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apontava ao poente. Pouco tempo depois,

Autor de a história do brasil para quem tem pressa as


esquadras portuguesas chegavam às terras brasileiras.

Abre-se também a porta para penetrarmos

no enigma da vida de Cristóvão Colombo, o

Marcos Costa

repare-se para embarcar numa


viagem surpreendente. A rota

inclui mudanças vertiginosas que mudaram

genovês que, a serviço da Espanha, seria, na a


humanidade para sempre, além de

verdade, um espião de d. João II, rei de Portugal.

fatos, tramas e personagens sombrios que

No percurso desta viagem não faltam

protagonizaram histórias ignoradas pelos

outros elementos, como o misterioso paralelo relatos


oficiais. Destino final? O Brasil, claro, 12 Sul, o papel da
mítica Escola de Sagres, um país que nasce no meio do
caminho de

a maçã da Terra, círculos alquímicos, o Dia uma


avalanche que varreu o mundo entre

das Bruxas, entre outros acontecimentos –

meados do século XV e início do século XVI.

detalhes eletrizantes e surpreendentes que

Esta é a viagem narrada em O livro obscuro revelam um


outro lado do descobrimento.

do descobrimento do Brasil.

O misterioso trajeto de Pedro Álvares

al
Cabral foi parte de uma grande aventura,

esso

Marcos

num período que sepultou a Idade Média


O LIVRO OBSCURO
vo p
Costa

e abriu asas ao Renascimento, à Revolução

acer
DO
Científica, à Reforma Protestante, ao

Entre a história oficial, em geral mentirosa, e a secreta,


na qual se encontram as reais causas dos
acontecimentos, este livro segue o rastro ES LI

Mercantilismo e ao surgimento do

deixado pela última. Seu autor, o historiador CO

DO
VR
Capitalismo – no caso do Brasil, um modelo

Marcos Costa, percorre o período que abarca os 50 anos


B O OBSCUR
RI
capitalista que, imposto pelos portugueses, anteriores e
os 50 anos posteriores ao descobrimento do M

passou pela África e chegou até aqui unindo


DESCOBRIMENTO

Brasil para contar a história verdadeira de um projeto E

monocultura de grandes proporções,


N
de conquista. O resultado é uma narrativa eletrizante TO
DO

latifúndio e trabalho escravo, combinação de sobre uma


grande aventura cheia de detalhes sombrios, O DO

trágicas consequências para a nossa formação.


DO BRASIL
O historiador e professor Marcos Costa

Marcos Costa

escondidos pela história oficial: o manuscrito secreto


pensou em ser arquiteto,

atravessa esse período para trazer à luz detalhes mas


logo desistiu e foi fazer História na

de Marco Polo, um cavaleiro de pedra que indicou a B

como magia, ciência, religião,


R
que insistem em permanecer nas sombras:

UNESP. Tornou-se mestre e doutor em

rota do descobrimento, a tomada de Constantinopla, AS

intrigas e lutas pelo poder fizeram parte

magia e ciência, enigmas e conspirações,


IL
História Social. Historiador, professor

espiões profissionais, a lenda negra que pôs a Espanha


do projeto de conquista do brasil

mistério e religião, intrigas e lutas pelo poder


universitário, pesquisador e escritor, é autor a caminho
do paraíso, um agente secreto chamado fizeram parte do
projeto de conquista do Brasil.

de inúmeros artigos publicados em revistas

O livro conta, por exemplo, a história do

Cristóvão Colombo, a Inquisição e outros aconteci-


acadêmicas e de vários livros: O reino que cavaleiro de
pedra que indicou a rota para o mentos que colocaram o
Brasil no olho de um furacão.

não era deste mundo, Para uma nova história,


descobrimento. Ao fim do século XV, após

Escritos coligidos: textos de Sérgio Buarque de duas


décadas investindo na busca de novos

Holanda (em 2 volumes), História do Brasil mundos, o


infante d. Henrique teve uma boa

para quem tem pressa e A curvatura da banana: notícia:


numa das ilhas do arquipélago dos

quem tem um projeto de nação para o Brasil? .


Açores, seus exploradores encontraram uma

estátua em tamanho natural de um homem

montado num cavalo. Uma de suas mãos

capa Victor Burton

leya.com.br

ISBN 978-85-7734-690-5

fazia menção de sacar uma espada; a outra

Obscuro_capa_15.5x22.8cm.indd 1

10/30/19 12:04 PM

“Há duas histórias, a oficial, mentirosa – ad usum


delphini –, e a secreta, em que estão as verdadeiras
causas dos acontecimentos.”

Balzac

“Um pintor deve começar cada tela com uma

lavagem em negro, porque todas as coisas na natureza


são negras, exceto quando expostas pela luz.”

Leonardo da Vinci

SUMÁRIO

Os ratos de Caffa 11

A startup mais lucrativa da história: a tomada de Ceuta


17
A viagem do infante d. Pedro e o

manuscrito secreto de Marco Polo 24

O infante d. Henrique e a Escola de Sagres 31

O cavaleiro de pedra 40

As mortes de d. Henrique, d. Pedro e a

interrupção do projeto das Índias 45

A tomada de Constantinopla 50

A maçã da Terra 55

De d. João II a Maquiavel 60

O caminho para as Índias: espionagem

comercial no século XV 66

O caminho para as Índias: a demanda

secreta pelo reino do Preste João 73

O caminho para as Índias: quem planta

tâmaras não colhe tâmaras 78

A lenda negra: a Espanha no caminho do paraíso 84

Cristóvão Colombo: agente secreto de d. João II? 93

A misteriosa morte de d. João II 99

A misteriosa viagem de Pedro Álvares Cabral ao Brasil


106
O Brasil no olho do furacão 116

Os verdadeiros descobridores da América:

Solís, Balboa, Garcia e Magalhães 125

A riqueza da América reluz nos olhos

de uma decadente Europa 137

O paralelo 12o S: a descoberta do ocultista Felipe


Guilhém 146

O pêndulo da morte 160

O Dia das Bruxas 175

Revolução política, revolução científica e o mundo em


convulsão 183

A guerra dos mundos 194

O papa negro e o império teocrático da América do Sul


206

Magia, poder e ambição no sertão do

Brasil: as Capitanias Hereditárias 222

Magia, poder e ambição no sertão

do Brasil: o Governo-Geral 226

Magia, poder e ambição no sertão do Brasil: a Companhia


de Jesus na Nova Lusitânia 231

Magia, poder e ambição no sertão do Brasil: a Inquisição


na Nova Lusitânia 239
O demônio do meio-dia e o círculo

alquímico de El Escorial 244

A guerra dos tronos e o reino onde o Sol nunca se põe


260

A Inquisição no Brasil 277

Da Nova Lusitânia a Manhattan: a

ascensão do Brasil Holandês 297

Da Nova Lusitânia a Manhattan: a

queda do Brasil Holandês 310

Perinde ac cadaver 322

Nuvens, ratos e civilizações 330

Notas 334

Referências bibliográficas 352

OS RATOS DE CAFFA

A economia e os negócios movem o mundo. Foi preciso


Karl Marx escrever O Capital para que essa verdade
singela – de que mudanças históricas ocorrem por causa
de conflitos latentes na estrutura socioeconômica das
sociedades – se tornasse um mantra. Diz Marx: “O modo
de produção da vida material condiciona o processo da
vida social, política e espiritual em geral.

Não é a consciência dos homens que determina sua


existência, mas, pelo contrário, é sua existência social
que determina sua consciência.”1 Essa ideia, que no
século XIX vai representar um marco do pensamento
socialista marxista, transplantada para o século XV
significa uma guinada nos rumos da economia mundial,
mudando a existência social das pessoas e,
consequentemente, a sua consciência sobre o mundo. E
essa nova consciência sepultou a Idade Média, deu asas
ao Renascimento, à revolução científica, à Reforma
Protestante, ao mercantilismo, ao capitalismo e pariu – a
fórceps – a Idade Moderna.

O Brasil apareceu no meio do caminho dessa avalanche e


foi, como um empecilho, um estorvo, atropelado por ela
sem que

ninguém tivesse tempo para anotar a placa. Foi uma luta


desi-gual. Não éramos uma nação, mas, sim, um
território dividido em várias “nações”. Não tínhamos um
povo, tínhamos vários povos que habitavam essas
“nações” tão diversas que cultivavam inclusive idiomas
próprios, costumes, crenças etc. O Brasil que nasce no
ano de 1500 não teve direito a uma infância ou
adolescência, nasceu adulto, nasceu da imposição de um
modo de vida que não era o seu e que talvez jamais
viesse a desenvolver. Ainda nos dias de hoje, várias
nações indígenas são encontradas na imensa – quase
infinita – Floresta Amazônica, e esses índios vivem
exatamente como viviam seus ancestrais em 1500. Pode-
se dizer que a avalanche que começou na Europa varreu
o mundo e, quando chegou ao Brasil, provocou também
um choque civilizacional.

Mas não nos antecipemos, pois naquele momento o


Brasil permanecia esquecido num canto qualquer da
gaveta da história. E
esta nossa história começa quando os navios mercantes
aportaram em Veneza e Gênova naquele mês de abril de
1453. Eles trouxeram para os comerciantes italianos, os
financistas de Florença e os reis europeus uma notícia
aterradora: o mar calmo do Mediterrâneo havia sido
sacudido por um vendaval, um maremoto, um tsunami.

As principais rotas das especiarias (canela, gengibre,


cravo, pimenta e açafrão) e da seda da China haviam
sido bloqueadas com a queda de Constantinopla. A
notícia era que a partir daquele momento, na melhor das
hipóteses, os preços subiriam de forma estratosférica.

A sensação de uma crise iminente se abateu sobre os


portos do Mediterrâneo que tinham o monopólio dessas
rotas e das riquezas do Oriente que eram
comercializadas com toda a Europa.

Desde a expansão do império romano, quando o


Ocidente havia entrado em contato com o Oriente e
descoberto que era possível, com o comércio de
especiarias, fazer verdadeira fortuna na Europa, que não
ocorria um revés tão sério e dramático nas relações
comerciais no Mediterrâneo. Junto à má notícia vieram
nos porões dos navios, como sempre vinham, os
inofensivos ratos de Caffa, uma colônia veneziana onde
hoje é a Crimeia. Inoculado nos ratos veio 12

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

o vírus da peste negra, que, sempre inofensivo, naquele


ano havia encontrado ambiente mais propício para a sua
difusão. O clima, ao contrário do que pensamos hoje, não
seguia uma lógica em direção ao aquecimento da Terra.
Sempre existiu uma sazonalidade entre tempos quentes
e frios, e essa alternância definia, de certa forma, os
períodos em que a humanidade prosperava ou perecia.

Havia se iniciado há poucos anos uma pequena idade


glacial – a peste negra, que se espalharia pela Europa,
dizimaria quase metade da população no final da Idade
Média. Destruiria impérios, faria com que alguns reis
perdessem a cabeça e que outros ascendessem aos
tronos, mudaria a geografia fazendo com que alguns
reinos e feudos desaparecessem e outros surgissem ou
prosperassem – a peste, definitivamente, mudaria a
história, fazendo com que hábitos, costumes,
pensamentos, verdades e certezas desaparecessem para
que uma nova realidade surgisse.

Os tempos seriam sombrios. Pode-se dizer que esse


quadro que se desenhou de forma abrupta foi impondo
ao Ocidente a necessidade de mudanças. Com o tempo,
essas mudanças se encarregariam de construir as bases
de um mundo novo. Não por acaso, quando no século XIX
os historiadores se reuniram para organizar o
conhecimento histórico, foi escolhido justamente esse
acontecimento e a data de 1453 como o marco de
passagem da Idade Média para a Idade Moderna, um dos
períodos mais ricos em acontecimentos da história da
humanidade.

O roteiro desse filme tem como tema principal a


expansão comercial e marítima, cujos agentes foram
grandes empresas multinacionais – joint ventures –
comandadas por banqueiros e comerciantes que a
princípio se encontravam sediados em Veneza, Gênova e
Florença, mas por migrarem constantemente criaram
uma imensa rede de poder que envolvia uma relação
dicotômica.
Esse grupo unia-se a reis e príncipes em busca de duas
frentes que interessavam aos comerciantes e
governantes: riqueza e poder. Em muito pouco tempo,
essa relação entre comerciantes, sobretudo judeus, e reis
começou a incomodar o catolicismo. Durante toda a Os
ratos de Caffa

13

Idade Média, sobretudo a partir de Constantino, por volta


do ano de 312, o catolicismo havia dominado em
absoluto o mundo ocidental.

No entanto, nas décadas finais da Idade Média, seu


poder absoluto vinha sofrendo um processo lento de
dissolução e em pouco tempo entraria,
irremediavelmente, em crise.

O novo quadro que surgiu, num intervalo de um século, a


partir da tomada de Constantinopla, como veremos em
detalhes, pode ser resumido da seguinte forma: “Houve
os descobrimentos geográficos, houve o colapso das
relações econômicas feudais, houve o estabelecimento
de novas igrejas que não mais reconheciam a
supremacia de Roma, houve uma revolução científica
que alterou radicalmente as perspectivas do pensamento
humano. Houve um crescente número de invenções que
redundaram em nova riqueza e aumento demográfico,
houve a descoberta da imprensa, houve a consolidação
de vagos e incipientes localismos em Estados nacionais,
centralizados e eficientes.”2

Não foram poucas as mudanças e a humanidade talvez


tenha avançado em cem anos, nesse seu périplo em
direção ao desconhecido, o que não havia avançado nos
últimos mil anos.
A Igreja Católica, uma das principais vítimas dessas
imensas mudanças, passaria por um processo lento em
que deixaria de ser protagonista e se tornaria
coadjuvante. Ferida de morte por uma nova civilização
urbana e comercial, pela Reforma Protestante e pela
revolução científica, a Igreja não se renderá e venderá
caro o desprestígio iminente e a perda de poder. Essas
mudanças provo-caram a valorização do conhecimento
antigo. Não por acaso esse período – levado à Europa
pelos muçulmanos e judeus, divulgadores do
conhecimento na Espanha e em Portugal – ficará
conhecido como Renascimento. Como veremos, desse
passo inicial surgirão um Copérnico, um Kepler, um
Bacon, um Giordano Bruno – que foi queimado na
fogueira – e um Galileu – que escapou por pouco, porque,
após condenado, se viu obrigado a se desdizer.

Esse novo mundo, no entanto, a despeito da fúria da


Igreja, avançou de forma galopante e inexorável. Isso
porque comerciantes 14

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

e príncipes se “[. .] complementaram um ao outro e seus


benefícios mútuos unificaram os dois componentes
heterogêneos do agente de expansão, numa relação de
intercâmbio político em que, por um lado, a busca de
poder pelo componente territorialista criou
oportunidades comerciais lucrativas para o componente
capitalista e, por outro, a busca de lucro por este último
fortaleceu a eficácia e a eficiência do aparelho produtor
de proteção do componente territorialista”.3 A riqueza
experimentada a partir desse sistema novo fez com que
o medo do desconhecido e do proibido começasse a se
dissipar. O prazer que proporcionava fazia valer o risco
imediato.
No século XV, sobretudo depois da tomada e queda de
Constantinopla, “[. .] os governantes territorialistas
ibéricos e os banqueiros mercantis capitalistas uniram-se
pela simples razão de que cada um dos lados era capaz
de fornecer ao outro aquilo de que ele mais precisava; e
o relacionamento durou porque essa relação de
complementaridade foi continuamente reproduzida pela
exitosa especialização dos dois lados nas respectivas
atividades.

Aquilo de que a classe capitalista mais precisava no


século XV era uma ampliação de seu espaço comercial,
que fosse suficiente para acolher seu imenso excedente
de capital e recursos humanos e para manter vivas suas
extensas redes comerciais”.4 É preciso notar que
vigorava na época o mercantilismo, ou seja, ninguém
produzia nada. A lógica era obter lucro na compra e
venda de mercadorias, sobretudo produtos primários ou
apenas artesanalmente fabricados.

Pode-se dizer que os comerciantes faziam o que hoje


conhecemos como startups, ou seja, a busca de
parcerias em negócios lucrativos. Nesse contexto,
financistas sediados em Gênova, Florença e Veneza
intensificaram o financiamento às explorações
portuguesas e espanholas e à “[. .] medida que essa
associação se formou e os chamados grandes
descobrimentos a consolidaram, o capitalismo foi
finalmente liberto de sua longa crise e disparou rumo a
seu momento de maior expansão”.5

Mas não nos antecipemos, os grandes descobrimentos


marítimos e a expansão do mercantilismo, do capitalismo
e do liberalismo Os ratos de Caffa

15
europeus só foram possíveis depois de anos de
investigação e prospecção de novos mercados. Os
comerciantes e financistas não eram amadores – muito
tempo antes de a bomba explodir, eles já pressentiam
que algo estava prestes a ocorrer no Oriente. As notícias
se avolumavam a cada viagem. Em matéria de negócios,
a vida é muito dinâmica, as inovações surgem
constantemente e mudanças bruscas ocorrem em
questão de horas, quiçá minutos, de modo que a grande
roda da fortuna gira seus dentes e o que parecia
enraizado torna-se volátil – como diz Karl Marx: “Tudo
que é sólido se desmancha no ar.”6

O primeiro passo da conexão entre os banqueiros e


comerciantes genoveses, florentinos e venezianos e a
Península Ibérica vai ser dado em parceria com Portugal,
um país que, voltado para o Atlântico – até então,
portanto, distante do palco principal do teatro das nações
poderosas, o Mediterrâneo –, era por isso mesmo
completamente inexpressivo. A tomada da cidade de
Ceuta, em 1415, vai ser o laboratório, o passo inicial de
todo aquele grande projeto que vai desvendar de vez o
mundo e se estender para a América – vai fazer girar
forte a roda da fortuna dos habitantes desse mundo,
como veremos mais adiante. Desse capítulo inicial ao
capítulo derradeiro – o encontro e a exploração do Brasil
e da América – foi só uma questão de tempo. Grãos de
areia corriam fluidos nas ampulhetas como água de um
rio caudaloso. Os pobres habitantes da América e da
Terra Brasilis que se acautelassem.

Como se pode ver, os descobrimentos do Brasil e da


América se darão em meio a um movimento de forças
poderosas. Nascemos no olho de um furacão que lambeu
a terra e devastou tudo o que encontrou pelo caminho.
Mas até chegar ao Brasil, devastou outras terras.
Vejamos.

16

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

A STARTUP MAIS LUCRATIVA DA HISTÓRIA: A TOMADA DE


CEUTA

Muito tempo antes de esse revés acontecer no comércio


do Mediterrâneo, as nações, que eram apenas
caudatárias nesse processo e participavam dele como
coadjuvantes, se viravam como podiam. Um caso
emblemático é o de Portugal, que, por isso mesmo,
colocará em movimento um plano ambicioso que terá
como consequência, entre outros, o descobrimento do
Brasil.

E tudo isso começa da seguinte forma: a partir do final


da guerra entre Castela e Portugal, em 1385, na batalha
de Aljubarrota, com o início da dinastia de Avis, Portugal
passou a exigir de si mesmo uma espécie de
protagonismo no comércio e nas relações internacionais,
dada a localização estratégica do porto de Lisboa,
entreposto quase obrigatório no caminho entre o
Mediterrâneo e o Atlântico Norte. Até então, Portugal
comercializava apenas produtos secundários – azeite, sal
e bacalhau – e assistia, como mero espectador, à leva de
mercadorias que passava pelo porto de Lisboa oriunda,
sobretudo, de Gênova e Veneza, em direção à Inglaterra
e a outros países do norte da Europa. A partir da
revolução de Avis, d. João I começou a pensar seriamente
em entrar no negócio do

Oriente, mas era preciso arrumar um parceiro. Portugal,


por si só, não tinha o cabedal necessário para tal
empreitada.

Mas as oportunidades sempre aparecem, e a Guerra dos


Cem Anos, entre a França e a Inglaterra, tornou
praticamente impraticá-

vel o transporte de cargas pelas rotas terrestres entre as


principais cidades italianas e Londres, pois atravessavam
todo o território francês. O frio e a peste negra também
foram outros obstáculos que dificultaram sobremaneira o
trânsito do comércio por terra pelo interior da Europa,
pois geraram um quadro de miséria generalizada e,
consequentemente, constantes episódios de saques e
roubos de mercadorias. Nesse contexto, o porto de
Lisboa passou a ganhar cada vez mais importância,
sobretudo para os ingleses, pois ter um porto à
disposição a meio caminho entre Londres e as cidades
italianas era contornar de forma definitiva os enormes e
quase intransponíveis obstáculos que haviam surgido na
rota terrestre.1

Desse modo, dadas as condições favoráveis para ambos


os lados, surge o acordo entre Portugal e Inglaterra –
Tratado de Windsor –, selado com o casamento, em 1387,
entre d. João I e Filipa de Lencastre e que foi fundamental
para que Portugal pudesse se dedicar – protegido que
agora estava contra os ataques espanhóis – à expansão
marítima. O centro do mundo era o Mediterrâneo e a
Inglaterra.

Com esse casamento e essa parceria, Portugal procurou


também entrar num negócio extremamente lucrativo do
qual a Inglaterra figurava apenas como subsidiária. A
primeira etapa estava resolvida.
Com o tempo, no entanto, Portugal e Inglaterra – que em
meio a uma crise que envolvia frio, fome e guerra
buscavam meios de sair do estado de prostração e
também novas alianças – passaram, então, a nutrir outra
forte ambição: o negócio com o Oriente. No ano de 1415,
o rei d. João I queria fazer dos seus filhos cavaleiros e,
para tal, pensou numa festa ou numa justa para
consagrá-los. Mas o diabo estava atrás da porta pronto
para se intrometer em tudo.

João Afonso, vedor da fazenda real, propõe a d. João I um


evento muito mais intenso, muito mais épico. Entre uma
taça de vinho e outra, ele destila seu veneno e sugere a
tomada de Ceuta. Nada mais, 18

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

nada menos que um dos mais importantes entrepostos


comerciais do norte da África, no estreito de Gibraltar.
Não era o porto mais importante, mas já era alguma
coisa. Era sair da região de conforto e começar a pleitear
algo infinitamente melhor.

A tomada da cidade de Ceuta vai ser fundamental para


Portugal.

Lisboa havia se tornado, com o tempo, um porto


importante, muitos comerciantes venezianos e
genoveses tinham armazéns e estaleiros nesse porto,
sobretudo por causa do acirramento e da deteriora-

ção da situação no continente. A sua importância era


estratégica, o porto ficava a meio caminho entre o
Mediterrâneo e os portos da Alemanha, Inglaterra e
Holanda, com quem os comerciantes venezianos e
genoveses comercializavam os cobiçados produtos do
Oriente. Já pelos portos da região do Magreb, Ceuta era
por onde se escoava para a Europa toda produção de
ouro do Sudão e outras riquezas da África, como
diamantes. Ceuta seria, na concepção dos portugueses,
um importante elo entre o comércio do Oriente e o
Atlântico Norte, pois surgia como uma alternativa ao
comércio do Mediterrâneo.

Outro aspecto importante de Ceuta, até mesmo


simbólico, é que a região havia sido – em todas as
invasões que Espanha e Portugal sofreram ao longo da
história – o “[. .] ponto de reunião e partida tanto dos
exércitos dos mouros como dos corsários”.2 O

aspecto meramente econômico da tomada de Ceuta


deveria ser, no entanto, travestido de outros motivos. E o
motivo universal das incursões do mundo ocidental no
mundo oriental foi sempre um só: o religioso. As
Cruzadas, desde os primórdios, disfarçadas sob o manto
da guerra religiosa, sempre foram batalhas econômicas,
e naquele momento tínhamos o início de uma crise
econômica que se agravaria com o frio e a peste negra.

D. João I entusiasmou-se com a indicação de seu vedor-


mor da fazenda, pois de uma só vez resolveria dois
problemas que surgiram em Portugal
concomitantemente. O primeiro deles: o fato de os filhos
do rei já estarem moços e a necessidade de engajá-los
na política do reino. O segundo: a própria situação
deficitária do reino A startup mais lucrativa da história: a
tomada de Ceuta 19

que lucraria muito com a pilhagem da cidade de Ceuta,


além de levar consigo a Inglaterra para contatar
diretamente os mercadores do Oriente.
Antes, porém, era preciso consultar o conselho para
saber se era da “vontade de Deus”. Recebeu como
resposta do frei Joham Xira e do frei Vasco Pereira a
seguinte afirmativa: “Saiba vossa mercê que o estado
militar é muito louvado entre os cristãos por guerrearem
os infiéis [. .] todo rei deve guardar seu povo contra os
infiéis.”3

Portanto, absolvição perpétua para quem morrer


combatendo os infiéis. Desse modo, a primeira questão
do rei estava resolvida.

Travestida de luta contra os infiéis, é claro que Deus


estava de acordo com a tomada de Ceuta, e, inclusive,
respaldado por uma bula para uma santa cruzada “[. .]
que d. João I tinha impetrado junto ao papa em favor
daqueles que tomassem parte na conquista de Ceuta”.4

A segunda questão posta por d. João I era a financeira:


“Para semelhante feito se requerem grandes despesas,
para as quais é necessário muito dinheiro, o qual eu não
tenho.”5 Esse problema seria resolvido com o auxílio, ou
antes, com o consórcio que o rei de Portugal faria com
banqueiros e comerciantes judeus, alguns deles
residentes na Inglaterra. Daí também a recomendação do
rei d. João I para que, com a pilhagem, a cidade saísse o
mínimo possível da rotina de porto estratégico. Enfim,
acertadas as coisas com Deus, era hora de acertar com o
diabo, ou seja, tratar da divisão dos dividendos da
pilhagem.

Portugal soube como ninguém contemporizar os


interesses de comerciantes e da Igreja, que, no fundo,
não eram tão diversos assim. Na verdade, o espírito
cruzadista, que era o aspecto menos racional das nações
ibéricas, era tudo que os comerciantes e banqueiros
precisavam para pôr em marcha seus interesses
meramente financeiros. O aspecto religioso era “[. .] uma
excelente garantia de que a expansão ibérica por águas
desconhecidas prosseguiria, sem ser estorvada por
constantes cálculos racionais sobre custos e benefícios
pecuniários”.6 Os cálculos racionais e os benefícios
pecuniários ficavam a cargo dos banqueiros.

20

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

E esse aspecto bipolar, por assim dizer, da expansão


ibérica ficou claro nas questões postas por d. João I aos
filhos quanto à tomada de Ceuta. A questão moral foi
facilmente resolvida e a questão financeira seria
resolvida pelos comerciantes e banqueiros, que, na
esteira da loucura jihadista da Igreja contra os infiéis,
prospectariam grandes oportunidades de negócio.

Desse modo, o espírito cruzadista foi um forte aliado dos


banqueiros e comerciantes, sem o qual dificilmente eles
teriam conseguido superar as derrocadas cíclicas do
comércio com o Oriente.

Para qualquer projeto de expansão dos horizontes


territoriais que surgisse, mesmo os mais absurdos,
oriundos das mentes mais doentias, lá estavam os
investidores judeus – comerciantes e banqueiros – para
patrocinar a empreitada. Ceuta foi a primeira grande
aventura de uma parceria fecunda que duraria décadas.

Acertados os detalhes, a expedição se fez de vela com


vento favorável no dia 25 de julho, dia da festa de
Santiago, indicado pela rainha Filipa – que na época já
havia falecido – como o melhor dia para a partida.
Segundo relatos da época: “Muitos aventureiros distintos
da Inglaterra, França e Alemanha fizeram parte dessa
empresa. Um barão deste último país trouxe consigo
quarenta cavaleiros, e um rico inglês acompanhou a
expedição com quatro navios carregados de provisões. O
armamento era de extraordiná-

ria grandeza para aquela época. Zurita, nos seus Anais


de Aragão, refere que a esquadra se compunha de 33
galeões, 27 menores de três ordens de remos, 32 galeras
e 120 outros vasos menores, com 50.000 homens, dos
quais 20.000, ao que parece, já tinham militado, e os
outros eram remadores e marinheiros.”7

Com tudo resolvido, Portugal parte para uma conquista


épica, que se inicia em Ceuta e vai se estender por
mares desconhecidos e lugares até então inimagináveis,
por exemplo, a América. O sucesso da tomada de Ceuta
vai entusiasmar os portugueses e servir como padrão
para as ações futuras de pilhagem e anexação de novos
territórios ao reino de Portugal.

A startup mais lucrativa da história: a tomada de Ceuta


21

Tanto entusiasmou, sobretudo pelas oportunidades de


negócios, que o que antes era proibido – o comércio de
cristãos com muçulmanos, dada a possibilidade até
então inédita de negócios que se abriu tanto para
Portugal quanto para a Igreja – passou,
consequentemente, a ser viável, tanto que o papa
Martinho V publicou a bula Super Gregem Dominicum,
em 1418, na qual remediava essa prática, relativizando
esse aspecto do direito canônico, pois “[. .] a conquista
de Ceuta gerou a necessidade de comercializar com eles
e portanto a dispensa de tal proibição. João I de Portugal
suplicou ao papa Martinho V que o desejo de converter à
fé cristã os muçulmanos vizinhos não se podia fazer
senão ‘por amor ou temor’.

Estabelecer relações comerciais com eles promoveria o


comércio com um fluxo econômico muito necessário que
podia facilitar a convivência e as boas relações entre os
sarracenos e os cristãos, com o qual se garantiria a
conservação de Ceuta em mão portuguesas e, por
último, em um ambiente assim, a possível conversão dos
muçulmanos poderia ser uma realidade. O pontífice
concedeu a Portugal a licença para comercializar com os
muçulmanos com exceção das mercadorias proibidas
pelos concílios lateranenses III e IV, como ferro, madeira,
cordas, barcos e armas. Assim, Ceuta se converteu não
somente em um ponto geopolítico estratégico para a
expansão portuguesa pela África, mas também em um
mercado alternativo para os produtos portugueses e para
obter as mercadorias africanas sem intermediários”.8

Na expansão portuguesa, temos uma mescla de motivos


religiosos, demográficos, mas sobretudo econômicos. O
sucesso obtido com a invasão de Ceuta, no entanto,
chocou o ovo da serpente, e, de certo modo, pode-se
dizer que esse ataque do Ocidente contra o mundo
islâmico teria como resposta final a tomada de
Constantinopla, em 1453.

Numa relação de causa e efeito, um inverno rigoroso na


Inglaterra vai desencadear o movimento de forças que
permaneceram estag-nadas durante séculos. O Brasil vai
aparecer no meio do caminho de um processo
irreversível de mudanças históricas e vai ser
simplesmente anexado a ele, devorado por ele, como um
bebê que 22

O livro obscuro do descobrimento do Brasil


acaba vindo à luz sem que desejasse e sem ter a menor
ideia de onde estava chegando.

Mas, antes de chegar ao Brasil, foi preciso que diversos


desafios tivessem sido superados, diversos problemas
fossem contornados e muitos enigmas resolvidos. Para a
solução desses problemas, os homens lançaram mão de
vários estratagemas: magia, traição, conspiração e
ciência. Vejamos as cenas dos próximos capítulos.

A startup mais lucrativa da história: a tomada de Ceuta


23

A VIAGEM DO INFANTE D. PEDRO E O

MANUSCRITO SECRETO DE MARCO POLO

Ceuta foi o laboratório e o ensaio geral de toda a


expansão comercial e marítima do mundo moderno. Não
se tratava de encontrar parceiros comerciais, as
necessidades urgentes exigiam soluções mais imediatas.
Tratava-se de, mediante o uso da violência extrema,
conquistar, pilhar, feitorizar, escravizar e colonizar, de
modo que a negociação e o diálogo fossem substituídos
pelo frio aço das espadas.

Cronistas da tomada de Ceuta relataram esse novo


modus operandi. “Foi feita naquele dia grande
mortandade a qual jazia espalhada pelas ruas da cidade
[. .] eram dez mil mortos que por força dos golpes jaziam
por terra e nem podiam ser reconhecidos

[. .] muitos jaziam espedaçados e tantos eram o


atormentado das feridas que não demoravam as almas
para sair das carnes e tais se lhes partiam os espíritos
apressados, que deixavam as caras tão feias que
verdadeiramente arremedavam a semelhança dos anjos
infernais cuja fera e áspera companhia eles em breve
tempo haviam de conhecer.”1

Em outro trecho se dizia que “[. .] passou-se a noite em


grande vigília. Na manhã seguinte, quando os
portugueses entraram na

cidade, foram achá-la no mais profundo silêncio. Apenas


encontraram os corpos dos que jaziam mortos, alguns
velhos, mulheres e crianças, que hesitaram se haviam ou
não de abandonar seus lares queridos, apesar do risco de
ficarem escravos dos cristãos vitoriosos. O despojo foi
muito abundante em ouro e prata, e joias de alto preço,
além de mercadorias e drogas em grande quantidade.

A destruição e estrago foram, porém, imensos”.2

Como se pode notar, a batalha foi duríssima, e para


amenizar o sentimento de culpa dos cristãos pela
matança indiscriminada, pelo saque, roubo e destruição
da cidade, o rei de Portugal solicita ao papa Martinho V a
possibilidade de conceder indulgência, ou seja,
clemência, misericórdia, absolvição de pena preventiva e
plena para todos aqueles – cristãos, obviamente – que
residissem em Ceuta ou que estivessem por lá a serviço
de Portugal. Em atendimento à demanda do rei a Santa
Sé publica, em 1419, a bula Ab eo qui humani sumens.

Depois dos esforços para tomar a cidade, aquele era, no


entanto, apenas o início. O que viria depois? Qual seria a
reação? Imprevisível, restava o mais importante, que era
a organização da defesa, pois não se sabia se os fugitivos
voltariam para reconquistar a cidade. Desse modo, a
defesa de Ceuta era o objetivo prioritário que consumiria,
além de recursos, um número substancial de pessoas
que estivessem dispostas a desafiar o inesperado, o
desconhecido, e arriscar ali as próprias vidas. Isso não
era qualquer coisa, e, para estimular os soldados
cristãos, Igreja e rei articularam a isenção do pagamento
de dízimo para aqueles que se alistassem nas ordens
militares, cujo destino único e exclusivo era a defesa de
Ceuta.

Mas Ceuta era apenas a ponta de um iceberg. Prima


pobre do comércio do Oriente e nota de rodapé da
milésima página do livro do comércio das Índias
Orientais, por isso mesmo é que tinha sido tomada de
forma relativamente fácil. Entretanto, foi um ponto fora
da curva, e a continuidade da expansão europeia não
seria tão fácil assim. A reação estava a caminho e em
breve, como veremos, estaria às portas de Roma para
cobrar a fatura.

A viagem do infante d. Pedro e o manuscrito secreto de


Marco Polo 25

Entusiasmadíssimos com o sucesso de Ceuta, o que


saltou aos olhos foi que a empreitada havia sido mero
golpe de sorte que se seguiu a uma coragem inicial
quase juvenil. E, em matéria de guerra e pilhagem, não
se pode apenas contar com a sorte nem ter apenas
coragem para se conquistar inimigos infinitamente mais
poderosos, é preciso expertise.

Em 1418, em decorrência da dificuldade desse tipo de


empreitada e da necessidade de se adquirir expertise em
matéria de guerras, conquistas e navegação, o infante
Pedro, filho mais jovem de d.

João I, foi o escolhido para fazer uma longa viagem que


duraria dez anos. O primeiro objetivo era diplomático, ou
seja, estabelecer ou estreitar relações entre Portugal e
outros países limítrofes ou distantes. O segundo objetivo,
este oculto, era o de buscar notícias, conhecimentos
científicos, mapas, relatos e tudo o mais que pudesse
auxiliar Portugal e Inglaterra em sua grande ambição de
acessar, sem intermediários, as riquezas do Oriente e se
tornar gente grande em matéria de negócios.

É uma pretensão do Ocidente imaginar que a história


começa no século XV com o Renascimento, a Reforma
Protestante e a revolução científica. Isso talvez seja
verdadeiro para o mundo ocidental, mas a civilização é
muito mais complexa do que o Ocidente, e outras
civilizações desenvolveram igualmente suas religiões,
seus conhecimentos científicos e seus projetos sociais.
Basta pensarmos na riqueza e opulência da biblioteca de
Alexandria. Desde há séculos, os povos antigos –
chineses, fenícios, babilônios – conheciam não só
técnicas avançadas de navegação, como também
navegavam por mares e terras que para o Ocidente
ainda eram completamente desconhecidos.

No livro Tratado dos descobrimentos antigos e modernos,


escrito por Antônio Galvão, por volta de 1560, há relatos
de viagens “[. .]

feitas até 1550, com os nomes particulares das pessoas


que as fizeram e em que tempos, e suas alturas, e dos
desvairados caminhos por onde a pimenta e as
especiarias vieram das Índias às nossas partes”. Nesse
tratado, constam diversas rotas terrestres e marítimas 26

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

de que os povos se utilizaram para poder conectar-se. O


comércio sempre foi o motor da humanidade, e em busca
de oportunidades de negócio muitas civilizações
enfrentaram o medo e se lançaram em aventuras
terrestres e marítimas.

É impressionante notar como havia, já em tempos


remotos, um conhecimento e, de certa forma, até uma
relativa constância nas rotas comerciais marítimas que
ligavam a Europa ao Oriente contornando, inclusive, o
cabo da Boa Esperança. Com o tempo essa rota foi
caindo em desuso. Primeiro, porque era
contraproducente, pois ao longo da costa ocidental da
África, embora houvesse diversas tribos, o tino comercial
delas era quase nulo, de modo que nada compravam e
nada vendiam. Uma situação muito parecida com a que
os portugueses encontrariam nesses mesmos locais e
mais tarde no Brasil. Segundo, porque era muito custosa.
Essa rota, que segundo alguns relatos havia existido
antes da empreitada portuguesa, foi substituída por rotas
terrestres em que as mercadorias e os produtos do
Oriente chegavam até os portos no Mediterrâneo e eram
comercializadas com os europeus. Nos dias de hoje, pelo
canal de Suez, passam cerca de dezoito mil navios por
ano – é a maior rota de comércio do mundo, tendo
encurtado a viagem de navio entre a Europa e as Índias
Orientais em mais de sete mil quilômetros.

Ousado, o autor do Tratado vai além de simplesmente


revelar essa rota comercial e propõe que outras rotas
também já haviam sido exploradas. Escreve o autor “[. .]
no ano de 590 antes da Encarnação de Cristo partiu da
Espanha uma armada de mercadores cartaginenses
feitos a suas custas, e foi contra o Ocidente por esse mar
grande ver se achavam alguma terra: diz que foram dar
nela. É agora a que chamamos de Nova Espanha [. .] que
Cristóvão Colombo nos deu dela mais vera certeza”.3
Mais para a frente o autor relata que “[. .] no ano de 535
antes de Cristo, diz que navegavam os cartaginenses
espanhóis por todos os mares, até chegarem às praias
das Índias, Arábia e suas costas, donde levavam e
traziam muitas e diversas mercadorias. E andavam
nestes tratos e outros por diversas partes do mundo em
grandes navios”.4

A viagem do infante d. Pedro e o manuscrito secreto de


Marco Polo 27

Há também relatos de que na expansão da Escandinávia


do século X, eles haviam chegado à América “[. .] onde
haviam desem-barcado por volta do ano mil na costa
norte americana, terra à qual havia dado o nome de
Vinlandia”.5 Quem sai hoje em dia para caminhar na
marina de Shilshole Bay, em Seattle, nos Estados Unidos,
vai se deparar com uma enorme estátua de Leif Erikson,
o grande explorador escandinavo que havia pisado na
América quinhentos anos antes de Colombo.

Tendo crescido ouvindo essas histórias, o infante d. Pedro


havia projetado uma viagem para o Oriente, de onde
ambicionava trazer mapas, livros e notícias precisas
sobre circum-navegação, além de toda sorte de
conhecimentos. A intenção era retomar, por meio da
leitura desses mapas, livros e tratados, o conhecimento
processual da antiga rota usada pelos cartaginenses da
Espanha – herdeiros dos conhecimentos fenícios –, que
levava da Europa até o Oriente por meio do Atlântico Sul
e do cabo da Boa Esperança. O mais importante
documento era, sem dúvida, um manuscrito secreto de
ninguém mais, ninguém menos que Marco Polo, que só
seria publicado em Lisboa no ano de 1502; claro, quando
do descobrimento da América e do Brasil, pois já não
haveria mais motivos para guardá-lo em segredo.
Entre os anos de 1418 e 1428, portanto, o infante d.
Pedro empreendeu uma verdadeira odisseia pelas cortes
europeias, seguindo em direção ao Oriente, à Terra
Santa, na busca do reino do Preste João, um reino
católico incrustado no coração da África e em contato
direto com o trato do Oriente.6 O Preste João – caso
existisse mesmo esse reino – seria um aliado
importantíssimo no projeto de Portugal para a conquista
do Oriente. Seria uma aliança mais que estratégica
dialogar com um reino cristão, em meio aos arredios
muçulmanos. Seria um grande avanço, portanto, nas
relações comerciais com o Oriente.

A viagem foi toda financiada por banqueiros


entusiasmados em ampliar seus negócios com a
auspiciosa tomada de Ceuta. O objetivo principal era
obter o máximo possível de informações sobre as rotas
28

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

comerciais, marítimas e terrestres, cartas de marear,


narrativas de viagem, documentos, mapas de todo tipo e
o conhecimento processual sobre comércio e navegação
oriundo dos intensos movimentos dos homens e dos
conhecimentos cosmográficos acumulados.

