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Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)

Faculdade de Ciências e Letras, Departamento de História – Câmpus de Assis


Curso de Graduação em História (Licenciatura) - Diurno
Disciplina: História Moderna II
Docente: Eduardo José Afonso
Discente: João Pedro Geraldi de Melo – Diurno

TODOROV, Tzvetan. Viajantes e Indígenas. IN: GARIN, Eugênio. (direc.) O


Homem Renascentista. Lisboa: Editorial Presença, 1991, pag. 229-248.

No final do século XV e início do século XVI, a percepção de mundo do ser


humano sofre uma radical transformação. Para além do mundo Mediterrâneo, juntam-se
os oceanos Atlântico, Índico e Pacífico, um período no qual a Europa passa a entrar em
contato direto com os continentes africano, asiático e americano. O contato com essas
enigmáticas regiões, tão pouco conhecidas e até desconhecidas pelos europeus, modifica
veementemente a concepção de espaço e de tempo até então em voga na época.

Desde a Idade Média, já haviam relatos de viajantes que se aventuravam por


regiões remotas, cujos relatos despertavam a curiosidade dos mais variados públicos.
Fenômeno impressionante, é a variedade dessas descrições, considerando a pluralidade
da ótica sob o olhar do conquistador, do missionário, do comerciante e do intelectual.
Dentre as principais regiões que instigavam especialmente o imaginário popular estavam:
a China, território pouco conhecido, mas cujos relatos de viajantes como Marco Polo a
mostravam como uma civilização esplendorosa; a Turquia, parte do mundo muçulmano,
localizada próxima a Europa mas ainda enigmática e temida; e por último, o principal e
menos conhecido dos três polos, a América, a mais selvagem. Sendo justamente o estudo
em torno dos relatos escritos por viajantes em solo americano, o tema abordado no texto.

O primeiro dos mais célebres viajantes da época foi Colombo (1451-1506). Este
navegador genovês, esperava por meio de um plano ousado, chegar via ocidental até a
China e o Japão. Dentre os motivos que levaram Colombo a se lançar ao mar, estavam as
motivações religiosas e a busca por metais precisos. Este último, a principal motivação
dos marinheiros, dos armadores das expedições e dos reis católicos.

Leitor de Marco Polo, Colombo havia se entusiasmado com a vontade do Grande


Khan, imperador da China, de se converter ao cristianismo, desejo que era descrito na
obra de Marco Polo. Assim, o navegador enxergava nessa vontade, a possibilidade de
expandir o cristianismo para outras partes do mundo. Ademais, Colombo tinha o desejo
de reconquistar Jerusalém, e para tanto, necessitava dos fundos monetários para realizar
uma nova cruzada, consequentemente, esperava com suas viagens encontrar ouro. Para
além dos motivos religiosos e monetários, o explorador genovês era apaixonado pela
natureza e pela geografia dessas terras, desejando conhecer cada ilha e cada rota marítima.

Determinado a chegar ao Extremo Oriente, Colombo descarta qualquer


informação que pudesse questionar tal desejo, acreditando quase até o final da vida, estar
na Ásia ou nas ilhas que a costeiam. Somente em sua terceira expedição às costas sul-
americanas, quando havia tomado consciência das ideias de Pierre d 'Ailly, cuja teoria
defendia a existência de quatro continentes que ocupavam quatro segmentos de um
círculo, Colombo passou a enxerga a América do Sul como um novo continente que
complementava a Ásia, assim como a África em relação a Europa.

Baseado em suas leituras, o navegador genovês procura destacar os elementos


fantásticos por ele vivenciados, tendo em mente uma lista de monstros dos quais procura
averiguar sua veracidade. Além do mais, acredita ter encontrado o paraíso terrestre em
sua terceira expedição, localizando-o em uma região temperada para lá do Equador na
costa sul-americana.

