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AMÉRICA LATINA: DA IMPOSSSÍVEL EXISTENCIA À INFERIORIZAÇÃO.

[Texto não finalizado e não revisado]

Uribam Xavier1

O Mapa Babilônico do mundo, do século VI a.C , atualmente em exposição


no Museu Britânico, tem 2.500 anos de idade, foi encontrado em 1881 pelo
arqueólogo iraniano Hormuzd Rassan, nas ruínas de Sippar, antiga cidade da
Babilônia, hoje conhecida como Téll Abli Habbach – Iraque. O Mapa Babilônico é o
primeiro mapa conhecido no mundo e é, segundo Jerry Brotton [.......] “ mais do que
um simples mapa da superfície da terra: é um diagrama abrangente da cosmologia
babilônica, tendo o mundo habitado como sua manifestação.” E, em relação ao uso
dos mapas, desde os tempos antigos, pontua Brotton, que informações geográficas
eram de interesse dos diferentes religiosos e políticos, “ para xamãs, sábios,
governantes e líderes religiosos, os mapas do mundo conferiam autoridade secreta e
mágica aos seus criadores e proprietários. Se essas pessoas entendiam os segredos da
Criação e a extensão da humanidade, então elas certamente deveriam saber como
dominar o mundo terrestre em toda a sua diversidade aterradora e imprevisível[.....].”

No Mapa Babilônico o mundo é representado como um disco plano e a


Babilônia se situa no centro do mundo. Todavia, no século IV a.C , os gregos haviam
afirmado, diferentemente dos babilônicos, que a terra tinha uma forma esférica.
Na cidade Jônica de Mileto, atual Turquia, que havia recebido muita influência dos
saberes e conhecimentos babilônicos, o filosofo Anaximandro de Mileto publicou o
primeiro mapa geográfico no qual aparece o primeiro contorno rudimentar da
formação do mundo como sendo composta pela Europa, Ásia e Líbia [África] e
algumas ilhas separadas pelo Mediterrâneo, pelo Mar Negro e o Rio Nilo. Por volta
de 150 d.C., Cláudio Ptolomeu escreveu sua obra “Geographiké Hyphêgesis”, que
ficou conhecido simplesmente como geografia “ um relato topográfico da latitude e
longitude de mais de 8 mil lugares da Europa, Ásia e África; uma representação sobre
o papel da astronomia na geografia; um guia matemático detalhado para fazer
mapas da terra e de suas regiões[...].” Nesse tempo, as terras e povos da parte do
mundo que hoje chamamos de continente americano não existia nem como
hipótese no imaginário da época.

Na sua obra História, Heródoto [ C.484-425 a.C], precisamente no quarto


livro intitulado Melpômene, aceita a divisão tripartida do mundo entre Europa,
Ásia e Líbia[ África]. Todavia, questiona a posição dos que descrevem a

1
Uribam Xavier – Professor da área de Ciência Política do Departamento de Ciências Sociais. Graduado
em Filosofia Política e Doutor em Sociologia, seu ultimo livro “ América latina no Século XXI – As
Resistências ao Padrão Mundial de Poder [ 2016].

1
circunferência da terra partindo do pressuposto de que a mesma é redonda. Além
disso, registra que os que descrevem o mundo habitado [Europa, Ásia e
Líbia/África] comentem o equivoco de achar que há uma justa proporção de
espaços territorial entre eles. Para ele: “realmente, a Europa quase iguala em
cumprimento às outras duas; mas não me parece que lhes possa ser comparada em
largura”.” E estranha à nomeação dos territórios: “ não compreendo por que, sendo
a terra uma só, lhe dão três nomes diferentes, e , aliás, nomes de mulheres [p. 459].”

O Esquema cognitivo da divisão tripartida do mundo ao longo da história


converteu-se numa divisão hierárquica e qualitativa entre os povos; apropriado
pelos intelectuais cristãos da igreja católica [ a patrística] que, modificaram o seu
sentido ao lhe atribuir a função de representar o dogma da unidade fundamental
da espécie humana, segundo o qual todos os homens descendem de Adão. Assim, o
cristianismo passou a difundir uma hermenêutica fundamentada em relato bíblico,
na qual a divisão tripartida da terra representava a repartição da mesma entre os
três filhos de Noé que saíram da arca depois do diluvio. Os filhos de Noé que
saíram da arca eram Sem, Cam e Jafé. Cam era o pai de Canaã, neto de Noé. E por
eles que foi povoada a terra [Gêneses, 9, 18-19].

O livro de Gênesis narra o episodio no qual Noé tendo se embriagado


e aparecido nu em sua tenda e, em seguida, perdido os sentidos, quando despertou
ficou sabendo que o filho mais novo, Cam, o havia visto nu e que os outros dois
filhos, evitando vê-lo despido, cobriram sua genitália. Noé, então, sentindo-se
ofendido pelo filho mais novo o amaldiçoou dizendo: “maldito Canaã! Seja servo
dos servos de seus irmãos. E acrescentou: - Sejam abençoados pelo Senhor as
terras de Sem! Canaã será seu novo servo, que Deus dilate Jafé, e ele habite nas
tendas de Sem. Canaã será seu servo” [Gêneses, 9 -25-27].

Na interpretação patrística, as três regiões geográficas do mundo passaram


a ser vistas como o lugar a onde se assentaram os filhos de Noé depois do diluvio.
Os filhos de Jafé povoaram a Europa, terra abençoada; os filhos de Sem povoaram a
Ásia; e os filhos de Cam, povoaram a África. Para narrativa cristã, os descendentes
de Jafé foram abençoados com a promessa de serem prósperos e de dominar as
outras regiões e escravizar os seus irmãos. Todavia, a Jafé lhe foi dado o direito de
aumentar, ampliar, colonizar, ou seja, dilatar suas terras, colonizando [habitando]
as terras de Sem. Cam foi amaldiçoado a ser escravos de seus irmãos, classificado
como infame e pecador. Na modernidade, os povos da África, Ásia e América
passaram a ser classificados, pelo pensamento cientifico e pela economia liberal,
como povos de cultura inferior, atrasada, primitiva, subdesenvolvidos e que,
portanto, tal situação justifica sua dominação e exploração por parte do mundo
desenvolvido e próspero.

2
A cosmologia cristã ao adotar como verdade a suposição de que o mundo
era dividido em apenas três continentes, passou a representar esse imaginário no
mapa cristão denominado de T em O. Todavia, as demais civilizações existentes na
época [ chinesa, indiana, Japonesa, árabe, Inca e asteca] não regionalizavam o
mundo de forma tripartida. Ao preserva e reinterpreta a divisão tripartida do
mundo, por razões religiosas e política: como o desejo de conquistar a hegemonia
no Ocidente e o combate a perda de espaço no Oriente para o Islã, o cristianismo
atribuiu a Europa um lugar privilegiado, uma região abençoada com o poder de
prosperar dominando e explorado as demais. Já a Ásia e a África eram lugares
amaldiçoado cujo destino era o de ser dominado, explorado, colonizado e
escravizado pela Europa. Por toda Idade Média a Igreja Católica Apostólica
Romana, achando-se a representante de Deus na terra e legitima portadora dos
poderes espiritual e temporal, dominou ,promoveu guerras, explorou, se impôs
como portadora da justiça, punindo com morte os considerados hereges ou infiéis
e colonizando boa parte do mundo.

O mapas T em O tem origem na descrição do mundo na obra Etimologia de


Isidoro de Sevilha [ 560 – 636]. Etimologia é uma obra composta por vinte livros
que expressam uma visão de mundo a respeito de sua época. O mapa foi impresso
em Augsburg [1472] e apresenta os três continentes conhecidos, que era
basicamente o território dominado pelos romanos na Antiguidade: Europa, norte
da África e oeste da Ásia, que formavam o Império Romano. Os continentes são
circundados por um grande oceano e por eles está passando o Mar Mediterrâneo [
forma o T ], que era o que se conheciam melhor. Ao norte está a Ásia porque ali, a
partir das interpretações bíblicas, acreditavam que havia o Éden criado por Deus.
Refletindo sobre essa questão Mignolo [2005, p.38], fez a seguinte afirmação: “ nas
divisões continentais e subcontinentais estabelecidas pela cartografia simbólica
cristã ( por exemplo, a tripartição do mundo continental conhecido até então:
Europa, África e Ásia), o horizonte colonial das Américas é fundamental, senão,
fundacional, do imaginário mundo moderno.”