As informações colhidas pelo infante nas regiões da


Espanha habitadas por mouros e judeus dão conta de
que o incêndio da biblioteca de Alexandria, no ano de
642, havia destruído apenas parte do acervo. Outra parte
havia sido salva e estava espalhada por bibliotecas,
mosteiros, priorados em vários países do Oriente Médio,
da Ásia, África e Europa. Dos mais de um milhão de
documentos, havia obras de Euclides, Arquimedes,
Galeno, Ptolomeu, entre tantos outros. Durante sete
séculos, a biblioteca de Alexandria abrigou o maior
patrimônio cultural e científico da humanidade.

Era justamente nessas obras que o infante d. Pedro


estava interessado, pois, em muitas delas, certamente,
encontraria informações preciosas sobre o mundo e as
navegações, que permaneciam desconhecidas no
Ocidente.

A viagem do infante d. Pedro começa em Veneza não por


acaso, pois é dessa cidade, e de Gênova e Florença, que
partiam com frequência os navios mercantes em direção
ao Mediterrâneo oriental.

Essas províncias italianas detinham o monopólio dessas


rotas comerciais e, com o tempo de navegação por essas
águas, dominavam como ninguém o savoir-faire e
expressavam todos esses segredos nas chamadas cartas
portulanos. Essas cartas eram um material preciosíssimo,
pois continham todas as informações que um navegador
precisava para navegar pelo Mediterrâneo, pelo mar
Negro, pelo Báltico, pelo Atlântico Norte até a Inglaterra,
pelas regiões de abrangência do comércio das províncias
italianas.7 As cartas eram tão completas que se podiam
encontrar nelas, com certa precisão, várias localidades
como vilas, cidades e portos, além de acidentes
geográficos e perigos iminentes.8 Essas cartas
interessavam muitíssimo ao infante, que as reuniu na
medida do possível.

A primeira parada da expedição foi no Chipre e dali


seguiu o seguinte roteiro: Constantinopla, Terra Santa,
Jerusalém, Armênia, A viagem do infante d. Pedro e o
manuscrito secreto de Marco Polo 29
Alexandria, Meca, Índia, Etiópia, Fez e Castela.9 Essa
viagem do infante d. Pedro foi um verdadeiro divisor de
águas para Portugal. É

nela que ele vai descobrir ou confirmar a possibilidade do


caminho para as Índias por meio da transposição do cabo
da Boa Esperança.

Sessenta anos depois, quando Colombo descobriu a


América e Bartolomeu Dias e Vasco da Gama
viabilizaram de fato essa rota, estes seriam os fatos mais
revestidos de sentido de toda a história das navegações.
Era um segredo que deveria ser guardado a sete chaves.
Quem tivesse essa informação, o conhecimento
processual, seria certamente senhor do mundo.

Outra notícia valiosa obtida pela expedição do infante d.


Pedro era a de que a tomada de Ceuta havia despertado
sentimentos de fúria e vingança e que, por isso, os turcos
estavam em franco processo de expansão do império
otomano e que mais dia, menos dia, as cobiçadíssimas
rotas das especiarias do Oriente e a rota da seda da
China poderiam ser bloqueadas.

Quando isso acontecesse uma tragédia sem precedentes


se abateria sobre a Europa, e quem tivesse um plano B –
outra rota para acessar o Oriente, por exemplo –, ou
melhores relações com os turcos, otomanos, certamente
tomaria conta de um comércio que, naquele momento,
determinava nada mais, nada menos que a divisão entre
a riqueza e a pobreza das nações e dos povos. Era como
se, nos dias de hoje, alguém descobrisse a fórmula da
Coca-Cola. Com essas informações, era hora de pôr mãos
à massa.

30
O livro obscuro do descobrimento do Brasil

O INFANTE D. HENRIQUE E

A ESCOLA DE SAGRES

A expansão portuguesa pelo até então desprestigiado


oceano Atlântico se iniciou com a tomada de Ceuta em
1415, como vimos, no reinado de d. João I. A tomada de
Ceuta foi para Portugal pôr o pé num negócio incrível,
que abria uma perspectiva até então inimaginável para
as pretensões portuguesas. Em 1419, o infante d.
Henrique tinha 25 anos e era o mais destemido dos filhos
de d. João I. Sob os seus auspícios, a expansão comercial
e marítima portuguesa se sistematiza e ganha uma
dimensão homérica que beirava as raias da obsessão e
da loucura.

Em 1420, d. Henrique é declarado grão-mestre da Ordem


de Cristo, e é dessa ordem que vão sair os imensos
recursos necessários para as viagens exploratórias. Por
esse motivo é que as caravelas portuguesas vão ostentar
nas velas o famoso símbolo da cruz vermelha. Com o
avanço das explorações, seria criado também um padrão
confeccionado em pedra que era ficando nos territórios
conquistados para determinar a posse portuguesa. No
Brasil, há um desses marcos fixado no atual estado do
Rio Grande do Norte. Não seria completamente
impossível que a descoberta

do Brasil tenha acontecido nesse local, ainda antes de


1500. O

mar do Caribe foi o grande palco dos descobrimentos,


pois era por ali que se dava o trânsito imenso que se
formou logo após a descoberta da América, em 1492.
O ponto de partida da criação da Escola de Sagres foi o
trabalho de campo e a imensa varredura que d. Henrique
fez na África, sobretudo acerca dos conhecimentos
geográficos e náuticos. Um trabalho paralelo à conquista
militar, que só um homem curioso e com o pensamento à
frente de seu tempo poderia impetrar. Desse modo,
aproveitando-se daqueles que acabavam cativos e antes
que fossem passados no aço das espadas, durante sua
estada na África, segundo os cronistas Azurara e Diogo
Gomes, d. Henrique colheu importantes informações dos
mouros “[. .] a respeito das populosas nações do interior
ou da costa de Guiné [. .] o infante obteve notícia da
passagem de grandes caravanas, que iam de Túnis a
Tombuctu e a Cantor na Gâmbia, o que o moveu a
mandar explorar aqueles países por via marítima [. .]
ouviu dos prisioneiros azenegues notícias da situação de
certas palmeiras, que estavam ao norte da embocadura
do Senegal, ou do chamado Nilo; o que o habilitou a dar
instruções a seus marinheiros a fim do descobrimento
daquele rio [. .] O fim, que o infante tinha em mira, era
alcançar notícia não só quanto aos mouros e suas
circunvizinhanças ao sul, como também das terras, tanto
da costa oriental como ocidental de África, além do
grande deserto”.1

Era, evidentemente, uma oportunidade única a


possibilidade de interrogar os prisioneiros em Ceuta e
obter deles informações impossíveis de serem obtidas
espontaneamente, pois os europeus, sobretudo
genoveses e venezianos, “[. .] guardavam segredo de
suas relações comerciais. A única grande fonte dos
conhecimentos geográficos da África eram os
comerciantes dos reinos do interior, com os quais se
fazia esse comércio”.2
Naquele mar de infiéis que era a África o qual tornava a
missão de ocupar a região uma tarefa quase impossível,
o que o infante mais desejava saber era se não haveria
em toda a África um “[. .]

32

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

rei cristão ou potentado que viesse ajudá-lo. Por isso


estava ansioso por saber se viveriam naquelas partes
alguns príncipes cristãos que, pelo amor de Cristo,
quisessem ajudá-lo contra os inimigos da fé”.3

O infante d. Henrique unia esse trabalho de campo na


África às primeiras notícias reportadas pelo infante d.
Pedro que chegavam a Portugal. O material que enviava
– mapas, instrumentos, cópias de livros da biblioteca de
Alexandria, cartas portulanos – seguia sob os cuidados de
sábios convidados também a fim de ir a Portugal para
seguir o périplo africano de d. Henrique, que havia
pessoalmente mandado vir da ilha de Mallorca “[. .] um
mestre Jácome, homem mui douto na arte de navegar,
que fazia cartas e instrumentos náuticos, o que lhe
custou muito pelo trazer a este reino para ensinar sua
ciência aos oficiais portugueses daquele mister”.4

Tratava-se de um dos maiores cartógrafos europeus do


século XV que se chamava Jehuda Cresques – el judio de
las brújulas, devido, claro, à sua grande experiência na
fabricação de bússolas.

A sua participação na empreitada do infante d. Henrique


seria fundamental, ou seja, ficaria a cargo dele treinar os
pilotos portugueses nos fundamentos básicos da
navegação e na eventual produção de cartas portulanos
e instrumentos náuticos.
A tomada de Ceuta e a grande aventura em direção ao
Atlântico, anunciada por d. Henrique, inflamavam
corações e mentes de aventureiros, sábios, mercenários,
navegadores e piratas. O próprio infante, tomado pela
aventura do seu empreendimento, resolveu aprofundar-
se nos estudos de cosmografia e astrologia. Para isso,
funda numa vila no Algarve uma fortaleza que
funcionaria como um centro de estudos. Nascia dessa
iniciativa a mítica Escola de Sagres com o intuito de “[. .]
mais cabalmente e sem embaraço poder levar avante
seus projetos. Autorizado por el-rei, escolheu o infante
para habitação o promontório de Sagres no reino do
Algarve, do qual foi nomeado governador perpétuo,
depois de regressar com as tropas com que foi socorrer
Ceuta em 1419”.5

Foi nesse lugar remoto e solitário, afastado das


badalações de Lisboa e “[. .] com o vasto Atlântico que
se alongava infinito e O infante d. Henrique e a Escola de
Sagres

33

misterioso diante dele que dedicava-se o infante d.


Henrique ao estudo da astronomia, das ciências
matemáticas e a despachar navios para explorações
aventurosas”.6

O objetivo de d. Henrique, ao reunir navegadores


experimentados, astrólogos, cosmógrafos, magos, entre
outros, em Sagres, era se dedicar exclusivamente a um
objetivo: navegar pela costa ocidental da África até
encontrar uma passagem para as Índias orientais.

Era do conhecimento de todos que esse trajeto, ou esse


percurso, já havia sido encontrado em outros tempos.
Tudo indicava que há cerca de três mil anos os homens já
navegavam o oceano Atlântico.

Segundo uma narrativa dos gregos “[. .] o oceano é um


mar ou um sistema de mares [. .] era um rio circular que
rodeava a terra. Todas as águas fluíam dele e não tinha
nem desembocadura nem nascentes”.7 Essa certeza de
que os mares eram interligados formando um único
oceano e de que outros povos, em outros tempos,
haviam navegado por mares desconhecidos fez com que
a Escola de Sagres desenvolvesse a obsessão por
encontrar novamente tal caminho.

Toda a fase de estudos, de preparativos, e as próprias


expedições seriam feitas à custa do infante.

Assim que retornou a Portugal, o infante d. Pedro uniu-se


ao seu irmão, o infante d. Henrique, nos estudos
científicos, entre os quais a arte da cartografia ocupava o
principal lugar, e “[. .] não se pode duvidar do que ao
gênio e conhecimentos adquiridos por d. Pedro, seu
irmão mais velho, deveu o infante d. Henrique grande
estímulo e luz para prosseguir com suas investigações
geográficas [. .] o Manuscrito de Marco Polo, e o mapa
trazido do Veneza haviam provavelmente de atuar como
poderoso incentivo destas investigações”.8

Segundo Antônio Galvão, o conteúdo desses mapas


continha todo o âmbito da terra “[. .] ao Estreito do
Magalhães chamavam Cola do Dragão e o Cabo da Boa
Esperança chamavam fronteira da África, assim como
outros pontos, e que deste padrão se ajudara o infante d.
Henrique em seu descobrimento”.9

Outros mapas que foram cotejados traziam indicações


semelhantes, como, por exemplo, o mapa de Marino
Sanuto, produzido 34

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

em torno do ano de 1306. Outros dois mapas que


orientaram as expedições do infante d. Henrique, as
quais resultariam mais tarde nos descobrimentos, foram
o do veneziano Andrea Bianco, de 1436, que seria
completado mais tarde pelo mapa do famoso geógrafo
Fra Mauro, do Mosteiro de São Miguel de Murano, em
Veneza.

Além dos mapas, brainstorms cotidianas conduzidas pelo


infante objetivavam a busca dos conhecimentos antigos.
Ele sabia que era lá que encontraria o mapa da mina.
Embora muitos dos relatos fossem literários ou míticos,
havia sempre a esperança de que eles tivessem sido
baseados em fatos verídicos. E como onde há fumaça há
fogo, não custava nada averiguar.

Desse modo, partiu-se das referências mais longínquas, e


a mais antiga de que se tem notícia sobre outras terras e
outros mares é a do historiador grego Teopompo. Platão
também, no seu Timeu e Crítias, cita as inscrições
sagradas da cidade egípcia de Saís – ou Sa el-Hagar –,
onde se pode ler sobre uma ilha chamada Atlantis, ou
Atlântida, como passou para a história.

Lendas, ficções ou mitos à parte, quanto aos fenícios,


estes certamente navegaram pelo oceano Atlântico e
fundaram na região da Andaluzia, na Espanha, um
povoado chamado Gadir, ou, como conhecemos hoje,
Cádiz. Quem vai hoje em dia para essa cidade espanhola
pode visitar, mais precisamente em Doña Blanca, um
sítio arqueológico com vestígios não só de um porto
púnico, mas de muralhas, casas, cemitério, entre outras
ruínas de edificações.

O historiador antigo Diodoro Sículo, em sua obra


Biblioteca histórica, faz referência a uma viagem de uma
frota fenícia pelo oceano Atlântico, onde relata que os
navegadores tinham visto num dos seus destinos “[. .]
templos e palácios suntuosamente construídos, regiões
montanhosas cobertas de bosques com uma grande
variedade de árvores frutíferas, diversas espécies de
animais vivendo em um clima temperado”.10 Nos
últimos anos, novas tecnologias de varredura via satélite
tornaram recorrentes a descoberta de ruínas de cidades
antigas – palácios e templos – encontradas, por exemplo,
O infante d. Henrique e a Escola de Sagres

35

na Floresta Amazônica brasileira, peruana e colombiana


que ainda estão por ser analisadas.

Os dois primeiros autores discutidos em Sagres foram


Eratóstenes e Aristarco. Ambos viveram por volta de 300
a.C. O primeiro, Eratóstenes, era matemático, geógrafo e
astrônomo, e não só havia estudado em Alexandria,
como foi um dos diretores da mítica biblioteca. O
interesse na obra desse homem é porque ele havia calcu-
lado a esfericidade e o diâmetro da Terra. O segundo,
Aristarco, era astrônomo e matemático, igualmente um
dos sábios da biblioteca de Alexandria, o qual havia
descoberto que a Terra não era o centro do Universo –
pai, portanto, do sistema heliocêntrico.

Para o obscurantista catolicismo medieval, a Terra era


plana e constituía o centro do Universo. Para o mundo
ocidental, a esfericidade da Terra e o heliocentrismo
seriam comprovados pelos estudos de Copérnico e
Galileu apenas no século XVI. Os navegadores de Sagres
sabiam, portanto, graças ao conhecimento dos antigos,
que navegando pelo mar adentro jamais se deparariam
com o fim do mundo ou com um abismo tenebroso.
Desse modo, a chance de se deparar com terras
desconhecidas era plausível.

Outro autor que foi objeto das brainstorms de Sagres foi


Aristônio

– também dos quadros de Alexandria –, que escreveu


livros sobre as andanças de Menelau, rei dos espartanos.
Num trecho, ele afirma que Menelau, “[. .] saindo do
estreito de Gibraltar, navegou pelo oceano alcançando o
mar arábico e pérsico até chegar à Índia”.11

Outras histórias que inflamaram os ânimos dos homens


de Sagres foram as de Heródoto, o pai da história. A
primeira, sobre uma circum-navegação realizada pelos
fenícios no século VII a.C., comandados pelo faraó Necho
II. Não por acaso filho de Psamético I, que havia mudado
a capital do Egito de Tebas para Saís, em cujos
manuscritos sagrados, como vimos, consta a existência
de Atlantis ou Atlântida. A expedição havia navegado
pelo mar Vermelho, dobrado o continente africano,
entrado pelo estreito de Gibraltar e chegado ao Egito.
Segundo Heródoto, o persa Xerxes quando da conquista
do Egito, havia feito o caminho 36

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

inverso, ou seja, navegou pelo mar Mediterrâneo, pelo


Atlântico, contornou o promontório africano e retornou ao
Egito.
Ainda sobre a navegação na costa ocidental da África,
várias nações têm relatos sobre descobridores de terras
e rotas. Genoveses, franceses do famoso porto de Dieppe
e até escandinavos já tomaram para si a primazia na
navegação da costa ocidental da África.

Sobre esses feitos existem diversos estudos: Histoire


Maritime de France, de 1843, Les Navigateurs Français,
de 1847, e o Sommario delle indie orientali, de Ramusio,
de 1556.12

Famoso também é O périplo de Hannon de Cartago –


escrito em língua púnica: “O périplo é a narrativa da
viagem realizada por um rei de Cartago, Hannon, ao
longo da costa ocidental de África. De acordo com a
tradição, o texto inicial d’ O périplo –

perdido – foi redigido em púnico pelo próprio rei e


depositado no templo de Ba’al Hannon na cidade de
Cartago. O texto chegou até nós numa tradução grega
resumida, talvez do fim do século IV a.C.”13 As cópias
conhecidas mais antigas, de origem grega e bizantina,
são os manuscritos Palatinus Graecus 398, que se
encontram atualmente na Universidade de Heidelberg,
na Alemanha, e o Vatopedinus 655, que tem parte na
British Library e parte na Biblioteca Nacional da França.

Outros autores da própria Península Ibérica, sobretudo


judeus, foram objeto de estudo em Sagres. Eram mestres
nos domí-

nios da matemática, da astronomia, da geografia, das


ciências básicas para a arte náutica. Entre eles,
destacam-se os nomes de Abraham bar Chia, autor do
estudo Forma da Terra, de Cálculo do movimento dos
astros e da Enciclopédia; de Abraham ibn Ezra, autor dos
estudos Utensílios êneos, Tratado do astrolábio,
Justificação das tábuas de Kwarismi e Tábuas
astronômicas; de João de Luna foi estudada a obra
Epítomes de astrologia e o Tratado do astrolábio; de
Jacob ben Machir, inventor do chamado quadrante de
Israel, um instrumento de observação, estudou-se o
Tratado do astrolá-

bio; de Isaac ibn Said foi aproveitado um compêndio


organizado pelo autor sobre a astronomia dos gregos e
dos árabes; de Rabí O infante d. Henrique e a Escola de
Sagres

37

Levi ben Gershon – a quem é atribuída a invenção de


uma espécie de telescópio – estudaram-se o Tratado
sobre a teoria e prática do cálculo, Dos números
harmônicos, Tábuas astronômicas sobre o Sol e a Lua; e,
por fim, de Isaac Zaddik foram estudadas as obras
Tábuas astronômicas, Tratado sobre instrumentos
astronômicos e Instruções para o astrolábio de Jacob ben
Machir.

De todo esse grande aprendizado, o infante d. Henrique


subtrai a convicção da existência dessa rota pelo
Atlântico Sul, faltando apenas reunir informações e o
conhecimento técnico e processual exigido para se levar
a cabo tal empreendimento.

Os mais importantes documentos, no entanto, foram,


sem dúvida, os mapas e o manuscrito de Marco Polo
levados a Portugal pelo infante d. Pedro. O livro,
conhecido como Livro de Marco Polo, continha
informações preciosas sobre regiões, cidades, costumes
e, claro, riquezas de quase todo o Oriente. Da Armênia
relata “[. .]

mercadorias, especiarias e preciosas riquezas”. Detalha a


Turquia, a Tanzânia, Mossul, Baldach, e da Pérsia diz que
“[. .] há grande abundância de tâmaras, de algodão, de
trigo, cevada e vinhos”.14

De Cianguamor diz que tem “[. .] muitas cidades e


castelos e é a província de um rei chamado Preste João”.
De Cipango diz que “[. .]

o assoalho das salas de muitas casas é coberto de


tábuas de ouro e é muito rica em pérolas e pedras
preciosas”.15

Contudo, o que menos importava naquele momento


eram as riquezas que todos sabiam existir, o mais
importante eram as informações técnicas sobre
navegação, rotas, portulanos que pudessem auxiliar
Portugal a encontrar atalhos preciosos no seu périplo
pelo Atlântico Sul.

Havia no livro informações preciosas sobre a composição


geográfica da região, seus países, suas gentes, seus usos
e costumes, os animais e as plantas, os produtos
naturais, as especiarias, as drogas, os metais, as pedras
preciosas e o que naquele primeiro momento era
extremamente importante: informação sobre a religião
desses povos. Seriam todos muçulmanos ou haveria
entre eles algum reino cristão?

38

O livro obscuro do descobrimento do Brasil


Além disso, no livro podiam-se encontrar informações
igualmente preciosas sobre o grau de sofisticação da
cultura e da civilização dos povos do Oriente. Teriam eles
algum conhecimento de cosmografia, de técnicas de
navegação marítima ou até mesmo mapas e
equipamentos que ainda eram desconhecidos no
Ocidente?

Todas essas informações, unidas às que d. Henrique


havia tomado pessoalmente junto aos mouros em Ceuta,
práticos na costa da África, foram suficientes para que
partissem para a parte prática do projeto. Era hora de
seguir em busca do caminho para as Índias.

O infante d. Henrique e a Escola de Sagres

39

O CAVALEIRO DE PEDRA

Não demorou para que os esforços começassem a render


frutos. Em 1419, os arquipélagos da Madeira e dos
Açores foram encontrados por João Gonçalves Zarco,
Tristão Teixeira e Bartolomeu Perestrelo, promovendo em
todos um entusiasmo enorme em saber que, a princípio,
os estudos antigos estavam cobertos de razão em
relação à existência de tais localidades. Essa região
estava detalhadamente traçada e indicada já nos
documentos trazidos por d. Pedro de Veneza, entre eles,
por exemplo, o mapa portulano nomeado Carta
Laurenziana, de 1351.

A peculiaridade das descobertas dessas primeiras


incursões está no fato de que ao partirem de Sagres e
descobrirem a ilha da Madeira, os navegadores foram em
direção sudoeste no Atlântico; e para descobrir a ilha dos
Açores navegaram quase em sentido oposto, ou seja, na
direção noroeste. Esse aspecto é revelador, pois deixa
claro que, no início das prospecções, nenhuma evidência
tinha sido descartada: tanto a da existência da rota para
as Índias pelo Atlântico Sul, pelo cabo da Boa Esperança,
e nesse sentido eles haviam navegado e encontrado a
ilha da Madeira, quanto a rota

para as Índias, navegando para oeste, e nesse sentido


eles haviam navegado e encontrado o arquipélago dos
Açores, bem distante da Europa – quase dois mil
quilômetros de Sagres – duas de suas ilhas, a do Corvo e
a das Flores, já se localizam na placa tectônica norte-
americana. Nunca na história da Europa moderna
navegadores haviam feito incisões tão profundas no
oceano Atlântico. Eram, no mínimo, corajosos.

Em 1434, Gil Eanes e Afonso Gonçalves Baldaia avançam


para além do cabo Bojador, que era o limite até onde se
havia navegado em direção ao Atlântico Sul. A partir dali,
o cenário era tenebroso.

Relatos medievais falavam em monstros aquáticos,


sereias, precipí-

cios e sumidouros. Em 1435, Gonçalves Baldaia


enfrentou o desconhecido e tocou a costa ocidental da
África. A partir desse contato inicial, uma nova era se
abre para o parco comércio português.

Em 1441, Antão Gonçalves inicia um tipo de comércio


que vai se tornar, futuramente, a menina dos olhos dos
portugueses e objeto de intensa disputa comercial: o
negócio com escravos. Tal comércio faria a riqueza de
várias nações europeias, entre elas a Inglaterra e a
Holanda. Além dessa “mercadoria”, outras afluem para
Lisboa, tais como o ouro em pó e o marfim. Eram os
lucros iniciais de uma aventura que até então havia
demandado apenas um imenso investimento.

À medida que as notícias das descobertas ou dos


encontros das localidades, que alguns duvidavam e
outros supunham existir, se espalharam pela Europa,
atraíram navegadores e aventureiros de várias
nacionalidades. Um deles foi o veneziano Alvise
Cadamosto, que, em sua viagem exploratória, viria a
descobrir, em 1456, seguindo o périplo em direção ao sul
da costa ocidental da África, as ilhas de Cabo Verde. As
condições impostas por d. Henrique para as viagens de
terceiros eram as seguintes: no caso de ela ser
empreendida com os recursos do próprio navegante, o
infante cobrava um quarto de tudo que auferissem; caso
a viagem corresse por conta do infante, este ficaria com
metade de tudo. Esse modelo de negócio era
inteiramente novo para os padrões comerciais da época.

O cavaleiro de pedra

41

À medida que os descobrimentos vão avançando, d.


Henrique vai transformando imediatamente as ilhas em
capitanias e estabelecendo os respectivos descobridores
como donatários. Uma das condições impostas foi que os
donatários desenvolvessem nas ilhas diversos cultivos.
Nesse mesmo contexto, um novo produto estava
começando a ganhar terreno no aguçado paladar da
nobreza europeia: o açúcar. Portugal vai ser pioneiro na
produção do açúcar, que demandava, no entanto, dois
aspectos que eram escassos em Portugal: gente para
trabalhar e terras.
Era uma espécie de cultivo experimental para dominar,
aos poucos, as técnicas de plantio, processamento e
todas as demais etapas da produção do açúcar. Um
engenho não era algo simples de se fazer, ao contrário,
demandava conhecimentos técnicos muito sofisticados
para a época, tais como o domínio da fundição de ferro.

Foi assim que desembarcaram nas ilhas, a 2 de março de


1450, Jácome de Bruges, Willem van der Haegen e Jobst
van Heurter, trazendo consigo navios cheios de
colonizadores de Flandres. Eles não sabiam, mas
estavam começando ali a ensaiar a cadeia produtiva do
maior negócio do mundo ocidental dos próximos séculos
e que faria, direta ou indiretamente, a riqueza de
diversas nações, não só a de Portugal.

Portugal vai implantar, portanto, nas ilhas, em parceria


com os donatários, um sistema de produção de açúcar
baseado em três princípios novos para os padrões de
produção europeus: a monocultura, o latifúndio e o
trabalho escravo. Esse modelo vai dar tão certo que bem
mais tarde só ele será estendido para as novas terras
descobertas. No entanto, o interesse imediato de
Portugal era a busca de produtos comercializáveis que
auferissem o máximo de lucro possível. No caso do
Brasil, como veremos adiante, eles se expandiriam a
partir do know-how, ou seja, a produção de açúcar
mediante o arrendamento de terras.

Mas a realidade era dura e o fato é que havia se passado


duas décadas e o caminho das Índias tão cobiçado pelo
infante d.

Henrique não havia sido ainda encontrado. Mas o contato


com 42
O livro obscuro do descobrimento do Brasil

gente da costa ocidental da África e o avanço das


expedições indicavam a cada dia que eles realmente
estavam no caminho certo. O

custo exorbitante das expedições obrigava que algum


lucro fosse obtido em cada uma delas para que, ao
menos, elas se pagassem.

Essa necessidade mais imediata foi protelando o objetivo


final, que era o caminho das Índias.

Certa manhã, uma descoberta fez com que todo o


investimento de d. Henrique valesse a pena. Numa das
ilhas que compõem o arquipélago dos Açores – a ilha do
Corvo – e que também aparecia no mapa portulano
Laurenziano, de 1351, nomeada como Insula Corvi
Marini, os exploradores encontraram uma estátua em
tamanho natural de um homem montado num cavalo.
Uma de suas mãos fazia menção de sacar uma espada e
a outra apontava para o poente

– em direção ao Brasil. No paredão, logo abaixo, foram


encontradas inscrições nas rochas numa língua
desconhecida. Possivelmente teriam sido deixadas na
ilha – a estátua e as inscrições – por aqueles mesmos
navegadores fenícios que circum-navegaram o
continente africano em 600 a.C., cuja história – tratada
por muitos como lenda

– foi determinante para o início da grande aventura


ultramarina de d. Henrique e da Escola de Sagres.1

Em 1749, na ilha dos Açores, a mais ocidental das ilhas


do Atlântico, foi descoberto um vaso cheio de moedas
fenícias. Não por acaso também, quando Colombo partiu
para descobrir a América fez uma escala exatamente na
ilha dos Açores, uma espécie de ponto intermediário
entre o Velho e o Novo Mundo, conhecido desde as
antigas navegações.

Ao longo dos séculos, muitos outros vestígios da


presença dos fenícios seriam encontrados pelo mundo
afora, inclusive no Brasil.

Uma das gravações mais famosas do país está na pedra


do Ingá, na Paraíba, uma rocha imensa que foi
descoberta em 1598 pelo cientista holandês Elias
Eckerman. Existem também inscrições em rochedos
atribuídas aos fenícios na ilha do Arvoredo, em Santa
Catarina; na pedra da Gávea, no Rio de Janeiro; na pedra
lavrada, em Jardim do Seridó, no Rio Grande do Norte; às
margens de vários O cavaleiro de pedra

43

rios no Amazonas, entre outras tantas inumeráveis


ocorrências em todo o território brasileiro e também em
toda a América Latina e a do Norte.2

Um manuscrito misterioso encontrado na época do


império nos arquivos da biblioteca do imperador d. Pedro
II traz um estranho relato sobre a descoberta de uma
cidade fantasma: “Divisamos da lagoa uma povoação
grande, persuadindo-nos pelo dilatado ser alguma cidade
da corte do Brasil [. .] confirmaram não haver povo

[. .] a entrada se dá por três arcos de grande altura onde


divisamos haver letras [. .] passada a rua em bom
comprimento, demos em uma praça regular e no meio
dela uma coluna de pedra preta de grandeza
extraordinária e sobre ela uma estátua de homem
ordinário com uma mão na ilharga esquerda e o braço
direito estendido mostrando com o dedo índex o polo do
norte [. .] vimos lajes cobertas com figuras lavradas na
pedra.”3

Mistérios. O infante d. Henrique não viveu para ver


quanto a sua intuição em seguir o périplo dos fenícios ao
redor do mundo renderia frutos.

O fato é que, com tudo isso, se pode supor que a rota


para as Índias pela costa da África e pelo cabo da Boa
Esperança já era conhecida, porém muito onerosa por ser
uma viagem longa. O

comércio com o Oriente estava centrado no


Mediterrâneo, nos portos de Alexandria, Constantinopla,
entre outros. Somente quando os turcos tomam a cidade
de Constantinopla, em 1453, e os outros portos, quando
então os preços sobem vertiginosamente, é que a
viagem pela costa da África se viabiliza – com lucros
menores, mas, mesmo assim, sem as incertezas e sem
os atravessadores. A possibilidade de negociar direto
com os produtores torna o negó-

cio viável. A partir daí, Portugal vai estar na vanguarda


porque já estava havia anos luz à frente de outras
nações no desbravamento do caminho das Índias pela
rota do Atlântico Sul. Quando isso acontecer, começará
uma espécie de anos dourados para os navegantes
portugueses.

Mas não nos antecipemos.

44

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

AS MORTES DE D. HENRIQUE, D. PEDRO E


A INTERRUPÇÃO DO PROJETO DAS ÍNDIAS

Com o tempo, naturalmente, as configurações vão se


alte-rando e os quatro irmãos que se dedicaram à
tomada de Ceuta tomam rumos diferentes. Desse modo,
ao projeto particular que havia se tornado quase uma
obsessão de d. Henrique – explorar a costa ocidental da
África –, no qual era irrestritamente apoiado por d. Pedro;
seguiu-se seus outros dois irmãos, d. Fernando e d.

Duarte, um projeto paralelo que tinha como


direcionamento o roteiro iniciado em Ceuta, que era a
conquista do norte da África.

Projeto muito mais concreto e rentável do que a


quimérica, embora auspiciosa, rota das Índias pelo
Atlântico. Contudo, numa dessas incursões, na tomada
da cidade de Tânger, d. Fernando foi feito prisioneiro em
uma malsucedida batalha e morreria ali no ano de 1437.
D. Duarte morreria no ano seguinte, em 1438, vitimado
pela peste negra que, como vimos, assolava a Europa
nesse início de século XV e havia sido, inclusive, um dos
motivos de terem se iniciado as grandes navegações.

D. Afonso, filho de d. Duarte, era o herdeiro do trono de


Portugal, mas, como era menor, o velho d. Pedro assume
como regente. O

período regencial foi conturbado, uma verdadeira guerra


pelo poder entre d. Pedro e dona Leonor de Aragão,
rainha consorte de Portugal e mãe de d. Afonso. A
nobreza portuguesa certamente estava irritada com o
alto custo das incursões de descobrimento e o baixo
retorno. Em 1439, Leonor de Aragão é expulsa de
Portugal e d. Pedro assume a regência. Em 1447, d.
Afonso casa-se com a filha de d. Pedro, Isabel de Aragão,
sua prima, que morre aos 23

anos, deixando antes como herdeiro o futuro d. João II.


No ano de 1448, d. Afonso assume seu reinado, agora
como d. Afonso V, e parte para a ofensiva. Une-se à
classe aristocrática e volta-se contra o sogro, d. Pedro,
com o intuito de vingar a mãe. Essa desavença vai
culminar em 1449, por fim, na morte de d. Pedro numa
batalha pelo poder em Alfarrobeira.

O espírito de expansão pelo Atlântico, embora tenha ido


à lona com a morte de quase toda a chamada ínclita
geração, mantinha-se, porém, vivo, mas com a morte do
velho d. Henrique, em 1460, pai e mentor de toda a
expansão portuguesa pelo Atlântico, d. Afonso V vai
abandonar o projeto de seus tios visionários. D. Afonso V
vai abandonar um projeto utópico e investir num projeto
mais palpável, mais realista e imediato, ou seja, a
conquista do norte da África, iniciada, como vimos, com a
tomada de Ceuta.

D. Afonso V se caracterizaria, portanto, pelas expedições


e conquistas de cidades importantes do norte da África,
tais como Tânger, Marrocos, Alcácer-Ceguer, Anafé e
Arzila. Crescera obcecado por essas conquistas,
sobretudo porque tinha sido exatamente na tentativa de
conquistar esses territórios que Portugal havia sofrido
suas maiores derrotas. O espírito de D. Afonso V era o de
vingar não somente Portugal, mas o tio d. Fernando, o
próprio pai, d. Duarte, mortos em decorrência dessa
derrota na África, e o tio d.

Henrique, na sua tentativa fracassada, como vimos, de


conquistar Tânger em 1437.
O projeto de retomar as investidas contra o norte da
África e expandir os negócios de Portugal para além de
Ceuta contou, desde o primeiro momento, com o
beneplácito da Igreja. Em 1452, 46

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

o papa Nicolau V publicou a bula Dum Diversas, com o


intuito de respaldar e legitimar o projeto do rei Afonso V
diante do perigo iminente que era o avanço do império
turco-otomano no norte da África. Na bula pode-se ler: “[.
.] outorgamos por este documento presente, com a
nossa Autoridade Apostólica, permissão plena e livre
para invadir, buscar, capturar e subjugar sarracenos e
pagãos e outros infiéis e inimigos de Cristo onde quer
que se encontrem, assim como os seus reinos, ducados,
condados, principados, e outros bens e para reduzir as
suas pessoas à escravidão perpétua.”1

Com o aval do papa e, consequentemente, de Deus para


pilhar, conquistar e escravizar, d. Afonso V inicia o
planejamento do seu projeto de conquista do norte da
África. Em 1453, no entanto, o maior temor que rondava
o Ocidente torna-se realidade com a queda da cidade de
Constantinopla. O avanço dos turcos-otomanos pegará d.
Afonso V de surpresa. Preocupado com a situação, em
1455 o papa Nicolau V emitirá outra bula, a Romanus
Pontifex, por meio da qual vai entregar o continente
africano aos portugueses:

“Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação,


por outras cartas nossas concedemos ao dito rei Afonso a
plena e livre faculdade, dentre outras, de invadir,
conquistar e subjugar quaisquer sarracenos e pagãos,
inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à
servidão e tudo aplicar em utilidade própria e dos seus
descendentes. Por esta mesma faculdade, o mesmo d.
Afonso ou, por sua autoridade, o infante legitimamente
adquiriram mares e terras, sem que até aqui ninguém
sem sua permissão neles se intrometesse, o mesmo
devendo suceder a seus sucessores. E para que a obra
mais ardentemente possa prosseguir.”2

Em meio ainda ao desespero, o papa Calisto III convoca


os países do Ocidente para uma grande cruzada contra
os mouros e, em 1456, publica a bula Etsi Cuncti, que
ampliava a abrangência das bulas anteriores, Dum
Diversas e Romanus Pontifex. Nesse ambiente propício,
d. Afonso V avança sobre o norte da África tomando a
cidade de Alcácer-Ceguer em 1458 e, finalmente,
vingando os membros da ínclita geração, tomando
Tânger e Arzila no ano de 1471.

As mortes de d. Henrique, d. Pedro e a interrupção do


projeto das Índias 47

Profundamente concentrado e ocupado com as


conquistas no Norte africano, d. Afonso V arrendou a
exploração da costa ocidental africana para Fernão
Gomes – mais tarde cognominado da Mina. Esse modelo
novo de exploração se revelaria muito produtivo para
Portugal, uma vez que novas conquistas e novos
produtos foram descobertos, entre eles a pimenta-
malagueta. No ano de 1471, Fernão Gomes chegou à
região que ficaria conhecida como a Mina, pois o
explorador descobriu ali uma imensa quantidade de ouro
de aluvião, de modo que fez vicejar para a Coroa
portuguesa um lucrativo comércio. É esse ouro que vai
animar d. Afonso V, bem como a Igreja, a financiar e
ampliar as conquistas no norte da África.
É a primeira vez, desde a tomada de Ceuta, em 1415,
que o projeto de avanço pela costa ocidental da África
em direção ao Atlântico Sul saía das mãos do Estado
português. Somente em 1481, com d. João II, é que a
exploração do Atlântico Sul vai ser novamente objeto de
um projeto de Estado.

Um aspecto curioso da personalidade e da biografia de d.


Afonso V, que ele certamente herdou do tio d. Henrique,
é o gosto pelos estudos. Teria escrito pelo menos dois
tratados, um militar – Tratado da milícia, conforme o
costume de batalhar dos antigos portugueses

– e outro astrológico – Discurso em que se mostra que a


constelação chamada Cão celeste constava de vinte e
nove estrelas e a maior de duas. Outra faceta pouco
conhecida do rei era a sua iniciação no her-metismo, ou
seja, no estudo do conjunto de doutrinas místicas,
astrológicas, alquímicas e mágicas, cuja origem remonta
à Antiguidade clássica e a autoria é atribuída a Hermes
Trismegisto. Sobre esse tema, o rei escreveu dois
tratados: Lápis filosófico e Separação dos quatro
elementos. Existem hoje dois exemplares dessas obras,
reunidas e traduzidas para o inglês sob o seguinte título:
Five Treatises of the Philosophers Stone, no frontispício
da capa se lê Alphonso, King of Portugal. Um exemplar
encontra-se na British Library, em Londres, e o outro na
Biblioteca da Universidade de Glasgow, na Escócia.3

Como se pode notar, a relação das nações e dos reis


católicos com a Igreja era pragmática. Ao mesmo tempo
em que defendiam o 48

O livro obscuro do descobrimento do Brasil


cristianismo, o catolicismo, não se furtavam a flertar com
ciências ocultas, como a magia, a astrologia e a alquimia.
Do lado da Igreja, o mesmo espírito pragmático, ou seja,
a Igreja fechava os olhos para certas práticas de seus
aliados com o fim de promover o avanço de seus
interesses mais auspiciosos. A lógica era a de sempre:
para os amigos tudo e para os inimigos a ira de Deus e o
fogo do inferno.

As mortes de d. Henrique, d. Pedro e a interrupção do


projeto das Índias 49

A TOMADA DE CONSTANTINOPLA

Mesmo com toda a riqueza auferida nas conquistas –


territórios, ouro ou mesmo produtos novos que eram
desconhecidos na Europa e que podiam ser introduzidos
no comércio –, os portugueses não haviam descoberto,
ou conquistado, ainda algo que se assemelhasse com o
intenso intercurso comercial entre o Ocidente e o Oriente
nos portos e rotas do Mediterrâneo.

O parco e incipiente comércio na costa ocidental da


África

– igual ao que encontrariam mais tarde na costa do


Brasil, para decepção de todos – contrastava com o
viçoso e pulsante comércio da costa oriental, aquele que
eles queriam verdadeiramente abocanhar. Na verdade,
eram muito tímidos os negócios que se faziam por meio
da navegação, uma vez que as comunicações marítimas,
sobretudo a navegação de cabotagem, eram
fundamentais para o comércio, para o pequeno
deslocamento. Todavia, o grosso do comércio se dava
mesmo por meio de imensas caravanas que os diversos
povos formavam para transportar por terra as
mercadorias com que alimentavam um tráfico constante,
que se estendia de Constantinopla até a Índia e a China,
do interior

da África até Astracã, no mar Cáspio, do Oriente Médio


até os países da Europa.

Era por isso que, para a expansão portuguesa, a costa


ocidental da África significava pouco, mas a esperança
de chegar à Índia pelo extremo sul da África era, para
eles, objeto da mais alta ambição, visto que jamais
minguara, em toda a Europa, mesmo em tempos de
escassez, de guerra ou de crise, “[. .] aquele amor do
luxo e profusão, que dava impulso ao comércio e
navegação”.1

A verdade é que desde os primeiros contatos entre o


Oriente e o Ocidente, na época de Alexandre, o Grande, é
que o Ocidente havia se acostumado com produtos
orientais, como a pimenta, o açafrão, a canela, o cravo, a
noz-moscada, o anis, o gengibre etc., que haviam
melhorado em muito a minguada culinária ocidental.