De início, os primeiros contatos com as populações nativas foram desprovidos de


comunicação, sobretudo devido as disparidades linguísticas. Acrescenta-se a isso, o fato
de Colombo ser um observador muito mais atento a natureza do que aos homens. Ainda
assim, dedicou-lhes espaço em suas descrições, para os aspectos que mais lhe chamavam
a atenção. Identificou na nudez desses povos, um símbolo de ausência cultural e a
facilidade com as quais esses mesmos abraçariam o cristianismo. Porém, se os indígenas
são descritos inicialmente como amáveis e pacíficos, à medida que Colombo insere-se no
processo de colonização, passa a nutrir para com os indígenas sentimentos opostos,
descrevendo-os como audazes e vingativos.

Mesmo com o avanço territorial, a busca pelo ouro não encontrara sucesso.
Buscando diminuir os danos do fracasso, Colombo decide levar consigo, o que considera
como os maus nativos, isto é, violentos e canibais, com o intuito de vende-los como
escravos na Espanha. Tem-se assim, um processo contraditório em que se separam
escravos indígenas em potencial, dos bons indígenas, ou seja, aqueles vistos como futuros
cristãos. Nesse caso, a ignorância do navegador não reconhece os indígenas como
plenamente humanos, o que leva a seguinte conclusão: “Colombo descobriu a América,
mas não os americanos” (p 236).
A nível de comparação, quando se fala de Américo Vespúcio (1454-1512), sabe-
se das polêmicas que permeiam a veracidade de suas viagens e seus méritos como
navegador, sendo a única fonte de tais viagens ele próprio. Constata-se também, que o
mesmo não era chefe dessas expedições, ainda que tenha sido agraciado com toda a glória,
muito em decorrência de seus relatos de viagem, intitulados: Mundus novus e de Quatuor
navigationes, obras cuja popularidade deu-se entre os intelectuais de sua época, o que por
sua vez, rendeu em sua homenagem, o nome de América ao novo continente.

Com Américo Vespúcio, tem-se um novo tipo de viajante, agora erudito,


intelectual e artista. Sua carta destaca-se por uma estrutura retórica em que os textos se
dividem em duas partes, sendo a primeira uma descrição das habilidades de Américo
Vespúcio como navegador, e a segunda dedicada a descrever os novos países por ele
encontrados, partindo de três subsecções: homens, terra e céu. Estruturalmente, a obra
apresenta um aspecto geométrico dedicado a fascinar o leitor.

Analisando os escritos de Colombo e Vespúcio, percebe-se uma dissemelhança


quanto ao público do qual se pretende endereçar o texto, já que enquanto Colombo
escreve primeiramente aos reis da Espanha, tratando-se assim, de cartas
instrumentalizadas e utilitárias, Vespúcio escreve pela glória pessoal e não por dinheiro,
buscando encantar seus leitores, e para isso, manda traduzir Mundus novus para o Latim,
visando alcançar todo o povo culto da Europa. A exemplo dado por Todorov: “Colombo
escreve documentos, Américo Vespúcio faz literatura”. (p 237).

Quanto as observações feitas pelos nativos por parte dois navegadores, são
evidentes grandes semelhanças. Os relatos em torno da nudez, da ausência da religião, da
não agressividade e da indiferença pela propriedade, projetam igualmente, a imagem do
indígena como bom selvagem. No caso de Vespúcio, há um maior destaque as descrições
em torno do canibalismo, cuja prática é descrita em inúmeros comentários, como também
da sexualidade, sendo esta última temática descrita de maneira a aguçar a imaginação de
seus leitores, descrevendo as mulheres dos índios como lúbricas, ao ponto de se restringir
em suas recordações por conta do pudor.