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MAPA T em O

Fonte: geografiamb2.files.wordpress.com

A representação do mundo no mapa cristã T em O é a imposição de uma


narrativa na qual a distribuição dos povos no espaço territorial é classificada de
forma hierárquica entre abençoados e amaldiçoados, entre superiores e inferiores,
senhores e escravos. Para Santo Agostinho, na sua obra Cidade de Deus, não podia
haver existência de homens em outras partes do mundo diferentes da orbis
terratum [terra habitada] e caso houvesse habitantes em algumas ilhas
desconhecida eles não poderiam ser classificados como humanos. Agostinho ainda
rompe com a visão grega de que a terra tinha formato esférico e revalida a antiga
visão da civilização babilônica de que o mundo era plano. Diz ele [2012, P.227]:

Quanto à fabula dos antípodas, quer dizer, de homens cujos pés pisam o
reverso de nossas pegadas na parte oposta da terra, onde o sol nasce, quando
se oculta de nossos olhos, não há razão que nos obrigue a dar-lhe crédito. Tal
opinião não se funda em testemunhos históricos, mas em meras conjeturas e
raciocínios aparentes, baseados em estar a terra suspensa na redondez do
céu e o mundo ocupando o mesmo lugar, ínfimo e médio. Daí deduzem não
poder carecer de habitantes a outra parte da terra, quer dizer, a parte
debaixo de nós. E não reparam em que, mesmo crendo ou demonstrando com
alguma razão que o mundo é redondo e esférico, não é lógico dizer que a

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terra é coberta de água por esse lado. A escritura, que dá fé das coisas
passadas precisamente porque suas predições se cumprem, não mente. Além
de parecer enorme absurdo dizer que alguns homens, atravessada a
imensidade do oceano, puderam navegar e arribar à referida parte com o fito
exclusivo de salvaguardar em sua origem a continuidade unitária do gênero
humano.

A crença da não existência dos antípodas decretava a não inexistência e o


não povoamento da América2; essa possibilidade era considerada uma heresia
contra a revelação divina por meio da palavra de Deus [Bíblia]. Todavia, a região
que recebeu a denominação de América, tida como inexistente até 1492, era
habitada, seus povos se referiam a ela por meio de várias denominações: Abaya-
yala [região do Panamá e andina], Tawantinsuyu [território Inca] e Anáhuac
[território Asteca]. Segundo Charles Phillips [2007, p.6]: “a atividade humana na
área do México e da vizinha Guatemala remota há 20.000 anos ou mais, aos tempos
que os primeiros caçadores-coletores se estabeleceram nessa zona. Durante a etapa
que medeia esse momento até o apogeu do Império Asteca, nos séculos XIX-XVI a.C,
numerosas civilizações nasceram e declinaram nessa região.”

Com a hegemonia do cristianismo no mundo ocidental, mesmo que em


alguma ilha, fora da representação do mapa T em O , pudesse ser habitada não
seria por formas de vida humana. Essa crença era tão consolidada que as grandes
navegações do período mercantilistas não cogitavam encontrar ou chegar à
América. Como afirma Edmundo O’Gorman: “ o projeto de colombo é de uma
simplicidade dórica: pretendia atravessar o Oceano na direção do ocidente para, a
partir da Espanha, alcançar os litorais extremos orientais da ilha da terra e unir,
dessa forma, a Europa à Ásia [1992, p.100].” Na execução do seu plano, apoiados
pelos reis Fernando e Isabel da Espanha, Colombo avistou o que seria depois
denominado de Novo Mundo, no dia 12 de outubro de 1492, mas tinha certeza de
haver chegado na Ásia [ índias], no extremo oriente da ilha da terra [ Orbis
Terrarum], lugar que chamou de San Salvador e morreu com essa crença.

Para O’Gorman , “ é claro que a atitude de Colombo significa ter dotado de um


ser as regiões que encontrou. O ser que lhes comunica a crença de ser uma parte da
Ilha da Terra.” Tratou-se, é claro, de um erro que será confirmado posteriormente
pela história, o que significou a passagem de um ser para outro, processo no qual
acontece o que O’Gorman denominou de invenção da América.

2
Como nos informa Jerry Brotton[.....] : “ Para as pessoas do início do século XVI, a descoberta de novos
lugares, até mesmo de novos mundos, era vista com cautela, até mesmo com suspeita. Isso contestava
os fundamentos do conhecimento herdado de escritores clássicos como Aristóteles e Ptolomeu e
questionava até mesmo a autoridade bíblica: se o novo mundo da América e seus habitantes realmente
existiam, por que não estavam mencionados na Bíblia?.”

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Até os fins do século XV, segundo Walter Mignolo [2005], a cristandade era
uma posição marginal que identifica o Ocidente com Jafé, que era também a mesma
Europa da mitologia grega3, distinta da Ásia e da África. Portanto, essa Europa
ainda não era a Europa que vai ser constituída como o centro do mundo a partir do
século XVI, depois da expulsão dos judeus e da derrota dos mouros e da conquista
do Novo Mundo por parte da Espanha. É somente após a conquista do Novo Mundo
que o cristianismo passou a forjar um novo imaginário ocidental sobre a Europa e
a América que marcará a formação de um novo padrão de poder mundial: o mundo
moderno colonial.

O primeiro mapa a nomear e descrever a América como território foi


produzido pelo cartógrafo alemão Martin Waldseemüller, datado de 1507,
considerado por alguns como a certidão de nascimento da América por ser o
primeiro mapa a reconhecer o “Novo Mundo” como continente. O nome América
dado ao continente por Waldseemüller foi uma homenagem ao mercador e
navegador italiano Américo Vespúcio, que segundo o autor do mapa, Vespúcio, em
suas viagens de exploração através do Atlântico, havia confirmado a existência de
uma quarta parte do mundo desconhecida até o final da Idade Média. Assim,
Américo Vespúcio ofuscou por pouco tempo a posição de Cristóvão Colombo como
descobridor do Novo Mundo. Todavia, Colombo nunca achou que tivesse
encontrado um novo continente, foi Américo Vespúcio que observou que Colombo
não havia chegado à Ásia [Ilhas Ocidentais], mas num “ Novo Mundo”. O nome
América e não Américo, uma flexão de gênero, foi para acomodar ao padrão de
nomeação dos continentes existentes, que eram todos femininos: Europa, Ásia e
África. Todavia, tratava-se de um continente a ser dominado, subalternizado, como
se fosse um achado sem dono que passava a pertencer a Europa Ibérica Cristã:
Espanha e Portugal. A violência simbólica foi tão pujante que as conceituações
espaciais dos povos originários [Tawantinsuyu, Anáhuac, Abaya-yala] foram
ignoradas, silenciadas e execradas.

Desmentida e desautorizada a crença de que não havia terras habitadas por


vidas humanas fora do território da Europa, Ásia e África a América e seus povos
passaram por dois processos contínuos e simultâneos de violência material e
simbólica, nos temos de Aníbal Quijano [ 2002 ], de Colonialidade de poder: um
processo de destruição cultural [ genocídio, etinocídio, memoricídio,
transculturação e o ecocídio] e um processo de inferiorização por meio da
afirmação da tese de que a natureza [terra, fauna, flora e o homem]no Novo Mundo
era débil e imatura, ou seja, inferior em relação a natureza europeia.

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A visão que os gregos tinham da Europa, era uma visão negativa. Segundo Aristóteles [1991, p. 130],
na sua obra a Política: os povos que habitavam as regiões frias, principalmente da Europa, são pessoas
corajosas, mas de pouca inteligência e poucos talentos. Vivem melhor em liberdade, pouco civilizados,
de resto, e incapazes de governarem seus vizinhos.”