Isso tudo numa época em que a armazenagem dos


alimentos era precária e a refrigeração algo ainda
inimaginável. Era comum que os alimentos fossem
consumidos deteriorados e até mesmo putre-fatos em
épocas de estiagem ou de frio prolongado. Desse modo,
os temperos do Oriente foram fundamentais para a
alimentação ocidental, como seria também mais tarde o
açúcar.

Mas não eram apenas os produtos primários, artigos de


luxo, como a seda da China, o marfim, porcelanas,
perfumes, tapetes, tinturas, como o sangue de dragão, e
também pedras preciosas, ouro, adereços, roupas etc.,
que faziam a alegria dos comerciantes e das cortes. As
vastas operações mercantis dos árabes tinham enchido a
Europa de ricos produtos do Oriente e abasteciam de
luxuosos trajes as cortes mouriscas de Sevilha e
Granada, que eram, ato contínuo, imitadas pelos
príncipes católicos de Aragão e Castela e seu entourage.

Em 1453, o assalto a Constantinopla e


consequentemente ao que havia de melhor em termos
de rotas e entrepostos comerciais, elevará os preços às
alturas e o lucro dos comerciantes ocidentais vai entrar
em ritmo cada vez mais decrescente. O cenário não
poderia ser mais catastrófico, pois o pedágio imposto
pelos otomanos nas rotas terrestres recém-conquistadas,
que ligavam A tomada de Constantinopla

51

os produtores da Ásia e da Índia aos comerciantes nos


portos do Mediterrâneo, estava altíssimo, e com o tempo
tornaria o comércio praticamente impraticável.

Era a roda da fortuna girando ferozmente seus dentes,


pois a partir daquele momento o “tráfico” do mundo
havia simplesmente

“caído em mãos de novos possuidores. O vasto domínio


adquirido pelos sectários de Maomé dera-lhes a
supremacia de um comércio gigantesco”.2 Era certo que
as hostilidades entre o Oriente e o Ocidente se tornariam
do dia para a noite mais implacáveis, de modo que “a
falta destes objetos de luxo começava a fazer-se sentir,
para os quais, pelo menos os que eram ricos, o uso
desses artigos se tinha convertido em necessidade”.3

Diante da repentina ruptura, duas frentes de reação


surgiram concomitantemente. A primeira delas era o
enfrentamento. O papa Calisto III chegou a propor uma
aliança no Ocidente para realizar uma grande cruzada
contra os turcos. Mas, já naquele momento, as duas
únicas nações que apoiavam incondicionalmente o
catolicismo eram Portugal e Espanha, justo aqueles que
tinham quase nada a perder com o revés no comércio do
Mediterrâneo. Num segundo momento, a própria Igreja
notou o erro estratégico que seria a cruzada, e a
iniciativa minguou. A segunda frente era a busca de
alternativas comerciais para abastecer a vasta demanda.

Tratava-se de arrumar, urgentemente, outra forma de


acessar as Índias e os seus produtos, e é nesse ponto
que Portugal tinha um ás na manga.

A queda da cidade de Constantinopla inverterá uma


lógica secular: se até aquele momento os países que
participavam do comércio no Mediterrâneo, de forma
secundária, buscavam know-how na navegação e no
comércio, agora os velhos e experimentados mercadores
das rotas do Mediterrâneo é que passarão a buscar o
know-how de países que navegavam e comercializavam
pelo Atlântico.

Essa inversão vai fazer com que cada vez mais, a partir
de 1453, o temido oceano Atlântico fosse submetido a
verdadeiras varreduras.

Um lugar, antes pouco conhecido e até mesmo inóspito,


tornar-se-ia 52

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

o palco principal onde se desenvolveria o enredo de


todas as principais cenas de uma verdadeira epopeia. Na
esteira, portanto, de se encontrar uma nova forma de se
acessar as Índias, passando ao largo do Mediterrâneo e
das rotas terrestres, os olhos de todos se voltaram
inevitavelmente para o Atlântico. É aqui que a América e
o Brasil entram na rota do desenvolvimento e da
expansão do mundo moderno.

Portugal, que havia deixado a imensidão do Atlântico em


stand by, vai ganhar a inesperada e abrupta concorrência
sobre uma infinidade de navegadores e aventureiros. A
Escola de Cartografia de Dieppe foi, por exemplo, uma
das primeiras a aceitar o desafio dos reis para tentar
encontrar soluções. Foram necessários quase trinta anos
para que elas surgissem. Inglaterra, Holanda e Espanha
entrariam apenas mais tarde no negócio das grandes
navegações.

Jean Cousin se lançou ao mar, o ano era o de 1488, e


consta que ele teria se deixado levar ao sabor do vento e
teria chegado à costa da África, ao futuro cabo da Boa
Esperança – navegando a oeste, teria chegado às futuras
Américas do Sul e Central.4 No entanto, o fato de não ter
encontrado o caminho para as Índias e nenhuma
civilização que tivesse no comércio sua principal
atividade fizeram com que as descobertas de Cousin
despertassem pouco interesse.

Um fato bem significativo e que dá credibilidade à longa


navegação de Cousin é que o seu imediato, o seu prático
nessas viagens, era ninguém mais, ninguém menos que
Vicente Yáñez Pinzón.

Não terá sido, portanto, por mero acaso ou coincidência


que Colombo, quando reuniu e selecionou os homens
para montar sua expedição em direção oeste do oceano
Atlântico, em 1492, ordenou como comandante em chefe
da caravela Niña o experiente Pinzón, como veremos.
Com a morte de d. Afonso V, em 1481, seu filho, d. João II
assume o trono de Portugal. Com d. João II, o sonho do
caminho das Índias reaparece novamente como projeto
de Estado. Internamente, o rei toma algumas
providências para viabilizar seus projetos. Primeiro
levanta-se contra a aristocracia, procurando anulá-la e,
num segundo A tomada de Constantinopla

53

momento, associa-se a comerciantes, banqueiros e


financistas com o intuito de retomar o sonho do tio d.
Pedro – de quem vai procurar a todo custo vingar a morte
– e, é claro, realizar também o sonho do tio d. Henrique.

54

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

A MAÇÃ DA TERRA

Por volta de 1440, anos antes da queda de


Constantinopla, um homem contava pelos quatro cantos
de Florença curiosas histó-

rias sobre o Oriente – chamava-se Niccolò di Conti.


Desejava, com certa urgência, conversar com o papa.
Queria pedir perdão, pois durante os mais de vinte anos
que havia permanecido em viagens pelas terras dos
muçulmanos, por questão de sobrevivência, havia se
convertido ao islamismo.

O papa Eugênio IV condicionou o perdão ao relato


pormeno-rizado que o desconhecido devia fazer sobre
tudo que tinha visto e ouvido em suas viagens.
Inicialmente, o papa encarregou o experiente historiador
Poggio Bracciolini para sondar a veracidade do discurso
de Niccolò di Conti. O que contava era muito parecido
com o que narrava o antigo livro Pratica della Mercatura:
Libro di divisamenti di paesi e di misuri di mercatanzie e
daltre cose bisog-nevoli di sapere a mercatanti, muito
conhecido na Europa, escrito pelo banqueiro florentino
Francesco Balducci Pegolotti, que era, na medida do
possível, um guia do comércio entre o Mediterrâneo, o
norte da África, a Ásia e a Índia. Por via das dúvidas,
Poggio achou

por bem avisar Paolo Toscanelli, o famoso cientista,


matemático, astrônomo, cosmógrafo e geógrafo da corte
dos Médicis. Qualquer informação sobre o comércio no
Oriente interessava aos Médicis, pois era uma época de
intensa disputa, inclusive entre as próprias cidades
italianas, como o caso de Veneza e Gênova, que
chegaram a travar combates no mar Mediterrâneo por
causa do porto de Caffa.

Toscanelli havia se tornado famoso por reunir o


conhecimento de Ptolomeu, das narrativas de Marco Polo
e de relatos que pessoalmente havia recolhido dos
comerciantes e navegantes italianos que frequentavam o
Oriente. Ouviu de Conti que ele tinha passado vinte e
cinco anos viajando pelas principais rotas orientais com
os mais experimentados navegadores do Oriente e
estava disposto a passar todo o conhecimento
acumulado sobre técnicas de navega-

ção, cartas de marear, instrumentos etc.

Era uma oportunidade raríssima, pois pela primeira vez


alguém que havia penetrado no obscuro mundo oriental
voltava pessoalmente à Itália com informações preciosas.
Até então, a única descri-
ção crível que se tinha era a de Marco Polo. Desse modo,
reunindo e conectando todos esses conhecimentos,
Toscanelli tornou-se um dos homens mais sábios da
Europa no tocante às questões voltadas para a
navegação por regiões pouco conhecidas e sobre a
geografia do mundo.1

Quando Toscanelli e os Médicis perceberam que havia


algo de diferente naquele relato, optaram por levar o
caso até os portugueses que já estavam avançados em
matéria de navegação. A queda de Constantinopla
também, alguns anos depois do depoimento de Conti,
elevou a importância desse relato que, num primeiro
momento, poderia ter até passado despercebido. A
necessidade de uma nova rota reavivou o interesse por
outras rotas, e nesse cenário Portugal era protagonista.

Pode-se dizer que a Igreja tratou a questão de Conti


como sempre tratava essas questões mundanas, ou seja,
com os seus já tradicionais dois pesos e duas medidas.
Como era do interesse dos ricos, tudo bem o
desenvolvimento do conhecimento. Já para os 56

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

pobres mortais que ousassem contestar as verdades da


Igreja restava a danação eterna. Entre tantos outros,
podemos citar os casos de Giordano Bruno e o de
Domenico Scandella, conhecido como Menocchio,2 os
quais foram acusados de heresia e queimados na
fogueira em 1600 e 1599, respectivamente.

Quando a notícia chegou a Portugal, deve ter


entusiasmado mais o infante d. Henrique, que morreria
em 1460, que d. Afonso V. Certamente foi por iniciativa e
ordem de d. Henrique que d.
Afonso V requereu informações pormenorizadas e
encomendou inclusive um mapa, se possível, do Oriente.

Quando soube da disposição de Portugal para retomar as


navegações e o projeto de encontrar a rota para o
Oriente, Toscanelli escreveu uma carta para o rei de
Portugal propondo um projeto de navegação diferente
daquele iniciado por d. Henrique. Em vez de seguir
bordejando o continente africano, Toscanelli defendia que
navegando em direção ao poente poder-se-ia chegar ao
Oriente.

A tese foi enviada de Florença no dia 25 de junho de


1474, tendo como destinatário Fernando Martins, cônego
da Sé de Lisboa.

Nela Toscanelli dizia, em determinada parte: “[. .] Diz-me


que quer agora Sua Alteza de mim alguma declaração e
demonstração que se pode tomar o dito caminho. E
ainda que eu pudesse mostrar em forma de esfera, como
é o mundo, determinei que seria mais fácil e mais
inteligente mostrar o dito caminho por meio de uma
carta semelhante àquelas que se fazem para navegar e
assim a envio para S.M. feita e desenhada por minhas
próprias mãos na qual está pintado todo o fim do poente
tomando desde a Irlanda até o fim da Guiné, com todas
as ilhas que existem nesse caminho em frente das quais,
direto ao poente está desenhado o começo das Índias
com as ilhas os lugares onde podeis desviar para a linha
equinocial e por quanto espaço tem para saber quantas
léguas podeis chegar a aqueles lugares fertilíssimos e de
toda maneira de especiaria e joias e pedras preciosas a
maravilha que eu chamo poente onde nascem as
especiarias. [. .] Esta pátria é populosíssima e nela
existem várias províncias e muitos reinos e cidades que
vivem sob o senhorio de A maçã da Terra
57

um príncipe chamado Grande Cão, que vive na província


de Cataio.

[. .] Nesta há muitas coisas, ouro, prata, pedras preciosas


e todas as espécies de especiarias em grande
quantidade, das quais nunca se traz a essas nossas
partes e é verdade que os homens sábios e doutos,
filósofos e astrólogos e outros grandes sábios, em todas
as artes e engenhos governam a magnífica província e
ordenam as batalhas. [. .] Assim fico à disposição para
oferecer e servir a Sua Alteza imediatamente quando
quiser. Cidade de Florência, 25 de junho de 1474.”3

Junto com a carta, seguiu o mapa-múndi que havia sido


enco-mendado por Afonso V e cuja produção ficou aos
cuidados de Fra Mauro e Andrea Bianco, que o
finalizaram entre os anos de 1457

e 1459 no Mosteiro de São Miguel de Murano. O mapa


teria sido baseado nos relatos de Marco Polo e de Niccolò
di Conti. Andrea Bianco havia desenvolvido também um
atlas, o Atlas de Andrea Bianco, que constava de diversos
mapas, a saber: mapa das costas do mar Negro; mapa
das costas orientais do mar Mediterrâneo; mapa das
costas da parte central do mar Mediterrâneo; mapa das
costas da Espanha, de Portugal, da África do Norte e das
ilhas do oceano Atlântico (Açores, Madeira, Cabo Verde e
duas ilhas chamadas Antillia e Satanaxio, situadas a
oeste dos Açores); mapa das costas do norte da Espanha,
da França, de Flandres e das Ilhas Britânicas; mapa das
costas do mar Báltico, da Dinamarca e da Escandinávia;
mapa integrando, numa escala menor, o conjunto de
mapas com as costas da Europa e da África do Norte;
mapa circular do mundo com vinte e cinco centímetros
de circunferência; e, por fim, um mapa do mundo
ptolemaico com a projeção cônica de Ptolomeu.

Como se pode ver, não era um material qualquer, pelo


contrário, tratava-se de um compêndio sofisticado e
completíssimo sobre tudo o que se sabia a respeito do
mundo e de sua geografia até aquele momento. Ambas
as produções estão expostas ao público. Quem chega a
Veneza sempre faz o passeio turístico a Murano para
visitar a famosa produção de vidros. Nessa localidade, no
Mosteiro de São Miguel de Murano, está exposto o mapa
de Fra Mauro. Há um 58

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

detalhe misterioso no mapa de Fra Mauro que naquele


momento passou despercebido, mas que em 1500 faria
todo sentido, um território chamado Berzil.4 O Atlas de
Andrea Bianco atualmente se encontra na British Library.

D. João II não se deixa seduzir pelos relatos de Toscanelli


e, em 1484, o rei de Portugal envia Diogo Cão para
retomar as viagens pela costa ocidental da África para
além da Mina, a costa do ouro.

Numa dessas viagens, embarcou para efetuar estudos de


campo Martin Behain. Certamente havia ordenado a ele
que observasse minuciosamente a geografia, a posição
dos astros, estrelas etc., para tentar estabelecer da
forma mais minuciosa possível uma carta de marear.
Todo o conhecimento acumulado seria fundamental para
projetar, anos mais tarde, as viagens posteriores de
Bartolomeu Dias e Vasco da Gama, como veremos. Entre
1493 e 1494, de volta a Nuremberg, sua cidade natal,
Behain desenvolveu o primeiro globo terrestre de que se
tem notícia na história da humanidade.
Nesse projeto, foi auxiliado pelo artista Georg
Glockendon. O globo, resultante da parceria, foi batizado
de Erdapfel (maçã da terra) e nos dias de hoje pode ser
visto no Germanisches Nationalmuseum de Nuremberg.
Era, certamente, o recomeço do périplo português no
Atlântico Sul.

A maçã da Terra

59

DE D. JOÃO II A MAQUIAVEL

D. João II foi nomeado pelo pai, d. Afonso V, comandante


da marinha portuguesa, o mesmo cargo que fora do tio, o
infante d. Henrique. Não era qualquer coisa, depositava
nos seus ombros uma tradição enorme de navegadores e
conquistadores portugueses.

Talvez não seja por acaso que d. João II tenha se fixado


de forma tão obstinada na ideia de retomar, a qualquer
custo, o plano original dos tios. Desse modo, d. João II
não leva em consideração a proposta de Toscanelli de
navegar no sentido oeste pelo Atlântico, o que vai fazer
com que Toscanelli envie a mesma carta para outro
personagem importante da história. Esse outro
personagem, no entanto, se entusiasmará de tal modo
com a tese de Toscanelli que fará dela o seu projeto de
vida. Esse personagem chama-se Cristóvão Colombo.

Deslumbrado com a aventura que a ele se apresentava,


por diversas vezes Colombo tentou convencer d. João II
de que a tese de Toscanelli era verossímil, porém,
sempre sem sucesso. Estava certo de que para
convencê-lo seria preciso muito mais que argumentos,
era preciso que se apresentassem fatos. Certo dia, em
visita
a parentes, na ilha da Madeira, caminhando pela orla da
praia, ele encontra algo que, embora corriqueiro na ilha,
lhe poderia ser muito útil no processo de convencimento
do rei de Portugal em encampar e financiar seu projeto.

Frequentemente chegavam até as praias da ilha de Porto


Santo, cujo donatário era Bartolomeu Perestrelo, pai de
Filipa Moniz e sogro, portanto, de Colombo, restos de
animais marinhos mortos, algas, plantas aquáticas,
madeiras entalhadas e toda sorte de escombros trazidos
pela maré, até mesmo cadáveres, provavelmente de
piratas. Um desses escombros, no entanto, chamou a
atenção de Colombo por ser completamente
desconhecido na região: tratava-se de um bambu que,
segundo se levantaria na literatura da época, era nativo
do Oriente. Impossível, a princípio, ter chegado até ali.
Salvo, no entanto, se navegando pelo oceano Atlântico,
como afirmava Toscanel i, na direção oeste, fosse
realmente possível chegar às Índias. Para um aventureiro
nato como Colombo, essa possibilidade era nitroglicerina
pura.

Ainda em 1481, no primeiro ano em que d. João II


assumiu o trono, Colombo lhe remete uma carta na qual
dizia: “[. .] falando com homens do mar, pessoas
diversas que navegavam nos mares ocidentais,
sobretudo nas ilhas de Açores e Madeira, entre outras
coisas, lhe disse um piloto do rei de Portugal, chamado
Martín Vicente, que estando certa feita a quatrocentos e
cinquenta léguas do poente o cabo de São Vicente, viu e
recolheu no navio, em alto-mar, um pedaço de madeira
lavrado com engenho e, ao que parecia, não com ferro; o
que o fez imaginar, por terem estado ventando havia
muitos dias ventos poentes, que aquele pedaço de pau
vinha de alguma ilha ou ilhas que haveria ao poente.”1
Um personagem de nome Pero Correia, que era casado
com a irmã da esposa de Cristóvão Colombo, havia
garantido a Colombo outros detalhes. E Colombo os
adicionou na argumentação da carta que remeteu ao rei:
“[. .]

na ilha de Puerto Santo tinha visto outra madeira


chegada até lá com os ventos e lavrada da mesma
maneira e que também [tinha]

visto varas tão grossas que em seu interior caberiam três


medidas De d. João II a Maquiavel

61

de água ou de vinho [. .] que as tais varas de algumas


ilhas ou ilha não muito distante, ou trazidas das Índias
com o ímpeto do vento e do mar, pois em todas as
nossas partes da Europa não as havia, ou não se sabia
que as houvesse daquela maneira. Essa convicção se
reforçava pelo que havia dito Ptolomeu, no livro 1, cap.
17, de sua Cosmografia, sobre haver nas Índias tais
varas.”2

As investidas de Colombo foram todas infrutíferas,


embora seu projeto tivesse o consentimento e o
beneplácito advindos da maior autoridade intelectual da
época: Toscanelli. Mas o verdadeiro e irredutível desejo
de d. João II, a sua obsessão, na verdade, era retomar o
projeto do seu tio d. Henrique. Então, d. João II se
aproximou de outros sábios.

Nesse contexto, partiu para Lisboa, assim que d. João II


retomou a ideia das navegações, o cosmógrafo e
astrônomo Martin Behain, que foi contratado para
integrar a equipe liderada por Abraão Zacuto. Os
cosmógrafos contratados por Zacuto a mando de d. João
II – numa tentativa de reedição da Escola de Sagres de d.
Henrique – tinham como objetivo principal levar a cabo
pesquisas que melhorassem os instrumentos de
navegação já existentes, o astrolábio, por exemplo, e que
desenvolvessem novas tecnologias de navegação e
localização espacial e náutica.

Sem perder tempo – só o suficiente para destituir Fernão


Gomes do arrendamento dos negócios de Portugal na
costa da África –, d. João II organizou uma expedição com
onze navios e mais de seiscentos homens para construir
uma feitoria na região da Mina, que depois ficaria
conhecida como castelo de São Jorge da Mina e, por fim,
Fortaleza de São Jorge da Mina. O capitão-mor da
empreitada foi Diogo de Azambuja, e, depois de
estabelecida, as minas renderam para Portugal trezentos
e dez quilos de ouro por ano.

A imensa riqueza auferida por Portugal na região da Mina


foi fundamental para o projeto de expansão marítima, e
fez com que Portugal desistisse de uma luta dinástica
com a Espanha que vinha se arrastando havia anos. A
morte do rei de Castela, Henrique IV, em 1574, havia
alçado sua filha Joana de Trastâmara ao trono, e 62

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

como ela era casada com Afonso V de Portugal, pai de d.


João II, isso significava a união das Coroas. Uma fake
news surgida de última hora, a qual se alastrou
convenientemente pelo reino, dava conta de que Joana
não era filha legítima do rei, de modo que sua irmã Isabel
reivindicou o trono de Castela. Essa guerra de sucessão
se estenderia com batalhas campais e navais até 1579,
quando, certamente por influência de d. João II, se assina
o Tratado de Alcáçovas-Toledo, pondo fim à guerra.
Com o tratado, ficou acertado, primeiramente, que o rei
Afonso V de Portugal renunciaria ao trono de Castela; em
segundo, que a repartição dos territórios descobertos, e
a descobrir, na costa ocidental da África ficaria da
seguinte forma: Portugal manteria a posse da Guiné, do
arquipélago da Madeira, do arquipélago dos Açores, do
Cabo Verde, de todo o espaço marítimo e territorial do
Atlântico Sul e, é claro, da costa da Mina. Castela aceitou
ficar, além do reino só para si, também com as ilhas
Canárias. Esse excelente negócio certamente foi todo
arquitetado e tramado pelo astucioso d. João II, que abriu
mão de um pequeno reino secundário, Castela, e se
tornou senhor de um império. Nada mal para um imberbe
jovem de vinte e quatro anos.

Com a ascensão de d. João II ao poder retoma-se, de


forma agressiva, como se pode ver, o projeto das
grandes navegações que havia sido praticamente
interrompido no reinado de d. Afonso V. A notícia da
retomada do projeto da Escola de Sagres corre a Europa
e muitos navegadores, cosmógrafos, geógrafos e sábios
afluem novamente para Lisboa.

A sanha de d. João II em seguir com as conquistas pelo


continente africano e em buscar um caminho para o
Oriente faz com que ele tome duas atitudes drásticas e
que no fundo estão conec-tadas. A primeira delas é, de
um lado, a conexão imediata com os proprietários das
grandes empresas comerciais, sobretudo aquelas que já
atuavam desde o início na produção de açúcar no
arquipé-

lago da Madeira e na captura e venda de escravos


africanos; e, de outro lado, a ligação com os bancos e
empresas que financiavam as De d. João II a Maquiavel
63

grandes e custosas viagens – todas elas de propriedade


de judeus.

A segunda é a animosidade com a nobreza, com a


aristocracia, que já era inimiga dos comerciantes e
passou a ser inimiga mortal de d. João II.

A conspiração contra d. João II, por parte dessa nobreza,


não tardaria. Pragmático, o rei tratou logo de cortar o
mal pela raiz e tomou duas providências. A primeira
delas foi contra o mais poderoso aristocrata português, d.
Fernando II, duque de Bragança, que foi decapitado em
praça pública a mando do rei e teve seus bens
confiscados. A segunda delas foi chamar para uma
reunião no palácio o duque de Viseu e, antes que ele
pudesse argumentar, assassiná-lo pessoalmente a
punhaladas.

Quanto aos outros traidores, alguns haviam se refugiado


em Castela, foram caçados um a um pelo fiel e leal
escudeiro do rei d.

João II, Pero da Covilhã. Não há notícias sobre como havia


agido, mas provavelmente teria matado todos com as
próprias mãos. Dois deles – o marquês de Montemor e o
conde de Faro – morreram envenenados, conforme o
costume da época.

Segundo consta, “Pero da Covilhã tinha uma excelente


memória, capacidade e facilidade de aprender idiomas,
apurada arte de criar disfarces e assumir diferentes
identidades e maestria no manejo de todas as armas da
época”.3
Essas notícias e essas histórias se propagaram. Em
Portugal, serviram para amedrontar a aristocracia, que
arrefeceu as críticas e resignou-se. Nos países vizinhos,
serviram para fazer a fama de mau do rei d. João II. Mais
tarde, nas primeiras décadas do século XVI, de tanto
ouvir histórias de reis que faziam de tudo para atingir
seus objetivos, até mesmo sujar as próprias mãos de
sangue, elas serviriam de modelo para um jovem
pensador escrever sua obra-

-prima. Nela, ele introduziu uma ruptura decisiva na


prática comum da época que era a divisão do poder
entre a Igreja e o rei. Para ele, o poder central e soberano
pertenceria exclusivamente ao rei, que não deveria
compartilhá-lo com absolutamente ninguém. O poder,
portanto, requer a onipotência e não admite fraquezas.
Ele morava 64

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

em Florença, tinha 20 e poucos anos, se chamava


Nicolau Bernardo Maquiavel e seu texto, inspirado, entre
outras, nas histórias de d.

João II, viria a se chamar O Príncipe. Nada mais, nada


menos que o livro fundador da filosofia política moderna.

De d. João II a Maquiavel

65

O CAMINHO PARA AS ÍNDIAS:

ESPIONAGEM COMERCIAL NO SÉCULO XV

Resolvidos os problemas internos, o caminho para as


grandes façanhas dos descobrimentos estava
pavimentado. Certamente àquela altura não havia mais
dúvidas sobre o caminho para as Índias pelo Atlântico
Sul, e foi essa certeza que fez d. João II articular o
Tratado das Alcáçovas. Era preciso, no entanto, apenas
descobrir atalhos preciosos, e para isso d. João II espalha
por Europa, Ásia e África a sua rede de informantes e
espiões. O objetivo era, num primeiro momento, recolher
toda e qualquer informação privilegiada sobre
astronomia, geografia, instrumentos náuticos e,
sobretudo, rotas comerciais e seus detalhes, portos,
correntes marítimas, monções.

O segundo objetivo da expedição era secreto. O maior


desafio era manter essas informações muito bem
escondidas, cifradas e criptografadas. No século XV, para
fugir da perseguição religiosa, ou para manter
determinada informação ou conhecimento em segredo,
seja ele científico, seja ele militar, era comum o uso de
códigos e cifras. Muitos alquimistas, filósofos, artistas,
membros de confrarias, priorados, exércitos escreveram
suas obras e comunicados

por meio do uso de um vocabulário cifrado para


preservar seu conteúdo da perseguição dos censores e
dos inimigos. Dois famosos alquimistas que cifraram
muitos dos seus escritos foram Nicolas Flamel, a sua
obra intitulada Testamento de Nicolas Flamel foi escrita
num alfabeto codificado e criptografado e Paracelso,
físico, astrólogo, alquimista que fez importantes
pesquisas nos campos da química e escreveu parte dos
seus trabalhos num alfabeto próprio, conhecido como
Alfabeto dos reis magos. O manuscrito Voynich, um livro
do século XV, contemporâneo do período das grandes
descobertas marítimas e das perseguições religiosas, foi
escrito numa língua que se utiliza de letras, números,
símbolos e figuras justamente para se tornar ininteligível.
Para decifrá-lo existe certamente outro livro ou um
manual que descodifica o livro e que sempre era,
obviamente, guardado em lugar distinto. Ainda hoje o
livro permanece indecifrado e está guardado na
Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Esse
expediente era muito comum num momento tão decisivo
da história da humanidade e, é claro, com tanta riqueza
e poder envolvidos.

Os mais importantes espiões de d. João II foram Pero da


Covilhã e Afonso de Paiva, que durante suas incursões e
viagens por terra e mar pela Europa, África, Ásia, Índia,
China e Golfo Pérsico, numa espécie de reedição da
expedição do infante d. Pedro, tinham como objetivo
levantar e enviar notícias preciosas sobre o caminho das
Índias. Num momento decisivo como aquele, era preciso
tirar a limpo tudo o que se sabia apenas por meio de
livros e relatos de viajantes. Antes de iniciar uma epopeia
de proporções nunca antes empreendida, e que poderia
resultar, ou não, num grande ganho para Portugal, era
preciso, ao menos, sondar bem o terreno e era
imprescindível confirmar, in loco, se as Índias eram
realmente tudo aquilo que diziam ser. Esse pacote de
informações era, na verdade, o que faltava para dar um
start no projeto secreto de d. João II.

Em 1487, aos trinta e dois anos, d. João II resolve partir


para a ação direta, bem no estilo de seu tio, o infante d.
Henrique, e convoca Pero da Covilhã para uma missão.
Diante dele, o rei é O caminho para as Índias:
espionagem comercial no século XV

67

enfático, quando diz em segredo que “[. .] esperava um


grande serviço dele porque sempre o achara bom e leal
servidor e ditoso em seus feitos e serviços. O serviço era
que ele e outro companheiro que se chamava Afonso de
Paiva haveriam ambos de ir descobrir e saber onde acha
a canela e outras especiarias que daquelas partes ia a
Veneza por terras de mouros”.1

Para a missão, Pero da Covilhã e Afonso de Paiva


passaram por uma espécie de treinamento para a
projetada viagem de espionagem. Tratava-se de
encontros secretos com os maiores astrônomos e
geógrafos do reino: os lendários José Vizinho, Moisés,
Rodrigo das Pedras Negras, o físico oficial da corte de d.
João II, e d. Diego Ortiz Vilhegas, reconhecido professor
de astronomia da Universidade de Salamanca.

Um dos principais mapas consultados foi, claro, o de Fra


Mauro, as informações de Niccolò di Conti e o Atlas de
Andrea Bianco, que só circulavam no alto escalão
português, uma espécie de sociedade secreta. Entre
esses documentos, havia aqueles que haviam sido
descriptografados, uns comprados e outros até mesmo
roubados durante a tomada de Ceuta e durante as
incursões pela região da Andaluzia – a região mais culta
da Europa no século XV –, onde árabes e judeus
cultivavam vastas bibliotecas como a de Córdoba, capital
do califado do Ocidente, que contava com cerca de 400

mil exemplares.

Antes de Pero e Afonso partirem de Lisboa, em 1487, a


última etapa dos preparativos foi uma visita ao banqueiro
Bartolomeu Marchionni, mercador de Florença e agente
dos banqueiros florentinos em Lisboa, para resolver a
questão das cartas de crédito dadas a eles por d. João II.
Na Europa já funcionava, na época, um grande sistema
de bancos que surgira ainda com os templários para
conter os saques aos viajantes, pois era comum nas
transa-

ções comerciais a demanda de transporte de um grande


volume de dinheiro, que era alvo de salteadores. Para
evitar o transporte de valores em espécie, o comerciante
depositava o dinheiro em sua cidade de origem, levava
consigo uma carta de crédito e trocava 68

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

na cidade de destino essa carta pelo dinheiro que havia


depositado na cidade de origem, claro, mediante o
pagamento de uma taxa, que era o lucro dos bancos.
Mas o limite desse serviço eram os portos do
Mediterrâneo. No Oriente, só com dinheiro vivo, o que
tornava perigosa a jornada de Pero da Covilhã e Afonso
de Paiva e de qualquer um que ostentasse, nos
movimentados portos das Índias, uma bolsa repleta de
moedas e ouro.

Foi esse Bartolomeu Marchionni que, além de articular


essa logística de troca de dinheiro, ao menos nos trechos
europeus, entrou também como sócio da empreitada,
ajudando a financiá-la como gerente de um consórcio de
comerciantes e banqueiros florentinos.

O interesse dos banqueiros na empreitada de d. João II


era óbvia: não perder o monopólio no trato das
especiarias do Oriente.

É assim que se iniciará a incrível viagem de Pero da


Covilhã por reinos pouquíssimo visitados por europeus e
que pode ser considerada uma das mais impressionantes
epopeias que envolvem a expansão marítima
portuguesa. Tão ou até mais grandiosa que as viagens de
Bartolomeu Dias e de Vasco da Gama, que, diga-se de
passagem, são caudatárias diretas da expedição de Pero
da Covilhã.

Sem essa primeira, as duas posteriores talvez nem


tivessem se dado da forma que ocorreram.

Da viagem sabe-se apenas, pelo registro dos cronistas e


de acordo com eles, que a primeira parada foi em
Nápoles, onde tiveram um encontro secreto relativo ao
segundo objetivo da viagem.

Em seguida, passaram à ilha de Rodes, importantíssima


cidade na Grécia que sempre foi peça-chave no comércio
do Mediterrâneo, pois estava cravada numa espécie de
cruzamento entre as principais rotas marítimas que
abrangiam três continentes. Nessa cidade foi construído,
na Antiguidade, uma das sete maravilhas do mundo, o
Colosso de Rodes, destruído num terremoto. Nesse
importante porto, os espiões se encontraram com dois
religiosos portugueses, frei Gonçalo e frei Fernando, que
os auxiliaram com dicas no trato com o Oriente. Ali,
ambos os espiões assumiram características árabes,
deixando a barba crescer e se inteirando dos macetes
dos O caminho para as Índias: espionagem comercial no
século XV

69

comerciantes mouros. Todo cuidado era pouco, pois


estava ter-minantemente proibido aos cristãos negociar
nos mares e portos do Oriente. Na hora de fazer
negócios, portanto, ser mouro era conveniente. Dias
depois, encerrados os preparativos, embarcaram para
Alexandria, o ponto de contato entre o Ocidente e o
Oriente.
Nas andanças pelo Oriente, na sua missão secreta,
disfarçado de mercador, Pero da Covilhã chega ao Cairo e
lá encontra comerciantes persas, árabes, turcos,
venezianos, gregos e magrebinos de Fez com quem vai
por terra a Áden, principal porto do oceano Índico,
Cananor, Calecute, Goa e Ormuz. O grande mérito de
Covilhã, e motivo pelo qual ele foi escolhido para essa
importante tarefa, era o seu domínio da língua árabe. D.
João II já havia anteriormente designado a Covilhã a
espinhosa tarefa de ir ao Marrocos negociar o resgate da
ossada de d. Fernando, morto na tentativa frustrada de
invadir a cidade de Tânger. Tarefa que ele havia realizado
com êxito.

A demanda mais importante no momento era levantar o


potencial econômico, comercial e bélico das principais
cidades e dos portos – já que Portugal tinha intenção de
atacá-los.

No porto de Calecute, Pero da Covilhã conseguiu, enfim,


entrar em contato com tudo aquilo que tanto ansiava.
Segundo seus relatos, “[. .] havia juncos com porcelanas
e sedas do reino do Cataio, zambucos do Ceilão com
fardos de canela, rubis e safiras. Barcos de Malaca com
noz-moscada, cravo das Molucas, cânfora-de-bornéu,
laca de Pegu e aloés do Sião”.2 Calecute era, sem
dúvida, o paraíso das mercadorias do Oriente.

A principal constatação de Covilhã foi a de que as


especiarias chegavam a Portugal com preços
exorbitantes. Se Portugal pudesse ter acesso direto aos
portos, poderia auferir lucros igualmente exorbitantes.
Obteve também informações preciosas sobre navegação:
“[. .] informou-se de algumas outras cousas, e veio numa
nau em direção ao mar Roxo e subiu a Zeila, e com
alguns mouros mercadores quis percorrer aqueles mares
d’Etiópia que lhe foram mostrados em Lisboa na carta de
marear, para que fizesse tudo para descobri-los; e tanto
andou que chegou por fim ao lugar de 70

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

Sofala, onde soube pelos marinheiros e alguns árabes


que toda a dita costa se podia navegar para o poente,
sem se lhe saber o fim, onde havia uma ilha grandíssima
e muito rica, que tinha mais de 900 milhas de costa, a
qual chamavam da Lua.”3

Covilhã foi ao porto de Sofala – navegando pela costa


oriental da África – numa rota muito usada por
comerciantes mouros até a Índia. Era essa rota que os
astrônomos e cartógrafos de Lisboa insistiram para que
ele confirmasse. De tanto burilar, descobriu com esses
marinheiros que havia, sim, uma passagem ligando o
oceano Índico ao Atlântico. Não era novidade, estava
explícito nas mais diversas narrativas antigas – se para o
Ocidente era uma novidade, no Oriente era algo
amplamente conhecido. O intenso comércio que se tinha
entre a costa oriental e ocidental da África se fazia por
rotas terrestres. O comércio entre Ocidente e Oriente se
dava inteiramente pelo Mediterrâneo. As antiquíssimas
rotas marítimas pelo oceano Índico e pelo mar Vermelho,
que ligavam a Ásia, a Índia, a África, eram de uma
extensão quase inimaginável para os padrões de
navegação da época e, no entanto, de uma frequência
quase cotidiana. Entre Sofala, na África – uma das
primeiras cidades conquistadas pelos portugueses e que
era um importante centro de comércio –, e Malaca, uma
outra importante colônia portuguesa na Malásia, havia
uma distância de sete mil quilômetros. Entre Sofala e
Goa, na Índia, cinco mil quilômetros, e entre Sofala e
Ormuz, no Golfo Pérsico, quatro mil quilômetros. A
distância entre Sofala e o cabo da Boa Esperança é de
apenas mil e oitocentos quilômetros, ou seja, era
impossível que a passagem entre os oceanos não fosse
conhecida. A verdade é que, se não era utilizada, é por
que não havia nenhum sentido comercial, mas para
quem estava completamente alijado do comércio
estabelecido, como era o caso de Portugal, uma
possibilidade como essa de acessar o Oriente era o Santo
Graal, a arca da aliança. Por essa informação matava-se
e morria e sobretudo ganhava-se muito dinheiro.
Qualquer mercador ou banqueiro florentino daria uma
verdadeira fortuna para quem conseguisse a proeza de
descobrir tal passagem.

O caminho para as Índias: espionagem comercial no


século XV

71

Havia séculos essa navegação na costa oriental da África


e da Índia era utilizada. Se esses marinheiros não haviam
passado para o Atlântico era porque não tinham
interesse algum. O comércio pelos mares do Oriente era
o suficiente. As principais cidades ao longo dessa jornada
eram Zeila, Melinde, Mombaça, Quíloa e a principal
delas, Sofala. Havia entre essas cidades um intenso
comércio de tudo quanto é tipo de mercadoria, entre elas
o ouro e o marfim.

Covilhã teve a certeza de que a tomada do porto de


Sofala colocaria Portugal em contato direto com os
principais fornecedores da Ásia e da África, sem
intermediários. As informações colhidas por Covilhã,
como se pode ver, eram preciosas.
Encerrada essa primeira parte da missão, era hora de
partir para a segunda etapa da expedição, ou seja,
estava na hora de concentrar esforços na demanda
secreta de d. João II, que era encontrar o reino do Preste
João.

72

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

O CAMINHO PARA AS ÍNDIAS:

A DEMANDA SECRETA PELO

REINO DO PRESTE JOÃO

Quando d. João II encomenda a Pero da Covilhã uma


missão na costa oriental da África, no Oriente Médio e na
Índia, em 1487, ele encomenda conjuntamente a
Bartolomeu Dias uma missão pela costa ocidental da
África. Ele já sabia, certamente, da possibilidade do
caminho do cabo da Boa Esperança, restava apenas
encontrar pontos de apoio para a investida final. Em
dezembro de 1488, com a volta da exitosa expedição de
Bartolomeu Dias, que confirmou a passagem pelo cabo
da Boa Esperança, d. João II envia seus agentes atrás de
Covilhã – achar alguém no caos do intenso comércio do
Oriente era como achar uma agulha num palheiro, o que
reforça a ideia de que eles mantinham comunicação
frequente – para que ele mude de planos e continue sua
missão, mas agora com outra demanda.

No ano de 1490, três anos, portanto, após o início da


missão, Covilhã planejava seu retorno para Portugal e
Paiva havia morrido no Egito. Mas quando já estava no
Cairo, pronto para embarcar, Covilhã encontra, no porto,
dois enviados de d. João II, Rabi Abraão de Beja e Josef de
Lamego. Quando achava que a missão estava encerrada,
recebe outra demanda. O rei queria que Covilhã desse

um passo fundamental e decisivo para a expansão


portuguesa: encontrar, caso ainda não tivesse
encontrado, o lendário reino do Preste João e estabelecer
com ele conexões tais que permitissem a Portugal contar
com um forte aliado na empreitada que estava por vir.
Para isso, enviou uma carta a ser entregue ao Preste
João, na qual pedia ajuda militar contra os muçulmanos,
na tentativa de estabelecer uma aliança poderosa entre
o Ocidente cristão e o reino do Preste João, no sentido de
acabar com a supremacia muçulmana na África e, no
longo prazo, em todo o Oriente Médio, para dominar,
assim, é claro, todo o comércio. Como o terreno era
desconhecido, um aliado seria estrategicamente
indispensável.

