergencial de gravidade – acabou servindo para que o
executivo agisse de forma arbitrária e, ao mesmo tempo, ostensivamente, negativa
em relação ao Congresso Nacional. Na verdade, confundiram deliberadamente
medida provisória com decreto-lei, inundando o Congresso Nacional com tais
medidas. O executivo tem ao alcance das mãos um meio para paralisar o Congresso
Nacional, pois ficamos girando em torno da discussão de tais medidas. Isso foi
produto de uma imitação da Espanha e da Itália. Mas nos não estamos nem na
Espanha e nem na Itália, não temos um regime parlamentarista. Além disso, nosso
presidente é cada vez mais irresponsável perante os demais poderes da nação.
Conseqüentemente, a medida provisória acabou se tornando um instrumento de
arbítrio do poder presidencial, do poder imperial, da república autocrática. Esse é
um bom exemplo: os poderes que deveriam ser independentes, autônomos,
reciprocamente fiscalizados, acabam não o sendo, na medida em que só existe um
poder verdadeiro e hegemônico, o Executivo. Os políticos, por sua vez, não lutam
contra isso, já que a grande maioria está muito mais presa ao Executivo do que ao
parlamento. O nexo oculto da dependência está no clientelismo. Quem dispõe de
meios para dar ao político profissional e aos partidos – que são os partidos da
ordem - , recursos para a reeleição e para ganhar eleições é o Executivo. Assim, o
poder de contestação do parlamento é mínimo.”

A argumentação de que a aliança do PT com o PMDB é fundamental para a


governabilidade se explica, em parte, pelo alijamento da sociedade civil do processo de
decisão política e pela renúncia do PT em governar apoiado nos movimentos sociais
123

que têm suas ações dirigidas no sentido de liquidar as desigualdades sociais. É reflexo,
portanto, de um partido que disputa o poder pelo poder, sem problematizar a fixação
dos fins da ação do Estado, pois, ao definir os fins da ação do Estado e montar um
programa político que os materialize, pode-se, com clareza, saber quem são os aliados
para governabilidade. Para quem quer apenas se perpetuar no poder, o maior interesse
não é a governabilidade, mas a força. Governabilidade diz respeito a quem fixa os fins
do Estado diante dos diversos interesses em conflitos.

A questão da governabilidade entrou como elemento de reflexão relevante no


debate político durante o governo de FHC, contudo, Fábio Wanderley Reis
(1995:41)nos chama a atenção para a vulgarização e a impropriedade no uso do
conceito, não é inocente ou inconsequente:

“Governabilidade é um atributo daquilo que é governado, isto é, da sociedade. No


entanto, o uso que se vulgarizou recentemente pretende indicar como expressão
uma característica da máquina do Estado [...] Há, contudo, a sociedade – e há a
política. E o desafio crucial reside na obtenção daquela forma específica de
articulação do Estado com a sociedade na qual se reconheça que o problema da
administração eficiente não pode ser dissociado do problema político, ou seja, do
problema de garantir também a operação democrática do Estado.”

No caso do Governo Lula e de sua relação com o PMDB, não se tratou de um


mero caso de governabilidade, mas da formação de lealdades privadas 47, via
aproveitamento de ocupação de funções públicas e liberação da verba parlamentar
para vários usos ( até festas e shows milionários), estando presente a supremacia dos
interesses particulares de grupos sobre o interesse público e sobre o funcionamento
das instituições políticas. Nesse sentido, o Governo Lula não foi refém dos
desordenamentos vividos pelo país, mas cúmplice. A desvalorização da política e a
desmoralização das instituições são fruto de ações conscientes e de estratégias cuja
finalidade é a manutenção de vaidades, do status, do poder e da promoção do

47
Por ocasião da inauguração de obras em Alagoas, no dia 15/07/2009, Lula, quando discursava ,fez a
seguinte declaração: “ Eu quero aqui fazer justiça ao comportamento do senador Collor e do senador
Renan, que têm dado uma sustentação muito grande aos trabalhos do governo no Senado.”
124

enriquecimento de determinados grupos econômicos que, nos bastidores, financiam


seus leais servidores.

BIBLIOGRAFIA:

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Horizonte, 2008.

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Ricardo Antunes, Revista Ensaios, n.º 17/18, pg. 123 -158. Editora Ensaios, São Paulo,
1989.

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MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. EDUNB,


Brasília, 1982.

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Editora Hucitec, São Paulo, 1999.
125

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WEBER, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. Editora Cultrix, Rio de Janeiro, 1982.

REIS, Fábio Wanderley. Governabilidade, Instituições e Partidos. Novos Estudos,


CEBRAP, São Paulo, 1995.

SANTOS, Fabiano. O Poder Legislativo no Presidencialismo de Coalizão. Editora UFMG,


Belo Horizonte, 2003.
126

CONCLUSÕES

Minhas conclusões, nesse momento em que abandono a pesquisa, são


provisórias e estão abertas a revisões. Todavia, nessa ocasião, elas estão consolidadas
mas,e ao se socializar com o público, podem ganhar novas interpretações, sentidos, e
posso encontrar, com a ajuda de outros olhares, minhas contradições, limites teóricos e
confrontos com a minha visão de mundo. A leitura do texto pode conduzir o leitor a
outras conclusões que não são, aqui, sistematizadas.

Penso que o governo Lula preservou do governo FHC, durante o primeiro


mandato, a continuidade da política econômica,48 e,nos dois mandatos, preservou sua
forma patrimonial de fazer política, cuja marca foi a proteção da irresponsabilidade dos
que eram indicados para cargos de confiança, e, o mais grave, a ação de impedir e
desqualificar as denúncias dos desmandos na coisa pública e na análise crítica desses
comportamentos.