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O PROCESSO DE DESTRUIÇÃO CULTURAL

A destruição cultural dos povos originários na América foi realizado por


meio de alguns dispositivos ou prática de poder: o genocídio, o etinocídio, o
memoricídio, a transculturação e o ecocídio. Os dados apresentados aqui tem como
fonte o livro de Fernando Báez, publicado em 2010 no Brasil: “a História da
Destruição Cultural da América Latina”. Trata-se de um livro rico em informações e
reflexões que compartilho de forma sintética uma pequena amostra do processo
intenso e continuo de destruição cultural sofrida pelos os povos originários de
Abaya-yala. Como constata Báez [p. 23] no México do século XVI :

Os espanhóis, ofuscados pelo esplendor pré-hispânico, tentaram anular a cultura


subjugada mediante o uso de uma arquitetura superposta. Os conquistadores
arrasaram centenas de prédios em todo país, e as ordens católicas trataram de
eliminar milhares de objetos de arte religiosas dos nativos, com a desculpa da
evangelização, e aniquilaram 80% dos livros antigos em que Maias e Astecas
armazenavam conhecimentos sobre sua própria história, astronomia e medicina.

Onde hoje é a Praça de Constituição, conhecida como Zócalo, no México, fica


a catedral metropolitana, o primeiro monumento católico da região, que fora
construída com materiais da destruição de um templo asteca que havia no mesmo
lugar, na cidade de Tenochtitlan. Esta foi a cidade que dominou a Mesoamérica e
que possuía mais habitantes que Paris do século XIV. Ao lado da catedral, ainda
hoje é possível encontrar restos de construções de taipas do templo maior
dedicado pelos Astecas ao Deus [Tlaloc] da chuva e da água, e ao Deus [
Huitzilopochtli] da guerra e do sol, que foram desenterrados em 1978 por um
grupo de arqueólogos.

Tenochtitlan, a capital Asteca, fundada em 1325, em suas margens


estabeleceram-se dezenas de povoados, chegou a abrigar 250 mil pessoas,
dispunham de trinta enormes palácios, um templo maior contendo 78 prédios,
possuía um grande mercado em Tlateloico e se dividia em quadro bairros:
Zoquiara [ a Oeste], Mayotlan [ a Sudeste], Cuepopan [ a Noroeste] e Atzacoalco [ a
Nordeste] e foi totalmente destruída pelos conquistadores espanhóis.

Existiam no México, em 1500, 25 milhões de habitantes, entre 1519 a 1603


eles já haviam sido reduzidos a um milhão, uma redução demográfica de 96%. Uma
tragédia humana que se refletiu no âmbito cultural. Já no século XIX, quando o
México perdia metade do seu território para os Estados Unidos, “dezenas de
bibliotecas, arquivos, edições únicas, peças de arte pré-hispânica ou colonial, eram
arrastadas, esquecidas ou vendidas a colecionadores particulares do mundo.
Dispersaram-se quinhentas mil peças de museus ou igrejas e se consolidou a
cumplicidade e o silêncio com a ordem unilateral e a depredação.” [ Báez, p. 23]. Em
Santo Domingo, a população nativa que inicialmente contava com quase quatro
milhões de pessoas em 1496, em 1950 era apenas de 125 mil seres humanos [p.
34].

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Toda cidade colonial de Cusco foi construída sobre a antiga cidade Inca
desenhada pelo soberano Pachacurec para servir de sede aos sacerdotes do
Império Inca. Ainda em Cusco, na mítica localidade conhecida como “ umbigo do
mundo” e antiga Capital dos reinos dos Incas, a chamada pedra dos dozes ângulos [
chacana], construída com diorito, que pertencia ao Palácio do soberano Roca, teve
parte destruída e parte desfigurada, deixando, então, de ser um alto templo Inca,
para se converter em parte do Palácio Arquiepiscopal [p. 25].

A cidade de Cusco foi o polo do maior Estado Pré-hispânico da América do


Sul, cujo nome era Tawantinsuyu, que se estendeu para a Colômbia, Equador, Peru,
Bolívia, Chile e Argentina. Tawantinsuyu era sede da organização administrativa,
religiosa, cultural e política, regeu os destinos de milhões de seres humanos e
ergueu construções monumentais como a de Sacsayhuaman, Ollantaytambo,
Machu Picchu e a própria cidade de Cusco, cidade sagrada com a forma de puma,
que serviu de ligação entre o mundo de baixo e o mundo superior.

Em Huaytará, departamento de Huancavelia, afirma Báez [p.26], se registra


a mesma prática infame de destruir os templos e prédios indígenas e a obrigar os
próprios indígenas a utilizarem as bases e o material dos destroços de seus
templos para erguer templos católicos. O antigo Intiwase incaico foi destruído e no
local construído a Igreja de San Juan Bautista. Já o convento de Santo Domingo,
construído pela Ordem dos Pregadores, foi erguido a partir da destruição do
templo Inca Coricancha ou Inti Quacha, que incluía uma larga parede ornada por
uma bela cantaria a qual foi acrescentada uma estampa de ouro.

No livro “ la extirpación de la idolatria em el Peru”, editado em 1621, por


Pablo Josephe Arraiga [ 1564 – 1622] , um espanhol que entrou para Companhia
de Jesus em 1579 e foi ordenado no Peru em 1585, deixa bem claro a intenção da
Igreja Católica em extirpar o que ela considerou idolatria dos povos indígenas e o
motivo pela qual a sua arte, os seus templos, as suas manifestações religiosas e
seus saberes deveriam desaparecer. Em carta enviada ao arcebispo Don
Bartholomé Lobo Guerrero, pedindo licença e autorização para publicar o seu livro,
Pablo Josephe afirma que o seu escopo é de resgatar almas que se encontram na
dura escravidão do demônio e de aumentar nessas almas o reino da fé e a religião
cristã. No livro , trecho citado por Báez [p.26], decreta Pablo Joseph:

Daqui por diante, em qualquer caso, nem por ocasião de casamento, festa do
povoado, nem por outra qualquer maneira, os índios e índias deste povoado
tocarão tambores nem dançarão, nem cantarão à moda antiga, nem os bailes, nem
os cânticos, que até aqui cantaram em idioma materno, porque a experiência
ensinou que nos tidos cantares invocam nomes de suas divindades, de suas
imprecações ou de raio.

A perseguição militar, cultural e espiritual não impediu que os povos


originários mantivessem na clandestinidade, como forma de resistência, seus
cultos sagrados, mesmo que sofrendo perseguições, repressões e massacres

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quando descobertos, como no caso ocorrido em Lima, capital do Peru, em 1608,
quando Francisco de Ávila [ 1576 -1647], nascido em Cusco, vigário na província
de Huarochiri- Peru, descobriu a existência do que considerava ídolos e crenças
consideradas demoníacas, ordenou a repressão militar e religiosa contra as
povoações de San Damian, San Lorenzo de Quinti, Santa Maria de Jesus, Chome,
Sesicaya destruindo mais de 18 mil ídolos moveis e dois mil ídolos fixos e
torturando os praticantes. Entre 1722 a 1777, os missionários jesuítas e
franciscanos dedicaram-se, no Nayar, a queimar as imagens funerárias dos povos
Coras para extirpar a idolatria [Báez, p.27].

Gonzalo Fernández de Oviedo [1478 – 1767], militar e historiador espanhol


que participou do processo de colonização do Caribe, foi governador geral de Santo
Domingo e Cartagena de Índias, autor da obra “ história general y natural de las
índias”, no livro 13, capitulo IX, citado por Báez [pg. 34], afirma sobre Cuba:

Encontrou o almirante, quando descobriu estas ilhas, um milhão de índios e índias,


ou mais, de todas as idades, ou entre pequenos e grandes, dos quais todos, e dos
quais depois nasceram, não se acredita que há agora, neste ano de 1548,
quinhentas pessoas, entre pequenas e grandes, que sejam naturais e de progênie e
estirpe daqueles primeiros. Porque o que há mais agora são trazidos pelos cristãos
de outras ilhas, ou da Terra Firme, para trabalhar para eles. Pois como as minas
eram muito ricas, e a cobiça dos homens insaciável, alguns índios trabalharam
excessivamente; outros não receberam comida como covinha; junte-se a isso que
essa gente é de natureza ociosa e viciosa, e de pouco trabalho, e melancólica e
covarde, vil e mal propensa, mentirosa e de pouca memória e de nenhuma
constância. Muitos deles, por passatempo, mantam-se com venenos para não
trabalhar, e outros se enforcam com suas próprias mãos.