Esse encontro entre os espiões foi documentado pelos


cronistas da época. Segundo João de Barros, “[. .] em as
quais cartas el-rei encomendava muito a Pêro da Covilhã
que se ainda não tinha achado o Preste João que não
receasse o trabalho até se ver com ele, e lhe dar a sua
carta e recado: e que em quanto a isto fosse, per aquele
judeu Josepe lhe escrevesse tudo o que tinha visto e
sabido, porque a este efeito somente o enviava a ele”.1

Covilhã escreve, então, uma carta com as últimas


notícias ao rei de Portugal e a envia por meio de Josef de
Lamego, na qual anuncia que “[. .] tinha descoberto a
canela e pimenta na cidade de Calecute e que o cravo
vinha de fora, mas que tudo ali haveria e que fora nas
ditas cidades de Cananor, Calicute e Goa, todas na costa
e que por isto se poderia bem navegar por costas e
mares da Guiné vindo demandar a costa de Sofala”.2
Dessa vez, em meio aos milhares de histórias, livros e
mapas, com rotas e relatos, que a todo momento
chegavam ao conhecimento de reis, homens de comércio
e banqueiros, havia realmente algo de novo e promissor.
Depois dos estragos imensos causados nas relações
entre o Ocidente e o Oriente, entre cristãos e
muçulmanos, pelas Cruzadas, perseguições e pela
tomada de praticamente todo o norte da África e o leste
da Europa, a existência de um reino cristão incrustado no
meio de todo aquele mundo novo, repleto de
oportunidades de negócio, era tudo que os reis católicos
do Ocidente 74

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

queriam ouvir, era música para os ouvidos dos


comerciantes. O

reino do Preste João seria um aliado importantíssimo, e é


em busca desse aliado, desse elo que faltava no
promissor plano de tomar as Índias, que d. João II vai
concentrar suas forças.

Depois de vários contatos, Covilhã conseguiu então


embarcar e seguir pelo mar Vermelho até Jidá, visitou
Meca e Medina, de onde partiu para Zeila, e de lá
penetrou no interior do continente africano rumo à
Abissínia (Etiópia) em busca do reino do Preste João. Esse
roteiro prova que Covilhã sabia exatamente onde estava
localizado o reino do Preste João, já que havia estado em
Zeila anteriormente. Ele descobrira ali que, no interior do
continente, havia um reino cristão, só não havia
empreendido a viagem até lá, o que faria somente agora,
após novas determinações de d. João II.
Mas quem era esse Preste João? Qual a dimensão do seu
reino? E

por que esse era o aspecto secreto da missão de


Covilhã?

Desde os séculos iniciais que o cristianismo vivia imerso


numa cisão que envolvia cristãos do Oriente e do
Ocidente. A questão está relacionada aos chamados
“diferendos cristológicos”, ou seja, a discordância entre
as condições divina e humana de Cristo que acabou por
dividi-los em segmentos diversos. O império romano
oprimia os cristãos coptas do Oriente, ou seja, a
dissidência que, a partir do Concílio de Calcedônia, em
451, adotou o chamado monofisismo e se radicou no
Egito. No século XV, por conveniência e interesse dos reis
católicos, os franciscanos conseguiram converter parte
da comunidade copta egípcia à fé católica e nos séculos
seguintes avançaram também na conversão dos coptas
da região da Abissínia. Essa comunidade só passou a se
sentir relativamente protegida com a invasão do Egito
pelos muçulmanos, quando o assédio católico sofreu um
importante revés.

Desde a Idade Média, durante as Cruzadas, período em


que se uniram cristãos do Ocidente e do Oriente, havia o
conhecimento de um reino cristão na Abissínia. Como
toda a vida do mundo oriental se concentrava no litoral
devido ao comércio, qualquer reino localizado mais para
o interior do continente ficaria certamente O caminho
para as Índias: a demanda secreta pelo reino do Preste
João 75

isolado e, portanto, pouco conhecido, daí o mistério que


cercou o chamado reino do Preste João por séculos.
Quando os cristãos da Abissínia quiseram se livrar, em
determinado momento, no concílio de 1477, da tutela da
Igreja de Alexandria, à qual eram subordinados, criou-se
aí uma oportunidade para a Igreja ocidental ter um
importante aliado no Oriente.3

Os italianos – pelo monopólio que tinham no comércio no


Mediterrâneo – saíram na frente em busca da parceria
com o reino do Preste João. São vários os relatos de
visitas de abissínios à Itália, e os contatos, que eram
frequentes, se intensificaram muito após a queda de
Constantinopla, em 1453, quando então se estrei-tou o
interesse de parcerias para combater o avanço do
império turco-otomano.

Já em 1456, uma delegação da Abissínia esteve em


Roma e foi recebida pelo papa Calisto III, que enviou ao
imperador etíope, Zara Yacob, uma carta na qual pedia
ajuda militar contra os muçulmanos.4 No ano de 1481,
uma delegação de seis etíopes chegou a Roma, liderada
por um importante eclesiástico e acompanhada por
Giovanni Bocchi da Imola, um italiano a serviço do papa
que vivia na Etiópia. Os etíopes foram recebidos em
consistório secreto por Sisto IV e interrogados sobre a
situação religiosa, militar e política de seu país.5

Em 1481, a cidade italiana de Otranto havia caído para


os turcos-otomanos, que desde 1453, quando tomaram
Constantinopla, haviam avançado sobre o norte da África
e o leste da Europa. Com a invasão de Otranto, os
muçulmanos nunca haviam chegado tão próximos de
Roma, do centro do cristianismo ocidental – cerca de
quinhentos quilômetros.6

A questão da Abissínia, do reino do Preste João, se torna,


então, uma guerra comercial entre Portugal e Itália. Com
a Itália enfraque-cida, Portugal parte para o ataque e
tenta estabelecer um contato inicial com o Preste João,
para, dessa forma, firmar parceria e tomar conta do
comércio no Oriente, o que de fato vai acontecer. Este é
o objetivo da viagem de Pero da Covilhã.

76

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

Não era, portanto, como muitos creem, uma lenda a


história do reino do Preste João, a conquista da Abissínia
foi uma ação mili-metricamente orquestrada. Já se
conhecia a passagem pelo cabo da Boa Esperança,
faltava mesmo o apoio do reino cristão, pois a viagem
era muito longa.

Covilhã viveu na Abissínia entre o povo do Preste João


durante 26 anos. Após enviar as importantes
informações de que d. João II precisava, não quis voltar
para Portugal. O padre Francisco Alvarez o encontrou
muitos anos depois no reino do Preste João, quando em
Portugal se julgava que estava morto. Era o ano de 1520,
quando Portugal estabeleceu uma embaixada na
Abissínia, e então Covilhã veio a saber da morte de d.
João II e também das exitosas aventuras de
descobrimento de Portugal pelo mar.

Disse-lhe então Covilhã: “Nos primeiros anos deste meu


desterro

– diz, com um suspiro, o antigo escudeiro de d. João II,


parecendo despertar de um sonho –, perdida toda a
esperança de sair daqui, sentia-me ainda mais
descorçoado por não ter novas do reino. Um dia, porém,
ouvi os mercadores mouros falarem de galeões que
andavam às presas no estreito do Mar Vermelho, tendo
atacado Mombaça e Quíloa, tomado Socotorá e
incendiado Zeila. Rejubilei.

Era a confirmação de que Bartolomeu Dias havia


descoberto a passagem para o Índico e que os
portugueses navegavam já pela costa oriental de África e
pelo mar Roxo a dar santiago nos mouros.”7

O caminho para as Índias: a demanda secreta pelo reino


do Preste João 77

O CAMINHO PARA AS ÍNDIAS: QUEM

PLANTA TÂMARAS NÃO COLHE TÂMARAS

Como se pode ver, era um jogo de xadrez. Essas viagens


de Covilhã serviram também para comprovar as teses e
os estudos de cosmógrafos portugueses, ou a serviço de
Portugal, e o mais importante deles foi, sem dúvida,
Abraham bar Samuel Abraham Zacut, ou simplesmente
Abraão Zacuto, que, como vimos, esteve ao lado de d.
João II desde o início de seu reinado. Zacuto era judeu
sefardita, rabino, astrônomo, matemático e historiador.
Foi pela vida toda professor da Universidade de
Salamanca, onde teve como aluno o judeu nascido em
Covilhã mestre José Vizinho, que se tornaria mais tarde
médico da corte de d. João II. Havia anos o rei cortejava
Zacuto, e, quando da expulsão dos judeus da Espanha
em 1492, acolheu-o em Lisboa, onde pôde desfrutar
melhor dos seus conhecimentos.

Sua obra principal é o Almanach Perpetuum Celestium


Motuum.

O livro foi fundamental para a expansão marítima


portuguesa, pois traz uma série de tábuas astronômicas
que abrangem os auspiciosos anos de 1497 a 1500, que
utilizadas juntamente com o astrolábio, o qual ele havia
aperfeiçoado muitíssimo, orientaram a navegação
portuguesa pelo Atlântico e foram determinantes para
encontrar
o caminho das Índias e o Brasil. O livro, antes um
verdadeiro código secreto que era mantido a sete
chaves, pode ser consultado livremente hoje na
Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa.

Por meio dessas inúmeras informações, todas elas


extremamente confidenciais e, é claro, muito bem
criptografadas, enviadas a d.

João II por seus espiões, é que foi se materializando a


constatação de que era possível contornar o continente
africano e se ter acesso às Índias e ao Oriente.

Essa intercomunicabilidade entre os oceanos Índico e


Atlântico foi descoberta já em 1487 e era, como se pode
imaginar, a informação mais preciosa que se poderia ter
naquele momento. Era o fim de uma jornada que havia
começado em Ceuta e passado por todas as etapas que
vimos da intermitente, porém nunca abandonada,
expansão comercial e marítima portuguesa. Foi, sem
dúvida, uma epopeia, que contou com a dedicação do
infante d.

Pedro, com o sonho e poder de ação do infante d.


Henrique, com a coragem dos infantes d. Fernando e d.
Duarte no Marrocos e, é claro, com todos aqueles que de
forma direta ou indireta haviam contribuído para aquele
momento. Quando fundou a Escola de Sagres, d.
Henrique jamais poderia imaginar que o seu sonho seria
realizado por seu sobrinho, quase um século depois. Há,
porém, um provérbio árabe que diz “quem planta
tâmaras não colhe tâmaras”, pois o tempo que leva do
plantio ao crescimento é superior ao tempo de vida do
ser humano. Desse modo, pode se dizer o caminho para
o Oriente é a tamareira que d. Henrique e os outros
plantaram, e que, se não tivesse sido plantada, não teria
frutificado e glorificado d. João II.

Isso posto, era hora de partir para a ação direta, para a


colheita.

Bartolomeu Dias partiu para sua viagem exploratória em


1488, um ano depois do início da viagem de exploração e
espionagem de Pero de Covilhã. Esse não foi certamente
um acaso, embora a história insista em creditar a
descoberta do cabo da Boa Esperança, ou das Tormentas,
a um ato fortuito, produto de uma tempestade que havia
desorientado a tripulação e os conduzido – como num O
caminho para as Índias: quem planta tâmaras não colhe
tâmaras 79

passe de mágica – justamente para onde eles queriam.


Quanta sorte, não? A verdade é que a viagem de
Bartolomeu Dias não foi um tiro no escuro, ele
certamente já partiu munido de informações
privilegiadas sobre a ligação entre o Atlântico e o Índico,
sobre a possibilidade de ter acesso ao Oriente
navegando pela costa ocidental da África, e para essa
região navegou decididamente.

A viagem, elaborada em sigilo absoluto pelo rei d. João II,


era uma viagem de reconhecimento, de verificação, de
constatação.

Quando Bartolomeu Dias aportou em Portugal, no fim do


ano de 1488, é que se soube que o resultado não poderia
ter sido mais promissor. As informações enviadas por
Covilhã estavam exatas.

O alto investimento aplicado na viagem havia sido,


enfim, recompensado pela prospecção de Bartolomeu
Dias.
Em 1488, oficialmente, portanto, Bartolomeu Dias dobrou
o cabo da Boa Esperança e teria sido o primeiro a
descobrir, para todos os efeitos, a ligação entre os
oceanos Atlântico e Índico. Não custa nada perguntar:
descobriu o caminho para o Oriente por meio da
navegação pela costa ocidental da África e a passagem
pelo cabo da Boa Esperança ou foi apenas o primeiro a
constatar o caminho já longamente navegado do
Atlântico Sul?

O primeiro grande navegador dessa segunda era de


expansão portuguesa no Atlântico havia sido Diogo Cão,
que avançara muito no ano de 1486 na navegação em
direção ao sul da costa da África.

No estuário do rio Zaire, encontra-se até os dias de hoje


a chamada pedra de Ielala, que, além de ser o primeiro
símbolo deixado pela conquista portuguesa para
identificar sua posse, serviria de guia para as viagens
seguintes. Seguindo as trilhas abertas pelo primeiro, vem
Bartolomeu Dias, que, como vimos, encontrou a
marcação de Diogo Cão e, na sequência de sua viagem,
o cabo da Boa Esperança.

Seguindo as trilhas abertas por Bartolomeu Dias, veio


Vasco da Gama. Esse é o cara! É Vasco da Gama quem
vai seguir, em 1497, o continente africano até o extremo
sul e descobrir que era possível, por meio dessa rota,
acessar o oceano Índico e, consequentemente, as tão
cobiçadas Índias orientais.

80

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

Graças à façanha de Vasco da Gama, “Portugal entra


agora em contato direto com a região das especiarias, do
ouro e das pedras preciosas, conquistando,
praticamente, o monopólio desses produtos na Europa [.
.] a abertura da rota marítima das Índias assume, assim,
importância verdadeiramente revolucionária na época, e
as suas consequências imediatas ultrapassam mesmo as
do maior acontecimento da história moderna das
navegações: o descobrimento da América por Cristóvão
Colombo”.1

Confirmado o caminho alternativo para se ter acesso às


riquezas do Oriente, restava agora o trabalho em três
grandes frentes. A primeira delas: estabelecer contato
com o reinado do Preste João e firmar com ele uma
parceria. Como vimos, essa foi a ordem enviada por d.
João II a Covilhã no Cairo, ordem levada pelos
informantes judeus, ou seja, descoberta a informação
mais importante, a da existência da ligação entre os
oceanos, o objetivo era partir em busca da parceria e do
consórcio com o Preste João. Ter um parceiro cristão, que
conhecia todos os tratos do Oriente, era fundamental
para fincar os dentes nas veias abertas de um Oriente
tomado por

“infiéis” mouros.

A segunda frente: programar uma grande expedição de


reconhecimento, que em sua longa duração teria como
objetivo atracar no porto de Sofala, estabelecer contato
com os fornecedores e iniciar, se possível, um trato
comercial. Caso contrário, o plano B era atacar, saquear
e feitorizar a região, seguindo o exemplo precedente do
norte da África. Aliás, uma das principais características
de d.

João II era a de trabalhar questões de curta e longa


duração, ou seja, em duas perspectivas de tempo. Os
mercadores venezianos, genoveses e todo o comércio no
mundo mediterrâneo trabalhavam na perspectiva do
tempo imediato, o aqui e agora do comércio. Os
portugueses, alijados do comércio no Mediterrâneo,
historicamente trabalhavam com outra perspectiva de
tempo: a longa duração, pois os seus projetos
demandavam tempo. Nesse sentido, d. João II havia
unido em sua personalidade dois aspectos distintos das
personalidades de d. Henrique e de d. Afonso V, seu pai –
projetos de O caminho para as Índias: quem planta
tâmaras não colhe tâmaras 81

longa duração do primeiro e projetos de curta duração do


segundo.

Com esse senso organizacional e estratégico, não por


acaso havia chegado a resultados tão auspiciosos.

Em 1492, como veremos, Colombo descobre a América.


Quando a notícia chega a Portugal, imediatamente d.
João II pede a interferência do papa Alexandre VI para
deixar determinado, por meio de uma bula, quais seriam
os limites dos territórios descobertos, conquistados e os
a descobrir e conquistar por Portugal e Espanha.

Desse modo, a bula Inter Coetera, de 1493, traçava uma


linha imaginária que passava 400 quilômetros a oeste do
arquipélago de Cabo Verde. Tudo que ficava a oeste da
ilha era da Espanha e a leste de Portugal. As primeiras
informações da América indicavam que, se parecia num
primeiro momento que o negócio era desanimador, no
longo prazo poderia ser auspicioso. Informado por seu
entourage de sábios e de espiões, d. João II pede uma
revisão do tratado e, em 1494, é assinado o Tratado de
Tordesilhas, que transferia a linha imaginária da divisão
do Atlântico para uma distância certa de 1.700
quilômetros do arquipélago de Cabo Verde. Com essa
mudança, d.

João II estava assegurando para Portugal uma terra que


ainda não havia sido oficialmente descoberta, mas que
ele certamente sabia de sua existência – o Brasil.

D. João II sabia, portanto, do caminho por mar para as


Índias, que seria conquistado, no entanto, pela armada
de Vasco da Gama em 1497, após sua morte. Mas a
pergunta que fica é a seguinte: por que d. João II não
decidiu mandar, nos anos que ainda viveu, uma armada
para comprovar sua “tese”? Há quem acredite ter havido
entre a viagem de Bartolomeu Dias e a de Vasco da
Gama armadas secretas. Ou para ele teria servido a sina
do provérbio de que “quem planta tâmaras não colhe
tâmaras”?

Em 1495, uma expedição comandada por Vasco da Gama


zar-paria de Portugal. Certamente entre a viagem de
Bartolomeu Dias e a de Vasco da Gama, muitas outras
expedições secretas haviam ocorrido a fim de ir
marcando o território e abrindo a frente, tendo, inclusive,
visitado terras brasileiras.

82

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

A terceira frente de trabalho: o de inteligência, ou seja, a


posse de informações tão decisivas e importantes para
os rumos do comércio mundial. O grande desafio de d.
João II era manter sigilo sobre essas informações, sobre a
fórmula mágica que descobrira. O fiat lux, o abre-te,
sésamo. O principal objetivo: despistar a concorrência,
sobretudo da Espanha, pois não era só ele que dispunha
de espiões.
E, se fosse possível, até mesmo induzindo-a a erro, com
informações falsas, desencontradas, plantadas
propositadamente no intuito de confundir. Certamente d.
João II lançara mão desse artifício – a contraespionagem
– para melhor guardar seu segredo valiosíssimo.

É aqui que entra uma questão que até hoje gera debates
caloro-sos. Terá sido Cristóvão Colombo um desses
agentes infiltrados na Espanha por d. João II justamente
para confundi-los?

O caminho para as Índias: quem planta tâmaras não


colhe tâmaras 83

A LENDA NEGRA: A ESPANHA

NO CAMINHO DO PARAÍSO

Enquanto Portugal seguia incansavelmente o seu périplo,


sua odisseia, a situação da Espanha era completamente
diversa.

Encontrava-se fragmentada em diversos reinos, embora


fosse reconhecida pelo papa como proprietária das ilhas
Canárias. No Atlântico, na costa ocidental da África,
próximo à Madeira e aos Açores, não era, portanto,
desprovida de sábios e hábeis navegadores – pelo
contrário, a Espanha sempre foi um celeiro de ambos.

O fato é que a presença da Espanha no Atlântico Sul,


perigosamente a meio caminho entre Portugal e a rota
das Índias, incomo-dava os portugueses. Não por acaso,
d. João II negociou com o papa a divisão do Atlântico
entre Portugal e Espanha, articulando para que a
Espanha ficasse com a parte oeste daquele vasto mundo
que
“a descobrir” não tinha nada; pelo contrário, já havia
sido amplamente vasculhado pelos portugueses,
inclusive o Brasil.

Portugal já havia tentado resolver esse contratempo – a


Espanha como pedra no sapato – quando da sucessão do
trono de Castela, em 1474. Como vimos, com a morte de
Henrique IV, rei de Castela, se inicia uma luta pela
sucessão ao trono que vai interessar diretamente

Portugal. A herdeira provável do trono era Joana, filha de


Joana de Trastâmara, irmã de d. Afonso V e tia de d. João
II, e como era contestada por ser filha ilegítima do rei, d.
Afonso V lança mão de uma manobra ousada: casa-se
com a sobrinha para tentar assegurar para si o trono de
Castela. Dona Isabel, irmã do rei Henrique IV, passou a
reivindicar para si o trono de Castela. Ela era casada,
desde 1469, com Fernando de Aragão e, quando este
assumiu o trono de Aragão, em 1479, deu-se a união do
reino de Aragão com o de Castela.

Um dos maiores apoiadores de Isabel, para que ela


assumisse o trono de Castela, foi frei Tomás de
Torquemada, que se tornaria figura-chave na expansão
comercial e marítima espanhola e, consequentemente,
na descoberta da América em 1492. E que não por
acaso, como veremos, receberia a alcunha de “a lenda
negra”.

Em 1469, Fernando de Aragão toma uma decisão


drástica, con-trariando até mesmo uma decisão do papa,
e se casa com Isabel de Castela, sua prima, união que
resultaria na fusão do reino de Aragão e de Castela. Essa
união o tornou um rei um pouco mais poderoso e
frustrou, em alguma medida, o desejo português de
unificar os tronos e a necessidade de frear a expansão
espanhola no Atlântico.

Na cabeça de Fernando, o próximo passo, no processo de


unificação dos reinos da Espanha, seria a tomada de
Granada. Já era, certamente, uma indicação de
Torquemada – que havia se tornado o confessor real. Da
mesma forma que o vedor da fazenda de d.

João I de Portugal, como vimos, havia indicado ao rei a


tomada de Ceuta. Os motivos eram óbvios: riqueza e
poder.

A guerra travada pelos reis católicos contra os reinos


islâmicos da Península Ibérica se iniciou logo após o
casamento e a união dos reis de Aragão e Castela e teve
alguns momentos decisivos.

O primeiro deles, em 1482, com a tomada de algumas


cidades e que, num processo contínuo, se estenderá até
1492, com a tomada do palácio e da Fortaleza de
Alhambra, em Granada. Nota-se que a guerra se inicia
pouco depois de instaurado por Torquemada, em 1478, o
Tribunal do Santo Ofício da Inquisição na Espanha.

Isso porque a instauração do Santo Ofício, do ponto de


vista de A lenda negra: a Espanha no caminho do paraíso
85

Torquemada, era fundamental para sustentar um dos


pilares da guerra, que era a capitalização do reino, por
meio da perseguição e condenação de mouros e,
sobretudo, de judeus.

A instalação da Inquisição na Espanha só foi possível com


a interferência de Torquemada, pois o papa Sisto IV,
Francesco della Rovere, travava uma luta pessoal com os
Médicis, os banqueiros florentinos. Fernando de Aragão
condicionou – a pedido de Torquemada, claro – o apoio ao
papa contra os Médicis à instituição do Tribunal da
Inquisição na Espanha. O papa acabou cedendo à
condição e aceitando o auxílio do rei Fernando.

Criada a Inquisição, os reis católicos elevaram sua


importância a um grau nunca antes visto, e ela passou a
ser um dos poderes do Estado, atuando diretamente em
consonância com os interesses dos reis. Esse aspecto – a
Inquisição como projeto de Estado – era inédito na
história do Tribunal do Santo Ofício. Na medida em que a
guerra contra os mouros e judeus ia avançando, mais
tribunais eram criados nas cidades e regiões tomadas, de
modo que, em 1483, foi preciso a instituição de um
inquisidor-geral, cargo este que ficou com Torquemada.

Com esse poder nas mãos ele parte para a ação direta.
Seu projeto pessoal era expulsar todos os judeus e
muçulmanos da Espanha e a sua insistência, nesse
sentido, com os reis causava imensa saia justa, pois a
comunidade judaica espanhola era a que mais pagava
impostos ao erário espanhol e também a que mais
contribuía com doações para as guerras de conquista dos
territórios mouros. A Espanha vinha de grandes
bancarrotas internas. Por outro lado, havia a necessidade
de capitalização para as navegações que estavam no
horizonte da Coroa espanhola. O saque às riquezas e às
propriedades de mouros e de judeus capitalizou o erário
do Estado e a Igreja. Já que não era possível expulsá-los,
Torquemada passa a exigir dos judeus a conversão ao
cristianismo, e é sobre os “convertidos” – ou sobre
aqueles que simulavam estar convertidos, mas que
mantinham em segredo os ritos judaicos – que ele vai
concentrar toda a sua perseguição.
86

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

A lógica de Torquemada era simples: a perseguição da


Inquisição espanhola aos judeus estava intrinsecamente
ligada às questões econômicas, de modo que, para
arrancar dos judeus suas riquezas, era preciso criar fatos
novos que levavam a processos e, consequentemente, a
confiscos de bens. Torquemada sabia que os judeus
jamais abandonariam sua crença e seus rituais. A
obrigação de conversão ao cristianismo os levaria,
necessariamente, a professar sua fé em segredo, de
forma clandestina e ilegal. Sendo, portanto,

“cristãos”, a Inquisição tinha por obrigação corrigir “os


erros de fé dos católicos”. Isso significava abrir
processos, condenar à morte, exilar e, é claro, o mais
importante, confiscar bens.

Em 1488, a notícia de que Bartolomeu Dias havia


descoberto a passagem pelo cabo da Boa Esperança
havia se espalhado pela Europa como rastilho de pólvora.
Se essa rota existia, a outra – em direção oeste, pelo
oceano Atlântico, aventada por Toscanelli, e que havia se
tornado a obsessão de Colombo – também haveria de
existir, e isso despertou o interesse dos reis católicos por
um projeto que até então haviam desdenhado. Colombo
havia apresentado esse

“projeto” para os reis, de fazer a rota pelo oceano


Atlântico, sua obsessão, como dissemos, em janeiro de
1486. À medida que essa expedição ganha possibilidades
reais de acontecer, a Inquisição espanhola vai se
tornando mais rude e agressiva.
Em 1483, quando Tomás de Torquemada assume a
direção e o controle da Inquisição na Espanha, a face
assustadora da instituição se revela por meio dos autos
de fé. De 1486 a 1492 – com o decreto de expulsão dos
judeus da Espanha –, Torquemada penitenciou cerca de
trinta e cinco mil pessoas e cerca de sete mil foram
mortas na fogueira. As pessoas que condenou à revelia,
queimou-as em efígie.

Paralela à perseguição aos judeus, corriam as


perseguições aos mouros – que se intensificaram com o
avanço sobre os territórios da região da Andaluzia –, aos
místicos, alquimistas, pensadores, que também foram
alvos da fúria de Torquemada.

Com a tomada de Granada, em 2 de janeiro de 1492, era


hora de alçar voos mais altos, produtivos e rentáveis. Era
hora de monetizar A lenda negra: a Espanha no caminho
do paraíso 87

o grande poder auferido. Havia toda uma região, a


Andaluzia, habitada por mouros e judeus, e essa
conquista – de cidade em cidade, de povoado em
povoado, de vila em vila – se faria a ferro, fogo e,
sobretudo, à custa de muito sangue, rios de sangue. É
notório que a incursão da Espanha na Andaluzia seria um
estágio importante no processo não só de unificação dos
reinos espanhóis, mas também no de acumulação do
capital necessário para a grande empreitada de 1492: a
viagem de Colombo. Sem a sangrenta monetização da
Andaluzia certamente a expedição não teria se realizado
e a descoberta da América teria sido irremediavelmente
adiada.

Vencida a guerra contra os mouros, um frenético e


soberbo Torquemada, depois de ter saqueado e espoliado
à míngua os povos conquistados, parte para sua última
ofensiva: a vingança final e o auge do seu projeto
eugenista, que era a expulsão dos judeus da Espanha.

Para convencer o povo e colocá-lo a favor da expulsão e


pres-sionar os reis católicos, Torquemada urde uma
verdadeira trama, caso que ficou conhecido como El
Santo Niño de la Guardia. Numa retomada do modus
operandi da Inquisição medieval, que tinha sido
responsável por espalhar o horror e a incompreensão
pelo território europeu, Torquemada invocará a sórdida
história que fazia parte do imaginário cristão propagado
pela Inquisição e baseado nas palavras do Código Las
Siete Partidas do rei Afonso X, de 1255. O documento
descrevia um crime ritual no qual “[. .] os judeus tinham
o costume de roubar crianças cristãs e crucificá-las no
dia da Sexta-feira Santa”. Havia vários precedentes como
“[. .] o exemplo de Santo Domingo de Val, criança de
Saragoça, que havia sido supostamente crucificada em
1250; o roubo e ultraje da hóstia consagrada em
Segóvia, no ano de 1406; a conjuração de Toledo, onde
as ruas por onde passaria a procissão de Corpus Christi
foram preenchidas de pólvora no ano de 1445; no
município de Zamora, os judeus haviam enchido de
pregos as ruas por onde os cristãos caminhariam
descalços, roubando hóstias consagradas e queimando
casas; o sequestro e crucificação de um garoto em
Valladolid, no 88

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

ano de 1452; outro caso em Almarza, em 1454; outro em


Segóvia, em 1468”.1

O caso de Guardia seguia o mesmo roteiro, retomando os


relatos antigos: segundo a Inquisição, no ano de 1488
um menino havia sido sequestrado e crucificado na
Sexta-feira Santa. Um processo foi instaurado, em 1490,
e foram condenados e queimados na fogueira os
seguintes judeus: Yuce France, de Tembleque, e Moshe
Abenamias, de Zamora, além de seis conversos: Alonso,
Lope, García, Juan Franco, Juan Ocaña e Benito García.
Quem vai hoje à cidade de Toledo pode ver na Porta do
Perdão da Catedral de Toledo o menino crucificado em
referência a esse episódio do século XV.

Com a comoção que essas histórias geraram, foi fácil


para Torquemada conseguir vencer, enfim, a resistência
de Fernando e Isabel. A 31 de março de 1492,
Torquemada obteve, diante do clamor popular, a
assinatura do chamado Decreto de Alhambra, que
determinava a expulsão de todos os judeus da Espanha.

No édito pode-se ler: “Em nosso reino existe um


considerável número de maus cristãos que judaízam e se
desviam de nossa santa religião católica [. .] para
impedir esse mal, decidimos, juntamente com as cortes,
reunidos em Toledo, em 1480, isolar os judeus e atribuir-
lhes locais delimitados para a residência [. .] segundo
relatório que os inquisidores nos encaminharam, é certo
que o contato dos cristãos com os judeus é
extremamente pernicioso [. .] tudo isso conduz
inevitavelmente à subversão e ao enfraquecimento de
nossa religião. Por essa razão chegamos à conclusão de
que, para acabar com esse mal, o mais eficaz consiste
em proibir formalmente todas as relações entre judeus e
cristãos. Isto só pode ser obtido expulsando-se os judeus
do nosso reino [. .] por isso decidimo-nos expulsar para
sempre os judeus de ambos os sexos das fronteiras de
nosso reino. Decretamos que todos os judeus que vivem
em nosso reino, sem distinção de idade ou sexo, devem
deixar nossas terras ao mais tardar no fim do mês de
julho do ano em curso (1492) [. .]

e proibimos que voltem a se estabelecer no país, que o


atravessem e que nele penetrem por qualquer motivo.
Os contraventores desta A lenda negra: a Espanha no
caminho do paraíso 89

ordem serão condenados sumariamente à pena de morte


e ao confisco de seus bens.”2

Uma última tentativa de demover os reis católicos da


ideia de assinar o édito de expulsão partiu do
comerciante Isaac Abravanel, que, em nome da
comunidade judaica da Espanha, havia oferecido aos reis
a quantia de 30.000 ducados, uma verdadeira fortuna.

Torquemada, ao saber da oferta, invadiu a sala na qual


eram feitas as negociações e vociferou aos reis,
repreendendo-os e citando que Judas havia traído Cristo
por 30 moedas, ao fim jogou um crucifixo na mesa e
disse que se os reis aceitassem aquele dinheiro o
estariam traindo novamente. E os reis recuaram.3

O último prazo dado era o de 31 de julho de 1492, que


passaria, não por acaso, para a meia-noite do dia 2 de
agosto de 1492, exatamente o dia precedente da partida
de Colombo para “descobrir” a América, dia 3 de agosto
de 1492. Até que ponto também a tomada de Granada e
a expulsão dos muçulmanos e judeus que viviam na
região não foi a gota d’água para que judeus
viabilizassem o financiamento da viagem de Colombo?
Sabemos que a viagem foi quase toda financiada por Luis
de Santángel, que havia adiantado para os reis de
Espanha a quantia de 17.000 ducados. Estariam os
judeus em busca de um novo mundo para começar
novamente suas vidas?4

Muitas das famílias judias expulsas da Espanha e que


foram para Portugal ou para a Holanda, poucas décadas
depois, construiriam, no Brasil, como veremos, no
complexo de plantação de cana-de-açúcar e de engenhos
do Nordeste, uma das mais opulentas zonas produtoras
de açúcar do mundo.

Torquemada não se contentava em apenas perseguir os


judeus, e “[. .] estendeu seu rigor aos livros e, em 1490,
em Salamanca, ordenou a queima de incontáveis Bíblias
hebreias, mais de seis mil livros em uma cerimônia
pública na praça de San Esteban, acu-sando-os de
propagar a incredulidade judaica, a feitiçaria, a magia, a
bruxaria e coisas supersticiosas”.5 Desse modo,
Torquemada fez um grande mal para o povo judeu, e
para a humanidade em geral, ao queimar os livros das
bibliotecas e procurar estancar o avanço 90

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

do conhecimento. Mas, ato contínuo, a sua atitude


desencadeou dois outros movimentos importantes para o
mundo moderno: a Reforma Protestante. E o que
Maquiavel determinaria na sua obra

– a necessidade do fim da divisão de poder entre o rei e a


Igreja.

O que marcaria o começo do absolutismo e da luta dos


reis contra a Igreja. Torquemada vai armar uma bomba
que explodirá nas décadas seguintes e cujas batalhas
principais terão como palcos vários locais do mundo,
inclusive o Brasil, que ainda nem sequer havia estreado
na história.
A viagem de Colombo está, portanto, intimamente ligada
à crise que a comunidade judaica espanhola vivia no fim
do século XV. Colombo e os outros navegadores sabiam
que era possível se ter acesso ao Oriente navegando
para oeste. Trazido à Espanha por árabes e judeus, esse
conhecimento era o maior tesouro espanhol.

Eles sabiam, porém, que seria preciso transpor um


imenso obstáculo chamado continente americano, que
era imprestável para o comércio.

O próprio Colombo fez várias viagens na esperança de


encontrar tal transposição. A primeira, em 1492; a
segunda, em 1493; a terceira, em 1498; e a quarta, em
1502. Colombo foi, sem dúvida, o grande navegador de
d. Fernando nas tentativas infrutíferas de encontrar a
passagem para o Oriente. Na história que escreveu sobre
seu pai, Fernando Colombo fala sobre a obsessão de
Cristóvão Colombo em encontrar tal passagem que desse
à Espanha acesso ao Oriente.

Fernando Colombo dirá que, depois de seu pai ter sido


informado por uns naturais da terra de que havia uma
localidade com muitas riquezas, “[. .] não quis ir até lá [.
.] seguiu seu desígnio de descobrir o estreito de terra
firme para abrir a navegação do mar do meio-

-dia de que tinha grande necessidade para descobrir as


terras das especiarias e assim determinou seguir o
caminho do Oriente, onde imaginava e acreditava que
estivesse o referido estreito”.6

Colombo morre em 1506. No ano seguinte ao da sua


morte, d.

Fernando chama à corte para uma reunião secreta quatro


experimentados navegadores: Juan Díaz de Solís, Vicente
Yañez Pinzón, Juan de la Cosa e Américo Vespúcio. A ideia
era armar uma flotilha para, A lenda negra: a Espanha no
caminho do paraíso 91

segundo suas palavras: “[. .] porquanto por mim


mandado, nossos pilotos, a descobrir a parte do Norte.”
Em outro trecho, ordenava que “[. .] continuassem a
navegação, para descobrir aquele canal ou mar aberto
que se ia principalmente procurar e que quero que se
procure”.7 A flotilha devia descobrir a passagem que o
rei julgava existir – desde as informações de Colombo –
na linha equinocial.

Sabia-se, portanto, que Colombo não havia chegado às


Índias e que para se chegar até lá devia existir um
estreito que dividisse o novo continente e permitisse aos
espanhóis chegar até o Oriente sem passar pelas
possessões portuguesas.

A América irá passar por um verdadeiro escrutínio.


Vamos ver o que vai acontecer!

92

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

CRISTÓVÃO COLOMBO: AGENTE

SECRETO DE D. JOÃO II?

“Cristóvão Colombo.

Nós d. João […] vos enviamos muito saudar. […] E quanto


à vossa vinda cá, certo, assim pelo que apontais como
por outros respeitos para que vossa indústria e bom
engenho nos será necessário e prazer nos há muito de
virdes porque o que a vós toca se dará de tal forma de
que vós deveis ser contente. […] E por tanto vos
rogamos e encomen-damos que vossa vinda seja logo e
para isso não tenhais pejo algum e vos agradeceremos e
teremos muito em serviço. Avis, 20 de março de 1488. A
Cristóvão Colombo nosso especial amigo em Sevilha.”1

Essa carta de d. João II, endereçada ao seu “especial


amigo em Sevilha”, abre uma raríssima porta para
penetrarmos no conturbado universo da vida de
Cristóvão Colombo. Depois de ter enviado Pero da
Covilhã para o Oriente e Bartolomeu Dias para o
Atlântico Sul, o que queria d. João II com Cristóvão
Colombo ao convidá-lo para ir a Lisboa dizendo que “o
que a vós toca se dará de tal forma de que vós deveis ser
contente”?

Exausto da travessia do mar tenebroso, Cristóvão


Colombo observou com os olhos marejados aquele
pedaço de terra que surgiu

no horizonte. Corria o mês de março do ano de 1493. Ele


havia há pouco acabado de executar uma das maiores
façanhas da humanidade: atravessar o oceano Atlântico
e descobrir a América. Voltar a ver com os próprios olhos
e estar a poucos quilômetros de tocar com os próprios
pés o território do Velho Mundo era algo em que
pouquíssimos acreditavam, quando ele partiu da
Espanha, do Puerto de Palos, na Andaluzia, rumo ao
desconhecido.

Trazia muitas novidades. Pudera, havia acabado de


descobrir, ou encontrar, como é mais provável, um novo
continente. Mas tinha de prestar conta disso tudo aos
seus financiadores. Durante a longa viagem de volta
certamente elaborou seus relatórios de viagem,
organizou as amostras de tudo que havia encontrado e
trazia junto com ele, inclusive, amostras de ouro e
pedras preciosas.

Na Espanha, Fernando de Aragão, Isabel de Castela e


Luis de Santángel aguardavam ansiosos os relatórios
com as informações preciosas que trazia. Esse dossiê
valia uma vida inteira. Por séculos navegantes de várias
nacionalidades haviam labutado no mar em busca
daquela rota secreta. Quantos homens morreram e
quantos homens dariam a vida por aquelas informações?
Os reis da Espanha sabiam que restava a eles a
obrigação de tornar altamente confidencial a descoberta
de Colombo, pois os lobos franceses, ingleses e
portugueses andavam à espreita.

Reconhecido como genovês, existem muitas teorias


dando conta de que Colombo era português ou até
mesmo judeu espanhol. Não por acaso sua expedição
rumo à América havia partido da Espanha, no horário
limite do prazo determinado no édito de Alhambra para
que os judeus deixassem o território espanhol. Além de
sua viagem ter sido inteiramente financiada por
banqueiros e mercadores judeus – fato corriqueiro na
época –, Colombo exigiu que toda a sua tripulação
estivesse a bordo antes da meia-noite do dia 2 de agosto
de 1492. Ou seja, zarpou da Espanha no mesmo dia e
poucas horas antes do horário em que expirava o prazo
dado pela Coroa espanhola para que os judeus
abandonassem o país ou morressem nas fogueiras.

94

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

Não por acaso também, Colombo havia feito uma parada


estratégica na ilha dos Açores. Na viagem de ida, teria
certamente deixado na ilha um grupo de imigrantes
judeus que havia retirado da Espanha. Esses imigrantes
seriam recebidos pela colônia de judeus sefarditas que
colonizaram a ilha e lá desenvolveram toda a cadeia
produtiva do açúcar que, em poucas décadas, seria toda
transferida para o Brasil. Seria a única vez na história
que o Brasil receberia uma transferência de tecnologia
de ponta e estaria, portanto, na vanguarda de tudo que
havia de mais moderno no mundo em termos de
produção mecanizada.

Quanto ao enigma Colombo, existe uma assinatura


cabalística do navegador – em que se vê uma letra S e
abaixo uma sequência de letras S A S e uma sequência
de letras X M Y e a frase Xpõ Ferens.

– que deixou margem para diversas interpretações sobre


sua real personalidade e que acabaram por suscitar mais
dúvidas do que elucidações. Para os adeptos da tese do
Colombo judeu espanhol, essa assinatura, que só
aparece na correspondência íntima enviada a seu filho
Diego, contém uma oração ou uma fórmula religiosa que
para os judeus significa: (S) Shaday; (S) Shaday, (A)
Adonay, (S) Shaday; (Y) Yehova, (M) Moleh, (X) Chessed.
Que quer dizer

“Senhor; senhor Deus, senhor; Deus, Tende Piedade”.2

Já os adeptos do Colombo português traduzem a


assinatura da seguinte forma: a sequência de três letras
seria (S) Servus; (S) Sum, (A) Altissimi, (S) Salvatoria; (Y)
Yesu, (M) Maria, (X) Xriste. As saudações católicas o
aproximariam de uma origem portuguesa, além, é claro,
da forte relação com Portugal.
Outra interpretação, mais impressionante, é a que
interpreta a sequência de três letras S como uma
saudação “com salves”, muito comum na época, que,
advindo do latim, teria dado origem ao nome Gonçalves.
A assinatura que aparece abaixo desse código é Xpõ
Ferens. Xpô, em grego, quer dizer Cristo, e Ferens,
aquele que leva, que transporta, que salva, ou seja,
salvador. Por fim, a pontuação no final do nome, ./, cujo
nome em latim é colon, mas que em hebraico é zarco,
vindo a formar, portanto, o verdadeiro Cristóvão
Colombo: agente secreto de d. João II?