A partir do final do primeiro mandato, o governo Lula conseguiu dinamizar o


mercado interno pela implantação do programa bolsa família e de linhas de créditos
consignados, ganhando popularidade e, astuciosamente, conseguindo desarticular e
humilhar o PSDB e o DEM. Antes, havia conseguido expurgar do interior do PT os
radicais que se abrigaram no PSOL, mas não conseguiu mudar a cultura política no país,
cedendo de forma escabrosa, à sedução dos esquemas de corrupção.

48
Como bem registrou Emir Sader, em seu livro A Vingança da História (2003, p.192-3): “o governo Lula
assume com uma atitude conservadora, privilegiando a defesa contra o risco de perda de controle da
situação, seja pela fuga de capitais e nova desvalorização acelerada da moeda nacional, seja pelo aumento
descontrolado da inflação(...). Dessa forma, a linha econômico-financeira adotada inicialmente pelo
governo Lula não parece conduzir a diminuição da taxa de juros, com efeitos benéficos previstos,
transformando o círculo vicioso atual num círculo virtuoso. Em outras palavras, não há indicações de que
o primeiro tempo de governo conduzirá ao segundo.”
127

O governo Lula, através do Programa de Aceleração do Crescimento I e II,


conseguiu aumentar os investimentos em políticas públicas estruturantes para
expansão do capital no país, aumentou também os gastos com políticas sociais para os
empobrecidos e promoveu uma expressiva mobilidade social; porém, mas tudo isso
numa proporção em que tais benefícios chegaram aos pobres através da abertura de
torneiras e, aos ricos, através da abertura de comportas de hidrelétricas. Basta uma
comparação do que o governo Lula investiu no agronegócio com o que destinou para
agricultura familiar49. Assim, o governo Lula foi uma mãe para os ricos e um padrasto
para os pobres. Em termos de direção moral, não construiu uma sociedade nova e nem
se atreveu a iniciar um processo de reformas que sinalizasse algum tipo de ruptura com
qualquer setor do capitalismo.

O comportamento político do PT no governo demonstrou que sua estratégia de


conquistar o poder, permanecer nele e se prolongar com ele se deu pela renuncia a
qualquer forma de ruptura com a ordem política conservadora e pela renúncia aos
conflitos com os interesses do mercado – o que já havia sido anunciado na carta ao
povo brasileiro. Tal comportamento selou o abandono total ao seu projeto democrático
e popular e sinalizou, para seus militantes, que o governo Lula não era um projeto a ser
disputado no interior do partido, o que justificou a expulsão do grupo organizado em
torno da senadora Heloísa Helena. A partir dessa opção, o partido tornou-se aliado dos
setores mais atrasados da sociedade, incorporando o patrimonialismo em sua estrela.

O governo Lula encerrou o ciclo de acumulação capitalista pelo modelo


nacional-desenvolvimentismo, cuja grande crise, iniciada no início da década dos anos
de 1960, teve como solução a trágica Ditadura Militar. Do período de repressão,
afloraram, das contradições de nosso processo societal, um novo sindicalismo e uma
ação progressista no seio da Igreja Católica (Cebs, CPT, PJMP), sob a influência da
Teologia da Libertação, surgiram os movimentos de bairro, e também o MST e o PT
49
A comparação da agricultura familiar com o agronegócio é relevante porque, entre ambos, há uma
disputa entre dois modelos de organização da produção agrícola no país. A agricultura familiar, rompendo
com a lógica do lucro pelo lucro, defende um sistema de produção de alimento com uso intensivo de mão-
de-obra, sem uso de agrotóxico, sem uso de sementes transgênicas, e respeitando o meio ambiente. O
agronegócio é um sistema de exploração da terra, praticado por grandes proprietários e empresas
transnacionais, baseado no monocultivo, no uso de agrotóxicos, na mecanização de todo processo
produtivo, e voltado para o mercado externo.
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como orientação socialista de novo tipo. Nessa atual crise, o capitalismo encontrou no
PT os condutores da melhor e mais eficiente saída para o prolongamento de seu
projeto. E foi com Lula no poder que o Estado getulista fechou o ciclo. Lula incorporou
o espírito de Getúlio Vargas para liquidar com o resto do nacional-desenvolvimentismo
implantado em 1930, o que deixou FHC com ressentimentos e ciúmes, pois esse era o
seu desejo.

Com o fim do nacional-desenvolvimentismo, passamos a ser


internacionalmente classificados como país emergente, mas, por ironia da história, no
momento em que os EUA e a Europa nos alertam que, depois de emergir, se entra
num ciclo de crises que parecem ser imanentes ao capitalismo. Se com a crise
estrutural do capitalismo, aflorada em 2008, alguma coisa termina nos países
desenvolvidos, como o fim moderno Estado de bem-estar social, o que se inicia entre
nós, de forma precarizada e mitigada, parece nos condenar a sermos sempre uma
experiência de capitalismo atrasado. Isso implica, então, que uma práxis social bem
sucedida poderia resolver as contradições objetivas da sociedade burguesa, mas
somente destruindo essa sociedade? Se respondermos que sim, o PT, enquanto ação
transformadora da ordem capitalista, nunca existiu durante a estadia de Lula no
Planalto Central. Logo, podemos deduzir porque Barack Obama, presidente dos
Estados Unidos, disse para o mundo que ele é “o cara”. Lula, ao ser seduzido pelo boto
cor de rosa, deixou de ser o sapo barbudo, virou um mito.

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