Tendo como objetivo tirar diretrizes para o bom relacionamento das


paroquias dos índios ou doutrinas4 de evangelização e civilização, a Igreja católica
realizou o III Concilio Provincial de Lima [1582 -1583]. Nas suas recomendações
sobre o trato com os índios afirma-se que os índios deveriam ser instruídos a
deixar seus costumes bárbaros e selvagens, que deveriam andar limpos e vestidos
de roupas adequadas e que em suas casas deveria ter mesas para comerem e cama
para dormirem e que os mesmos deveriam acostumar-se a falar a língua
espanhola. Para conquistar e submeter aos índios que se recusassem a aderir ao
cristianismo, os chamados infiéis, era permitido o uso da violência, ou seja, era

4
Como nos esclareces Báez [ 2010, p.104]: “ os centros de substituição cultural ou transculturação
atuaram inicialmente nos chamados centros de doutrina, que se encarregaram da educação dos índios,
como foi o caso dos franciscanos em Tlateloco, os jesuítas em Patzcuaro, Tepotzotlán e o colégio de San
Gregório na Cidade do México. Hoje se sabe que a melhor maneira utilizada para controlar a população
consistiu em compreender o poder dos caciques: foram os primeiros a ser batizados como exemplos às
suas comunidades e, em casos de rebeldia, também os primeiros a ser castigados como exemplos a
qualquer outro que pudesse desconhecer a autoridade imperial.”

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necessário castigar os índios para que eles aceitassem o bem das leis do deus
cristão e da igreja católica.

Foi a partir do Concilio de Lima de 1583, que se intensificou a destruição da


memória e da existência dos povos originários existentes no continente, dizia-se
que os índios eram bárbaros e pouco acessíveis à razão, e que por isto se aludia aos
açoites: milhares de índios se suicidaram por causa das dores causadas pelos
ferimentos e castigos. Os índios afogavam os filhos nos rios para que não
sofressem o mesmo destino dos pais, ou cortavam-lhes os braços para que os
espanhóis os considerassem inúteis e os deixassem em paz [ Báez, p. 33] “Milhares
e milhares de mulheres foram assassinadas por cães atiçados para despedaçá-las. E
como se isto não bastasse, os conquistadores criaram haréns onde subjugavam
meninas de 12 a 14 anos, algum tempo depois, pululavam às margens da cidades
principais centenas de órfãos que morriam de fome, sede e doenças pavorosas[ Báez,
p.34].

O processo de destruição cultural dos povos originários foi premeditado e


permanente. Antes da chegada dos europeus na América havia 1.750 línguas
faladas por diferentes povos e a imposição das línguas importadas, principalmente
do espanhol e do português, provocou a extinção de mil línguas nativas. No Brasil,
75% das línguas indígenas foram extintas desde a sua invasão em 1500. No
México, no século XVI, existiam 170 línguas e no inicio do século XXI só existiam
apenas 72 línguas. Como nos esclarece Fernando Báez:

A transculturação ou substituição da memória da América Latina foi executada


com perfídia em três etapas: 1 – estilhaçamento da memória subjugada, evidente
nas perdas e nostalgias; 2 – incorporação forçada da cultura dominante; 3 –
elaboração por parte da sobrevivência, de estratégias de resistência e integração
assinaladas pelo grau de contato [ p. 37] Extirpação ou etinocídio: o trabalho de
evangelização ou hispanização – antes uma cruzada do que uma conquista – foi a
implantação radical que provocou a destruição de milhares de objetos das religiões
e culturas autóctones. Os frades consideravam como objetos demoníacos e
malignos quase toda arte religiosa nativa [ p. 38]. Este etinocídio foi acompanhado
por um fenômeno de eliminação da memoria denominado popularmente de
memoricídio, e se originou na época do humanismo clássico [p. 39].

O genocídio, o etinocídio, o memoricídio, a transculturação e o ecocídio se


justificavam originalmente porque os pensadores europeus e a Igreja Católica,
consideravam os indígenas como ignorantes, bárbaros, povo sem alma que só lhes
sobravam dois caminhos: i - a subalternização por meio da evangelização, o que
significava a destruição de sua memória coletiva, ou seja, do acervo de seus
registros materiais e imateriais. Como diz Fernando Báez [p. 49] “ só se pode ser
aquilo que se recorda do que se é; e se as recordações estão mutiladas, a identidade
aparece vulnerável, confusa, intimidade”; ii – a extinção. Todavia, para os povos
originários havia apenas um único caminho: a resistência. Aos povos originários da

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América foi imposta uma violência simbólica, uma dominação que se objetiva no
ato de impor ao outro o que ele deve ser, de ignorar o que ele é e fala, por que para
o dominante o colonizado, como diferente, não sabe o que diz quando fala. A
violência simbólica é uma forma de dominação que silencia o outro e seu saber
transformando-o num repetidor [colonizado, subalternizado] do discurso, do saber
e dos valores do dominador. A violência simbólica veio junta com a dominação
material na forma de uma nova ordem política, religiosa, cultural, tecnológica,
teológica e econômica. Como defendia o fisiólogo e teólogo espanhol Juan Ginês de
Sepúlveda [ 1494 -1571 ], frade dominicano que escreveu a obra “ Tratado Sobre
las Justas Causas de la Guerra Contra los Índios.” Vejamos um trecho dessa obra
citado por Fernando Báez [ p.40]:

Sendo por natureza escravos, os homens bárbaros, incultos e desumanos se


negaram a admitir o domínio dos que são mais prudentes, poderosos, perfeitos do
que eles; este domínio lhes traria grades utilidades, sendo além coisa justa, por
direito natural, que a matéria obedeça à forma, a mulher ao marido, os filhos aos
pais, o imperfeito ao perfeito, o pior ao melhor, para o bem universal de todas as
coisas. Esta é a ordem natural que a lei divina e eterna manda observar sempre. Tal
doutrina foi confirmada não apenas com a autoridade de Aristóteles, a quem todos
os filósofos e teólogos mais excelentes veneram como mestre da justiça e das
demais virtudes morais e como sagacíssimo intérprete da natureza e das leis, mas
também com as palavras de São Tomás.

No século XX, apenas na Região Andina e Amazônica, foram fechados com


taipas centenas de templos e, sobre quarenta mil sítios arqueológicos,
construíram-se autoestradas, estacionamentos e novas cidades. Em 2003, a selva
da Região Amazônica sofreu a destruição de 18 mil quilômetros. Durante os anos
de 1994 e 1995, as políticas de ajustes econômicos neoliberais provocaram, com
suas ações extrativistas, a aniquilação de 29 mil quilômetros quadrados de
florestas e terras indígenas [ Báez, p.27]. No Brasil, o ecocídio contra as florestas na
Amazônia se realizou juntamente a ruptura cultural das comunidades nativas que
foram usurpadas e ludibriadas. Fenômeno que constatamos de forma muito
agressiva durante os governos petistas de Lula e Dilma.

No século XXI há indicativos de que a realidade sobre a destruição cultural


mudou pouco, quatro, em cada cinco obras de arte, nunca foram recuperadas. Tem-
se certeza de que 80% dos sítios arqueológicos da Península de Yucatãn foram
assaltados, e o Instituto Nacional de Antropologia e História do México divulgou
que de 1994 a 2005 mais de 900 peças de arte foram roubadas das regiões de
Puebla, Tlaxcala, Cidade do México, San Luís Potosi, Hidalgo, Granajuato, Jalisco,
Morelos e Zacatecas [ Báez, p.23].

11
A TESE DA INFERIORIDADE

O processo de inferiorização territorial e dos povos originários nasceu, de


forma mais visível e agressiva, das ideias sobre a debilidade e imaturidade da
natureza nas américas desenvolvidas pelo naturalista francês Georges-Louis
Leclerc, o Conde Buffon[ 1702 – 1788], cuja principal obra, “ História Natural”,
parte do pressuposto de que “ a natureza é racional e revelará seus segredos
àqueles que apreenderem a ler e a entender a sua linguagem.” Para ele, a natureza
não é homogênea, em cada parte do mundo ela se manifesta de forma diferente em
seus estágios de evolução e qualidade. A debilidade e imaturidade da natureza
americana são confirmadas segundo Buffon a partir de dois aspectos: um subjetivo,
ou seja, pela opinião de Buffon de que a qualidade dos animais e plantas existentes
em terras americanas é inferior aos existentes na Europa, e, por outro,
pretensamente objetivo, de que os animais domésticos [cavalo, boi, cão, carneiro,
porco] introduzidos no novo mundo pelos colonizadores atrofiaram-se, tornaram-
se menores.