95

nome de Colombo: Salvador Gonçalves Zarco, filho do


navegador português João Gonçalves Zarco, descobridor
da ilha da Madeira.3

A favor da tese que trata Colombo como sendo de


nacionalidade portuguesa, ou no mínimo um espião de d.
João II, pesa o fato de que segundo consta nos diários de
bordo da viagem de descobrimento, na chegada da
viagem, Colombo passa quase um mês em Portugal
antes de ir para a Espanha. Estranho para um homem
que tinha acabado de descobrir nada mais, nada menos
que um novo continente, um novo mundo, e que tinha de
dar uma imensa e auspiciosa notícia aos seus
patrocinadores. Além disso, havia realizado um sonho
pessoal que por décadas fora completamente ignorado
por todos aqueles que poderiam patrociná-lo.

Ficou mais de um mês em Portugal e depois ainda foi


para Sevilha, onde ficou outro mês antes de ir para
Barcelona se encontrar com os reis espanhóis. Estaria
Colombo profundamente ressentido com o édito de
expulsão pelo fato de ser judeu? Teria se vingado da
Espanha revelando tudo que havia descoberto
primeiramente para o rei de Portugal? Esse tempo não
teria sido também o tempo suficiente para que Portugal
providenciasse junto ao papa a bula Inter Coetera, de
maio de 1493, assim como a segunda viagem de
Colombo, em 1494, que havia certamente sido mais
auspiciosa que a primeira? Não teria sido o motivo para
que, no mesmo ano, logo após seu retorno à Europa,
Portugal exigisse do papa uma revisão dos limites,
conseguindo assinar o Tratado de Tordesilhas?

Colombo chegou ao território europeu no dia 12 de


fevereiro de 1493, no dia 13 ele se separou das outras
caravelas e foi para a ilha dos Açores; e no dia 24
levantou ferros e pegou o rumo de Lisboa.

No dia 4 de março, seu diário registra que “[. .] a noite


padecemos em forte tormenta com ventos que parecia
que iam virar a caravela [. .] quando amanheceu,
reconheci a terra era Roca de Cintra, junto ao rio Tejo, em
Lisboa”.4 De Cabo da Roca, Colombo passou por Cascais
e Restelo, onde se encontrou com Diogo Fernandes de
Almeida, prior do Crato, que era sócio de Juanoto Berardi,
comerciante florentino que morava em Sevilha e foi um
dos financiadores 96

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

da viagem de Colombo. Diogo irá acompanhar Colombo


durante dois dias em Vale do Paraíso. Entre os dias 4 e 8
de março, ficou em Lisboa.

No dia 8 de março, seus diários registram a seguinte


movimentação: “Sexta 8 de março: hoje o almirante
recebeu uma carta do rei de Portugal, pela qual ele lhe
rogava que chegasse aonde ele estava [. .] mandou o rei
aos seus mandatários que tudo de que o almirante e sua
gente e a caravela precisassem lhes fosse dado, e cem
dinheiros, e se fizesse tudo como o almirante quisesse.”5

E no dia 9 de março seus diários registram, por fim, o


amistoso encontro com o rei d. João II: “Sábado 9 de
março: hoje partiu de Sacanben para ir aonde o rei
estava, que era o Vale del Paraíso [. .]

o rei mandou receber os ilustres de sua casa de modo


muito honrado e o rei também os recebeu com muita
honra e fazendo muitos favores e mandou sentar e
conversou [muito bem], oferecendo-se para mandar
fazer tudo [. .] determinando que fosse hospedado pelo
prior de Crato, que era a mais ilustre pessoa a estar ali,
da qual o almirante recebeu muitas honras e favores.”6

A questão que não quer calar é por que Colombo teria


ancorado em terras portuguesas e ficado por lá cerca de
um mês antes de ir para a Espanha? Já na ida havia
ancorado no arquipélago dos Açores, de domínio
português, e não nas ilhas Canárias, que eram de
domínio espanhol.

Passou três dias em Xira, recuperando-se do seu


desfalecimento e ordenando os pensamentos. Nos três
dias sabáticos, num povoado inexpressivo, em Vila
Franca de Xira, banhado pelas águas do Mediterrâneo,
ele não estava sozinho. Passara na companhia de d.

João II, rei de Portugal que, naquele momento, era o


concorrente número um da Espanha na expansão
marítima e de quem, justamente, aquele segredo deveria
ser preservado.

Por que Colombo, que estava a serviço da Espanha,


passara esses três dias conferenciando com o rei de
Portugal? Estaria ele prestando contas ao rei d. João II?
Na segunda viagem que empreendeu para a América,
Colombo também seguiu o mesmo expediente, ou seja,
Cristóvão Colombo: agente secreto de d. João II?

97

na volta fez uma parada estratégica em terras


portuguesas, em 8 de junho de 1496. Nessa ocasião,
aportara na cidade de Vila Nova de Milfontes (Odemira),
onde havia uma grande comunidade judaica.

O que Colombo teria ido fazer nesse vilarejo?

Como vimos, antes de prestar serviços para a Espanha,


Cristóvão Colombo havia tentado por quase uma década,
a princípio em vão, oferecer seu projeto de navegação e
exploração para o rei de Portugal. Em 1492, quando
Colombo descobriu a América, ele estava a serviço de
Castela. Bartolomeu Dias já havia, em 1488, constatado
que o caminho para as Índias era navegando rumo ao sul
e não ao oeste no oceano Atlântico. O fato de o projeto
de Colombo ser o de navegar no sentido oeste no oceano
Atlântico não teria sido propositadamente com o intuito
de desviar a atenção de Castela da rota para o sul? Esse
projeto apresentado a Castela não teria sido combinado
antes entre Colombo e d. João II com o propósito
deliberado de desviar Castela do verdadeiro caminho das
Índias?

Se assim foi, porém, as promessas e as amostras de


metais e pedras preciosas que Colombo havia trazido da
viagem colocaram d. João II em alerta. Numa terra que o
rei imaginava ser completamente árida do ponto de vista
comercial, havia tesouros ainda mais valiosos do que as
especiarias das Índias. O recado de Colombo seria claro:
era melhor d. João II não subestimar nada pois o tiro de
desviar os espanhóis da rota das Índias poderia sair pela
culatra.

Se estivesse vivo em 1545, quando os espanhóis


conquistaram as minas de prata de Potosí, certamente d.
João II teria se arrependido de não ter dado ouvidos aos
conselhos do seu agente secreto.

Mas naquele momento o caminho das Índias havia caído


no seu colo e era o melhor negócio do mundo, e a
América e o Brasil tiveram de esperar por mais alguns
anos.

98

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

A MISTERIOSA MORTE DE D. JOÃO II Cristóvão Colombo é


um enigma, pois basta dizer que depois de suas viagens
à América ele foi completamente relegado ao ostracismo
e caiu em desgraça na Espanha. Tendo sido acusado de
ser infiel à Coroa espanhola, foi hostilizado e preso por
Francisco de Bobadilla na América e enviado para a
Espanha. É claro que ser acusado de violência era
apenas o pretexto, já que toda a exploração da América,
assim como a da África pelos portugueses, foi feita
mediante uso da violência. A verdadeira causa da prisão
de Colombo talvez esteja ligada à traição cometida
contra a Espanha em favor de Portugal. Sua história é tão
controversa que o nome do continente é uma
homenagem ao navegante Américo Vespúcio.

Por que o nome de Colombo foi completamente


ignorado?
Consideradas todas essas inconsistências, é bem
possível que toda essa história que, num primeiro
momento, poderia soar como uma teoria da conspiração
tenha o seu lado verdadeiro. O período era crítico, um
daqueles momentos históricos em que a roda da fortuna
gira suas engrenagens e demanda soluções novas para
problemas novos. Todos estavam em busca do comércio.
Desse modo,

comparada às Índias, tanto a América, descoberta por


Colombo, quanto o Brasil, descoberto pelos portugueses
alguns anos depois, em 1500, eram territórios
imprestáveis – motivo pelo qual permaneceriam
abandonados durante décadas. Sobre o Brasil não há
praticamente nenhuma citação nos livros dos principais
cronistas de Portugal.1

Estávamos em pleno período conhecido como


mercantilismo.

Nesse modelo, pouco se produzia e a regra para se fazer


fortuna era buscar produtos primários ou artesanalmente
manufaturados em outras regiões pelo menor preço
possível ou mediante a guerra, o saque, e obter o
máximo de lucro possível na venda. Até onde ou até
quando esse mecanismo funcionou? As nações se
digladiaram para obter produtos e manter o máximo de
exclusividade possível na distribuição e na oferta.

Somente em meados do século XVIII é que a Inglaterra,


com a sua Revolução Industrial, vai acabar com a lógica
meramente mercantilista e criar um novo mundo,
baseado na produção, sufocando, assim, os monopólios
mercantilistas. No século XV, a Europa estava acabando
de sair de um sistema feudal, em que o grosso do
comércio era de produtos locais. Com o advento das
cidades e a popularização do trato com dinheiro, que
começa a substituir as meras trocas, uma imensa
concorrência vai se estabelecendo aos poucos, de modo
que o comerciante, e não mais o produtor rural, vai
ganhando importância. No início, importância econômica
e, em breve, importância política, numa lógica que vai
inexoravelmente transformar o mundo.

O momento era crítico e não havia, portanto, espaço


para amadores.

Não teria sido também mero acaso que, em 1494, a 7 de


junho, Portugal pedisse a intervenção do papa Alexandre
VI para assinar o Tratado de Tordesilhas, que dividia o
mundo novo entre Portugal e Espanha. D. João II sabia
certamente que a oeste, no oceano Atlântico, não havia
nada que prestasse, pelo menos imediatamente; já a
leste, existia o caminho para uma região que levava às
riquezas 100

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

do Oriente. O tratado só seria retificado mais tarde pelo


Tratado de Madri, no qual Portugal reivindicava seu
quinhão também na América. Exímio estrategista, essa
manobra de d. João II havia assegurado para Portugal a
melhor parte do mundo e para Castela uma zona
desprovida e hostil, de gente bárbara e com quase nada
a oferecer.

Em 1495, d. João II morre. Uma versão de sua morte diz


que teria sido envenenado. Teria sido envenenado por
algum agente secreto de Castela como uma forma de
vingança, uma vez descoberto que Castela havia sido
ludibriada por d. João II no Tratado de Tordesilhas ao ficar
com toda a parte do Oriente onde justamente se
encontrava a rota para as Índias? É possível.

Segundo o cronista Rui de Pina, “[. .] depois do


falecimento do príncipe (d. Afonso, único filho legítimo do
soberano) ou por sobeja tristeza e uma tal dor que nele
padeceu, como é mais de crer ou por peçonha que lhe
deram, como alguns sem muita certidão suspeitaram,
nunca foi em disposição de perfeita saúde [. .]. Daí a
poucos dias o rei tornou a adoecer do mal de que ao
diante morreu, e houve suspeitas que foi de peçonha,
ficou uma geral presunção que nesta Fonte Coberta lhe
fora dada em água que bebeu, a qual presunção e
suspeita se confirmou em muitos com as mortes de
Fernão de Lima, seu copeiro-mor, e de Estêvão de
Sequeira, copeiro, e de Afonso Fidalgo, homem da copa,
que, inchados e solutos como el-rei, antes dele poucos
dias todos três faleceram”.2

Mais para a frente escreve o cronista oficial da corte


sobre o possível envenenamento do rei d. João II. Diz ele
que: “El-rei por uma mulher ou religiosa de santa vida foi
avisado que se guardasse bem de peçonha que lhe
ordenavam.”3

A favor da tese do envenenamento está também uma


intricada relação. D. João II assim que assumiu o trono,
como vimos, mandou matar d. Fernando II, duque de
Bragança, e matou Diogo, duque de Viseu e irmão de sua
esposa, d. Leonor. D. Afonso, o filho de d.

João II, casara-se com Isabel, a filha mais velha dos reis
católicos da Espanha, Fernando e Isabel, o que lhe
colocou como consorte A misteriosa morte de d. João II

101
na sucessão do trono da Espanha e também uniu os
tronos de Espanha e Portugal, uma vez que Afonso era
herdeiro do trono de Portugal. Com a misteriosa morte de
Afonso, d. João II, já no leito de morte, colocou em
testamento o cunhado d. Manuel como sucessor no
trono. D. Manuel casa-se, por fim, com Isabel, a viúva de
Afonso, e inicia uma aproximação com o reino da
Espanha nos moldes que os reis católicos desejavam.

Intrigas e vinganças à parte, antes de adoecer d. João II


havia deixado projetada para 1497 a saída de Vasco da
Gama para a viagem oficial às Índias, que só se realizaria
já no reinado de d.

Manuel. Todas as informações já haviam sido dadas por


Covilhã, bem como o caminho já havia sido trilhado por
Bartolomeu Dias.

Para Vasco da Gama restou apenas o trabalho de


executar o que ordenavam as cartas portulanos – fruto
do intenso trabalho de gerações – e receber, ao cabo, as
glórias da empreitada.

Pode-se dizer que, na perspectiva de longo prazo, o


bloqueio das rotas do Oriente com a queda de
Constantinopla vai, de súbito, colocar Portugal no
protagonismo do mercado internacional. Dominava as
rotas comerciais do Atlântico e o açúcar, um produto até
então secundário, comparado aos produtos das Índias,
mas que vai ganhar um terreno imenso em toda a
Europa. Quando o açúcar se tornar o principal produto na
Europa, Portugal vai estar na vanguarda em duas frentes:
1o) na produção e distribuição, e 2o) agregando valor
nessa produção com um elemento novo: o escravo. De
uma hora para outra, de patinho feio Portugal passava a
cisne em todo o processo.
Em 1497, tentando manter um ritmo de normalidade, d.

Manuel ordena a viagem de Vasco da Gama, que


oficialmente teria sido o primeiro navegador português a
ter acesso ao Índico e ao Oriente por meio da passagem
do cabo da Boa Esperança, contornando o continente
africano. Na verdade, os produtos e o caminho das Índias
já não eram – por assim dizer – a menina dos olhos dos
portugueses.

A nobreza – que voltava a ganhar a importância que


havia perdido no reinado de d. João II – era contra os
gastos excessivos com 102

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

as viagens, como, aliás, sempre fora. Segundo o cronista


Damião de Góis, “[. .] assim que faleceu d. João, o
sucedeu no reino o rei d.

Manuel, o qual como herdeiro universal de toda máquina


e destas navegações, não contente do que já era
descoberto, mas antes muito desejoso de passar adiante,
logo no começo de seu reinado, no mês de dezembro de
1495, teve em Monte Mor uma reunião com seu
conselho, no qual alguns foram da opinião que se não
prosseguisse mais nesta viagem, além do que já era
descoberto, por que havia de ser muito invejada de todos
os reis e repúblicas da Europa [. .] de que haviam de se
seguir muitos trabalhos e despesas a este reino, que já
bastava o pacífico trato com a Guiné e a já honrosa
conquista dos lugares da África, para o ganho dos
mercadores e proveito das rendas do reino e exercício da
nobreza dele”.4

Eles já lucravam absurdos com o ouro auferido no castelo


da Mina. Estavam, de um lado, lucrando com o
monopólio do comércio de escravos para os produtores
de açúcar das ilhas portuguesas e, de outro, lucrando
com a venda desse açúcar no mercado europeu.

Ainda que Vasco da Gama não tivesse logrado êxito na


transposição do cabo da Boa Esperança e estabelecido a
regularidade no comércio com as Índias, Portugal já não
tinha do que reclamar.

Desse modo, a morte de d. João II vai colocar, de certa


forma, a expansão ultramarina em xeque. O herdeiro do
trono, d. Manuel I, além desse freio imposto pela nobreza
portuguesa, estava estabelecendo contatos com o rei
espanhol, d. Fernando, para se casar com a sua filha, d.
Isabel, viúva de d. Afonso. Essa aproximação com a
Espanha – Torquemada ainda estava vivo, morreria
apenas no ano de 1498 – abriria em Portugal as portas
para a entrada em cena do fantasma da Inquisição. Não
demorou para que d. Fernando e a filha Isabel
impusessem, como condição ao negócio do casamento, a
expulsão incondicional de Portugal de todos os infiéis,
quer fossem eles muçulmanos, quer fossem judeus.
Como não poderia ser diferente, a comunidade judaica
sefardita – apenas os que haviam recentemente [1492]
emigrado da Espanha somavam mais de cem mil
pessoas – entrou em alerta máximo.

A misteriosa morte de d. João II

103

A imposição colocava o rei numa situação difícil. Deveria


optar entre o amor e os negócios. Os judeus, como
vimos, sempre foram os grandes financiadores de toda a
expansão ultramarina. Sem eles, Portugal voltaria a ser
um reino comum, desprovido de força de investidura
para grandes empreitadas.

Em 5 de outubro de 1496, d. Manuel, inebriado pelo


veneno de Isabel, opta por viver o seu amor, cede aos
seus caprichos e assina o decreto de expulsão dos
judeus. Este seria o início da derrocada do poderio
português. A imigração compulsória desses judeus para
outros países, entre eles os Países Baixos, daria início à
ascensão do poderio holandês, movido, é claro, pelo
capital que acompanhou o êxodo dos judeus. Dessa
forma, os grandes investidores, banqueiros e
comerciantes, vão investir em companhias particulares, e
aqui está toda a diferença – a expansão comercial e
marítima não seria mais um projeto de Estado, como nos
casos de Portugal e Espanha. Não por acaso, os Países
Baixos vão se tornar, nas décadas seguintes, uma
potência econômica. À medida que as forças
conservadoras da Igreja vão se colocando contra o
avanço do comércio, com medidas monopolizadoras, a
Igreja sofrerá um ataque dos concorrentes em duas
frentes: o ataque à Igreja em si, por meio do surgimento
de orientações protestantes – anglicanismo na Inglaterra,
por exemplo

–, e o ataque ao monopólio que era fruto do consórcio


entre os reis católicos e os comerciantes e agentes
financeiros. Dessa concorrência surgem o intenso
incremento da pirataria e o avanço hostil

– por meio de guerra e tomada de territórios – das


companhias comerciais privadas.

A guerra que vai se travar a partir do alinhamento entre


Portugal e Espanha será uma guerra comercial e
religiosa.
Ainda com todo o movimento contrário, a viagem de
Vasco da Gama se realizou. Outra viagem, realizada por
Pedro Álvares Cabral, cristão-novo, teve saída em 1500
de Lisboa e misteriosamente veio parar no Brasil, em 22
de abril. Essa viagem estava programada, mesmo que de
forma secundária, desde o exato momento em que
Colombo retornou de sua expedição e, atracando em
Portugal, 104

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

deu notícias a d. João II de que havia, sim, como


suspeitavam seus cosmógrafos, astrônomos, uma terra
na rota para o oeste. Do ponto de vista comercial, a terra
nova era imprestável, mas as perspectivas eram as
melhores possíveis.

A partir de então um novo cenário se configura, e os


países aos quais o catolicismo havia se conectado –
Portugal e Espanha – vão estar na vanguarda da
descoberta e exploração do Novo Mundo.

Mas esse domínio sobre o mundo, que parecia sólido,


sofrerá, internamente, importantes reveses tais como a
fúria da perseguição religiosa e econômica, e, a partir
daí, o caminho se abrirá para que outras nações entrem
em cena, mesmo que inicialmente por meio da pirataria
ou de incipientes companhias de comércio. Uma batalha
feroz que estava sendo arquitetada em silêncio, nos
bastidores, se avolumará e se estenderá por séculos e
mudará o mundo para sempre. O Brasil estará no centro
dessa disputa.

A misteriosa morte de d. João II

105
A MISTERIOSA VIAGEM DE PEDRO

ÁLVARES CABRAL AO BRASIL

Em relação à viagem de Pedro Álvares Cabral, a pergunta


que se faz é a seguinte: por que a primeira frota enviada
por Portugal às Índias, depois dos primeiros contatos
feitos por Vasco da Gama, e que tinha um espírito
extremamente belicoso – não por acaso embarcaram
quase mil soldados –, veio parar no Brasil? E tinha a
seguinte ordem: “Trabalhar muito pela amizade do rei de
Calicute para fazer lá uma fortaleza [. .] se o rei não
quiser por amigo, em tal caso de sua parte declare
guerra.”1 A resposta é que o Brasil fazia parte de um dos
maiores segredos de toda a expansão comercial e
marítima portuguesa, guardado a sete chaves por
Portugal, pelo menos desde 1488.

Com a morte – ou o assassinato – de d. João II, em 1495,


o ímpeto agressivo da expansão portuguesa corria o
sério risco de cair de intensidade. Vimos como a nobreza
não queria nem ouvir falar em expansão, estava
contentíssima com a exploração da costa ocidental da
África, sobretudo a rentável região da Mina.

Nesse ritmo morno seguirão as viagens para o Oriente e


as possessões portuguesas na África. Uma dessas
viagens seria realizada

por Pedro Álvares Cabral, que zarpou em 1500 de Lisboa


e, antes de tomar o rumo do Oriente para a primeira
grande guerra de conquista que estava planejada, esteve
inexplicavelmente no Brasil em 22 de abril. Teria sido por
alguma espécie de missão secreta?

Entre os dez anos que separam o acontecimento de


1488, a descoberta do cabo da Boa Esperança, com a
viagem de Bartolomeu Dias, e o acontecimento de 1498,
quando Vasco da Gama chegou ao Oriente, certamente
houve viagens secretas. A favor dessa tese pesa o
seguinte argumento: não haveria nenhum sentido –
sobretudo no caso do caminho do Oriente – para esse
intervalo de dez anos.

Qual o sentido de Portugal ter, enfim, descoberto o mapa


da mina de ouro e tratado dessa questão com desdém? É
evidente que se armaram viagens, mas, dada a
importância estratégica que tinham, elas foram mantidas
em segredo. Se essas viagens foram de alguma forma
documentadas, esses documentos jazem escondidos até
hoje em algum arquivo secreto ou simplesmente ainda
desconhecido.

Assim como entre a viagem de Colombo em 1492 e a


viagem de Cabral em 1500, certamente houve viagens
secretas, ocasiões em que o Brasil havia, sim, sido
descoberto – ou visitado – por frotas portuguesas antes
de 1500. O misterioso marco de pedra português fincado
numa praia do Rio Grande do Norte pode ser um sinal
disso.

Essas viagens não foram documentadas por motivos


estratégicos, sobretudo numa época em que divulgados
os feitos de Colombo, com a expulsão dos judeus de
Espanha e Portugal, estimularam-se novas parcerias
comerciais. E o resultado direto foi a intensificação da
pirataria, de tal modo que o oceano Atlântico se tornou
palco do mundo ocidental e, consequentemente, virou
terra de ninguém.

A pirataria era uma forma de os países entrarem na onda


da expansão comercial e marítima no oceano Atlântico,
sobretudo no Atlântico Norte e no Mediterrâneo, sem se
envolverem em guerras.

Os piratas, embora tivessem obviamente suas origens,


suas nacionalidades e atuassem veladamente como
espiões e agentes de seus países, para todos os fins
atuavam como apátridas, ou seja, agiam por si mesmos.
Foi intensa a pirataria tanto no Atlântico como A
misteriosa viagem de Pedro Álvares Cabral ao Brasil 107

no Mediterrâneo, por ali agiram biscainhos, bretões,


normandos, flamengos e ingleses.

Um dos objetivos da viagem de Cabral foi o de procurar


dar algum caráter oficial à frágil posse das terras do
Brasil. Diante das ameaças de invasores estrangeiros, o
rei da França, Francisco I, chegou a dizer que o sol
brilhava para todos e que desconhecia

“[. .] a cláusula do testamento de Adão que dividiu o


mundo entre portugueses e espanhóis”.2

É claro que para quem havia acabado de fincar os dentes


nas veias mais suculentas do mercado internacional – o
caminho para as Índias e para o Oriente – o
descobrimento do Brasil não passou de um
acontecimento secundário. Desse modo, ao longo dos
primeiros cinquenta anos, pode-se dizer que houve certo
abandono em relação à nova descoberta.

O anúncio do descobrimento do Brasil aconteceu num


momento de euforia em Portugal com a descoberta
quase concomitante do caminho para as Índias. Portugal,
assim como a maioria dos países europeus, tais como a
França, a Inglaterra, os Países Baixos e a Espanha, estava
em busca de produtos para serem comercializados e de
mercados consumidores. Tudo que estivesse, portanto,
centímetros fora desse círculo de ação era prontamente
descartado.

Nesse sentido, o cenário encontrado no Oriente era


paradisíaco, vicejava ali uma civilização que praticava
um comércio intenso desde a mais longínqua
antiguidade. A Estrada Real Persa, com mais de dois mil
quilômetros, e as rotas da seda e das especiarias, por
exemplo, conectavam lugares como China e Península
Arábica, separados por mais de sete mil quilômetros. No
Brasil, muito distante dessa realidade, os portugueses só
encontraram índios que viviam num estado de natureza.
Praticamente nada produziam, nada vendiam, nada
compravam. Para o comércio, a terra era, portanto,
imprestável. A princípio, uma decepção enorme. Assim
como havia sido, oito anos atrás, a chegada de Colombo
à América.

É com esse espírito impaciente, num cenário


decepcionante, que se deram os primeiros contatos entre
portugueses e naturais 108

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

da terra. Certa madeira que vertia uma tinta vermelha,


muito parecida com a produzida por certo corante vindo
da Índia, foi a única possibilidade de negócio que de
imediato prospectou o treinado faro dos portugueses.
Percebeu-se que a viagem não havia sido de todo
perdida. Num contato subsequente, no entanto, dentro
do navio, onde se encontrava Pedro Álvares Cabral, com
um natural da terra, foram trocados vários presentes. O
índio tocou num longo colar de ouro do comandante num
sinal de que aquele material não lhe era estranho.
Questionado, fez sinais apontando para o colar e o
continente, como se quisesse dizer que na terra se
poderia encontrar ouro.

Para a esmeralda, o diamante e tudo o mais que para ele


mostraram em matéria de pedras e metais preciosos, o
índio sinalizou que havia na terra. Aquele indígena, sem
pronunciar uma palavra em português, começava a falar
a linguagem daqueles homens e confirmava as primeiras
impressões de Colombo sobre o potencial da América.
Mas não era esse o objetivo principal da viagem de
Cabral ao Brasil, havia outro.

Em 1500, as relações na Europa estavam deterioradas e


se dete-riorariam ainda mais – em todos os aspectos:
econômico, político e religioso. Nesse sentido, a
descoberta de um novo mundo foi providencial num
momento em que forças colossais se digladiavam.

Com o casamento, em 1496, de d. Manuel e Isabel de


Castela, o furor da expansão comercial e marítima
portuguesa declina vertiginosamente. A aproximação
com a Espanha e com a Igreja vai colocar em risco o
projeto português. Os judeus já tinham sido expulsos da
Espanha em 1492, como vimos. Em Portugal, a proposta
de expulsão seria objeto de um intenso debate no âmbito
do conselho do rei. Houve uma tentativa de dissuasão
para que o rei d. Manuel declinasse da ideia de expulsar
os judeus, mas aqueles que tentaram foram voto
vencido. Segundo Damião de Góis:

“D. Manuel resolveu fazer o mesmo em Portugal – a


expulsão de mouros e judeus –, mas como o negócio era
de qualidade, para ele não tomar decisão sem bom
conselho, ouve sobre este assunto A misteriosa viagem
de Pedro Álvares Cabral ao Brasil 109
vários pareceres. Porque uns diziam que, pois o papa
consentia a esta gente em todas as terras da Igreja,
permitindo-lhes viverem em sua lei e que o mesmo fazia
todos os príncipes e repúblicas da Itália, Hungria,
Bohemia e Polônia o que se podia cuidar que não faziam
sem causa, a cuja imitação em toda Alemanha e outros
reinos e províncias de cristãos os deixavam também
viver que causa haveria para os lançarem fora do reino,
que não repugnasse com a razão que essas outras
nações tinham, porém o consentiram e que, além disto,
por lançá-los da terra nem por isso lhes davam azo de
nas alheias se tornarem cristãos, mas antes se fossem
para mouros, se perdia de todo a esperança de nenhum
se converter e que muitos deles vivendo entre nós,
movidos de nossa religião de bom se podia deles esperar
que fizessem e que havia ainda nisso outros
inconvenientes, porque além dos serviços e tributos que
o rei perde, ficava obrigado a satisfazer as pessoas a que
ele e os reis passados deles fizeram mercê e que não tão
somente levavam consigo da terra muitos haveres e
riquezas, mas ainda o que era mais de estimar, levavam
fortes e delicados espíritos com que saberiam dar aos
mouros os avisos que lhes é necessário fossem contra
nós e sobretudo lhes ensinariam seus ofícios mecânicos,
em que são muito destros, principalmente no fazer das
armas, do que se poderia seguir muito dano, trabalhos e
perdas, assim de gente como de bens a toda a
cristandade. Este foi o parecer e alguns do conselho o
repugnaram dizendo que bem era verdade o que diziam,
mas que os reis de França, Inglaterra, Escócia,
Dinamarca, Noruega e Suécia, como muito outras
províncias vizinhas a estas e todo o Estado de Flandres e
Borgonha não lançaram os judeus dentre si muitos anos.
Quando vissem tempo oportuno abriram as asas da
tirania e debaixo de cor dos católicos nos fazer o mal e
dano que pudessem [. .] perder todos os proveitos e
tributos que desta gente tiravam e pôr o inteiro na fé de
deus e na sua Santa Sé, por que ele dobraria com suas
mercês. A determinação era a de que lançasse fora do
reino aqueles que não quisessem receber a água do
batismo e crer no que crê a Igreja católica cristã.
Determinou a conversão e, 110

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

desse modo, se assinou a notificação destes negócios


que os judeus fossem do reino, com suas mulheres e
filhos aos quais o rei limitou a todos o tempo certo e
nomeou portos seus de seus reinos para suas
embarcações.”3

A princípio o propósito era o de expulsar todos ou


submetê-los à conversão, mas como ninguém quis se
converter, ao contrário do que imaginavam os
conselheiros do rei, com seus bolsos vazios e a fonte de
riquezas esvaindo-se, eles adotaram um desesperado
plano B, que era o confisco dos filhos até treze anos –
diga-se sequestro, em verdade – para forçar a conversão,
pois que nenhum pai judeu iria partir deixando os filhos.
Assim, manteriam assegurada a principal fonte de renda
de uma classe totalmente parasitária.

Segundo os relatos da época: “[. .] muitos dos judeus


naturais do reino e dos que entraram de Castela
tomaram a água do batismo e os que não quiseram se
converter começaram logo a negociar as coisas que lhe
convinham para sua embarcação no tempo que o rei, por
causas que a isso moveram ordenou que em um dia
certo lhes tomassem a estes os filhos e filhas de idade de
treze anos para baixo e se distribuíssem pelas vilas e
lugares do reino onde a sua própria custa mandava que
os criassem e doutrinassem na fé de nosso salvador
Jesus Cristo e isso concluiu o rei com seu Conselho de
Estado [. .] aos mesmos judeus fez fiar tanta crueza esta
mesma lei natural que muitos deles mataram os filhos
afogando-os e lan-

çando-os em poços e rios e por outros modos querendo


antes vê-los acabar desta maneira que não apartá-los de
si sem a esperança de os nunca mais ver. E pela mesma
razão muitos deles mataram a si mesmos enquanto
essas execuções se faziam. O rei mandou fechar os
portos e mandou-os todos embarcarem em Lisboa onde
se juntaram mais de vinte mil almas e com essas
delongas lhes passou o tempo que lhe o rei limitou para
sua saída pelo que ficavam todos cativos, os quais se
vendo em estado tão mísero cometeram muitos deles
por parte do el-rei que lhes tornassem seus filhos e lhes
pro-metessem que em vinte anos se não tirassem sobre
eles devassa e que se fariam cristãos o que el-rei lhes
concedeu com outros muitos A misteriosa viagem de
Pedro Álvares Cabral ao Brasil 111

privilégios que lhes deu e aos que não quiseram ser


cristãos mandou logo dar embarcação quitando-lhes o
cativeiro em que incorreram e se passaram todos à terra
dos mouros.”4

De certa forma a nobreza portuguesa condicionava a


continuidade da expansão marítima à capitalização do
reino. Não por acaso, depois desse expurgo dos judeus e
do confisco de seus bens, d. Manuel viabiliza a viagem de
Vasco da Gama em 1497. Nunca foi, portanto, uma mera
questão religiosa, mas, antes, uma questão financeira.

Nesse sentido, até que ponto também a viagem de


Cabral não estava intrinsecamente ligada à questão
judaica, já que em 1496
eles haviam sido expulsos de Portugal? A viagem foi
financiada pelo banqueiro judeu Marchionni, que depois
de sondar o Brasil iria para as Índias. Cabral havia
nascido em Belmonte, uma região judia, e teria convivido
de perto com os saberes cabalísticos da Sinagoga de
Belmonte. Essa comunidade judaica era famosa em
Portugal pelas livrarias especializadas em cabala e
alquimia. Isaac Abravanel, rabi-mor do reino e
conselheiro particular de d. Afonso V, tentou, em 1492,
demover os reis católicos da Espanha da ideia de
decretar o édito de expulsão dos judeus.

Em meio à frota de onze navios que seguiria o recém-


descoberto caminho do comércio das Índias, a viagem de
Cabral ao Brasil teria apenas o caráter de uma sondagem
secundária. Duas necessidades se colocaram na época
em Portugal, e o Brasil era uma solução para ambas: a
questão da expulsão dos judeus em 1496 e a
necessidade de expansão da produção do açúcar, que
deveria ser replicada nos mesmos moldes das ilhas da
Madeira e dos Açores.

Talvez por isso o Brasil pouco apareça nas crônicas


portuguesas, devido a ser um território completamente
irrelevante no contexto da expansão comercial e
marítima. Não estivesse na rota para as Índias, não
existisse a demanda dos judeus, a necessidade da
produção do açúcar e a oferta do trabalho escravo, o
Brasil ficaria por muito tempo completamente desabitado
e abandonado. Na crônica do rei d. Manuel, das
seiscentas páginas o cronista reserva apenas uma ou
duas para falar do Brasil, quando na verdade se refere à
segunda 112

O livro obscuro do descobrimento do Brasil


viagem para as Índias. Diz ele: “[. .] el-rei determinou
mandar à Índia uma armada de treze velas e deu a
capitania a Pedro Álvares Cabral e foi com ele como
capitão, entre outros, Bartholomeu Dias, que descobriu o
Cabo da Boa Esperança. Essas naus mandou el-rei
aparelhar de todas as coisas necessárias para fazer
guerra porque já sabia que haviam de ter disto
necessidade pelos negócios que aconteceram a Vasco da
Gama tanto na Índia como na Etiópia na qual iam mil e
quinhentos soldados. [. .] Em 9 de março de 1500

partiram e no dia 14 chegaram nas Canárias e em 22 de


março passaram pela ilha de Santiago, a partir daí
viajando para oeste no dia 22 de abril avistaram terra
que pelo rumo em que jazia não ser nenhuma que até
então eram descobertas.”5

Nas crônicas de d. João III não há uma linha sequer sobre


o assunto.

Não por acaso, para os portugueses o Brasil vai ficar


abandonado porque as demandas das Índias eram
prementes. A nova terra só despertará interesse quando
do acirramento da guerra religiosa na Europa, após a
Reforma Protestante – a Inquisição foi instaurada em
Portugal em 1536. E em 1534 Portugal já havia instituído
no Brasil o regime de capitanias hereditárias, justamente
para criar territó-

rios – como no caso da ilha da Madeira – onde pudesse


acomodar a comunidade judaica. As capitanias serão
doadas, sobretudo, para judeus e para a produção de
cana-de-açúcar.

Mas não era só isso, a viagem de Cabral ao Brasil tinha


ainda outro aspecto secreto. Para se compreender a
visita de Cabral ao Brasil, para além da demanda dos
judeus, é preciso atentar para um detalhe que muito
poucos sabiam no final do século XV: que o Brasil estava
na rota das Índias. A rigor, não se poderia ir às Índias, ao
oceano Pacífico, à costa oriental da África e ao mar
Vermelho sem antes vir ao Brasil.

Simples assim. Desse modo, o Brasil fazia parte, desde


pelo menos 1488, de um segredo – conhecido apenas por
um priorado formado por intelectuais, navegadores,
religiosos e o rei d. João II – que era a chave para a
expansão comercial e marítima portuguesa, tendo por
isso o seu descobrimento permanecido oculto até 1500.

A misteriosa viagem de Pedro Álvares Cabral ao Brasil


113

O Brasil, que para os interesses da época era


insignificante, teve uma sorte rara: a de estar na rota do
único caminho possível para as Índias. Ao contrário do
que se podia imaginar na época, que o único caminho
possível era bordejando a costa ocidental africana, logo
se descobriu que na costa do Brasil corria, e corre ainda
hoje, uma combinação de correntes e ventos que permite
a navegação no Atlântico Sul, a chamada volta do mar.

Os primeiros navegadores descobriram essa volta por


acaso, pois a partir de Cabo Verde uma espécie de
parede, de domo, impedia o avanço para o Atlântico Sul.
A partir dali, era preciso se deixar levar para o alto-mar
no sentido oeste. No período do Tratado de Tordesilhas
era óbvio que Portugal sabia do Brasil e do regime das
correntes e que pelo tratado anterior – o de Alcáçovas – a
rota para as Índias ficaria em território espanhol, daí a
revisão no Tratado de Tordesilhas logo após a viagem de
Colombo, que teria confirmado para d. João II a
existência de tais correntes.

Com o Tratado de Tordesilhas, de 1494, Portugal ficava


com quase nada do território do Brasil. A linha divisória
passava pela cidade de Laguna, em Santa Catarina, e
Belém, no Pará, o que reservava para Portugal apenas a
região litorânea do Brasil. Mas o que interessava para
Portugal – e isso ele conseguiu assegurar – não era
realmente o território, mas, sim, o mar. Se alguém
aventasse essa possibilidade na época certamente seria
tachado de louco. Somente em 1750, quando as Índias já
não eram mais aquela coisa toda e com a descoberta de
ouro no Brasil, é que, com o Tratado de Madri, se vão
alargar os limites do Tratado de Tordesilhas.

Portanto, no fim do século XV e início do século XVI,


navegando a vela, ao sabor do vento e das correntes,
podia-se afirmar que “[. .] o caminho que ligava dois
pontos da superfície do globo não era o
geometricamente mais curto, mas aquele por onde as
correntes seguiam, ou podiam ser aproveitadas. Por isso
o seu conhecimento, que tantas vidas e dinheiro custou,
envolvia naturalmente um certo segredo”.6

114

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

Se você soltar um barquinho de papel na altura de Cabo


Verde, ele será levado pelas correntes e vai certamente
chegar ao Brasil.

Assim como as correntes das Canárias, que haviam


levado Colombo para a América e provado que,
navegando a vela, era impossível qualquer outra rota.
Não era uma vontade humana, era um dado da natureza.
Não era Deus, não era magia, não eram as bulas papais,
era ciência. Era o conhecimento, que foi desenvolvido
por séculos, das regras do mundo natural ao qual se
chega por meio da compreensão da natureza, pela
multiplicação e difusão do saber. Da mesma forma que a
Inglaterra, mais tarde, faria fortuna com a Revolução
Industrial

– por meio do saber, das ciências, do escrutínio da


natureza, do desenvolvimento de máquinas, da química
etc.

A volta do mar pelas correntes oceânicas exige que no


caminho para a África, atravessando o cabo da Boa
Esperança, se passe muito próximo da costa do Brasil,
perto de Fernando de Noronha. Diversos navegadores
reportaram o avistamento de terras nas viagens.

Bartolomeu Dias, em 1488, viajou em janeiro e fevereiro


e enfrentou fortes tormentas – não por acaso apelidou o
cabo de cabo das Tormentas. Já Vasco da Gama viajou
em julho e encontrou-o mais pacificado. Essas condições
para a navegação explicam a breve passagem de Cabral
pelo Brasil, ou seja, uma parada estratégica no caminho
das Índias para sondar o território e esperar o melhor
momento para seguir viagem.

A forma mais segura de se chegar às Índias era,


portanto, cortando o Equador entre seis e oito graus
oeste entre os meses de abril, maio e junho, quando os
ventos e correntes facilitavam a viagem.

Por isso, a viagem de Cabral em pleno abril, por isso


também foi na frota de Cabral o experiente Bartolomeu
Dias, o homem que primeiro navegou a volta do mar e
que morreria num naufrágio nessa viagem.

Como se pode ver, não foi um descobrimento acidental,


ao acaso, o Brasil não apareceu simplesmente no meio
do caminho entre Portugal e o seu paraíso particular.