Uma diferença fulcral, diz respeito a forma como ambos os exploradores


concebem o mundo, que no imaginário de Colombo está repleto de monstruosidades,
enquanto Vespúcio vê o mundo sobre a ótica do ser humano, empregando o termo
monstruosidade para se referir a muitos dos costumes indígenas que causavam choque e
estranheza nos europeus. Portanto, assim como afirma Todorov: “Colombo é um homem
da Idade Média e Américo Vespúcio é um homem do Renascimento”. (p 239)

Se por um lado navegadores como Colombo e Vespúcio podem ser referidos como
curiosos ou iluminados, o conquistador do México, Hernán Cortez (1485-1547), foi o
primeiro viajante a dirigir-se ao continente americano com um plano político e militar
devidamente traçados. Prova disso, é que ao tomar conhecimento do reino de Montezuma,
torna-se decidido a conquistar e submeter esse novo reino ao poder hispânico. Para
realizar seu projeto político, Cortez colocou em prática o conhecimento dos indígenas a
seu favor, buscando ao desembarcar nas novas terras não ouro, mas um interprete.

Ao sentir-se familiarizado com a língua, o conquistador espanhol passou a buscar


incessantemente novas informações sobre os diferentes grupos nativos, recompensando
generosamente seus informantes, e ao mesmo tempo que se apresentava como um
libertador das populações oprimidas pelo domínio asteca, alimentava cautelosamente as
rivalidades locais.

Penetrando no campo do imaginário das populações nativo-americanas, Cortez


utilizou-se do mito do deus Quetzalcoatl, identificando-o ao soberano espanhol (Carlos
V). Mais tarde, o próprio conquistador será identificado pelas populações indígenas como
o próprio deus asteca. Cortez mostrava-se consciente do valor simbólico para o sucesso
da conquista, adotando posturas que visavam confundir o inimigo, uma estratégia vista
tanto no modo com que utilizava suas armas de fogo e seus cavalos, cujo intuito em
muitos dos casos, não visava uma luta armada, mas uma luta psicológica que provocasse
pânico nas populações nativas diante do desconhecido. Tal como os preceitos
maquiavélicos, Cortez colocou seus interesses, seu fingimento e sua reputação, acima de
qualquer hierarquia de valores.

Como resultado do contato e da conquista espanhola, a população indígena é


exterminada em conjunto com sua identidade cultural, ao passo que em fins do século
XVI restam aproximadamente um décimo da população indígena que residia na região
antes da chegada de Cortez. Pormenorizando, ainda que o conquistador do México
nutrisse para com a população indígena certa admiração, descrevendo os índios como
valorosos trabalhadores e guerreiros, Cortez nunca os verá como indivíduos semelhantes,
isto é, dotados de uma vontade livre.
Até então, os viajantes aqui apresentados, veem a relação com os nativo-
americanos a partir de seus próprios interesses. No entanto, com Las Casas (1484-1556),
ocorre o inverso. Considerado o defensor dos indígenas, Las Casas adota uma postura que
visa amenizar o sofrimento das populações indígenas perante os conquistadores e os
colonizadores. Para tanto, defende uma colonização pacífica e empenha-se em denunciar
as injustiças praticadas pelos espanhóis, além de propor mediadas politicas e jurídicas que
visam melhorar a situação das colônias americanas.

A defesa de Las Casas da causa indígena, derivava de seus fundamentos morais e


filosóficos justificados no princípio cristão de igualdade e unidade do gênero humano.
Afim de conquistar tal unidade, o frade dominicano é favorável a conversão dos índios,
mas não de maneira forçada e violenta, pois o religioso enxergava na superação das
diferenças culturais, a forma de converter um povo que já é provido de qualidade cristãs,
considerando os nativos como naturalmente pacíficos, humildes, dóceis e generosos.

Contudo, a atitude unionista de Las Casas sobre égide cristã, acaba por impor aos
indígenas uma imagem que não lhes pertence. Além disso, o dominicano não se opõe a
expansão colonizadora, defendendo uma colonização pacífica, que seria benéfica tanto
aos indígenas quanto as finanças do rei. Assim, a concepção de Estado para Las Casas
baseava-se em um poder teocrático, cujo poder espiritual se sobressai em relação ao
temporal.