Para o Conde Buffon, as terras do continente americano eram novas não


porque os europeus haviam tomado conhecimento da sua existência apenas em
1942, mas porque a natureza ainda não havia tido tempo de estabelecer nelas
todos os seus planos e ao afirmar que na América a terra estava fora do alcance da
mão queria dizer que ela ainda não tinha completado seu processo de evolução por
ter sido formado depois dos territórios já conhecido na época pelos relatados na
Bíblia. Para ele, a deficiência das plantas, animais e do homem americano é
atribuída às condições climáticas da região que são hostis ao desenvolvimento de
todas as formas de vida. Para Buffon5:

Tudo parece coincidir em provar igualmente que a maior parte dos continentes da
América era terra nova, ainda fora do alcance da mão humana e na qual a natureza
não teve tempo de estabelecer todos os seus planos, nem de se desenvolver em
toda sua extensão; que os homens são frios e os animais pequenos porque o ardor
de uns e a estatura de outros dependem da salubridade e do calor do ar.

Buffon, como nos chama atenção Antonello Gerbi [1996], é um naturalista


que tem uma atitude metodológica onde uma observação geográfica transforma-se
num critério genérico. Com essas ideias formando o imaginário da racionalidade
iluminista eurocêntrica e divulgado como cientifico, os povos originários da
América passaram a ser tratados como inferiores em relação a seus dominadores e
colonizadores, passaram a ser classificados como selvagens, passaram a ser

5
Buffon citado por Antonello Gerbi [1996], pagina 27.

12
subalternizados e dito como povos impotentes que não conseguiam dominar a
força virgem e hostil da natureza e submetê-la em proveito próprio.

Para Buffon, devido a frigidez do homem americano, o mesmo vivia pior do


que os animais, pois “ a natureza, ao recusar-lhes as potencias do amor, maltratou-
o e apequenou-o mais que a qualquer dos animais.” A sua obra Historia Natural é
bastante esclarecedora do pensamento “ cientifico naturalista” desenvolvida na
Europa e aplicada para explicar o caráter selvagem do homem que habitava as
terras do chamado “mundo novo”, ou seja, dos povos originários, que ignorados
nas suas diferenças, já havia tido suas identidades culturais negadas e tornadas
invisíveis, quando foram classificados genericamente por índios, depois por
americanos e, por Buffon, de selvagens. Nesse processo as civilizações dos povos
Maias, Astecas, Guaranis, Quéchuas, Arawetês, Tupis, Mapuches e tantos outros
foram sendo tratados como exóticos, sem humanidade e sem história, animal não
político e impotente. Como bem caracteriza o Conde Buffon6:

Ainda que o selvagem do Novo Mundo possua aproximadamente a mesma estatura


do homem do nosso mundo, isso não é suficiente para que ele constitua uma
exceção ao fato geral do apequenamento da natureza viva em todo este continente.
O selvagem é débil e pequeno nós órgãos da reprodução; não tem pelos nem barba,
nem qualquer ardor por sua fêmea: embora mais ligeiro que o europeu, pois possui
o hábito de correr, é muito menos forte de corpo; é igualmente bem menos visível
e, no entanto, mais crédulo e covarde; não demonstra qualquer vivacidade,
qualquer atividade d’alma; quanto à do corpo, é menos um exercício, um
movimento voluntário, que uma necessidade de ação imposta pela necessidade;
prive-o da fome e da sede e terá destruído simultaneamente o principio ativo de
todos os seus movimentos; ele permanecerá num estupido repouso sobre suas
pernas ou deitado durante dias inteiros.

Além da dominação, exploração e pilhagem das riquezas minerais, vegetais,


na forma de ouro, prata e especiarias diversas e do trabalho dos povos originários,
o que, por si só, é contraditório com a tese Buffoniana de que a natureza na
América era débil e imatura, os europeus passaram a construir uma imagem
negativa das novas terras e de seus povos, ao criarem uma imagem do outro como
selvagens, covardes, imaturos, indolentes e impotentes ou mesmo tempo em que
criavam para si uma imagem positiva de povos civilizados, corajosos, maduros,
desbravadores e viris. As teorias naturalistas de Buffon, todavia, vão influenciar o
pensamento filosófico e político do Esclarecimento ou Iluminismo moderno. O
etnólogo holandês Cornelius De Pauw [ 1739 – 1799] na sua obra “ Recherches
Philosophiques Sur Les Américans”, sustenta a inferioridade do homem das
américas extendendo-a aos mestiços nascidos no processo de colonização e aos
europeus puros nascidos na América.

6
Idem, pagina 21.

13
Para Cornelius De Pauw, o homem em estado de natureza, como o
encontrado no continente americano, é um bruto incapaz de progresso, é um
animal que odeia as leis da sociedade, vive cada um por si. O indígena americano é
um selvagem em estado de indolência e inércia, um ser que não tem consciência de
que é preciso sacrificar parte de sua liberdade para garantir a realização de sua
potencia e estruturar uma organização social. Embora vivendo mais de um século
depois de Thomas Hobbes [1588 – 1679], o pensamento depauwiniano é mais
conservador e preconceituoso, já que Hobbes, na sua principal obra, “ o Leviatã”,
de 1651, defende que é preciso o homem renunciar parte de sua liberdade quando
vive no estado de natureza, estado de guerra de todos contra todos, para criar uma
sociedade civil [ Estado] que garanta a paz necessária para o desenvolvimento de
suas potencialidades plenas, mas para Hobbes o homem natural não é diferente do
homem que vive em sociedade, a natureza não muda com o tempo, nem o direito
de natureza. Segundo De Pauw7:

Em geral, a América não poderia jamais ser povoada como a Europa e a Ásia, por
estar coberta de pântanos imensos, que tornam o ar sumariamente malsão, e o solo
produtivo dum número prodigioso de vegetais venenosos. Pode-se viajar por
vastas solidões da América do Norte sem encontrar uma única habitação ou traço
do homem. A influência nefasta do clima sobre o homem, a flora e a fauna é tal que
os naturalistas são unânimes em afirmar que os animais trazidos da Europa para
América degeneram, a mesma deterioração que predomina nos animais mais
robustos se estende aos homens, que, em diferentes regiões, tem sofrido
disenterias epidêmicas mais ou menos letais. A grande umidade atmosférica, a
quantidade prodigiosa de águas estagnadas, os vapores tóxicos, os líquidos
deteriorados e as qualidades prejudiciais das plantas e alimentos, contam para a
fraqueza da compleição, a aversão ao trabalho e a inadaptação geral para todo tipo
de melhoria, o que tem impedido os americanos de emergirem da vida selvagem. A
ausência de realizações do homem americano, bem como a inépcia das do resto do
mundo, quando confrontadas com a exuberância da criação européia, não
deixariam margem a dúvidas quanto à distancia que há de separar os continentes
da terra: por toda extensão da América nunca apareceu um filosofo, um artista, um
homem erudito ou destacado, cujo nome tenha encontrado um lugar na história
das ciências ou cujo talento lhe tenha granjeado nomeadamente ou sito útil aos
demais. A Europa é o único lugar no mundo em que se encontram filósofos e
astrônomos, pois os chineses, com todas as suas jactâncias, não tem nenhum.
Também não tem escultores, pintores, assim como os outros povos da Ásia; seus
poetas são meros trovadores.