A misteriosa viagem de Pedro Álvares Cabral ao Brasil


115

O BRASIL NO OLHO DO FURACÃO

Está evidente que o interesse e a colonização do Brasil


não foram acontecimentos que se deram bruscamente,
mas, sim, aos poucos, na medida em que, de um lado, o
comércio de Portugal com as Índias e com a Europa vai
se intensificando e, de outro, com os problemas internos
de Portugal – sobretudo religiosos – se agravando. Da
terra em si, pode-se dizer que já se tinha notícias de sua
existência desde as primeiras viagens de Colombo à
América e até mesmo antes disso. O Brasil já era
conhecido desde a Idade Média e constava em diversos
mapas como, por exemplo, no Portulano Mediceo
Laurenziano de 1351, em que consta o nome Brazil; no
Mapa de Pizzigano, de 1367, consta o nome Braçir; no de
Andrea de Bianco e Fra Mauro, entre 1457 e 1459, como
vimos, Berzil; e no de Benincasa, de 1482, Braçill.

Não por acaso desde as primeiras horas Portugal buscou


assegurar sua posse pelo Tratado de Tordesilhas. Com
Cabral, como vimos, se dá apenas um contato superficial
com a terra. Mas quando Cabral chega ao Brasil, já
existia em Portugal, pelas razões que acabamos de ver,
as questões do judaísmo e do açúcar, ou seja, uma

determinação de futuramente incluir o Brasil no campo


de ação daquela que seria a primeira multinacional da
história.

Por isso, paralelamente à exploração dos produtos das


Índias, em 1503, d. Manuel I fez mais uma tentativa de
sondar o território, e recebeu uma carta de Américo
Vespúcio com a desalentadora notícia de que para o
comércio a terra era realmente – como já havia reportado
Cabral – imprestável: “Pode-se dizer que nela não
encontramos nada de proveito, exceto infinitas árvores
de pau-brasil.” Essa foi a única possibilidade de negócio
que o treinado faro dos portugueses conseguiu
prospectar no Brasil. É

óbvio que comparado às Índias, isso não era realmente


nada. O

fato é que o próprio comércio com as Índias ainda era


incipiente no início do século XVI e o domínio de Portugal
vai se impondo aos poucos no comércio entre o mar
Vermelho, a África e a Índia.

Imposição que se deu mediante muitas guerras que só


aos poucos foram redundando em dominação
portuguesa. Guerras que custavam muito caro, pois não
era só a conquista, mas a defesa, que onerava muito os
negócios.

Entretanto, passadas as guerras contra os mouros,


Portugal consegue estabelecer o monopólio no Oriente,
no norte da Europa e até mesmo no Mediterrâneo,
outrora território sagrado de venezianos e genoveses. Só
seria traído mesmo, mais tarde, pelo tamanho do seu
império, ou seja, seria devorado pelo monstro que ele
próprio criou e alimentou, que não teve condições de
eliminar quando preciso.
Envolvidos, portanto, inicialmente com a guerra e o
comércio no Oriente, a ideia de povoar a América não
ocorre nem a portugueses nem a espanhóis. Ao
contrário: “É o comércio que os interessa, e daí o relativo
desprezo por este território primitivo e vazio.”1 Em
verdade, a América com que se depararam, sobretudo os
espanhóis, como vimos no caso de Colombo, “não foi
para eles, a princípio, senão um obstáculo oposto à
realização de seus planos e que devia ser contornado”.2
Quanto a Portugal, significou somente a esperança de
um verdadeiro “negócio da China” em terras americanas,
mas esse negócio demoraria um pouco para começar – e
faria com que O Brasil no olho do furacão

117

fossem desviados “recursos de empresas muito mais


produtivas no Oriente”3 e não se despojassem
completamente de suas posses de além-mar.

Desse modo, completamente desinteressado e com


muito custo, o rei consegue alguém para tocar, digamos,
esse a priori “péssimo negócio”. Dessa maneira, e não
por acaso, uma joint venture formada pelo comerciante
judeu Fernando de Noronha e pelos banqueiros alemão e
florentino, Jacob Fugger e Bartolomeu Marchionni,
assumiu o negócio. Fernando de Noronha era sogro de
Cabral, que havia se casado com a filha de Noronha, d.
Isabel de Castro, logo que chegara daquela sua viagem
às Índias, na qual havia “descoberto” o Brasil.

O Brasil era naquele momento, para Portugal, importante


e desimportante ao mesmo tempo, e por isso mesmo
ficaria em stand by até que algo acontecesse. Para
Portugal, o caminho para as Índias, estruturado e
sistematizado, significava o caminho para o paraíso. Isso
porque, embora inicialmente não tivesse conseguido
estabelecer seu monopólio, ao menos dominava todo o
Atlântico Norte, de modo que “triunfou sem dificuldades
na parte atlântica do continente europeu: nos Países
Baixos, já desde 1501; na Inglaterra, desde janeiro de
1504, com a chegada a Falmouth de cinco navios
portugueses com um carregamento de 380 toneladas de
pimenta e especiarias de Calicute. Se introduziu também
na baixa e na alta Alemanha a poderosa casa de Anton
Welser e Konrad Vöhling, de Augsburgo, se volta em 1503
para o sol nascente de Lisboa; a Magna Societas de
Ravensburgo se decide, em 1507, a fazer suas compras
de pimenta e especiarias em Antuérpia, estação de
trânsito do mercado português”.4

Menos de uma década depois, o comércio português já


dominava outras praças, inclusive penetrando no mar
Mediterrâneo, palco antes exclusivo dos mercadores
venezianos, de modo que estes passaram a não
encontrar mais especiarias, mas particularmente
pimenta, nos portos de Alexandria e Beirute, seus
antigos fornecedores. O monopólio português chega a
um ponto tal que, a partir de 1515, Veneza – uma das
maiores potências comerciais e 118

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

econômicas do mundo – passa a comprar de Lisboa a


pimenta que necessitava para consumo interno e em
1527, a situação de Veneza se mostrava tão precária que
“o senado veneziano propõe ao rei de Portugal, d. João III,
comprar-lhe toda a pimenta que chegava a Lisboa,
separando a parte necessária para o consumo dos
portugueses. O projeto não prosperou, mas demonstra a
marcha triunfal do mercado de Lisboa”.5
Essa situação de monopólio, no entanto, que foi
extremamente rentável no início, não vai se sustentar
por muito tempo, sobretudo por causa do “fogo amigo”,
ou seja, a corrupção – como veremos –

praticada pelos próprios encarregados locais


portugueses. Por estar na contramão de certo liberalismo
econômico que acabava de surgir no horizonte, Portugal
será atacado por todos os lados, e essa situação não
demorará muito para implodir. São dois os motivos
principais.

A viagem muito longa acarretava problemas insolúveis, o


primeiro: a perda da qualidade do produto – o aroma –
por conta dos longos meses de viagem; o segundo – uma
questão econômica – obrigado a cobrir os custos da
viagem e das perdas, pois a longa rota pelo cabo da Boa
Esperança era extremamente onerosa, Portugal ficava
com um custo de operação alto e não conseguia
compensar isso no preço final dos produtos – que
acabavam sendo comercializados a preços baixos. Ou
seja, a conta começou a não fechar!

O comércio do Mediterrâneo – veneziano e genovês –,


embora cambaleante e extremamente precarizado pelo
avanço português, continuava. Ao contrário do modus
operandi português, o do Mediterrâneo, “com sua
espessa rede de intermediários, com seus trajetos mais
curtos e bem explorados havia muitos séculos, envolvia
menores contratempos e irregularidades. Para os
venezianos, o risco se reduzia ao da travessia do Egito, e
era compensado por muitos benefícios, em vista das
enormes diferenças de preço entre o Oriente e o
Ocidente”.6
Essa diferença fazia com que Veneza pagasse preços
melhores, o que, óbvio, atraía o comércio novamente
para o Mediterrâneo, aumentando – ato contínuo – em
muito a prática do contrabando O Brasil no olho do
furacão

119

e, consequentemente, a sistemática sabotagem do


monopólio português que acabou por se mostrar cada
vez mais frágil.

A fragilidade do império português vinha não só dos


produtores que lutavam contra o monopólio português e
incentivavam o descaminho, mas das fraudes praticadas
pelos próprios funcionários portugueses, pois: “A
presença portuguesa, que tão rapidamente se havia
estendido por uma imensa área, através do Oceano
Índico e mais além, é a causa, não só, da necessidade de
criar tráfegos inter -

-regionais, sem falar também do espírito de aventura e


do lucro, havia culminado na criação de um império
imenso e frágil. Por si mesmo, Portugal não era bastante
rico para manter essa vasta rede, suas fortalezas, suas
custosas esquadras e seus funcionários. O

império tem que alimentar-se sempre do império. Esta


inferioridade financeira converteu rapidamente os
portugueses em aduaneiros, porém as aduanas são
proveitosas somente na medida em que passam por elas
torrentes de preciosas mercadorias. Nestas condições, a
fraude, ou o que podemos chamar de fraude, encontrou
campo fértil [. .] fonte da corrupção dos funcionários
portugueses, ansiosos de enriquecer-se o mais
rapidamente possível e surdos às ordens que mesmo de
muito longe lhes dava seu governo.”7

Essa foi uma realidade própria do capitalismo português


que vai ser cada vez mais comum nesse período, pois
era impossível fiscalizar todo o império. Esse efeito vai
ser comum também – só que muito mais tarde – no
Brasil, como é possível acompanhar pelas inúmeras
denúncias do padre Antônio Vieira, quando do Brasil
reclamava ao rei de Portugal dizendo que:

“Nem os reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os


ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar
consigo os reis [. .]

em vez de os reis levarem consigo os ladrões ao Paraíso,


os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno [.
.]. O pirata do mar não rouba aos da sua república; os da
terra roubam os vassalos do mesmo rei, em cujas mãos
juraram homenagem; do corsário do mar posso me
defender; aos da terra não posso resistir; do corsário do
mar posso fugir; dos da terra não me posso esconder; o
corsário 120

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

do mar depende dos ventos; os da terra sempre têm por


si a mon-

ção [. .]. Navegava Alexandre em uma poderosa armada


pelo mar Eritreu a conquistar a Índia. E como fosse
trazido à sua presença um pirata que por ali andava
roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre
de andar em tão mau ofício. Porém, ele, que não era
medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que
eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós,
porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim
é: o roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza. O
roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com
muito, os Alexandres.”8

O altíssimo nível do descaminho a que estava sujeito o


monopólio português foi possível de ser averiguado pelo
estranho fluxo de mercadorias nos portos de Alexandria.
Sobre isso mandavam notícias a Portugal seus agentes,
interlocutores e informantes, que diziam: “Em Lisboa,
onde chegavam em abundância notícias tanto
verdadeiras como falsas, se instaurou imediatamente
certa inquietude. Se soube que, naquele mesmo ano de
1561, os turcos, como se a corrente natural do tráfico até
seus portos não fosse suficiente, haviam se apoderado
no oceano Índico de vinte mil quintais de pimenta
portuguesa, dirigindo-os, consequentemente, para
Alexandria. Imediatamente correu o rumor de que o vice-
rei das Índias portuguesas havia se levantado contra seu
soberano e havia despachado ao Egito a pimenta das
frotas reais. Segundo os dados de seus informantes, o
embaixador português em Roma, expert nestes
problemas, deduziu em novembro de 1560 que, em vista
da enorme quantidade de pimenta e especiarias que
chegavam a Alexandria, nada tinha de estranho que
afluísse uma quantidade tão exígua desses produtos a
Lisboa. O embaixador francês em Portugal, Nicot, se
regozijava abertamente dele em abril de 1561: se esse
trânsito pelo Mar Vermelho se impõe, os armazéns do rei
de Portugal se verão muito desabastecidos, que é a coisa
que ele mais teme, e para impedir tal descaminho, muito
estão combatendo suas armas. O que se temia, o que se
esperava, era quase uma revolução econômica.”9

O Brasil no olho do furacão

121
Desse modo, com esses imensos problemas internos –
que, aliás, serão a tônica de toda a queda do império
português –, a realidade foi aos poucos se impondo sobre
o sonho do enriquecimento e as longas viagens foram
tornando a rota para as Índias cada vez mais onerosa e
contraproducente.

Ao passo que mantinha a assiduidade da navegação e do


comércio com o Oriente, Portugal foi também,
astutamente, desenvol-vendo o comércio de novos
produtos na costa ocidental da África.

O primeiro deles foi a cana-de-açúcar, cuja produção


havia sido implantada nos arquipélagos da Madeira e dos
Açores, como vimos, já no início da expansão. O açúcar
era produzido por engenhos particulares e Portugal tinha
o monopólio do comércio. À medida que a demanda pelo
açúcar aumenta nos principais centros europeus,
aumenta também a demanda pela produção, que exigia
cada vez mais terras cultiváveis e mão de obra.

O açúcar da Madeira e de outras ilhas do Atlântico no fim


do século XV que era exportado todos os anos, de acordo
com os dados oficiais, tinha a seguinte dimensão: 40.000
arrobas de açúcar portuguesas para Flandres; 7.000
arrobas para a Inglaterra; 6.000 arrobas para Livorno;
13.000 arrobas para Gênova; 2.000

arrobas para Roma; 15.000 arrobas para Veneza; e


25.000 arrobas para Constantinopla e Quíos. Como se
pode ver, não era qualquer coisa, esse mercado já
representava uma boa parte do faturamento português.

A necessidade de terras se encontrava relativamente


resolvida com a descoberta recente do Brasil – que
estava nesse período arrendado para o grupo de
Fernando de Noronha. Já a necessidade de mão de obra,
no entanto, abriu para Portugal a oportunidade do maior
negócio de sua vida: o comércio de escravos. Com o
tempo este se tornaria mais lucrativo do que o próprio
comércio do açúcar e infinitamente mais lucrativo que o
comércio com o Oriente.

A colonização do Brasil se dará só e tão somente na


medida em que se criam as condições favoráveis e se
ampliam os interesses dos portugueses na produção de
açúcar e no comércio de 122

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

escravos. Apenas a partir dessa condição é que se desvia


para as terras da América o interesse português e o
consequente esforço de ocupá-las permanentemente.
Sem esse upgrade no comércio do açúcar, as terras
brasileiras provavelmente permaneceriam arrendadas ad
infinitum.

Com esse impulso colonizador no Brasil, Portugal queria


fazer multiplicar o seu empreendimento que era
composto por dois polos complementares: um de
“produção” de escravos na África e outro de “consumo”
de escravos situados nos arquipélagos portugueses –

Madeira e Açores – e no Brasil. A partir desse momento, o


grande negócio dos portugueses não vai ser mais as
especiarias das Índias, mas o monopólio do negócio com
açúcar e com escravos.

Esse esquema foi, de certa forma, imposto aos poucos


aos portugueses pelas próprias circunstâncias e não foi
algo planejado. À
crise do monopólio dos produtos das Índias somaram-se
os caprichos impostos à navegação pela volta do mar, e
ambos criaram a ocasião propícia para a implantação do
cultivo de cana-de-açúcar e da produção de açúcar no
Brasil. Além, é claro, do aumento da demanda e da
questão judaica, como vimos.

Esse pragmatismo português vai selar o destino do


Brasil, pois de território abandonado passará a
representar uma conexão importante no intricado e
sofisticado modelo de negócio intercontinental
desenvolvido por Portugal no início do século XVI. O
destino do Brasil é, portanto, determinado pelo simplório
fato da volta do mar. Essa condição natural determinou a
colonização do Brasil e a consequente produção do
açúcar, que trouxe consigo a escravidão.

Lisboa foi um grande entreposto de escravos que


chegavam de diversas regiões da África. Tudo começava
em Lisboa, de onde os navios que seguiam em direção às
Índias deixavam os escravos na costa do Brasil,
carregavam alguma mercadoria – açúcar e aguardente –
e seguiam viagem. Nas Índias carregavam e na volta,
bordejando a costa ocidental da África, iam trocando
produtos por escravos, de porto em porto das possessões
portuguesas até chegar a Lisboa. Esse é o círculo que
gira no Atlântico Sul e que resume o O Brasil no olho do
furacão

123

comércio ultramarino português. Em pouco tempo, o


comércio de escravos vai se tornar mais importante que
as próprias especiarias por um motivo muito simples: ao
contrário das especiarias, os escravos saíam para os
portugueses praticamente de graça porque eram
trocados por produtos oriundos do Brasil, que tinham
embutido um alto valor agregado. Somente quando
Portugal descobre que a produção de açúcar no Brasil
demandaria escravos e que o escravo era um “produto”
altamente valorizado é que os portugueses vão, enfim,
descobrir o Brasil.

Mas sabemos que o negócio por excelência do português


era o mar – a aventura, a conquista. Eles eram os
grandes responsáveis pela logística, pelo transporte, pela
distribuição. Esse sempre foi o ímpeto português.
Quando o monopólio português do comércio de
especiarias na Europa entra em crise, os olhos de
Portugal se voltam para o seu velho negócio na costa
atlântica da África. Acostumados, porém, com a riqueza
proporcionada pelo breve monopólio, era preciso criar
algo maior, era preciso monetizar o Brasil.

Mas não nos antecipemos, essa é uma história que ainda


vai acontecer. Por enquanto, outras águas rolavam por
debaixo da ponte.

124

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

OS VERDADEIROS DESCOBRIDORES

DA AMÉRICA: SOLÍS, BALBOA,

GARCIA E MAGALHÃES

Se para Portugal os descobridores do caminho das Índias


e das terras da América foram, respectivamente,
Bartolomeu Dias, Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral,
para os espanhóis foram Juan Díaz de Solís, Vasco Núñez
de Balboa, Aleixo Garcia e Fernão de Magalhães. Esses
quatro senhores fizeram descobertas fundamentais, mas
um deles colocaria a América no centro do mundo.

Se Portugal dominava os ventos e as correntes do


Atlântico Sul, a Espanha dominava como ninguém os
ventos e as correntes do Atlântico Norte. Desse modo,
paralelo ao périplo português, a Espanha seguia seu
caminho particular em busca de um lugar ao sol no
comércio internacional das especiarias. A América com
que Colombo havia topado no meio do caminho e que
havia se apresentado, de início, como um imenso
obstáculo para a realização do sonho espanhol, revelou,
aos poucos, sua auspiciosa realidade, e os responsáveis
por essa guinada foram esses quatro cavalheiros
espanhóis.

Desde a sua primeira viagem à América em 1492,


Colombo imaginava que havia um estreito na linha
equinocial que daria

acesso rumo ao Oriente, e é para encontrá-lo, mais do


que por causa dos tesouros da América, que ele vai se
dedicar em vão por toda a sua vida. Em 1513 – Colombo
morreu em 1506 – uma flotilha comandada por Vasco
Núñez de Balboa vai atracar na América e fará Colombo
sofrer a mesma sina que d. João II, ou seja, a sina de que
quem planta tâmaras não colhe tâmaras.

Vasco Balboa vai submeter uma região ainda pouco


explorada pelos espanhóis a um verdadeiro escrutínio, e
seu espírito aventureiro, seu empenho e sua ousadia
levarão a Espanha ao paraíso sonhado e tocado pela
imaginação de Colombo. Seus diários falam por si: nas
primeiras linhas, Colombo expõe ao rei da Espanha que
havia descoberto o grande segredo dessas terras, onde
havia muitas riquezas e muita quantidade de ouro –
“aqui nos tem fal-tado mais comida do que ouro de que
Vossa Alteza estará muito bem servido”.1

“Meu poderoso senhor”, diz em correspondência ao rei


da Espanha, “o que eu com muito boa indústria, muito
trabalho e com muita sorte descobri é isso: nesta
província de Darién foram descobertas muitas e muitas
ricas minas, há ouro em grande quantidade. Estão
descobertos cerca de trinta rios que têm ouro e que
saem de uma serra que está duas léguas distantes desta
vila. Esta serra vai por esta costa abaixo até o poente.
Subindo um rio grande distante trinta léguas na margem
direita está uma província que tem muita quantidade de
ouro. Tenho notícias muito precisas que tem nesta
província rios muito ricos em ouro. Isso é o que me disse
o filho do cacique daquela província e outros índios [. .]
indo este rio comprido trinta léguas acima pela mão
esquerda entra um rio formoso e longo, indo [rio] acima
dois dias por ele havia um cacique que diz ser Davaive: é
um grande senhor de terra extensa e muito povoada,
tem ouro em quantidade em casa, e tanto que para
quem não conhece as coisas desta terra será bem difícil
acreditar: isso eu sei de fonte segura; da casa desse
cacique Davaive vem todo o ouro que sai por este golfo,
e tudo o que têm esses caciques dessas comarcas, diz-se
que têm muitas peças de ouro de um jeito 126

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

estranho, e muito grandes: dizem muitos índios que


viram, que esse cacique Davaive tem certas cestas de
ouro que precisam ser levadas às costas por um homem:
esse cacique colhe esse ouro porque está afastado da
serra, é o modo como é, que a dois dali há uma terra
muito linda, na qual há uma gente que é muito cruel e
má, comem homens quantos puder haver. Essa é a gente
que está sem senhor e não tem a quem obedecer; é
gente de guerra: cada um vive por si, são senhores das
minas; e são essas minas, pelo que eu soube, as mais
ricas do mundo: essas minas estão em uma terra que
ficam numa serra que é mais alta do mundo, ao que
parece, e creio que nunca se viu outra tão alta; nasce
nos lados de Urabá desse golfo, um pouco terra adentro,
equivalente a vinte léguas marinhas, vai o caminho
dessa serra metendo-se até a parte Sul: é terra extensa,
desde seu começo vai crescendo em grande quantidade,
é tão alta que se cobre de nuvens: há já dois anos
estamos e nunca se viu o alto dela, a não ser duas vezes,
porque é continuamente coberta pelos céus, e assim que
chega à maior altura torna a cair, até ali vai subindo de
grande arvoredo, e dali vão caindo umas cordilheiras de
serra sem nenhum monte, fenecendo na mais formosa
terra do mundo e mais extensa, junto com esse cacique
Davaive: as mui ricas minas estão nessa ponta dessa
terra voltando até a parte do nascer do Sol, o Sol as dá
nascendo; são dois dias de jornada, desde esse cacique
Davaive até essas ricas minas”.2

A serra a que Balboa se refere é a cordilheira dos Andes


e o povo riquíssimo em ouro é o povo inca. “Há outra
maneira de colher ouro, esperar que seque a erva nas
serras e [então] eles ateiam fogo e depois de queimada
vão buscar pelo alto e pelas partes mais dispostas e
colhem o ouro em grande quantidade e em formosos
grãos: esses índios que colhem esse ouro o trazem em
grãos, como o colhem para fundir e o resgatam com esse
cacique Davaive: como pagamento pelo resgate, os
índios jovens recebem o que comer, e índias que servem
a suas mulheres; não as comem; dá-lhes porcos, nessa
terra há muitos; dá-lhes muito pescado e roupa de
algodão e sal, dá-lhes peças de ouro lavradas como eles
quiserem: só com Os verdadeiros descobridores da
América…

127

esse cacique Davaive esses índios têm esse pagamento,


porque em outras partes não há lugar. Esse cacique
Davaive tem uma grande fundição de ouro em casa: tem
cem homens que lavram ouro continuamente; isso tudo
eu sei de fonte segura, porque nunca procuro saber outra
coisa por onde ando; eu procurei sabê-lo de muitos
caciques e índios e também dos vizinhos desse cacique
Davaive, como de outras partes digo ser verdade tudo
[isso], porque eu o soube de muitas maneiras e formas,
dando a uns tormento e a outros amor e a outros ainda
coisas de Castela: considero verdadeira essa notícia, que
indo cinquenta léguas rio acima, pelo San Juan, há
muitas minas ricas, de um lado e outro do rio.”3

Conversando com os naturais da terra, Balboa recebe


uma notícia que era importantíssima para a Espanha – a
da existência de outro mar –, e assim Balboa envia a tão
importante notícia ao rei: “Porque um homem chega até
onde pode e não até onde quer: pelo tanto daquelas
serras vão umas terras muito extensas, vão até a parte
Sul; dizem os índios que o outro mar está a três dias da
caminhada dali; dizem todos os caciques e índios
daquela província de Comogre que há tanto ouro colhido
em peças, na casa dos caciques do outro mar, que nos
fazem estar todos fora de sentido, dizem todos que o
outro mar é muito bom para navegar em canoas, porque
é manso e contínuo, que nunca fica bravo como o mar
deste lado, segundo dizem os índios; eu creio que
naquele mar há muitas ilhas, dizem que há muitas
pérolas em muita quantidade, muito gordas e que os
caciques têm cestas delas, e que também as têm todos
os índios e índias, em geral. Esse rio que vai desse
cacique Comogre ao outro mar antes de chegar lá forma
três braços [de mar] e cada um deles entra por si só no
outro mar; dizem que pelo braço que entra até o poente
vêm as pérolas a resgatar em canoas à casa do cacique
Comogre; dizem que pelo braço que entra até o levante
entram as canoas com ouro por todas as partes, que é
algo inacreditável e sem nenhuma comparação, e pois
dessa terra tão grande e onde há tanto bem há Nosso
Senhor que se fez senhor, [isso] não pode cair no
esquecimento, pois se vossa mui Real Alteza me incumbe
de enviar 128

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

gente eu me atrevo a tanto, mediante a bondade de


Nosso Senhor, de descobrir coisas tão elevadas e onde
pode haver tanto ouro e tanta riqueza, com que se pode
conquistar boa parte do mundo, e se disso vossa mui
Real Majestade assim desejar, para nas coisas que aqui
devem ser feitas, deixe-me vossa mui Real Alteza o
cargo.”4

Balboa arma, por fim, uma expedição para encontrar o


mar do Sul e fundar ali uma vila que pudesse servir de
ponto de apoio para o ataque aos incas. Nessa viagem
“em um mês morreram 700

homens de fome e de enfermidade e de letargia”.5

Para valorizar a expedição e requisitar reforços ao rei da


Espanha para a conquista, Balboa apela para as questões
sobrenaturais: “Havia alguns particulares que se faziam
mestres, que eles chamavam de Tequina e que diziam a
eles que falavam com o diabo, ao qual chamavam em
sua língua Tuira e este tinha uma choça bem pequena,
sem porta e sem cobertura por cima, e ele se metia ali à
noite e fazia de conta que falava com o diabo e mudava
muitas maneiras e tons de falar e dizia ao senhor que a
ele agradava, dizendo que o diabo é que respondia
aquilo. Nessas províncias havia bruxas e bruxos que
faziam muito estrago nas criaturas e ainda muita gente
mais velha por indução do diabo e o diabo lhes trazia
unguentos com os quais se untavam, feitos de certas
ervas. E a maneira como o diabo lhes aparecia era como
um menino bonito, porque sendo essa gente simples,
não se espantassem com ele e acreditassem nele, e as
mãos não se viam e nos pés tinha três unhas, como um
grifo: e a todas que se se tornariam bruxas ele as
acompanhava e entrava com elas na casa que haveriam
de fazer. Finalmente, parece, ao que se diz, que eu fiz
com as bruxas isso e muitas outras coisas, e que se
untavam com o unguento que lhes dava o inimigo,
parecia que iam de corpo e alma. Mas averiguou-se que
certa noite uma bruxa estava em um vilarejo com outras
mulheres e naquela mesma hora a viram em uma
estância onde havia gente de seu senhor, a meia légua
dali.”6

Com a descrição das riquezas, Balboa procurou despertar


o interesse e a cobiça do rei da Espanha. Já com a
descrição dos aspectos mágicos e das heresias daqueles
povos, Balboa procurou despertar Os verdadeiros
descobridores da América…

129

a sanha violenta da Inquisição. Vai conseguir atrair


ambos. Em 1569, Felipe II vai instaurar a Inquisição no
México para cuidar de toda a América espanhola.
Em 25 de setembro de 1513, Balboa avistou o mar e, nos
dois anos seguintes, esforçou-se para conseguir vencer o
território inóspito e chegar ao mar do Sul. Com as
auspiciosas notícias da descoberta do mar e do império
inca, uma conspiração se inicia na Espanha. Balboa foi
acusado de traição e preso pelo novo governador, Pedro
Arias Dávila, ansioso por registrar seu nome para sempre
na história como o grande escrutinador do oceano
Pacífico. Balboa foi decapitado em 21 de janeiro de 1519.
O mandante era Francisco Pizarro. Não era por mero
acaso, pois um dos homens que empreenderam com
Balboa o périplo da descoberta do mar do Sul e que no
caminho havia ouvido as histórias dos reinos ricos em
ouro era justamente Francisco Pizarro, outro também
interessado em tomar para si, como o fez, as glórias da
descoberta.

Essa descoberta de Balboa vai confirmar a intuição de


Colombo quanto à existência de um mar a que chamou
mar do Sul: era o oceano Pacífico. Desde a Idade Média
havia a crença de que se podia chegar ao Oriente
navegando-se pelo Atlântico em direção oeste. Toscanelli
– como vimos – havia sido o maior entusiasta dessa
teoria. A descoberta de Balboa – de outro oceano, do
outro lado daquele continente descoberto por Colombo –
era a confirmação de que aqueles que acreditavam
nesse caminho em direção ao Oriente estavam certos.
Faltava agora encontrar uma forma de contornar o
continente ou encontrar, em meio a ele, uma passagem
para o outro oceano, uma ligação entre o oceano
Atlântico e o Pacífico. Descobrir essa passagem era o
pulo do gato.

A inauguração do canal do Panamá, em 1914, resolveu o


problema que Colombo, Balboa e outros navegadores
espanhóis procuraram responder por décadas. A região
do Darién, no Panamá, é uma faixa de cem quilômetros
que separa os oceanos Pacífico e Atlântico. É por ali que
se escoará o ouro do império inca e a prata de Potosí,
pelo Atlântico.

130

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

A Espanha seguia o seu confuso périplo e atuava em


duas frentes: descobrir a passagem para o mar do Sul (o
Pacífico) e explorar as civilizações americanas. Nesse
sentido, com a morte de Vespúcio, em 1512, o rei da
Espanha nomeia Juan Díaz de Solís Piloto Maior da Casa
de Contratação e ordena-lhe que “Já sabeis quanta
necessidade há nessa Casa de pilotos, de que sejam
especializados nos assuntos de navegação”, repetindo-
lhe as recomendações numa carta escrita em dezembro
de 1513 e concluindo: “Portanto, eu determino que se
alguns pilotos portugueses vierem a esta cidade (de
Sevilha), sejam por vós acolhidos e muito bem tratados,
e que eles sejam instalados da melhor maneira
possível.”7 O rei da Espanha estava em busca de pilotos
portugueses por motivos óbvios: eles eram experientes
na navegação do Atlântico Sul, conhecedores, portanto,
da volta do mar. Ainda assim, não era fácil contratá-los,
por isso as recomendações do rei para que os tratassem
muito bem, o que significava pagá-los muito bem. Isso
porque havia em Portugal penas severas para deserções.
As Ordenações Manuelinas determinavam que:

“defendemos que nenhum piloto, mestre, marinheiro que


nossos naturais forem daqui em diante não aceitem
nenhum partido em nenhuma navegação, nem armada,
que fora de nossos reinos e senhorios se faça, nem vão
nelas de maneira alguma, sob pena se ao contrário
fizerem, e lhe for provado, percam por este mesmo feito
todos seus bens – a metade para nossa Câmara e a outra
metade para quem os acusar – e sejam degredados por
quatro anos porque se é do nosso reino tem bem que
ganhar a vida em nossas armadas e navegações, pois
não há razão que sendo nossos naturais façam em outra
parte as ditas navegações.”8

Mas todas essas limitações não significavam nada diante


da entusiasmada notícia de que a transposição do
continente americano dava acesso ao oceano Pacífico e
ao Oriente. Desse modo, Fernando de Aragão determinou
o envio, em 8 de outubro de 1515, de uma flotilha
comandada por Juan Díaz de Solís para navegar pelo sul
do continente americano até encontrar uma passagem
ou um estreito que lhe permitisse dobrar a última ponta
do continente Os verdadeiros descobridores da
América…

131

para acessar o mar descoberto por Balboa e a cobiçada


rota para o Oriente. A ideia de Solís e de Fernando de
Aragão era, certamente, seguir no continente americano
o mesmo caminho percorrido em 1488 por Bartolomeu
Dias e em 1497 por Vasco da Gama, quando haviam
encontrado a passagem para o Oriente por meio do cabo
da Boa Esperança. Se no continente africano havia a tal
passagem era possível que no americano também
houvesse. A Espanha precisava urgentemente encontrar
uma passagem para o Pacífico, mesmo que navegando
por águas portuguesas, para, enfim, encontrar seu
caminho para as Índias e explorar a costa do Peru, por
onde teria acesso ao império inca, que era, por
enquanto, apenas uma promessa.
Em 9 de outubro de 1515, a expedição de Juan Díaz de
Solís zarpou do porto de Sanlúcar de Barrameda, na
Andaluzia, rumo à América. Era composta por três navios
e contava com três experientes pilotos portugueses:
Henrique Montes, Melchior Ramirez e Aleixo Garcia, entre
outros tripulantes portugueses. Solís navegou por todo o
litoral brasileiro em direção ao sul e, em fevereiro de
1516, chegou ao estuário do rio da Prata.9 A flotilha ficou
fundeada por volta do paralelo 34º e Solís pôde perceber
que, sendo a água dali doce, havia penetrado num
estuário. Tendo navegado pelo rio da Prata e alguns de
seus afluentes, Solís teve contato com alguns grupos de
naturais da terra e, a certa altura, dizem as testemunhas,
virou refém dos índios, que “cortaram sua cabeça, braços
e pés e assaram seu corpo inteiro e o comeram”.10

Essa foi uma descoberta tão importante para o destino


da colonização da América que quem chega ao centro
histórico de Montevidéu, no Uruguai, nota imediatamente
a presença de um prédio imponente: o Teatro Solís,
homenagem, claro, a Juan Díaz de Solís, que foi o
primeiro a explorar o rio da Prata.

Com a morte de Solís, a empreitada foi abortada e na


volta para a Espanha uma nau da flotilha do finado Solís
naufragou no litoral brasileiro. Naufragou ou foi
propositadamente abandonada, isso porque com o
malogro da expedição os pilotos e tripulantes
portugueses ficaram numa sinuca de bico. Se voltassem
para a 132

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

Espanha de mãos vazias, sofreriam certamente uma


punição dos mercadores, armadores e da Coroa
espanhola. Se voltassem para Portugal seriam punidos
por estarem a serviço de outra Coroa.

Desse modo, eles resolveram por bem ficar no Brasil e


iniciaram a exploração do território.

Os pilotos portugueses Aleixo Garcia, Melchior e Montes


passaram a viver com os índios nas costas do atual
estado de Santa Catarina, e nessa espécie de autoexílio,
de autodegredo, com o tempo, familiarizados com os
costumes e sobretudo com o idioma dos naturais da
terra, eles começaram a descobrir informações
preciosas, como, por exemplo, a história sobre a
existência de um poderoso e rico reino no interior da
América do Sul governado por um “rei branco”. Entre
1522 e 1525, Aleixo organizou uma expedi-

ção, que contava com dezenas de índios guaranis. Nessa


viagem, provavelmente na região onde se encontra hoje
o Paraguai, reza a lenda que Aleixo foi morto,
possivelmente comido por canibais.

Aleixo Garcia foi um dos primeiros a penetrar no território


brasileiro e é considerado o terceiro verdadeiro
descobridor da América, o segundo, como vimos, foi
Balboa e o primeiro, Colombo.

Aleixo Garcia empreendeu uma das mais fantásticas


viagens da história. Saiu do litoral do atual estado do
Paraná, subiu até a Foz do Iguaçu, adentrou o atual
território do Paraguai, atravessou a região dos Chacos
entre os rios Pilcomayo e Grande e alcançou a região de
Sucre e Potosí, onde atacou algumas povoações incaicas
e enviou homens de volta com amostras de ouro, prata,
pedras preciosas e auspiciosas notícias. Tudo isso dez
anos antes das incursões espanholas. Pode-se dizer que
Portugal até descobriu primeiro os impérios pré-
colombianos, mas não levou a glória e, é claro, o mais
importante, as riquezas.

Em 1526, uma expedição espanhola liderada por


Sebastião Caboto11 relatou ter entrado em contato com
os sobreviventes da expedição de Solís em território
brasileiro. Eram eles Henrique Montes e Melchior
Ramirez. O primeiro relatou a Caboto que o rio de Solís
(da Prata) deveria nascer em algum lugar onde
abundavam Os verdadeiros descobridores da América…

133

a prata e o ouro, segundo informações levantadas junto


aos naturais da terra, além de ter apresentado amostras
de ouro e prata que traziam consigo. Aleixo Garcia, como
vimos, havia certamente encontrado os reinos que Vasco
Núñez de Balboa tinha ouvido falar na sua longa jornada
em busca do mar do Sul.

Os espanhóis na busca desesperada pela passagem do


Atlântico para o Pacífico atiraram no que viram e
acertaram no que não viram. Ou seja, a descoberta
fortuita do rio da Prata havia saído melhor do que a
encomenda. A notícia de que por meio desse rio seria
possível acessar impérios riquíssimos no interior do
continente americano correu toda a Europa, e a atenção
da Espanha e de todos, é claro, se voltaram,
consequentemente, para o Atlântico Sul e o Brasil, o qual
vai sofrer um minucioso exame por meio de cisões
sucessivas em seu território.

A partir daqui, o que era uma busca desesperada para


contornar o continente comercialmente árido da América
e acessar o Oriente ganha uma nova dinâmica. O
continente americano passa a merecer um pouco mais
de atenção. É a partir das informações obtidas pela
expedição de Aleixo Garcia, em sua entrada triunfal, que
o mundo se volta para a América. É a partir também de
suas informações que Francisco Pizarro vai empreender
sua expedição de conquista do império dos incas e
descobrir, mais tarde, as minas de Potosí na região do
alto Peru, hoje Bolívia.

A descoberta de Aleixo Garcia vai deslocar a atenção da


exploração espanhola da América Central e do México
para a América do Sul. Nesse sentido, começam os
esforços espanhóis para o estabelecimento de cidades e
povoações na embocadura do rio da Prata.

Fundou-se ali, por exemplo, o que ficou conhecido como


a primeira Buenos Aires, em 1536. Outra região
estratégica que vai merecer a atenção dos espanhóis é a
do Paraguai, para onde a Espanha envia os exploradores
Pedro de Mendoza, Juan de Ayolas, Juan de Salazar de
Espinosa e Álvar Núñez Cabeza de Vaca. Este último,
quando chega para assumir a governança do Paraguai,
não segue pelo rio da Prata, mas desembarca em Santa
Catarina e se locomove por 134

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

terra, numa expedição que o fará descobridor das


cataratas de Foz do Iguaçu. Certamente o mesmo
caminho que havia sido trilhado por Aleixo Garcia – um
caminho habitual dos naturais da terra.

A partir de 1534, com a tomada do império inca e a


descoberta de Potosí, as atenções da Espanha se
voltaram prioritariamente para a exploração dessas
regiões. Consequentemente, o Brasil vai ganhar maior
relevância dado a contiguidade em que se encontra –
estar no meio do caminho do território e das novas
riquezas espanholas.

Esse fato faz com que se intensifiquem os conflitos entre


a Espanha e Portugal, sobretudo porque a Espanha vai
fazer uso do território português para tentar burlar o
intenso ataque de piratas que se estabelece, sobretudo
no Caribe.

Inicia-se a partir daí uma verdadeira batalha entre


portugueses e espanhóis pela região do Prata até a
assinatura, em 1750, do Tratado de Madri. Quem vai hoje
ao Uruguai, certamente visita a cidade de Colônia do
Santíssimo Sacramento, fundada pelos portugueses em
1680, no processo de disputa territorial da região.

O esforço para blindar a região prossegue e Domingos


Martínez de Irala ordena – para cercar a entrada de
portugueses vindos de São Paulo em direção ao Peru – a
fundação, em 1554, por Garcia Rodrigues de Vergara, da
vila de Ontiveros. Em 1554, foi fundada, por Ruy Díaz
Melgarejo, a Ciudad Real del Guayrá. Para completar o
cerco, em 1593 é fundada, por Ruy Díaz de Guzmán, a
cidade de Santiago de Jerez. Irala determinou que essas
cidades fossem fundadas no caminho do Brasil para
conter os grandes danos e assaltos que os portugueses
faziam na região do Guayrá.

Mas não nos antecipemos. Antes desse périplo pelo


interior do território americano, o malogro das viagens de
Solís e de Caboto na busca pela passagem para o mar do
Sul vai ser recompensado pela viagem de Fernão de
Magalhães, que parte da Espanha em 1519
e consegue, enfim, avançar pelo mesmo caminho
percorrido por Solís e descobrir uma passagem para o
oceano Pacífico: o estreito de Magalhães. Em 1522,
Magalhães não só é autor do inédito feito de transpor o
continente americano, como também empreende a Os
verdadeiros descobridores da América…

135

mais fantástica viagem da história da humanidade, tendo


retornado à Espanha pelo cabo da Boa Esperança,
completando, assim, a primeira circum-navegação da
história – desconsiderando, claro, as míticas navegações
fenícias – e trazendo para a Espanha uma auspiciosa
notícia.

O cabo Horn – descoberto por frei García de Loaysa em


1525

– e o estreito de Magalhães são duas passagens no ponto


mais meridional das Américas. Por meio deles era
possível se ter acesso ao oceano Pacífico e a todo o
Oriente, bem como às cobiçadíssimas especiarias da Ásia
e da Índia. Não era uma notícia qualquer, pois, a partir
desse momento, com a descoberta de uma nova rota
para o Oriente quebrava-se, enfim, o monopólio exercido
pelos portugueses da rota comercial do Oriente que se
fazia pelo cabo da Boa Esperança. Era a Espanha,
finalmente, conseguindo abocanhar seu quinhão no
lucrativo comércio das especiarias e era também a
recompensa do investimento numa rota sobre a qual só
se contavam histórias e lendas vagas. Quando Fernão de
Magalhães e frei García de Loaysa descobrem o estreito
de Magalhães e o cabo Horn, eles realizam o sonho de
ninguém mais, ninguém menos que Cristóvão Colombo, o
maior navegador da Espanha.
136

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

A RIQUEZA DA AMÉRICA RELUZ NOS

OLHOS DE UMA DECADENTE EUROPA

O escrutínio da América, que havia sofrido incisões


superficiais, passará para outro estágio, com incisões em
camadas mais profundas. Nesse sentido, a aventura de
Aleixo Garcia no interior do continente americano foi
fundamental.