Por volta de 1550, as discussões em torno da figura indígena se intensificam, surge


um confronto violento no campo das ideias entre Las Casas e Sepúlveda. Este último, um
erudito leigo que adotava uma postura completamente contrária ao pacifismo de Las
Casas, baseando-se na doutrina de Aristóteles para justificar a guerra contra os indígenas
e sua escravização natural. A principal base de argumentação de Sepúlveda para justificar
a inferioridade dos nativos, apoiava-se nos sacrifícios humanos e no canibalismo. Sobre
tais práticas, Las Casas argumentava que apesar do erro dos índios em sacrificar os seus
semelhantes, o exercício do sacrifício é uma prova do forte sentimento religioso dos
indígenas, que estão prontos a oferece a Deus o bem mais preciso: a vida humana.

Por sua vez, a postura de Las Casa em relação aos sacrifícios humanos, revela-
se como uma posição demasiadamente tolerante, visto que o sentimento religioso dos
índios é colocado acima ao dos espanhóis, e apesar do dominicano admitir a superioridade
da religião cristã em relação as outras, também argumenta que são vários os caminhos
que conduzem a Deus, levando-o a respeitar mais as demais religiões.

Todos os viajantes abordados até o presente momento, vieram à América por


objetivos políticos, monetários, religiosos ou militares. Porém, houveram aqueles que
vieram ao Novo continente e se aprofundaram no estudo da sociedade e da mentalidade
indígena. Dentre os quais, está o franciscano Bernardino Sahagún (1499-1590), que veio
ao México em 1529, onde permanece até sua morte.

No México, passa a dar aulas aos filhos dos dignitários astecas, ensinando-os a
religião cristã e a língua latina. Juntamente, o professor aproveita o contato com seus
alunos para aprender sobre a língua e a cultura asteca, justificando seu interesse como
uma forma de difundir eficazmente a religião cristã.

Através desse contato, Sahagún informa-se sobre inúmeros hinos, rituais e


discursos religiosos, criando uma obra monumental e única acerca da cultura asteca a
pedido de seu superior, cuja função era levar os sacerdotes espanhóis a conhecerem
melhor os nativos para facilitar na conversão dos mesmos. A obra foi intitulada de
Historia General de las Cosas de la Nueva España, e curiosamente não foi redigida em
espanhol mas em nahuatl, sendo posteriormente traduzida para o idioma hispânico. Por
meio dessa atitude, o livro busca atingir dois públicos diferentes: os religiosos, dedicados
a conversão dos índios, e os literatos leigos, interessados em conhecer mais sobre a
história e a cultura dos antigos astecas.

A mensagem passada pelo livro tem um caráter dúbio. Por vezes, o autor defende
a renúncia às superstições, e simultaneamente, lamente o destino dos povos conquistados.
Trata-se de uma obra que não pertence nem unicamente a cultura espanhola e nem
unicamente a cultura asteca, pois é singularmente híbrida, sendo o primeiro grande
monumento da cultura mexicana. Paradoxalmente, Sahagún ao mesmo tempo em que
defende a conversão indígena, nota que tal prática os afasta de Deus ao invés de aproxima-
los.

Semelhante a Las Casas, Sahagún observa que antes da chegada dos espanhóis, os
índios eram mais religiosos, ainda que sua religião não fosse boa. Igualmente, defende o
universalismo cristão do frade dominicano, considerando os indígenas como irmãos.
Todavia, defende que os índios não são melhores e nem piores que os espanhóis, já que
uma cultura não determina automaticamente o juízo de valor de um indivíduo. A
investigação etnográfica realizada por Sahagún, ainda que tenha os seus limites
eurocêntricos, mostra-se essencial para que hoje se possa estudar um povo por muito
tempo ignorado e alheio ao processo histórico.

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