Já o ministro presbiteriano escocês William Robertson [ 1721 – 1793], em


sua obra “ História da América, publicada em 1777, vai vulgarizar e popularizar o
eurocentrismo de Buffon e De Pauw, para ele as terras da América são inóspitas e
seus habitantes são selvagens e indolentes, acomodados e não fazem nada para
melhorar e tornar a terra produtiva. Devido ao clima, que predomina o frio, as
terras do Mundo Novo favorecem ao desenvolvimento dos insetos e repteis
monstruosos e, ao mesmo tempo, são hostis ao desenvolvimento de animais

7
Citado por Luiz Antônio Lindo. 2012, p. 39

14
nobres como os existentes na Europa. Robertson não tem ideias originais, mas será
um grande divulgador, como podemos observar em um trecho de sua obra8
quando ele diz que no Novo Mundo:

O principio da vida parece ter sido menos ativo e vigoroso do que no velho
continente, as diferentes espécies de animais peculiares a ele são em muito menor
número do que as do outro hemisfério. A natureza não somente era menos
prolífica no Mundo Novo, mas parece ao mesmo tempo ter sido menos vigorosa em
suas produções. Os animais que pertencem originalmente a este quadrante do
globo parecem ser de uma raça inferior, nem tão robusta, nem tão feroz quanto as
do outro continente.

Mesmo sendo o maior vulgarizador das ideias de Buffon e De Pauw, William


Robertson crítica9 os dois por negligenciarem os fatos e chegarem de forma
apressada a conclusões sem fundamentos sólidos sobre a América. Além disso, em
suas analises sobre a história da América ele apoia-se na Teoria dos Quatro
Estágios10, um tipo de teoria do progresso social na qual a sociedade evolui por
estágios iniciado o processo pela Caça e Coleta de vegetais seguida pelo estágio do
Pastoril. Esse estágio, por sua vez, é substituído pelo da Agricultura, quando o
homem cria a noção de propriedade, e chegar-se , finalmente, ao estágio Comercial,
no qual se atinge o progresso com o refinamento do consumo, das maneiras e dos
intercâmbios entre povos.

A Teoria dos Quatro Estágios é fundamentada no modo de subsistência e


desenvolvimento social e cada estágio identifica a sociedade como selvagem,
Barbara ou Civilizada. O termo bárbaro foi utilizado pelos gregos e romanos para
definir sociedades diferentes da sua que se encontrava em estágios de Pastoreio e
Agrícolas, já Selvagens foi o termo utilizado para sociedades no estágio de Caça e
Coleta de vegetais. Segundo Montesquieu [2010, livro -17]: “ Há a seguinte
diferença entre os povos selvagens e os povos bárbaros: os primeiros são nações
pequenas e dispersas que, por certas razões particulares, não podem reunir-se; ao

8
Citado por Antonello Gerbi [ 1996], página 134.
9
Diz William Robertson que: “Impressionados com a aparência de degeneração da espécie humana em
todo o Novo Mundo [...} alguns autores de grande renome [ ou seja Buffon] afirmaram que essa região
do globo tinha emergido tardiamente do mar e que seus habitantes, vindos à existência mais tarde e
ainda no início de suas carreiras, não mereciam ser comparados com os povos de um continente mais
antigo e desenvolvido. Outros [ De Pauw] imaginavam que, sob a influência de um clima hostil, que
restringe e debilita o princípio da vida, o homem jamais atingiu na América a perfeição que pertence a
sua natureza, mas permaneceu um animal de ordem inferior, carente em vigor de estrutura física e
destituído de sensibilidade, bem como de força, nas atividades mentais.” Citado por Antonello Gerbi
[1996, p.138].
10
Segundo Flávia Varella [ 2016, p.365]: “ a teoria dos estágios das sociedades não era um modelo pré-
fabricado pronto para ser utilizado de forma indiscriminada. Utilizar-se dos modos de subsistência como
base teórica para a explicação do progresso do homem não significa, para os letrados setecentistas,
corromper a história, mas produzir macronarrativas através da comparação dos fatos das sociedades
particulares. Robertson, em History of America, imbuiu essa teoria explicativa de uma forma narrativa
ao subscrever que a mudança moral e material é qualitativa e que a Europa possuía inata superioridade
cultural, tendo em vista que foi a primeira parte do mundo a chegar à fase comercial.”

15
posso que os bárbaros costumam ser pequenas nações que podem reunir-se. Os
primeiros são normalmente povo caçadores; os segundos, povos pastores[ cap.11].” E
destaca: “ O que fez com que haja tantas nações selvagens na América é que a terra
produz por si mesmas muitos frutos de que se pode tirar sustento [ cap. 9].”

Para William Robertson, os gregos e romanos jamais tiveram a


possibilidade de conhecer sociedades que vivessem da Caça e Coleta de vegetais,
ou seja, Selvagens, conheceram sociedades barbaras. Na América, sim, o homem
aparece na forma mais rude, são, portanto, selvagens. Como nos informa Flávia
Varelha [2016, p361]:

O selvagem não possuía nenhum dos atributos civilizacionais mais simples – como
o arado – e nem existiam indícios de que iria desenvolvê-los. Puxado por bois e
cavalos, o arado era visto pelos europeus como condição essencial para o aumento
da produtividade da terra e, consequentemente, do excedente de produção, além
de servir como instrumento para marcar o limite entre um vizinho e outro, criando
uma propriedade visível e definida. O entendimento de que não existia o conceito
de propriedade na cultura indígena facilitou a legitimação da colonização da
América por parte de seus conquistadores. Como o indígena não era proprietário
da terra em que vivia, poderia ser conduzido a outro local mais apropriado ao
colonizador. Por estarem em um estágio anterior ao agrícola, não tinham
desenvolvido a ideia de propriedade.”

No campo da filosofia moderna, num texto pequeno onde Immanuel Kant


[1724 – 1801] pergunta e responde o que significa Ilustração ou Iluminismo, os
povos não europeus aparecem inferiorizados, aparecem como não sendo
portadores da razão universal porque são covardes, preguiçosos, imaturos e
incapazes de fazerem uso do entendimento. O texto de Kant é datado de 5 de
dezembro de 1783, nele ele responde à pergunta o que é o esclarecimento[
Aufklärung]?

Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é


culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a
direção de outro individuo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a
causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão de
coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem
coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento
A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos
homens, depois que a natureza de há muitos libertou de uma direção estranha,
continuem no entanto de bom grado menores durante toda vida. São também as
causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores
deles. É tão cômodo ser menor “[1985. P. 100].

O Esclarecimento ou Iluminista moderno foi um movimento filosófico,


político e cultural de construção de universalidade a partir da realidade particular
de parte da Europa [ Alemanha, França, Inglaterra, Holanda, Itália] do século XVIII.
Ao apresentar uma realidade provinciana como uma totalidade do tempo e espaço

16
universal, os esclarecidos afirmaram, no mesmo movimento, a exclusão das
diferenças e o desejo de transformar o resto do mundo em sua imagem e
semelhança, em seguidores do seu processo de desenvolvimento e civilizatório.

Pensador do Esclarecimento, Hegel acreditava que a História representava


o desenvolvimento da consciência universal que caminhava do Oriente para o
Ocidente, ela deve inicio na Ásia e seu fim se daria com formação do Estado
moderno eurocêntrico. Nesse movimento de realização da razão universal, a África,
a Ásia e a América, realidades em estado de imaturidade ou debilidade,
permanência fora da história do mundo. Para Hegel [2008,]: a razão governa o
mundo e a história universal é um processo racional. Assim, “ na história universal
só se pode falar dos povos que formam um Estado. É preciso saber que tal Estado é a
realização da liberdade, isto é, da finalidade absoluta, que ele existe por si mesmo;
além disso, deve-se saber que todo valor que o homem possui, toda realidade
espiritual, ele só o tem mediante o Estado”[p.39].

O mundo, para Hegel, se divide em Velho e Novo Mundo. Diz ele: “ a


fraqueza da organização indígena americana foi agravada pela falta dos
instrumentos por meio dos quais se pode estabelecer um poder sólido, a saber: o
cavalo e o ferro. Foi exatamente pelo usos desses meios que os nativos foram
derrotados pelos colonizadores [...]Havendo a nação autóctone praticamente
desaparecido, a maioria da população ativa vem da Europa, e tudo o que se passa na
América tem sua origem na Europa”[p.74].