As Américas espanhola e portuguesa, que haviam sido


divididas no Tratado de Tordesilhas, eram, na verdade,
uma coisa só do ponto de vista prático – a divisão ficou
restrita apenas aos tratados. O

respeito a esses tratados era outra coisa, posto que a


seriedade com que se respeitavam regras, contratos,
leis, normas, determinações, ordenações e segredos no
século XVI era da profundidade de um pires. Não por
acaso, o século XVI, sobretudo em seus primeiros
cinquenta anos, vai ser palco de mais transformações do
que as ocorridas nos últimos cinco séculos.

A conquista da América segue em duas fases: a primeira


delas

– a fase inicial –, a da prospecção de riquezas. A partir de


1521, Hernán Cortéz vai conquistar o império asteca; em
1526, Francisco de Montejo conquista o império maia –
junto com Montejo veio o célebre Bartolomé de Medina, o
grande metalurgista espanhol que
criou o método beneficio del patio, uma técnica para
separar a prata de outros minerais por meio do uso do
mercúrio. Essa técnica seria usada por mais de trezentos
anos e até hoje, embora proibida, é utilizada em muitos
garimpos ilegais no Brasil –; e em 1532 Francisco Pizarro
completa o périplo espanhol, buscado por Vasco Núñez
de Balboa desde a descoberta do mar do Sul, quando
conquistou o império inca, no Peru. A Espanha auferiu
com essas conquistas uma imensidão em ouro, prata e
pedras preciosas suficiente para arrematar toda a
produção de especiarias que Portugal conseguiu nas
Índias por décadas e ainda sobrar troco.

Nesse momento, Portugal e o mundo ficaram de


sobreaviso sobre as reais possibilidades do antes
desprezado continente americano. Com as auspiciosas
notícias que chegavam à Europa se inicia a segunda fase,
a das viagens de exploração, em que se buscam os
caminhos, as rotas menos suscetíveis e a delimitação das
fronteiras. A verdade é que a notícia da descoberta do rio
da Prata se alastrou como rastilho de pólvora por uma
Europa que se encontrava naquele momento muito
depauperada, e é só a partir de então que o Brasil passa
a ganhar certa atenção, porém não apenas por parte dos
portugueses. Os primeiros a organizar uma excursão ao
Brasil foram os franceses dos portos da Normandia –

Honfleur e Dieppe, experientes navegadores. Eles


conheciam bem o caminho, pois em 1503 Binot Paulmier
de Gonneville já havia explorado terras brasileiras.

Em 1526 João Silveira, embaixador português em Paris,


avi-sou d. João III que a França preparava uma grande
expedição ao Brasil, que contou com dez navios para
“um grande rio na costa do Brasil [. .] que é o que achou
Cristóvão Jacques”,1 o rio da Prata.
A França tinha inclusive uma feitoria comercial com um
forte em terras brasileiras situada na ilha de Santo Aleixo
[Le Saint Alexis], em Pernambuco. A feitoria pertencia ao
armador e corsário francês Jean Angot, visconde de
Dieppe, que havia recebido do rei da França Francisco I
carta de corso para apresar navios estrangeiros.

A prática havia tomado uma dimensão tal que, com o


tempo, “nem 138

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

mesmo o governo francês podia sujeitá-los e que


Portugal, depois de haver exaurido na França, perante os
tribunais, os parlamentos e a própria coroa todos os
recursos do foro e da diplomacia, se viu obrigado a
negociar direto com os corsários”.2 Portugal chegou a
comprar de Angot ao menos duas cartas de corso
concedidas a ele pelo rei da França, uma teria custado
dez mil francos e a outra cinquenta mil francos.3 O
dispêndio dessa verdadeira fortuna não parece ter
evitado o assédio francês por muito tempo, já que em
1555 Vil egagnon fundaria no Rio de Janeiro uma colônia
francesa: a France Antarctique.

Assombrado com a carta de Silveira, d. João III enviou


para proteger suas terras o experiente navegante
português Cristóvão Jacques, nomeando-o governador
das partes do Brasil. Essa armada que partiu de Lisboa
em setembro ou outubro do ano de 1526 consta como a
primeira expedição oficialmente enviada por d. João III.

Contudo, entre os anos de 1516 e 1519, Cristóvão


Jacques já havia estado no Brasil, ocasião em que
fundara o que se pode considerar a primeira feitoria
portuguesa no Brasil, em Pernambuco, na qual deixou
como capitão Pêro Capico. Nessa ocasião, Jacques havia
também entrado em contato com nove companheiros de
Solís de Santa Catarina, quando se encaminhava para o
rio da Prata, e ouvido deles as auspiciosas notícias sobre
as riquezas da América.

Enquanto Jacques fazia a linha de frente na contenção do


ataque francês, d. João III preparava outra expedição,
que seria comandada pelo seu amigo de juventude
Martim Afonso de Sousa. Essa expedição armou-se por
um fato novo que surgiu no ano de 1530 e que levou d.
João III a considerar a possibilidade de colonizar a região
do Prata que, supunha-se, estivesse dentro das
possessões portuguesas e estavam sendo amplamente
frequentadas por espanhóis.

Dois acontecimentos importantes valorizaram da noite


para o dia a região Sul do continente americano: o
primeiro deles foi a passagem encontrada ali por
Magalhães, como vimos, em 1520, quatro anos após a
malbaratada viagem de Solís. Não se tratava de uma
coisa qualquer, mas, sim, de outra rota para as Índias, e
isso era na prática A riqueza da América reluz nos olhos
de uma decadente Europa 139

a abertura de concorrência à grande quantidade de


riquezas que Portugal auferia no Oriente e que chegava
ao reino por meio dos navegadores portugueses e cuja
notícia se espalhara como rastilho de pólvora. O segundo
foi que desde Solís e Jacques havia a crença amplamente
compartilhada na Europa de que somente pelo rio da
Prata se teria acesso às imensas riquezas do império inca
– que naquele tempo era apenas uma suposição, porém
eivada de fortes indícios –, crença desfeita apenas em
1545, quando Francisco Pizarro conseguiu ter acesso a
essa região vindo da América Central.
Um fato novo que impulsionou a ideia de colonização por
parte do rei foi uma carta enviada de Sevilha por Simão
Afonso, espião português infiltrado na corte espanhola,
dando conta da chegada de Sebastião Caboto e,
principalmente, de um navegador português que havia
retornado com ele e trazia notícias auspiciosas: Henrique
Montes. Dizia Simão: “Senhor, eu estou nesta cidade de
Sevilha esperando recado de Vossa Alteza para daqui ir à
corte do imperador pedir execução contra João Solís [a
notícia de que Solís havia empreendido a viagem havia
chegado a Portugal, porém, não se sabia ainda que havia
morrido] de arresto de seus bens se Vossa Alteza assim
houver por seu serviço porque aqui já está determinado
que se não há de fazer sem o conselho por especial
mandado as justiças dessa cidade que a façam segundo
tenho escrito a V.A.

[qual seria a forma que propunha o espião?] e por não vir


mandado de V.A. sua justiça se perde se isso se dilatar.
Manda-me V.A. o que for seu serviço porque não espero
outra coisa.”4

Mais adiante, em outra carta, diz um Simão


entusiasmado: “Esta semana chegou aqui um piloto e
capitão que era ido a descobrir terra o qual se chama
Caboto, piloto-mor deste reino [. .] ele veio muito
desbaratado e pobre porque disse que não traz ouro nem
prata e nem coisa alguma de proveito aos armadores e
de duzentos homens que levou não traz vinte [. .] da
terra ficar deserta não tenho dúvida o rio dizem que é
muito grande e alto e muito largo, na entrada se V.A.
houver por seu serviço mandar lá agora poderá fazer,
porque esta gente aparta-se de onde não vê dinheiro e
se 140

O livro obscuro do descobrimento do Brasil


acerca disto poder ao diante saber mais particularidades,
escreverei a V.A. Sevilha agosto de 1530.”5

Fica claro por essa troca de mensagens entre o rei de


Portugal e seu espião na Espanha que a viagem
projetada tinha como intuito colonizar a região do Prata,
depois que os armadores espanhóis e o rei tinham
momentaneamente desistido do negócio, por conta das
malogradas viagens de Solís e de Caboto.

Segundo Varnhagen: “O plano vago da fundação de uma


povoa-

ção no aquém-mar se fixou então justamente sobre essa


para-gem de clima temperado e de tantas e apregoadas
riquezas, que os castelhanos escarmentados iam
porventura desamparar de todo: sobre as margens do rio
da Prata. Aprontou-se com mais rapidez a frota composta
de duas naus, um galeão e duas caravelas. Além das
competentes guarnições e tripulações embarcaram-se
nela famílias inteiras. . Vão para o rio da Prata. . e
bastava esta voz para não faltar quem quisesse alistar-se
[. .] ao todo contavam-se cinco velas e quatrocentas
pessoas”.6

Nota-se nesse episódio o pragmatismo português ao


relevar as fortes determinações das Ordenações
Manuelinas quanto às deser-

ções no caso de Henrique Montes. Ele não só havia sido


perdoado pela traição, como fora agraciado com o ofício
de provedor dos mantimentos, feito cavaleiro da casa
real e viria a ser beneficiado na futura capitania de São
Vicente com uma generosa fatia de terras.

Pudera, pois assim como havia contado na Espanha,


repetira ao rei de Portugal seu testemunho de que havia
na região do Prata “uma grande riqueza no rio onde
mataram Solís, suficiente para encher os navios de ouro
e prata [. .] entrando pelo rio de Solís iriam dar no rio
Paraná que é muito caudaloso [. .] e ia dar numa serra e
que nesta serra havia também muito ouro e prata”.7

A todo esse discurso soma-se o benefício adicional de ter


Montes passado dez anos entre os naturais da terra, o
que havia permitido a ele desenvolver uma ferramenta
fundamental e que o tornava imprescindível: o domínio
da língua, do idioma local, sem o qual pouco se poderia
fazer.

A riqueza da América reluz nos olhos de uma decadente


Europa 141

Na autorização da viagem dizia o rei: “Dom João por


graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves, d’aquém e
d’além-mar, em África senhor de Guiné e da conquista,
navegação, comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da
Índia. A quantos esta minha carta virem, faço saber, que
as terras que Martim Afonso de Sousa do meu conselho,
achar e descobrir na terra do Brasil, onde o envio por
meu capitão-mor, que se possa aproveitar, por esta
minha carta lhe dou poder para que ele dito Martim
Afonso de Sousa possa dar às pessoas que consigo levar,
e às que na dita quiserem viver e povoar aquela parte
das ditas terras que bem lhe parecer, e segundo lhe o
merecer por seus serviços e qualidades, e das terras que
assim der serão para eles e todos os seus descendentes,
e das que assim der às ditas pessoas lhes passará suas
cartas, e que dentro de dois anos da data cada um
aproveite a sua, e que se no dito tempo assim não fizer,
as poderá dar a outras pessoas, para que as aproveitem
com a dita condição; e nas ditas cartas que assim der irá
trasladada esta minha carta de poder, para se saber a
todo tempo como o fez por meu mandado, lhe será
inteiramente guardada a quem a tiver; e porque assim
me praz lhe mandei passar esta minha carta por mim
assinada e selada com o meu selo pendente. Dada na
vila do Crato da Ordem de Cristo a 20 de novembro.
Francisco da Costa a fez, ano do nascimento de Nosso
Senhor Jesus Cristo de 1530 anos. REI.”8

Essa foi a primeira expedição cujo objetivo era a


coloniza-

ção e na qual colonos portugueses vieram para o Brasil.


Para a viagem saiu de Lisboa “o governador Martim
Afonso de Sousa com armada de navios, gente, armas,
apetrechos de guerra e nobres povoadores, tudo à sua
custa: com ele veio também seu irmão Pedro Lopes de
Sousa, a quem o mesmo rei tinha concedido oitenta
léguas de costa para fundar sua capitania, e faleceu
afogado no mar. Trouxe o dito Martim Afonso de Sousa
além da muita nobreza, alguns fidalgos da casa real,
como foram Luís de Góis e sua mulher d. Catarina de
Andrade e Aguilar, seus irmãos Pedro de Góis, que depois
foi capitão-mor de armada pelos anos de 1558, e Gabriel
de Góis; Domingos Leitão, casado com d.

142

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

Cecília de Góis, filha do dito Luís de Góis; Jorge Pires,


cavaleiro fidalgo; Rui Pinto, cavaleiro fidalgo casado com
d. Ana Pires Micel, Francisco Pinto, cavaleiro fidalgo, e
todos eram irmãos de d. Isabel Pinto, mulher de Nicolau
de Azevedo, cavaleiro fidalgo e senhor da quinta do
Rameçal em Penaguião, e filhos de Francisco Pinto,
cavaleiro fidalgo, e de sua mulher Marta Teixeira”.9
A viagem seguiu a rota já costumeira, chegou a
Pernambuco, passou por Salvador, Rio de Janeiro,
Cananeia e logo seguiu para o Sul, onde, devido às
condições climáticas adversas, reuniram-se em conselho
e desistiram da empresa de colonizar a região do Prata,
estabelecendo-se em São Vicente. No ano de 1800, um
piloto espanhol de nome Francisco Fernandez que
explorava a região do Prata encontrou próximo à ilha de
Maldonado “uma pedra que pesaria três quintais com um
escudo grande de Portugal e em cima outro pequeno
atravessado com uma cruz”.10 Tratava-se de um dos
tradicionais marcos deixados por navegantes
portugueses para demarcar as possessões. Esse, em
especial, prova que Martim Afonso tinha realmente
vasculhado a região do Prata e talvez pelas adversidades
climáticas tenha optado por não fundar colônia naquela
região.

Para não desapontar o rei quanto às possibilidades de


riqueza, Martim Afonso organiza uma expedição, a de
Pero Lobo e Francisco Chaves que partiu de Cananeia
com a promessa de regressar a São Vicente, onde Martim
Afonso a esperaria, com a expectativa de que
trouxessem nada menos que quatrocentos escravos e
uma quantidade inimaginável de ouro.

O grande alvoroço na Europa com as notícias do rio da


Prata se esvaeceu nos anos imediatos, por conta das
frustrações causadas pelos malogros das armadas de
exploração. Primeiro, a frustração dos espanhóis com
Solís, depois a dos ingleses, quem verdadeiramente
estava por trás da viagem de Caboto, e, por fim, as
tentativas portuguesas de Martim Afonso por mar e de
Pero Lobo por terra, as quais também haviam redundado
em fracasso.
Da povoação inicial em São Vicente, fundada por Martim
Afonso, vai surgir uma das duas capitanias – que serão
criadas A riqueza da América reluz nos olhos de uma
decadente Europa 143

em 1534, num total de quinze – que vão realmente


vingar. A outra é a de Pernambuco, que abarcará a antiga
feitoria que existia ali desde os tempos iniciais do
descobrimento e que será concedida a Duarte Coelho e
será, como veremos, o grande centro irradiador da
colonização portuguesa no Brasil, pois é nela que se
concentrará o grosso da produção de açúcar que se
tornará o centro do comércio português.

Desfeito o entusiasmo inicial, no Nordeste brasileiro se


desenvolveria uma opulenta oportunidade de negócio
que, embora organizado sem nenhum esforço português,
usufruiria do negócio apenas parasitariamente, fez com
que se amenizasse o desânimo de Portugal com o Brasil.
Opulência que não desfez a inveja que Portugal sentia da
Espanha, a qual permaneceria para sempre, pois, como
pode ser observado nas palavras do autor dos Diálogos
das grandezas do Brasil, parecia que: “O ouro, prata e
pedras preciosas são somente para os castelhanos e que
para eles os reservou Deus

[. .] habitando nós, os portugueses, a mesma terra que


eles habi-tam e como, porém, ficamos com a parte leste
do continente, não podemos descobrir nenhuma [. .]
descobrindo eles [os espanhóis]

cada dia muitas”.11

Esse inconformismo vai ser responsável por pelo menos


uma segunda tentativa a ser feita ainda em 1545,
quando Pizarro consegue conquistar definitivamente o
império inca e descobrir a mina de Potosí – isso
despertará em Portugal um revival exploratório. A partir
do imenso sucesso da Espanha na prospecção de riqueza
na América, Portugal passa a investigar se Peru e Brasil
não formavam um território só. Se assim fosse, deveria
haver também no solo do território brasileiro a mesma
riqueza encontrada no Peru.

O Nordeste com o seu ouro branco – o açúcar – fará ter


valido a pena os esforços colonizadores portugueses, ao
menos o esforço de ter mantido a posse do território,
diante das frequentes invasões estrangeiras. Desse
modo, o Sul ficaria relativamente abandonado pelos
portugueses, porém não pelos espanhóis, que vão fazer,
sobretudo da capitania de São Vicente, praticamente
abandonada por seu 144

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

donatário, Martim Afonso, já em 1533, que a deixou aos


cuidados de seu capitão-mor, uma importante plataforma
de escoamento das riquezas da região andina. Vamos
acompanhar isso.

A riqueza da América reluz nos olhos de uma decadente


Europa 145

O PARALELO 12o S: A DESCOBERTA DO OCULTISTA FELIPE


GUILHÉM

De todas as tentativas iniciais de penetração pelo rio da


Prata restaram apenas frustrações. Em 1536, a Espanha
fixa uma colônia na região do Prata – a primeira Buenos
Aires – mais para firmar a posse do território do que por
qualquer outro motivo.
Mas dez anos depois, a partir de 1545, quando Francisco
Pizarro conquista no Peru o império inca, o cenário passa
a merecer de Espanha e de Portugal atenção total
novamente. No caso de Portugal, atenção sobretudo com
a região de São Vicente, a capitania hereditária
concedida a Martim Afonso e abandonada por ele assim
que as ilusões das riquezas minerais se dissiparam.

Mas por que a capitania de Martim Afonso? Inicialmente,


o envio do ouro e da prata da América para a Espanha
ocorria quase que exclusivamente pela rota que saía da
costa do Peru – pelo oceano Pacífico –, seguia até a costa
do Panamá, atravessava todo o territó-

rio do país – cerca de cem quilômetros – e chegava à


província do Darién, ou seja, ao oceano Atlântico, onde a
carga era embarcada para a Europa. À medida que as
remessas avolumavam-se, outras rotas seriam abertas e,
numa segunda alternativa, os carregamentos

passariam em seguida pelo Pacífico até o Oriente, numa


rota nova criada pelos espanhóis que ficou conhecida
como rota Acapulco-Manila, por onde circulavam os
famosos e cobiçadíssimos galeões de Manila e que durou
por longos duzentos e cinquenta anos, entre 1565

e 1815. Outra rota era escoar a produção pelo rio da


Prata, e nesse caso eram possíveis dois caminhos: o
primeiro, que saía de Lima, no Peru, passava por Sucre e
Potosí, ambas cidades na atual Bolívia, seguia por
Mendoza, por San Miguel de Tucumán, por Santiago del
Estero – todas cidades argentinas – e por fim chegavam a
Buenos Aires, de onde eram embarcadas para a Espanha.
Outro braço saía de Potosí e ia até Assunção, no
Paraguai, pelo rio Pilcomayo, que nasce em Sucre e
atravessa os territórios da Bolívia, da Argentina e do
Paraguai numa extensão de mais de mil quilômetros e
deságua no rio Paraná, que por sua vez corre em direção
à bacia do Prata, de onde a carga também seguia
embarcada para a Espanha.

A busca constante por novas rotas tinha uma explicação.

Enquanto nas possessões portuguesas na América o ouro


era ainda uma possibilidade remota desde o início da
exploração da América espanhola, a grande riqueza
auferida pela Espanha despertou a atenção de todo o
mundo, sobretudo daqueles que os espanhóis menos
desejavam. Piratas, ingleses e franceses, ficavam no mar
do Caribe à espera dos galeões espanhóis recheados de
ouro e prata para saqueá-los. Entre os piratas famosos
encontravam-se Amaro Pargo, Barba Negra e Francis
Drake. Pela cabeça de Drake, o rei Felipe II, cansado de
perder verdadeiras fortunas, ofereceu uma recompensa
de vinte mil ducados, ou seja, cerca de seis milhões de
dólares. Outro pirata dos mais ativos e que atormentava
a vida dos espanhóis era brasileiro, filho de holandeses
que moravam em Pernambuco e chamava-se Roc, uma
espécie de Jack Sparrow pernambucano. Sobre ele há
poucos documentos, mas relatos dão conta de que “não
menos consideráveis são as ações de outro pirata que
agora vive na Jamaica, que em várias ocasiões realizou
coisas muito surpreendentes. Seu nome não era
conhecido, seus companheiros lhe chamavam Roc, o
brasileiro, em razão de sua longa permanência O paralelo
12o S: a descoberta do ocultista Felipe Guilhém 147

no Brasil. Daí ele foi forçado a sair, quando os


portugueses reto-maram esse país dos holandeses. Roc
fugiu para a Jamaica, em busca de um lugar para ganhar
a vida e entrou na sociedade dos piratas onde serviu
como marinheiro privado por algum tempo, e se
comportou tão bem, que foi amado e respeitado por
todos. Um dia, alguns dos marinheiros brigaram com o
capitão, a ponto de deixarem o barco. Poucos dias
depois, eles tomaram um grande navio vindo da nova
Espanha, que tinha uma grande quantidade de prata a
bordo, e levou para a Jamaica. Esta ação lhe rendeu uma
grande reputação”.1

Roc Brasileiro era, segundo outros relatos, um pirata


cruel, sobretudo com os espanhóis. Ódio que remontava
certamente à perseguição espanhola aos judeus. Quase
nada se sabe sobre sua vida, como, aliás, da vida de
todos os outros piratas. Há menções sobre um pirata
brasileiro que havia prestado serviços a François
L’Olonnais e também a sir Henry Morgan – piratas, um
francês e o outro inglês, que atuaram no Caribe na
mesma época de Roc.

Recentemente foi descoberto na Île Sainte-Marie, em


Madagascar, um cemitério de piratas – o único de que se
tem notícias –, e é possível que Roc esteja enterrado
nesse local.

Diante de tantos perigos, uma das importantes vias de


escoamento das riquezas da América nessa espécie de
briga de gato e rato entre a Coroa espanhola e os piratas
do Caribe vai ser o território brasileiro.

Havia duas rotas que utilizavam o território do Brasil.


Uma seguia pelo que hoje conhecemos como a hidrovia
Paraná -Tietê. Nessa rota por rios, que se praticava
sobretudo em época de monções, a Espanha fundou
diversas cidades para servir de base e obstáculo a
possíveis incursões portuguesas. Nela também se
estabeleceria a exploração dos atuais territórios de Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul. Mais tarde, entre 1719 e
1822, as minas desses territórios renderiam a Portugal
nada mais, nada menos do que cinco mil arrobas de
ouro.2

Mas a mais primitiva rota seguia por um dos caminhos


terrestres que saíam de São Paulo, “centro de um amplo
sistema de estradas 148

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

expandindo-se rumo ao sertão”,3 e de São Vicente, que


não por acaso era conhecida como a costa do ouro e da
prata. Era um dos ramos de uma malha de estradas de
mais de dez mil quilômetros que se estendiam, já
naquela época, por quase todo o Brasil.

Para fugir do ostensivo saque de piratas no mar do


Caribe, a Espanha aproveita o desleixo dos portugueses
com o Brasil para utilizar um atalho e despistar os
piratas. O caminho por terra era conhecido como
Caminho do Peabiru, um caminho dos naturais da terra
que tinha diversas ramificações. Uma delas saía de
Cananeia, outra de Santa Catarina, por onde havia
caminhado Aleixo, e outra, ainda, saía de São Paulo (São
Vicente), todas indo até o Paraguai, que dava acesso
direto às minas de Potosí e ao ouro dos incas. Esses
caminhos foram descobertos por marinheiros espanhóis
e portugueses, os quais, durante as viagens de
exploração, desertavam ou eram propositadamente
deixados entre os naturais da terra para se familiarizar
com a língua e colher informações.

Muitos desses homens se tornaram, assim como Covilhã


no reino do Preste João, na sondagem do território, muito
importantes para Portugal e a Espanha. Destacaram-se
os nomes de pelo menos três deles: Bacharel, Caramuru
e João Ramalho. Provavelmente todos eles vindos nas
expedições de Cabral, de Colombo e Vespúcio, ou até
antes, em expedições secretas, no período de d. João II.
Esses homens foram fundamentais na aproximação com
os nativos, na interiorização do território e, claro, na
prospecção das riquezas naturais, sobretudo o ouro.

Onde hoje está localizada a cidade de São Paulo


floresceu, no início do século XVI, um povoado que
seguiu um percurso sin-gular. Era a negação de todas as
determinações da Coroa para a colonização da América
portuguesa. Portugueses e espanhóis que habitavam
essa região foram os que menos respeitaram regras e,
por isso mesmo, implantaram um modo de interação
próprio com o meio ambiente e com a cultura dos
naturais da terra.

Enquanto a tônica da colonização era bordejar o litoral,


os habitantes de Piratininga se aventuraram em outras
searas, e o O paralelo 12o S: a descoberta do ocultista
Felipe Guilhém 149

maior exemplo disso é a intensa movimentação que se


estabeleceu ainda em meados do século XVI entre a
cidade de São Paulo e Assunção, no Paraguai, e que
permanece praticamente como um aspecto
desconhecido da história colonial.

É possível analisar esse período por meio dos


documentos quinhentistas, como a carta do clérigo
Martins Gonzáles datada de 1556, em que este se queixa
ao rei da Espanha do governador do Paraguai, Domingos
Martínez de Irala, que, não contente em desprezar os
naturais da terra, “dava licença aos moradores de São
Vicente para que pudessem retirar índios deste país e
levá-los a São Vicente, e assim levaram muitos”.4
Com o tempo, a movimentação nessa rota tornou-se
intensa pois, na época, São Vicente passou a adquirir um
significado particular no sistema de comunicação dos
domínios espanhóis com a costa do Atlântico. O que
facilitou essa relação foi o fato de já haver ali

“a presença de um núcleo estável de população em


contato mais ou menos assíduo com o velho
continente”.5 De todas as capitanias, foi a que mais
prosperou no início.

Por meio das cartas dos jesuítas se pode confirmar que


embarcações saíam com destino à Europa com certa
regularidade. Uma carta do padre José de Anchieta de
1554 é especialmente importante, pois dá notícia da
fundação da cidade de São Paulo naquele ano.

Diz a carta: “Assim, alguns dos irmãos mandados para


esta aldeia, que se chama Piratininga, chegamos a 25 de
janeiro do ano do Senhor 1554, e celebramos em
paupérrima e estreitíssima casinha a primeira missa, no
dia da Conversão do Apóstolo São Paulo e, por isso, a ele
dedicamos a nossa casa.”6

Ainda outras cartas datadas de Santos, 25 e 30 de junho


de 1553, dão testemunho desse movimentado
intercâmbio. Como podemos notar, eram constantes os
embarques de navios para a Europa partindo ora de
Santos, ora de São Vicente, de modo que os espanhóis
passaram a se utilizar cada vez mais da rota entre São
Vicente e Assunção para ter acesso ao Atlântico e,
consequentemente, ao Velho Continente, sobretudo à
medida que os ataques se avolumavam no 150

O livro obscuro do descobrimento do Brasil


Caribe, que estava infestado de piratas. Navegando sob
a bandeira portuguesa minimizavam-se sensivelmente os
perigos, porque os piratas sabiam que barcos
portugueses transportavam pau-brasil e açúcar. Navegar
sob a bandeira espanhola chamava a atenção, pois os
barcos espanhóis transportavam ouro e prata.

Mas Portugal nunca havia se incomodado com tais


incursões, mesmo porque as capitanias eram
propriedades privadas, pertencentes aos seus
donatários. Havia também um elo dinástico-familiar entre
as Coroas de Portugal e Espanha, já que a irmã de d. João
III, Isabel, era casada com o rei da Espanha, Carlos V, e o
futuro rei da Espanha, Felipe II, se casaria com a filha de
d. João III, Maria Manuela. O problema da movimentação
em São Vicente era tratado de forma tão desimportante
que quando Tomé de Sousa desem-barcou em 1549 no
Brasil para fundar o Governo-geral, a sede escolhida
havia sido a Bahia, bem distante das capitanias do Sul.

Havia, portanto, como veremos, outros motivos para o


Governo-

-geral se instalar em Salvador.

Tomé de Sousa e os jesuítas haviam chegado ao Brasil


com o intuito de tomar posse do Paraguai, da Bolívia e do
Peru. Em carta de 1553, a d. João III, Tomé de Sousa diz:
“Parece-nos a todos que essa povoação está na
demarcação de Vossa Alteza e se Castela isso negar mal
pode provar que é maluco seu.”7 Para o padre Manuel da
Nóbrega, bem como para Tomé de Sousa e José de
Anchieta, portanto, não havia dúvida: o Paraguai e o Peru
eram partes integrantes da mesma expressão
geográfica: o Brasil. Se a terra pertencesse ao rei de
Portugal. . eles estavam dispostos a tomar posse.
O padre Leonardo Nunes propôs, então, ao padre Manuel
da Nóbrega, em 1551, uma missão instituída ao
Paraguai. Essa missão seria conduzida pelo Caminho do
Peabiru por Pero Correia – que antes de se converter ao
cristianismo havia sido um hábil explorador do Brasil,
tendo chegado na expedição de Martim Afonso de Sousa
– e Antônio Rodrigues. Este último era um personagem
muito mais importante, pois participou das expedições
ao alto Paraguai e conhecia muito bem a região. Numa
carta aos jesuítas portugueses, O paralelo 12o S: a
descoberta do ocultista Felipe Guilhém 151

ele mesmo assume que o seu conhecimento da região foi


fundamental para sua entrada na Companhia de Jesus,
convidado por Manuel da Nóbrega: “Mandou-me o Padre
que eu vos desse conta da minha vida e das mercês que
Nosso Senhor me tinha feito, e por eu ter ido daqui do
Brasil ao Peru, por terra e tornado, vos escrevesse
também dos gentios que por essas terras há, esperando
ser ajudados de vós para a sua salvação, e o aparelho
que têm para receber a nossa santa fé [. .]. E é que eu e
outros portugueses, assim por vaidade como por cobiça
de ouro e prata, no ano de 1523, partimos de Sevilha em
uma armada, que fazia d. Pedro de Mendonça, na qual
éramos 1.800 homens; e todos carregados de nossa
cobiça, chegamos, com próspero vento, ao rio da Prata e
entramos pelo rio com as naus 60

léguas [. .]. E, deixando os bergantins com 30 homens,


foi-se pela terra dentro com a outra gente em busca dos
gentios chamados ‘Carcara’, que têm ouro e prata. E,
antes que chegassem lá, houve muita prata

[. .]. E ali soubemos estar perto do Peru [. .]. Eu falei com


o P. Manuel da Nóbrega que fosse ou mandasse lá um da
nossa Companhia, porque ali perto há outros gentios que
não comem carne humana, gente mais piedosa e
aparelhada para receber a nossa santa fé, por ter em
grande estima e crédito aos cristãos. Agora tenho
desejos de ser de 20 anos e ter longa vida para ir com
alguns padres da nossa Companhia, por eu ter mais
experiência da terra e gastar as minhas forças e vida em
ensinar esta gente. Vinde, pois, Caríssimos Irmãos, pois
já há tanto que fazer e tanta gente se perde por falta de
operá-

rios.”8 Havia por parte de Nóbrega – como se pode ver –


intenso interesse na região do Prata, não por acaso,
claro.

A catequização dos índios era uma frente


importantíssima da conquista da América. Desde a morte
violenta de Solís, de Pero Lobo, do bispo Sardinha, entre
outros, trucidados e devorados pelos índios, que a
catequização se tornou tão importante que ficou
conhecida como “a conquista espiritual da América”.

A violência dos índios contra os adventícios atrapalhava


muitíssimo a penetração e exploração das
auspiciosíssimas terras da América. Os jesuítas, ou esses
exploradores travestidos de jesuítas, 152

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

tinham a missão de fazer a tal conquista espiritual,


apaziguar os índios, torná-los temente a Deus e súditos
fiéis da Coroa, e como tais deveriam prestar
incondicionalmente serviços para a Coroa portuguesa.
Foi para isso que havia sido criada a Companhia de Jesus.

A situação do Brasil era completamente diferente da


situação encontrada pelos espanhóis na parte que lhes
coube na América.
Os espanhóis encontraram civilizações organizadas –
muitas delas em grandes cidades –, e a conquista se deu
por meio da invasão, do saque e da posse, modus
operandi semelhante ao que os portugueses também
estavam acostumados. Na América portuguesa, porém, a
realidade era outra. Os naturais da terra brasileira viviam
em “estado de natureza”, portanto não havia nenhuma
riqueza imediata para saquear. Se houvesse alguma
riqueza, ela deveria ser minuciosamente prospectada,
pois estava oculta em diversas regiões do país e, nesse
sentido, a estratégia era outra: para os “jesuítas” os
índios eram fundamentais. Não era, digamos, um estilo
português de atuação, mas o que era preciso fazer frente
às dificuldades e à possibilidade de riqueza. Valia a pena
o esforço.

Tomé de Sousa, em seu regimento, que pode ser


considerado a primeira Constituição brasileira, já munido
de informações privilegiadas sobre as riquezas dos
sertões e da importância dos índios para encontrá-las,
baixa dois decretos específicos. O primeiro impunha pena
de morte aos colonos que fossem buscar índios no sertão
e o segundo proibia aos colonos internarem-se pela terra
e se comunicarem por essa via de uma capitania a outra.
Senhor do monopólio das entradas no sertão, ordenou
imediatamente uma viagem exploratória que,
capitaneada por Miguel Henriques, saiu em 1550 e tinha
como objetivo navegar pelo rio São Francisco rumo ao
interior em busca das famigeradas riquezas. O fato de a
expedição nunca mais ter voltado impôs logo de cara a
Tomé de Sousa uma derrota fragorosa.

O fracasso de mais uma expedição vai fazer a Coroa


mudar de foco e avançar sobre as capitanias do Sul, e
Tomé de Sousa parte então para lá com uma série de
ordenamentos importantes.
O paralelo 12o S: a descoberta do ocultista Felipe
Guilhém 153

A verdade é que um sentimento de inveja explícito havia


tomado conta do governo português, depois de mais
uma tentativa frustrada de prospecção de riqueza no
território brasileiro. Desse modo “[. .]

a própria posição privilegiada de São Vicente e Santos


para o intercâmbio com o ultramar, sua relativa
proximidade das possessões castelhanas e o perigo que
de tudo isso poderia decorrer, ao cabo, para a
integridade das terras da coroa portuguesa iriam
contribuir largamente para as decisões de Tomé de
Sousa”.9

O problema é que esse trânsito movimentava o comércio


local e os portugueses de São Vicente auferiam
importantes vantagens econômicas, de modo que
qualquer decisão da Coroa no sentido de interferir na
região poderia despertar suscetibilidades e gerar
conflitos. Os interesses políticos prevaleceram sobre as
vantagens econômicas que os vicentinos tiravam do
comércio com os castelhanos e a liberdade com que se
utilizou essa rota clandestina logo foi relativizada.

Diante das notícias de desregramento total no trânsito


entre as possessões portuguesa e espanhola que ocorria
a partir da capitania de São Vicente, Tomé de Sousa toma
as providências para as quais foi enviado: dar fim ao
caminho do Peabiru e vigiar o interior. Em 1553, Tomé de
Sousa ordena que se feche o caminho por terra a
Assunção.

Com a proibição, cria-se a necessidade da fiscalização e


da vigilância, e é exatamente nesse sentido que é
fundado, por ordem de Tomé de Sousa, em 1553, o
povoado de Santo André da Borda do Campo, em comum
acordo com João Ramalho, que se tornou prefeito. E em
1554 a fundação da cidade de São Paulo pela Companhia
de Jesus.

Por algum tempo, ao que parece, o caminho até o


Paraguai foi realmente esquecido. Pode-se dizer que,
passado meio século, esse caminho seria um dos
primeiros a ser usado pelos bandeirantes nos primórdios
da expansão paulista, no fim do século XVI e começo do
século XVII.

Segundo Sérgio Buarque de Holanda, depois de reaberto


esse caminho até Assunção, não havia mais meios
humanos que 154

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

detivessem “[. .] um movimento imposto pelas


necessidades mais rudimentares de uma população que
lutava contra o isolamento e a penúria. Pode-se dizer que
essa primeira fase do movimento, bruscamente
interrompido em seu nascedouro, teve um papel
realmente decisivo depois de longa hibernação de mais
de cinquenta anos. Ela marcou, por assim dizer, a
vocação sertanista dos moradores da capitania de São
Vicente”.10

Erigidas as duas vilas à porta do sertão – Santo André e


São Paulo –, seria ingenuidade acreditar que essa porta
devesse permanecer trancada para sempre, como não
ficou. A implicância com o caminho do Peabiru é
visivelmente um ato de boicote à Espanha.

A população nessa região era majoritariamente composta


de espanhóis. Quando se dá a Restauração Portuguesa,
em 1640, Amador Bueno vai decretar a independência do
Brasil de Portugal.

Com a fundação de São Paulo e o aumento da vigilância


da Coroa sobre o caminho do Peabiru até 1580 e a União
Ibérica inaugura-

-se um novo período de tensão aberta entre portugueses,


padres e espanhóis, a ponto de os padres, os jesuítas,
serem expulsos de São Paulo em 1640.

De sua estada em São Vicente, já completamente


desanimado, fracassado em seu principal objetivo no
Brasil e já de malas prontas para ir embora, Tomé de
Sousa envia a seguinte carta ao rei d. João III: “O que
daqui recolho é que quando o Nosso Senhor aprouver de
dar outro Peru a Vossa Alteza aqui, que as ordenará
quando e como quiser, e nós, por muito que
madruguemos, não há de amanhecer mais asinha, e
contudo homem não se pode ter que não faça alguma
diligência e eu alguma farei, mas hão de ser com tento e
pouca perda de gente e fazenda.”11 Referia-se
certamente à frustrada expedição que enviara em 1550
para saber se “esta terra e o Peru era todo um”

e que jamais retornara para prejuízo do rei. Não restam


dúvidas, portanto, de que a missão principal era
estabelecer uma conexão entre Portugal e o Peru – o
Brasil era um empecilho a ser superado.

Pronto para ir embora de mãos abanando, eis que Tomé


de Sousa é informado sobre um certo Diogo Nunes, um
espanhol que O paralelo 12o S: a descoberta do ocultista
Felipe Guilhém 155

contava aos quatro ventos uma história curiosa sobre


uma viagem que havia empreendido entre o Peru e o
Brasil pelo rio Amazonas fazia cerca de quinze ou vinte
anos numa expedição de conquistadores espanhóis.
Tratava-se de uma viagem até então desconhecida,
empreendida no ano de 1538 por Alonso de Mercadillo.
Sobre essa viagem, Diogo Nunes havia remetido ao rei
uma carta informando-o sobre o seu descobrimento, para
a qual nunca houve resposta.

Segundo a carta: “Chegamos a uma província bem


povoada, rica em ouro [. .] essa província se chama
Machifaro [. .] e está entre o rio da Prata e o Brasil, pela
terra adentro vem o rio grande das Amazonas [. .] por
este rio se pode prover esta terra porque podem vir
navios por ele até onde se poderá povoar uma vila que
seja porto e escala de toda essa terra porque sobe
duzentas léguas o rio acima e desse porto onde povoar a
primeira vila poderão subir bergantins

[. .] haverá trezentas léguas desta província até o mar e


sai este rio na costa do Brasil [. .] se estes índios podem
dar ouro ou prata o dão de sua vontade [. .] e de toda
prata, ouro e pedras preciosas que esses índios dão leva
o imperador seu quinto [. .] dando-me Vossa Alteza os
navios e munição eu porei mantimentos, cavalos e gente
porque se tomo a vontade de fazer este caminho não é
por outra se não por servir a Deus e a Vossa Alteza e
para dar ordem e salvar essa gentilidade e sejam
cristãos.”12

Era, depois da frustração e do prejuízo enorme que havia


causado à Coroa, tudo que Tomé de Sousa queria ouvir.
Com esse trunfo inesperado na manga, Tomé de Sousa
toma o rumo de Lisboa com Diogo Nunes a tiracolo e o
apresenta imediatamente ao rei.
Assim que recebeu o relato e o testemunho de Diogo
Nunes, d.

João III armou uma expedição em direção ao rio


Amazonas que iria causar certa animosidade entre a
Espanha e Portugal. Sabemos dessa expedição, pois
sobre ela dá notícias ao rei da Espanha seu embaixador
em Portugal, Luís Hurtado de Mendoza: “Com um que se
chama Luís de Melo se armou certos navios em que leva
mais de trezentos homens e cinquenta ou sessenta
cavalos e que vão todos a sua costa, a descobrir com
licença do rei de Portugal.”13 É interessante a condição
156

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

de se levar cavalos, pois sabia-se que esse animal era


desconhecido na América e muito temido pelos naturais
da terra. Grande parte do sucesso das conquistas de
Francisco Pizarro se atribui ao fato de sua expedição ter
chegado aos locais de cavalo. Para os incas, cavalo e
homem formavam uma coisa só, de modo que ficaram
deslumbra-dos com aqueles seres mitológicos e mágicos
de cujas mãos saíam fogo [arcabuzes] e eram capazes de
matar os inimigos sem tocá-los.