Os povos originários da América, para Hegel, são inferiores11, foram


facilmente derrotados pelos colonizadores e vivem desprovidos de ações, suas
vidas são desprezíveis e nela nada acontece, tudo que se passa na América tem
origem na Europa. A razão universal que governa o mundo só se manifesta na
Europa e custará muito tempo para que os europeus no Novo Mundo possam
implantar um processo civilizatório capaz de dotar os povos originários de uma
dignidade própria.

O universalismo excludente da filosofia de Hegel expande o mesmo


processo de exclusão para o campo do direito. Nesse sentido, a modernidade
estabelece a partir de seus pressupostos filosóficos a defesa de uma ordem de
direitos universais, Direitos Humanos, como um meio político de negar o Direito a
maioria dos povos. Trata-se, ao anunciar a universalização do direito, de introduzir
um universo jurídico eurocêntrico que não reconhece outro direito, como a justiça

11
Segundo Hegel [ 2008, p 74]: “ apesar de termos algumas informações sobre a América e sua cultura,
principalmente sobre o México e o Peru, sabemos que foram povos bem primitivos, que fatalmente
sucumbiriam assim que o espirito se aproximasse deles. A América sempre se mostrou, e ainda se
mostra, física e espiritualmente impotente. Depois que os europeus desembarcaram na américa, os
nativos declinaram gradativamente à sombra da atividade européia [...] Ainda custará muito até que
europeus lá cheguem para incutir-lhes uma dignidade própria. A inferioridade desses indivíduos , sob
todos os aspectos, até mesmo o da estatura, é fácil de se reconhecer.”

17
indígena, diferente do direito da propriedade privada burguesa eurocêntrica.
Agora, além de abandonar seus costumes e de colocar-se de forma silenciosa numa
posição de subordinação, os não europeus têm que se integrar a um único modelo
constitucional de direito. Na sua obra “ Princípios da Filosofia do Direito”, Hegel
esclarece que do espirito universal do direito não participa todos os povos. Os
povos para os quais a história passou, são povos sem história [ Africanos, Asiáticos
e Americanos] não possuidores de diretos já que não contam na história
universal. Foi o povo europeu quem recebe da história o direito universal como
encarnação do espirito para aplicar aos outros povos. Diz Hegel [ 1990,p.314]:

O povo que recebe um tal principio como seu principio natural, fica com a missão
de aplica-lo no decorrer do progresso e na consciência de si do espirito universal
que se desenvolve. Tal povo é o povo que, na época correspondente, domina a
história universal. Mas só um pode ser o povo dominante, e em face do direito
absoluto que lhe cabe como representante do grau atual do desenvolvimento do
espirito no mundo, nenhum direito tem os outros povos que, tal como aqueles
outros que já representam uma época passada, nada são na história universal.

A narrativa hegeliana da histórica é reveladora de uma dicotomia onde


aparece de um lado a Europa como civilizada e de outro os nãos civilizados [índio,
bárbaro, selvagem]. Aos outros do europeu é dito que sua Independência é algo
formal e que a eles pode ser negado o Direito, como afirma ele [ 1990, p.316]: “ as
nações civilizadas consideram bárbaras aqueles que ainda não alcançaram o mesmo
momento substancial do Estado[ os povos que se dedicam à caça consideram assim
os povos nômades , como ambos consideram os povos agricultores], em sua
consciência os reconhecem como um direito desigual e olham a sua independência
como algo formal.”

Diferentemente dos povos europeus, que são independentes de fato, são os


portadores da história e do direito universal, os povos originários da América
carecem de soberania e de autonomia, pois o estado de organização política no
qual se encontram não é o Estado-nação moderno, ou seja, a efetivação da razão
universal no mundo. Esclarece Hegel [1990, p.315]:

Não começa um povo por ser um Estado, e a passagem ao Estado político de uma
horda, uma família, um clã ou uma multidão constitui em geral a realização formal
da ideia nesse povo. Nessa forma, a substancia moral que ele é em si ainda não
possui a objetividade que consiste em ter nas Leis, como determinações passadas,
uma existência em si e para os outros com universal validade. Enquanto não for
reconhecido, a sua independência é apenas formal; não é uma soberania, pois não é
objetivamente legal e não possui expressão racional fixa.

Para Hegel, o estado natural, onde vive os povos não civilizados, é um


estado da absoluta e completa injustiça. A justiça e o direito só existem como
realidade objetiva no Estado racional ou Estado político moderno, portanto, a
escravidão é justificada por ele como um processo educativo de transição do
estado natural ao estado político. Diz ele [2008, p.88]: “a escravidão é uma fase de

18
educação, um momento de passagem de uma existência isolada e sensível para um
tipo de participação futura, em uma moralidade mais sublime e na cultura associada
a essa moralidade. A escravidão é, em si e por si, injustiça, pois a essência humana é a
liberdade. Mas para chegar à liberdade o homem tem que amadurecer.”

Montesquieu [2010] pontua que os povos europeus exterminaram os da


América e tiveram de escravizar os da África para usá-los desbravando terras para
garantir riquezas e produtos baratos. Diz ele [p.255]: “ o açúcar seria caro demais
se a planta que o produz não fosse cultivada por escravos.” Ele esqueceu de
acrescentar que não só a plantação, mais a montagem e funcionamento do engenho
e carregamento do açúcar eram feitos por mão de obra escrava. Todavia, no
mesmo texto, Montesquieu segue tecendo comentários degradantes e mostrando
vilipêndio aos escravos:

Aqueles de que se trata são negros dos pés à cabeça, e tem o nariz achatado, que é
quase impossível ter pena deles. É difícil conceber que Deus, que é um ser
sapientíssimo, tenha posto uma alma, sobretudo uma alma boa, num corpo
completamente negro. É tão natural pensar que cor é o que constitui a essência da
humanidade, que os povos da Ásia que fazem eunucos sempre privam de maneira
mais marcada os negros da semelhança que tem conosco. Uma prova de que os
negros não tem senso comum é que dão mais valor a um colar de vidro do que ao
ouro, que, entre as nações civilizadas, ocupa lugar tão importante. É impossível que
aquela gente seja humana; pois, se supuséssemos que são homens, começaríamos a
crer que nós mesmos não somos cristãos [2010, p.255-256].”

O que podemos constatar até aqui é que os fundamentos do pensamento


moderno, tal como encontramos em Buffon, Cornelius De Pauw, Kant, Hegel e
Montesquieu promovem a diferença colonial [Mignolo] de ordem ontológica e
epistemológica. A diferença colonial atua convertendo as diferenças em valores e
estabelecem hierarquias. Ontologicamente se pressupõe que existem seres
humanos inferiores e epistemologicamente se pressupõe que os seres humanos
inferiores são deficientes mentalmente e esteticamente em relação aos europeus,
povos superiores, civilizados que podem dominar os outros. Nesse sentido,
mesmo o pensamento de Karl Marx, no que pese a sua intenção de superar a lógica
idealista de Hegel, continuou preso a uma visão eurocêntrica e quando pensou
sobre a modernidade defendia que a burguesia tinham como missão levar o
processo civilizador a todas as nações primitivas, que competia a todas as nações
adotarem o modo de produção burguês sobre pena de extinção. Diz Karl Marx
[1989, p. 13-15]:

A descoberta da América e a passagem do Cabo abriram novo campo para a


burguesia ascendente, os mercados das Índias Orientais e da China, a colonização
da América, as relações comerciais com as colônias, o aumento dos meios de troca
e das mercadorias em geral deram um impulso nunca antes conhecido ao
comercio.... A indústria moderna estabeleceu o mercado mundial para o qual a

19
descoberta da América tinha aberto o caminho.... A burguesia levou a civilização a
todas as nações, mesmo as mais primitivas.... Sob pena de extinção, copele todas as
nações a adoptar o modo de produção burguês; compele a introduzir entre si
aquilo a que ela chama civilização, para que também elas passem a ser burguesas.
Numa palavra, criar um mundo segundo a sua própria imagem.

Não resta dúvida que Marx tem um pensamento eurocêntrico, que ele
assimila as ideias hegelianas de que há somente uma trajetória da história, que a
história evolui num modelo do simples para o complexo, do primitivismo para o
civilizado. Além disso, Marx pensa que as nações primitivas deveriam se adaptar
ao modo de produção burguês, que alguns povos não podiam escapar do destino
de serem conquistados, que os conquistadores europeus são superiores, esse seu
pensamento fica mais claro quando ele fala o domínio britânico na Índia e onde ele
defende uma lei eterna da história que rege os processos de conquistas e pela qual
uma civilização superior sempre se impõe sobre a inferior. Vejamos o que diz Marx
[ 1989, p.98]:

A questão não é saber se os ingleses tinham o direito de conquistar a


Índia, mas se devemos preferir a Índia conquistada pelos turcos,
pelos persas, pelos russos, à Índia conquistada pelos britânicos. A
Inglaterra tem que cumprir uma dupla missão na Índia: uma
destruidora, outra regeneradora – a aniquilação da velha sociedade
asiática e o lançamento das bases materiais da sociedade ocidental
na Ásia. Árabes, turcos, tártaros, mongóis que invadiram
sucessivamente a Índia, depressa ficaram hinduizados, sendo os
conquistadores bárbaros, por uma lei eterna da história,
conquistados pela civilização superior de seus súditos. Os britânicos
eram os primeiros conquistadores superiores e, portanto,
inacessíveis para a civilização hindu. Destruíram-na, destruindo as
comunidades nativas, desarraigando a indústria nativa e nivelando
tudo quando era grande e elevado na sociedade nativa. As páginas
historicas do seu domínio na Índia pouco referem para além desta
destruição. O trabalho de regeneração mal transparece sob um
monte de ruínas. Contudo, ele começou.

A destruição cultural e a inferiorização dos povos originários que


habitavam as terras nomeadas de América depois da chegada dos europeus é um
processo integral e faz parte da constituição da gestão de um novo padrão de
dominação no qual a construção do outro [ o dominado, o colonizado, o covarde]
sob o controle do conquistador [ o dominador, o colonizador, o valente]. O
primeiro ato eurocêntrico de memoricídio foi a ação de nomear o território com
nome de santos, heróis e localidades da cultura dos conquistadores. A ação de
nomear foi um ato de renomear com intuito de apagar e destruir a memória dos
povos originários. Renomear é atribuir um ser, uma imagem e um sentido, a outro

20
e negar-lhe a existência como diferente. O novo padrão de poder que nasce desse
processo é o sistema-mundo moderno colonial.

AMÉRICA LATINA: OUTRA NOMEAÇÃO.

Ao impor nomes [ Índias Ocidentais, Mundo Novo, Terra de Vera Cruz,


América, Colômbia, São Domingo, América Latina] a quem já tem [ Tawantinsuyu,
Anahuac, Abya-yala ], além de memoricídio, apagando os nomes já atribuídos
pelas civilizações dos povos existentes: Astecas, Maias, Caraíbas, Guaranis, Tupis,
Quéchua, Zapotecas, Aimaras , impõe-se ao outro uma visão e uma representação
de mundo que lhe é estranha. É um ato de Colonialidade de poder que tem
implicações políticas, econômicas, epistêmicas, estética, psicológica e cultural.

Quando os europeus diziam que o continente invadido era um Mundo Novo,


estavam negado a contemporaneidade e a coexistência desses povos em relação ao
restante do mundo. Estavam afirmando que o mundo da cosmologia cristã, que
dividia o mundo em três continentes era anterior, e o Mundo Novo era um lugar
não civilizado, de gente sem história, rude e atrasada. Tal atitude demonstra que ao
ser guiado pela fé os europeus tinham uma atitude autoritária; fechados aos
acontecimentos, a ponto de não se dobrarem aos fatos da realidade quando eles
comprovam os equívocos das crenças produzidas pela fé. O autoritarismo da fé
ignora os fatos e leva os crentes a atos de violência contra os que pensam
diferentes e aos que não se curvam a sua verdade única, salvadora, eterna e
universal.

América Latina foi uma nomeação que surgiu depois do processo de


independência colonial. Após esse processo, Estados Unidos, França, Inglaterra e
Espanha empreenderam esforços para consolidarem sua hegemonia no continente.
Por outro lado, rivalizando com os europeus e norteamericanos, os países recém-
rompidos com o domínio espanhol, passaram a desenvolver um imaginário e um
discurso de criação de uma identidade nacional e regional, o que fez surgir o
conceito de América latina. Trata-se de um conceito inventado com o objetivo de
criar uma da identidade latina integradora a partir de alguns componentes
comuns: a língua castelhana, o catolicismo, o sistema legal e os elementos
históricos e culturais. Diante da disputa de hegemonia na região por parte de
europeus e norteamericanos, a elite política no poder [criola] tentou demonstrar
autonomia própria fazendo oposição à Espanha, mas mantendo sua visão
eurocêntrica e tratando o povo, que pegaram em armas para defender a libertação
do território do julgo espanhol, da mesma forma que eram tratados pelos
colonizados.

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O termo América Latina, dizem alguns, foi forjado pelo intelectual francês
Michael Chevalier [ 1806 – 1879 ] que empreendeu esforços para legitimar o
expansionismo de Napoleão III [ Charles-Louis Napoleão Bonaparte, 1808 -1873]
contra a influência dos Estados Unidos sobre toda América. A estratégia proposta
por Chevalier foi a de unificar as nações católicas de língua latina da América como
medida para facilitar a expansão da França na América por meio da rivalidade com
os países de origem anglo-saxão e protestantes, mas uma vez a dominação
religiosa se fazia presente e se materializava na forma de disputa política,
econômica e cultural.

Pelo que se tem de registo, o termo América Latina foi utilizado pela
primeira vez pelo intelectual e ativista político chileno Francisco Bilbao Barquin
[1823 – 1865], numa conferencia em Paris no ano de 1856. Quando, em 1861, a
Espanha anexou a Republica Dominicana, numa tentativa de recolonização, e no
ano seguinte a França, governada por Napoleão III, invadiu o México e derrubou o
presidente Benito Juarez, com o objetivo de conter a hegemonia norteamericana e
garantir ampliação de mercado para o comercio francês na região, Francisco Bilbao
escreveu o livro “A América em Perigo”, no qual se posiciona contra as ambições
imperialistas dos europeus e defende a unidade entre as nações latino-americanas
para construir um futuro de liberdade, igualdade e justiça. Para Francisco Bilbao, a
invasão do México pela França produzia dois perigos para América Latina: o
desaparecimento da independência e o extermínio da República. Daí, conclamar ao
povo para fazer da causa do México a causa de toda América Latina. Para ele [1862,
p.17], a glória da América – excerto Brasil, considerado o império com escravos, e o
Paraguai, uma ditadura com servos - é a de ter se identificado com a República.

No dia 15 de fevereiro de 1857, no Jornal O Correio de Ultramar, o jornalista


e escritor colombiano José Maria Torres Caicedo [ 1830 – 1889] escreveu publicou
o poema “ Duas Américas”, era a segunda vez no mesmo ano que o termo América
Latina era utilizado. No poema a América Latina aparece como termo geográfico e
cultural em contraposição a América do Norte. Trata-se de um poema de cunho
político onde o autor convoca toda América Latina a lutar contra o imperialismo
estadunidense e defende a ideia de uma só nacionalidade e de uma só pátria para
todos. O poema é longo, contém dez estrofes e citaremos a IX a titulo de ilustração:
“ Mais isolados e desunidos encontram-se,/Esses povos nascidos para aliar-se:/A
união é seu dever, sua lei amar-se,/Igual origem e missão têm./Raça da América
Latina/Toma a dianteira da Raça Saxônica/Inimiga mortal que já ameaça/Destruir
sua liberdade e sua bandeira.”

Partindo de um discurso geopolítico, geoeconômico e geocultura para


alimentar a rivalidade entre países católicos latinos e protestantes anglo-saxões na
disputa de hegemonia sobre o continente, o termo América Latina passou a ser
utilizado pelos norteamericanos e por europeus para afirmação da ideia de
superioridade da raça branca, cristã, patriarcal, racista e capitalista sobre a

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Ameríndia. Assim, o eurocentrismo, como ideologia, epistemologia e visão de
mundo, ganhou nova vida e dinâmica com os norteamericanos. Se o colonialismo
rompeu-se com o processo de independência instalado na América; a
Colonialidade do poder seguiu reinando na forma de expansão da chamada
modernidade.

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