Essa expedição também malogrou, aumentando a


sensação de que Portugal havia ficado com a pior parte
do Novo Mundo.

Mas a criação do Governo-geral, em 1549, tinha como


objetivo uma missão secreta.

A questão a se pensar é por que Tomé de Sousa teria


fundado a capital do Governo-geral em Salvador e não
em São Vicente, já que era lá que estava localizado o
suposto problema, ou seja, os abusos da Espanha na
utilização e exploração do território português?

No ano de 1525 chega a Portugal, vindo de Sevilha, um


homem insistindo em ter uma audiência com o rei d. João
III, alegando ter algo importante para mostrar ao
monarca. Era comum os reis europeus receberem
diversas solicitações de audiência de gente de vários
lugares do mundo procurando uma oportunidade de fazer
fortuna com uma ideia, uma invenção, uma informação,
ou simplesmente para oferecer seus serviços. Eram, em
sua maioria, malucos com as mais disparatadas ideias,
mas esse espanhol tinha realmente algo a dizer, e ele foi
recebido pelo rei d. João III. Tratava-se de uma
descoberta sobre a bússola, e seu autor se chamava
Felipe Guilhém, era boticário, mineralogista e grande
jogador de xadrez.
Vinha apresentar ao rei a solução para um problema
antigo: uma forma para resolver de vez o problema da
longitude. E para isso Guilhém havia desenvolvido o
método da variação da agulha, que consistia “num
círculo graduado com uma agulha pequena e três fios e
observando o sol a iguais alturas antes e depois do meio-
dia e encontrando a linha meridiana dava para conhecer
a variação da agulha e supondo ser uma ação regular,
deduzir por ela a longitude”.14

O paralelo 12o S: a descoberta do ocultista Felipe


Guilhém 157

O rei ficou tão impressionado com os seus dotes que, em


1528, o agraciou com o Hábito da Ordem de Cristo, para
que pudesse remunerá-lo com cem mil-réis de tença, que
é uma renda destinada a membros de comunidade
religiosa, e o enviou ao Brasil, em 1535, no mesmo navio
que trazia o donatário Pero do Campo Tourinho à
capitania de Porto Seguro.

Em Porto Seguro, dedicou-se exclusivamente àquilo que


tinha vindo fazer, ou seja, à mineralogia, sobretudo à
descoberta de ouro e diamantes no interior do estado da
Bahia. Mas ele descobriu mais e reportou ao rei sua
descoberta auspiciosa. E essa descoberta foi
fundamental para a mudança de comportamento de
Portugal em relação ao Brasil, para a retomada das
capitanias e para a constituição do Governo-geral.

Mas que descoberta foi essa?

Felipe Guilhém saiu em viagem secreta pelo sertão,


partindo de Salvador, logo após as descobertas de
Pizarro e recebeu dos naturais da terra a informação de
que o Brasil e o Peru ficavam próximos. Mas era preciso
algo mais consistente, mais concreto, uma prova de que
pudesse convencer o rei. E é aqui que entra o exímio
conhecimento de geografia de Guilhém, seu saber sobre
latitudes e longitudes. Em 1549, nas suas incursões pelo
interior da Bahia, Guilhém descobre que Salvador e Lima
ficam exatamente na mesma latitude, ou seja, a doze
graus ao sul do Equador. Isso não era qualquer coisa! De
todas as tentativas frustradas de se penetrar nos
territórios da Bolívia e do Peru em direção às riquezas da
América espanhola, efetuadas pelo sul do continente,
sobretudo pelo rio da Prata, essa era a informação mais
auspiciosa, a mais técnica e a que, a princípio, poderia
resultar em proveitosos resultados. O paralelo doze graus
ao sul é favorável às riquezas minerais, uma vez que
nele está também situada a República do Congo, na
África, maior produtora de diamantes do mundo.

Não por acaso, já quando Portugal abandona as


esperanças de achar riqueza na América e, inclusive,
depois de ter loteado o país, acontece esse importante
revés. Em 1549, Tomé de Sousa desembarca de mala e
cuia no Brasil para fundar aqui um Governo-geral.

158

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

Onde? Em Salvador, justamente na latitude de 12 graus.


Não por acaso o Governo-geral vai retomar todas as
capitanias e uma das principais determinações do
Regimento Geral de 17 de dezembro de 1548 será a
punição com pena de morte para aqueles que sem
autorização penetrarem no interior do país. Não restam
dúvidas: o objetivo de Portugal não era o Brasil, mas,
sim, o Peru.
Era um novo alento para Portugal, que no fundo nutria
uma esperança de encontrar riquezas na América tal
qual a Espanha havia encontrado, inclusive imitando
certas estratégias espanholas.

Mas em pouco tempo essa tentativa se frustrará e


sobrarão apenas, mais uma vez, lamentações.

Com mais essa desistência Portugal pareceu desistir de


vez do Brasil. Muitos anos depois, se encontrariam minas
de ouro em Mato Grosso e Goiás, exatamente em torno
dessa mesma latitude de 12 graus. Prova de que o
profético Guilhém não estava errado.

Enquanto no Brasil a busca por riquezas seguia fria como


gelo, Portugal estava em chamas.

O paralelo 12o S: a descoberta do ocultista Felipe


Guilhém 159

O PÊNDULO DA MORTE

O desespero de Portugal para prospectar riqueza no


Brasil está diretamente ligado ao desastre econômico
pelo qual passava. Vimos que depois de uma fase de
monopólio total do comércio de especiarias tudo mudou,
esse monopólio se mostrou contraproducente e declinou
vertiginosamente. Esse retrocesso tem como
consequência diversos acontecimentos: a retirada do
Marrocos, em 1541, do Cabo da Gué e Safim e, em 1549,
de Alcácer-Ceguer e Arzila; no Extremo Oriente, em
1542, as perdas de Liampó e Chiancheu; e, em 1549, a
mais importante perda – a extinção, por d. João III, da
feitoria de Flandres –, inexplicavelmente julgada
deficitária, embora tenha sido considerada um dos mais
importantes entrepostos comerciais da Europa. Investir
no Brasil era um risco enorme. Martim Afonso e Tomé de
Sousa fracassaram feio, a ponto de o vedor da fazenda
de Portugal, Antônio de Ataíde, o conde de Castanheira,
aconselhar o rei de que investir no Brasil era jogar
dinheiro fora: “Consta que o Brasil não só deixara de
render o que antes rendia, mas custara, para defendê-lo
e povoá-lo, mais de oitenta mil cruzados [. .]

mistério grande foi fazer-se a primeira despesa a fim de


coisa que a não merecia.”1

A situação era desesperadora e uma crise econômica


estava definitivamente instaurada e se agravaria entre
os anos de 1534-1560

– período considerado o de maior crise do monopólio


português.

Diante disso, Portugal tinha de equacionar uma difícil


situação: investir o que não tinha, por meio de
empréstimos, na prospecção de supostas riquezas ou
economizar para amenizar o impacto da crise financeira.
A solução para as crises econômicas em Portugal e na
Espanha quase sempre descambava para o uso de
medidas irracionais. Todas as perseguições a judeus, em
ambos os países, aconteceram em épocas ou em função
de crises econômicas: “[. .]

se confeccionarmos um quadro cronológico com a lista


de perseguições, matanças, expulsões e conversões
forçadas que constituem a história judia, se descobre
uma correlação entre os movimentos da situação
econômica imediata e estas ferozes medidas antijudai-
cas, a perseguição está sempre determinada e
acompanhada pelas intempéries da vida econômica.”2 O
cenário para a barbárie estava, portanto, mais uma vez
armado. Havia vários precedentes e nova barbárie não
demorou em eclodir.

Na história europeia todos os episódios de selvageria, e


não são poucos os exemplos, foram frutos da pobreza,
produto inva-riavelmente da peste negra que, em vários
momentos, assolou a Europa e que teve um pico nas
décadas finais do século XV e início do século XVI. O ano
de 1481 foi um ano em que ocorreu um dos invernos
mais glaciais de todos os tempos. “Neste ano o trigo, que
era vendido a um preço de uma libra, passou a ser
comercializado a seis libras, em um ano de colheitas
deploráveis.

Depois de um inverno rigoroso, que congelou os rios de


dezembro a fevereiro, as chuvas diluvianas e enchentes
contribuíram para a destruição de colheitas e o aumento
de preços e a principal causa de mortes, nesse primeiro
momento, foi a fome, após a fome vem a peste, as
epidemias que faziam as pessoas caírem em frenesi e
morrerem raivosas possivelmente tomadas pela febre
causada O pêndulo da morte

161

pela tuberculose, pela varíola e pela peste negra [. .]


morreram entre 13 e 15 milhões de almas.”3

No mês de outubro de 1505, em Portugal, “se ateou


peste tão brava na cidade que foi necessário ir o rei com
toda a sua casa para Almeirim, a qual pestilência se
espalhou por todo o reino, e foi uma das mais bravas e
cruéis em muitos tempos”.4 Por causa dessa epidemia,
que durou até fins de abril de 1507, o rei d. Manuel
chegou a ordenar à Câmara o despovoamento da cidade
de Lisboa como um dos melhores meios de beneficiá-la.
Era um ato desesperado, pois todo o comércio de
Portugal estava centralizado em Lisboa.

Despovoar a cidade significava travar o comércio de


Portugal e parte do comércio mundial. A mortandade foi
tão excessiva que uma carta régia de março de 1506
determinava a construção de dois cemitérios fora das
portas de Lisboa “pelo mui grande inconveniente que se
segue de soterrarem os finados que morrem de
pestilência nos adros das igrejas da cidade”.5

O efeito desse período que reuniu clima, fome e peste vai


ser devastador para o equilíbrio da vida social na Europa,
em geral, e em Portugal, em particular. Num ambiente de
escassez, pobreza e fragilidade multiplicam-se os casos
de insanidade mental e, consequentemente, de
violência. Não é por acaso que vai ocorrer, em 1506, o
cruel e sanguinário massacre de Lisboa, no qual milhares
de judeus foram perseguidos e exterminados.

Damião de Góis escreve sobre o levante contra os


judeus, em Lisboa, 19 de abril de 1506, um domingo de
Páscoa: “No mosteiro de São Domingos existe uma
capela, chamada de Jesus, e nela há um crucifixo, em
que foi então visto um sinal, a que deram foros de
milagre, embora os que se encontravam na igreja
julgassem o contrário. Destes, um cristão-novo (julgou
ver, somente) uma candeia acesa ao lado da imagem de
Jesus. Ouvindo isto, alguns homens de baixa condição
arrastaram-no pelos cabelos, para fora da igreja, e
mataram-no e queimaram logo o corpo no Rossio [. .].

Ao alvoroço acudiu muito povo a quem um frade dirigiu


uma pregação incitando contra os cristãos-novos, após o
que saíram 162
O livro obscuro do descobrimento do Brasil

dois frades do mosteiro com um crucifixo nas mãos e


gritando

‘Heresia! Heresia!’. Isto impressionou grande multidão e


juntos mais de quinhentos começaram a matar os
cristãos-novos que encontravam pelas ruas, e os corpos,
mortos ou meio vivos, quei-mavam-nos em fogueiras que
acendiam na ribeira (do Tejo) e no Rossio. Na tarefa
ajudavam-nos escravos e moços portugueses que, com
grande diligência, acarretavam lenha e outros materiais
para acender o fogo. E, nesse domingo de Páscoa,
mataram mais de quinhentas pessoas [. .] a esta turba
de maus homens e de frades que, sem temor de Deus,
andavam pelas ruas concitando o povo a tamanha
crueldade, juntaram-se mais de mil homens e, por já nas
ruas não acharem cristãos-novos, foram assaltar as
casas onde viviam e arrastavam-nos para as ruas, com
os filhos, mulheres e filhas, e lançavam-nos de mistura,
vivos e mortos, nas fogueiras, sem piedade. E era
tamanha a crueldade que até executavam os meninos e
(as próprias) crianças de berço, fendendo-os em peda-

ços ou esborrachando-os de arremesso contra as


paredes. E não esqueciam de lhes saquear as casas e de
roubar todo o ouro, prata e enxovais que achavam. E
chegou-se a tal dissolução que até das próprias igrejas
arrancavam homens, mulheres, moços e moças
inocentes, despegando-os dos sacrários e das imagens
de Nosso Senhor, de Nossa Senhora e de outros santos, a
que o medo da morte os havia abraçado, e dali os
arrancavam, matando-os e queimando-os fanaticamente
sem temor de Deus [. .]. Neste dia pereceram mais de
mil almas, sem que, na cidade, alguém ousasse resistir,
pois havia nela pouca gente visto que, por causa da
peste, estavam fora os mais honrados. E se os alcaides e
outras justiças queriam acudir a tamanho mal, achavam
tanta resistência que eram forçados a recolher-se para
lhes não acontecer o mesmo que aos cristãos-novos

[. .]. Deram a notícia a el-Rei, na vila de Avis, o qual logo


enviou o Prior do Crato e d. Diogo Lobo, Barão de Alvito,
com poderes especiais para castigarem os culpados.
Muitos deles foram presos e enforcados por justiça,
principalmente os portugueses, porque os estrangeiros,
com os roubos e o despojo, acolheram-se às suas O
pêndulo da morte

163

naus e seguiram nelas cada qual o seu destino. Quanto


aos dois frades, que andaram com o crucifixo pela
cidade, tiraram-lhes as ordens e, por sentença, foram
queimados.”6

Estima-se que quatro mil tenham morrido. Esse massacre


é lembrado por um monumento, que pode ser visto em
Lisboa hoje, construído no largo de São Domingos, da
autoria da arquiteta Graça Bachmann, inaugurado em 23
de abril de 2008.

Outros surtos de peste ocorreram em Portugal. Em 1510,


foram abertos dois hospitais provisórios para o
atendimento dos doentes; em 1523 foi preciso abrir dois
novos cemitérios; em 1525 foi preciso evacuar
novamente a cidade de Lisboa, culminando, no ano de
1531, na epidemia de peste e de outras doenças
causadas pelas condições deixadas pelo terremoto. Todas
essas desgraças foram atribuídas aos judeus, que, de
certa forma, estavam acostumados a viver num
ambiente totalmente hostil, ora mais, ora menos, mas
sempre hostil.

As classes inferiores detestavam os cristãos-novos não só


por motivos religiosos, mas sobretudo pela riqueza
monetária oriunda do domínio do comércio e da
indústria, que estava nas mãos de judeus. Imaginava-se
– ou isso de fato ocorria? – que os judeus se
aproveitavam frequentemente dessa vantagem “para se
vingar dos seus inveterados inimigos, daqueles que
tinham assassinado ferozmente seus irmãos. Era uma
luta muitas vezes oculta, mas permanente, e que dia a
dia se exacerbava por novos agravos”.7 Contra os judeus
queixavam-se de tomarem para si as rendas das grandes
propriedades, de monopolizarem os cereais para os
fazerem subir a preços excessivos nos anos escassos. No
ramo da medicina, também aparecem muitas queixas, já
que os médicos e os boticários eram na maioria judeus.
Era uma espécie de opinião generalizada de que médicos
e boticários se mancomunavam para envenenar
católicos.

Nos arquivos da Inquisição, constam ao menos cinquenta


físicos, cirurgiões e boticários: “O físico Garcia Lopes de
Évora foi queimado; o mestre Roque de Beja foi
queimado; o mestre Rodrigo de Lisboa foi queimado; o
físico Pero Lopez foi queimado em Goa; o físico Diogo de
Santellena foi sambenitado; o físico Ruy Gonçalves 164

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

foi sambenitado; o físico Thomas Nunes foi queimado; o


boticário Pero Lopes foi preso e sambenitado; o boticário
Nunes Rodrigues foi preso e sambenitado; o boticário
Gabriel Pinto foi queimado; o cirurgião mestre Alvaro foi
queimado; e o cirurgião mestre-mor de Évora foi
queimado.”8

O clima que nunca havia sido bom desde que uma


imensa leva de imigrantes judeus havia chegado a
Portugal, depois de expulsos da Espanha, se agravava
dia a dia. Chegou ao seu auge em 1531 em razão do
grande terremoto que sacudiu Portugal e provocou uma
grande destruição, agravando a disseminação de
doenças. Teria matado cerca de 30 mil pessoas, e, como
já era de esperar, a culpa foi lançada sobre os judeus.
Não por acaso é desse ano também a solicitação da
instauração da Inquisição em Portugal.

Era tão absurda a relação entre o terremoto, a peste e os


cristãos-novos que até o grande poeta e dramaturgo Gil
Vicente se viu na obrigação de fazer uma perigosa
intervenção em defesa da racionalidade, decidindo
escrever ao rei d. João III e à Igreja. Aos padres, Gil
Vicente fez a seguinte exposição por ocasião do
terremoto de Lisboa, em 1531: “O altíssimo e soberano
Deus nosso tem dois mundos: o primeiro foi de sempre e
para sempre que é a sua resplandecente glória, repouso,
permanecente, quieta paz, sossego sem contenda,
concórdia triunfante. Este segundo em que vivemos a
sabedoria imensa o edificou pelo contrário, todo sem
repouso, sem firmeza, sem prazer seguro, sem fausto
permanecente, todo breve, todo fraco, todo falso,
temeroso, aborrecido, cansado, imperfeito para que por
estes contrários sejam conhecidas as perfeições da glória
primeiro e para que melhor sintam suas pacíficas
concordâncias [. .] estabeleceu na ordem do mundo que
umas coisas dessem fim às outras e que todo gênero de
coisa tivesse seu contrário [. .].
E por serem acontecimentos que procedem da natureza
não foram escritos, como escreveram todos aqueles que
foram por milagre

[. .]. E porque nenhuma coisa há debaixo do sol sem


tornar a ser o que foi e o que viram desta qualidade de
tremor havia de tornar a ser por força ou cedo ou tarde
não o escreveram. Concluo que O pêndulo da morte

165

não foi este espantoso tremor ira de Deus, mas ainda


quero que me queimem se não fizer certo que tão
evidente foi e manifesta a piedade do senhor Deus neste
caso como a fúria dos elementos e danos dos edifícios [.
.]. Concluo virtuosos padres sob vossa emenda que não é
de prudência dizerem-se tais coisas publicamente nem
menos serviço de Deus porque pregar não há de ser
praguejar. As vilas e cidades dos reinos de Portugal
principalmente Lisboa, se há muitos pecados, há infindas
esmolas e romarias, muitas missas e orações e
procissões, jejuns, disciplinas e infindas obras pias
públicas e secretas. E se alguns há que são ainda
estrangeiros na nossa fé e se consentem, devemos
imaginar que se faz porventura com tanto santo zelo que
Deus é disso muito servido e parece mais justa virtude
aos servos de Deus e seus pregadores animar a estes e
confessá-los e provocá-los que escandalizá-los e corrê-los
por contentar a desvairada opinião do vulgo.”9

Em 1525, o rei d. João III casara-se com Catarina da


Espanha –

mãe do futuro d. Sebastião. Desde então houve uma


interseção cada vez maior entre a Inquisição espanhola e
os católicos portugueses.
O terremoto se tornou uma verdadeira mão na luva. A
despeito de toda a tragédia que o terremoto e o tsunami
causaram – cerca de trinta mil pessoas morreram –, ela
foi amplamente capitalizada por aqueles que insistiam
que a única saída para a crise seria a Inquisição.

Apenas a especulação em torno dessa possibilidade já


será suficiente para fazer com que os episódios de ódio
aos judeus se intensificassem pelos motivos mais banais
ou até mesmo sendo fruto de mentiras e invenções. Mas
não eram apenas problemas cotidianos, como o aumento
do preço dos alimentos, sobretudo do trigo, que
respalda-riam o ódio dos portugueses pelos judeus –
estava ali no cerne da questão o fanatismo religioso que
era aviventado pelas contínuas incitações do clero.

Se para o povo a animosidade em relação aos judeus era


uma questão de exaltação religiosa, “para o Estado era
uma questão de contas públicas que se encontravam em
estado deplorável. A corte vivia cheia de ociosos que
viviam opulentamente sem ordem e 166

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

economia. Qualquer viagem do rei levava consigo uma


imensa comitiva de parasitas de todas as classes e
devorava a substância dos proprietários e lavradores,
mantimentos, cavalgaduras, carros, tudo era tomado e
não era pago. Os clérigos iam no mesmo caminho,
recolhiam os dízimos e rendas de modo que a visita dos
prelados tinha por fim extorquir dinheiro”.10

Somente para pagamento do dote da infanta portuguesa


foi preciso levantar oitocentos mil cruzados, e como
faltavam recursos era preciso obtê-los. As cortes foram
convocadas em 1525 e votou-se a quantia de cento e
cinquenta mil cruzados em novos impostos. Portugal era,
portanto, um país decadente, carregado de dívida
pública. Mas foi em 1525, com o casamento, que uma
palavra assustadora entrou no vocabulário da corte e do
clero português: Inquisição. Os horrores da Inquisição
espanhola ainda estavam muito vivos na memória dos
judeus, muitos deles espanhóis que imigraram para
Portugal.

O caso mais ilustrativo do horror – depois do insuperável


Torquemada – atendia pelo nome de Diego Rodríguez de
Lucero, primeiro inquisidor de Córdoba. Lucero era um
homem cruel e sanguinário, tanto que era conhecido pela
alcunha de o tenebroso.

Na sua época, judeus eram condenados por confissões


extravagantes tais como “feitiçaria, viagens aéreas nas
asas de demônios, bodes volantes, fantasmas,
ubiquidade dos bruxos [. .] Lucero tripudiava sobre os
cristãos-novos e as prisões se atulhavam”.11

Mas foi apenas em 1531 que se iniciaram as tratativas


em torno da instauração da Inquisição em Portugal.
Sabendo da inevitabilidade de tal processo e sabedor do
horror que estava a caminho, d. João III arma a viagem
de Martim Afonso ao Brasil e articula, assim, a saída de
Portugal de várias famílias judias, ao menos aquelas mais
próximas, posto que Martim Afonso era seu amigo de
infância. Desse modo, a viagem de Martim Afonso, no
início dos anos 1530, para explorar a região do Prata e
assentar uma colônia de povoamento na região de São
Vicente, em São Paulo, está diretamente ligada a esse
espírito reacionário que vai pouco a pouco tomando
corpo em Portugal. Sem O pêndulo da morte

167
essa ameaça Martim Afonso teria empreendido essa
primeira viagem ao Brasil? Ou o território teria
permanecido completamente abandonado, como
indicava ao rei que o fizesse o seu vedor da fazenda,
conde de Castanheira? Não por acaso, essa viagem é
considerada também o ponto de partida da produção em
larga escala de açúcar no Brasil, dado que já em 1533 se
montou um dos primeiros engenhos no país, em São
Vicente, tendo como proprietário, além de Martim
Afonso, o holandês Johan van Hielst, ou João Veniste, que
mais tarde se associaria a Erasmos Schetz. Engenho
cujas ruínas podem ser visitadas até os dias de hoje
naquela cidade. Não se tratava, portanto de uma viagem
de exploração, como as anteriores, mas uma viagem de
povoamento, tanto que vieram na armada de Martim
Afonso famílias inteiras.

Seguindo a procissão do atraso, em 1531, d. João III dá


instruções a Brás Neto, embaixador em Roma, para que
impetrasse junto ao papa Clemente VII o pedido para a
emissão e publicação de uma bula concedendo o
estabelecimento da Inquisição em Portugal nos seguintes
termos: “Que se tomasse por norma a Inquisição de
Castela, dando-se aos inquisidores portugueses as
mesmas atribui-

ções que haviam sido concedidas aos do resto da


Espanha ou mais, se mais se pudessem dar, e que fosse
perpétua a concessão do novo tribunal: que o rei ficasse
revestido dos necessários poderes para nomear os
inquisidores e outros ministros e oficiais do mesmo
tribunal [. .] que a Inquisição não conhecesse tão
somente dos crimes de heresia, mas também dos de
sortilégio, feitiçaria, adivinhação, encantamento e
blasfêmia, que a ela pertencesse, em todos os
precedentes delitos sujeitos a sua jurisdição, levantar
excomunhões, minorar penas, reconciliar e absolver os
réus.”12

Numa época em que a Igreja negociava indulgências e


vendia até mesmo títulos como os de cardeal e até
mesmo o de papa – é notório, por exemplo, o caso de
Alexandre VI, que havia usado sua fortuna para comprar
o voto da maioria dos cardeais no conclave que o elegeu
papa. Pode-se facilmente imaginar o preço que seria
cobrado por uma bula. E esta não era uma bula qualquer,
tratava-se da instauração de uma Inquisição, e, como em
toda Inquisição, um 168

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

dos objetivos principais era condenar para espoliar, para


confiscar bens, coisa que rendia verdadeiras fortunas,
portanto, não seria algo que se tiraria da Igreja sem um
custo altíssimo.

A venda de cargos e indulgências só começaria a ser


proibida na Igreja quando do Concílio de Trento, em
1545. Em Portugal, os mais exaltados falavam até em
ruptura com a Igreja, caso o negócio ficasse enrolado, e
citavam como exemplo o caso do rei da Inglaterra
Henrique VIII, que em 1527 rompeu com a Igreja Católica
e iniciou a reforma anglicana ao ter o seu divórcio
negado pelo mesmo papa Clemente VII.

Sendo assim, não demorou muito para que a fatura


chegasse.

No meio do caminho de Portugal apareceu em Roma um


cardeal chamado Lourenço Pucci, que se apresentou
desde o início como um obstáculo e chegou a expressar a
Brás Neto grande repugnância em contribuir para a
instauração da Inquisição. Para ele, a proposta
“parecia indicar o intuito de espoliar os judeus de suas
riquezas”.13

Brás Neto receava que o cardeal Pucci estivesse sendo


pago para defender os judeus com o dinheiro que era
enviado pelos conversos de Portugal. Desse modo, Brás
Neto pediu ao rei que o habilitasse com o meio mais
poderoso para abreviar tais negócios na Cúria Romana,
que era, evidentemente, o dinheiro. Pucci morreu por
aqueles meses e seu sobrinho o substituiu, tornando-se
protetor de Portugal nas várias fases da instituição da
Inquisição. Tornava-se protetor de qualquer país o
cardeal, nativo ou não, escolhido pelo governo para
servir de agente e procurador perante o consistório.

Sendo o sobrinho de Lourenço Pucci um reputado


simoníaco, pode-se imaginar o preço que Portugal teria
pagado para a atuação favorável à Inquisição.

Entre idas e vindas e muito dinheiro investido de todos os


lados, no dia 17 de dezembro 1531 foi emitida a bula
pela qual o papa nomeava um inquisidor no reino de
Portugal e seus domínios

– estava criada a Inquisição em Portugal. Os


fundamentos da bula

Cum ad Nihil Magis eram que “tendo-se tornado comuns


neste país os fatais exemplos de volverem aos ritos
judaicos muitos cristãos O pêndulo da morte

169

novos que os haviam abandonado e de os abraçarem


outros que, nascidos de pais cristãos, nunca tinham
seguido aquela crença, acrescendo o disseminar-se no
reino a seita de Lutero e outras igualmente condenadas
e, bem assim, o uso de feitiçarias reputadas heréticas, se
conhecera a necessidade de atalhar o mal com pronto
remédio, de modo que a gangrena não eivasse os
espíritos”.14 A partir dessas considerações a bula
revestia o inquisidor de poderes para inquirir “havendo
suficientes indícios e a proceder à captura e encarcerar,
condenar e impor penas, a quaisquer indivíduos
implicados [. .] dava poderes para impondo-lhes
penitências [. .]

que julgasse oportuno para refrear os delitos religiosos,


extirpá-los radicalmente e tudo o mais que, por direito e
costume, pertencesse ao ofício inquisitorial”.15

Em 1531 se institui a Inquisição em Portugal e, a partir


desse momento, se inicia um misterioso e instigante jogo
de xadrez que vai envolver ninguém mais, ninguém
menos que o papa, o rei de Portugal e os mais abastados
comerciantes e banqueiros judeus de toda a Europa, cujo
desfecho vai ser decisivo para o destino do Brasil.

Da publicação da bula, em 17 de dezembro de 1531, à


sua execução seriam necessários de 6 a 8 meses. O
temor de Portugal era que a demora na implementação
da Inquisição desse tempo para os judeus mais
abastados fugirem. Desde os acontecimentos de 1506
havia uma série de leis promulgadas por d. Manuel que
eram favoráveis aos judeus, permitindo que eles saíssem
do reino para qualquer terra de domínio português. Isso
teria validade até 1534.

Em 14 de junho de 1532, Portugal cria uma lei revogando


a de 1507, justamente na parte favorável aos judeus. Na
prática, a nova lei não só punha de novo em vigor, como
também ampliava os antigos alvarás surgidos em 1499,
sobretudo os que tratavam da proibição aos judeus de
deixarem o reino de Portugal.

A partir de então, quem fizesse a mudança, agora


considerada clandestina, seria condenado ao confisco de
bens e à pena de morte.

Claro, pois a manutenção dos judeus em Portugal era a


cereja do macabro bolo.

170

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

Não era só a essência do direito de proteção que se


invali-dava, “mas as próprias fórmulas judiciais que
ficavam anuladas, as delações, as prisões, a ordem de
processo, tudo isso passaria a ser regulado por um
sistema novo sob o comando do inquisidor geral. Era
uma porta que se abria para o triunfo do fanatismo e da
barbárie”.16

Diante de uma Inquisição iminente e agora impedidos de


deixar o reino, a saída dos judeus seria contra-atacar e
buscar apoio em Roma para tentar combater os efeitos
da bula. É nesse contexto que entra um personagem
misterioso chamado Duarte da Paz.

Ele se tornou da noite para o dia, no mesmo dia em que


partiria para uma missão secreta para o rei d. João III,
Cavaleiro da Ordem de Cristo, o que lhe concedia status.
A princípio ele tinha saído de Portugal rumo à Espanha,
mas rapidamente chegou a Roma, muito próximo aos
embaixadores portugueses que acertavam os detalhes
da Inquisição.
Duarte da Paz escrevia cartas ao rei por meio de um
código que ele havia desenvolvido, “para não me
suceder nenhum perigo tomando a alguém a minha
letra”.17 Pedia ao rei que “nunca escrevesse, exceto em
caso de extrema necessidade”,18 e a última
recomendação era a de que o rei “queimasse as cartas
que lhe remetia”.19

Duarte da Paz chegou a indicar, como estratégia para


dissimular o estreito contato deles, que d. João III falasse
mal dele em público – e também em particular – para não
despertar desconfianças. Numa das cartas fica muito
clara a ligação entre ambos, quando Duarte da Paz diz
que “sempre estou, como estava nesse reino, prestando
serviços a Vossa Alteza”.20

Duarte da Paz era pai de Tomas Pegado da Paz, uma


espécie de embaixador e espião de um dos mais
renomados banqueiros e comerciantes da época, o
duque de Naxos. Por trás desse título nobiliárquico
estava a figura de d. Joseph Nassi Mendes, herdeiro de
uma das famílias mais abastadas de Portugal, os Mendes
Benevistes, que estava morando na Turquia nesse
período das tratativas para a instauração da Inquisição
em Portugal. Estaria Duarte da Paz, em O pêndulo da
morte

171

nome do duque de Naxos, “comprando” a obstrução dos


trâmites da instauração da Inquisição portuguesa em
Roma?

O fato é que misteriosamente o então nomeado


inquisidor-mor de Portugal, Diogo da Silva, renunciou, e
isso inviabilizou a bula.
Por que motivo ele teria declinado? Por que voltaria a
aceitar o cargo em 1536? A substituição de seu nome
exigia uma nova bula, e em 17 de outubro de 1532 o
papa Clemente VII expediu um Breve chamado
Venerabilis Frater, pelo qual declarava suspensos os
efeitos da bula de 1531, que criara a Inquisição em
Portugal.21

Diante dos retrocessos em Roma, o conde de Castanheira


reclama ao rei de Portugal que “coisas estranhas acho cá
desse núncio e de Brás Neto, o qual foi por ele o
trabalhar e de a instigarem o papa. . Brás Neto tem feito
coisas nesta terra assim de desordem de sua pessoa
como do estado de el-Rei que é para se queimar”.22

O interessante é que não se tem notícia de que Brás Neto


tenha recebido qualquer tipo de instrução sobre qual
procedimento tomar em função da anulação da bula, o
que contraria todo esforço feito até então. É como se
misteriosamente, depois da ação de Duarte da Paz, o rei
passasse a tratar a questão da Inquisição com
descaso.23

Duarte da Paz não conseguiu somente a anulação da


bula, mas o perdão aos judeus por meio da bula
Sempiterno Regi, de 7 de abril de 1533, que “por efeito
disso, incumbia ao núncio a missão benévola de perdoar
e admitir à reconciliação com a Igreja todos os culpados
que se apresentassem a confessar seus erros, a ele
pessoalmente ou a delegados seus nas diferentes
dioceses, devendo inscrever-se os nomes dos
reconciliados em livros próprios, para conhecimento
futuro. A principal razão a saber: que os primeiros
conversos o tinham sido por ato violento. Quanto aos
filhos destes, batizados na infância, mal se podia supor
resistissem ao influxo do ambiente doméstico, hostil ao
cristianismo. Mais declarava o pontífice ser a sua decisão
espontânea, e de nenhum modo a requerimento dos
interessados”.24

Em 26 de julho de 1534, Duarte da Paz sofre uma


tentativa de assassinato. Seria por ter desfeito o
auspicioso negócio da Inquisição 172

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

em Portugal? Fugiu para a Turquia, onde assumiu o nome


de David Bueno. Em 25 de setembro de 1534 morria o
papa Clemente VII –

uma versão sobre sua morte diz que teria sido


envenenado. Paulo III assumiu o papado em 23 de
outubro de 1534 e em 26 de novembro mandou anular o
Breve do perdão de Clemente VII por meio do Romanus
Pontifex. Em 22 de outubro de 1536 seria publicada uma
outra bula, que criava novamente a Inquisição em
Portugal.

Esse conjunto de circunstâncias é, no mínimo, estranho.

Ao que parece, o jogo de xadrez de d. João III sofreu um


revés e um xeque-mate inesperado. A Inquisição em
Portugal, cuja implantação parecia uma manobra interna
do rei para azeitar as relações com a nobreza, os súditos
e a Igreja, sem qualquer inten-

ção de que ela se realizasse de fato, tornou-se,


inesperadamente, uma realidade.

Nesse jogo de interesses, uma grande “jaula de ferro” foi


armada contra os judeus. Diante desse revés era preciso
agir rápido: o rei convoca o conde de Castanheira e toma
uma medida drástica – criar as capitanias hereditárias no
Brasil. Capitanias hereditárias que foram criadas às
pressas, como vimos, enquanto Martim Afonso chegava
ao Brasil, em 1530, com uma leva de famílias judias.
Teria sido a criação das capitanias e a suposta
necessidade de colonizar o Brasil apenas uma jogada do
rei? Afinal, frente à sua fracassada tentativa de obstar a
implantação da Inquisição em Portugal, o monarca pôde
retirar as famílias judias de Portugal burlando a lei que
ele mesmo havia aprovado.

Jamais saberemos.

A implantação da Inquisição em Portugal e a questão da


perseguição aos cristãos-novos ou aos judeus em
Portugal têm a ver com a crise financeira gerada pela
crise no monopólio, mas têm relação também com um
contexto de mudanças de âmbito internacional.
Mudanças profundas, diga-se de passagem, fundadoras
do mundo moderno.

O que estava em jogo com a Reforma Protestante eram


dois dos principais motores da humanidade desde
tempos imemoriais: riqueza O pêndulo da morte

173

e poder. Se, por um lado, a venda de indulgências e a


cobrança de dízimo a que até os reis estavam sujeitos
era uma fonte importante de receitas, por outro, era
também uma forma de exercer o poder.

A verdade é que a Reforma Protestante foi, se não a


primeira, a mais ameaçadora das oposições que a Igreja
Católica sofreu em mil anos. Não era qualquer coisa,
porque se antes a Igreja tinha o apoio incondicional dos
reis contra seus opositores, agora seus opositores é que
tinham o apoio e a proteção dos reis.
Um terremoto em Lisboa abalou também o Brasil.

174

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

O DIA DAS BRUXAS

A simonia, como vimos, era então a regra e os


simoníacos estavam sempre de plantão, babando feito
cães ferozes em busca de novas e afortunadas vítimas.
Foi contra esse estado de coisas que no dia de 31 de
outubro de 1517 – Dia das Bruxas

– Martinho Lutero entrou no castelo de Wittenberg


disposto a gravar seu nome na história. Pregou na porta
da igreja do castelo as suas noventa e cinco teses que
propunham a reforma do catolicismo. O ato de extrema
coragem era o sinal de que a situação em que a Europa
estava imersa havia chegado ao seu nível máximo de
tensão e a atitude de Lutero foi a gota d’água.

A partir dali, o que era velado foi escancarado e um


verdadeiro jihad se espalhou pela Europa.

O motivo?

Os desdobramentos das descobertas da América em


1492 e do Brasil em 1500 abalaram o mundo ocidental.
Não porque se tratava de um novo mundo, ou porque os
habitantes dali cultivavam outro modo de vida. Do
México ao Peru havia civilizações organizadas, cidades
até maiores e mais ricas e opulentas do que muitas
cidades

europeias, habitadas por milhares de pessoas. O Brasil


foi um ponto fora da curva, pois por aqui os índios viviam
em estado de natureza, numa espécie de atraso
civilizatório incomum e em contraste gritante com a
realidade tanto dos seus vizinhos americanos quanto dos
europeus. O máximo de interesse que o Brasil despertou
foi na imaginação dos poetas e dos desavisados. Thomas
Morus, por exemplo, escreveu em 1516 seu livro A
utopia, em que projeta um mundo onde “enquanto
comem e bebem em pratos e taças de cerâmica ou de
vidro – bem elaborados, mas feitos de material barato – o
ouro e a prata servem para a fabricação dos utensílios de
uso mais humilde e comezinho, como os urinóis, nos
edifícios públicos e nas habitações particulares. Também
as correntes e as pesadas traves com que prendem os
escravos são feitas com esses metais. Finalmente, os
criminosos condenados a carregar consigo a marca de
algum ato infamante são forçados a usar argolas de ouro
nas orelhas, anéis de ouro nos dedos, correntes de ouro
no pescoço ou mesmo uma coroa de ouro na cabeça.
Assim, procuram de todas as formas tornar ignominioso o
uso do ouro e da prata”.1 Queria Morus por acaso que o
homem europeu do século XVI voltasse a viver sua
inocente vida de antes da descoberta das delícias do
mundo?

Mas os motivos pelos quais o descobrimento da América


abalou o mundo eram menos nobres e não tão ingênuos
como o pensamento de Thomas Morus. As notícias sobre
a riqueza e a opulência do Novo Mundo e, sobretudo, as
amostras de ouro, prata, esmeralda e diamante, levadas
à Europa por Colombo e Cabral, chocaram o Velho
Mundo. Pode-se dizer que foram ainda mais significativas
do que a notícia trazida por Vasco da Gama, em 1498, de
que era possível se ter acesso ao Oriente pelo Atlântico
Sul, por meio do cabo da Boa Esperança. As especiarias
sem dúvida eram importantes, pois fizeram – e faziam –
a fortuna dos comerciantes na Europa, mas, comparadas
aos metais nobres, seu valor sem dúvida era de menor
importância. Segundo os Arquivos das Índias Ocidentais
foi registrada a entrada entre os anos de 1503 a 1660, na
Espanha, 176

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

de cerca de 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos


de prata provenientes da América.

Com tanta riqueza em jogo, era natural que os ânimos se


exal-tassem. Sobretudo num cenário em que vigorava
uma pequena idade glacial que havia começado em
meados do século XIV e se estenderia até o século XIX. O
frio que levou a colheitas deficitárias e,
consequentemente, a preços elevados dos grãos, o que
pauperizou todas as nações. A fome se estendeu por
toda a Europa e a peste negra tocou forte com seu hálito
de morte todas as almas, de modo que “na Itália e
Alemanha os pobres comiam tudo que encontravam:
gatos, cachorros e até serpentes [. .] na Inglaterra
aconteceram vários motins por causa da fome [. .] na
cidade francesa de Rouen em 1438, os cães e porcos
devoravam crianças mortas espalhadas pelas ruas [. .]
na Hungria as mulheres tártaras comeram os seus
próprios filhos”.2 No fim do século XVI, o frio, a fome e a
peste foram responsáveis por 1.700.000 mortes em toda
a Europa.

Mas o principal motivo que levou Lutero ao ato extremo


de ruptura não foi a pobreza nem o mau humor da
natureza, mas a avareza, a cobiça, a mesquinhez, a
torpeza, a trapaça, o charlata-nismo e a simonia dos
homens que falavam em nome de Deus. O
que irritou Lutero foi a questão da venda de indulgências
que havia sido regra ao longo de toda a Idade Média,
mas que se intensificara significativamente naquele
cenário de crise, de pobreza, de fome e sobretudo de
medo, que é a matéria-prima de toda dominação. A
Igreja capitalizava a miséria e as desgraças que se
abateram sobre o povo por meio do pavor pregado pelos
milenaristas a fim justamente de transformar o medo em
dividendos. O frio, o eclipse lunar, os cometas, as
doenças, a inanição eram fenômenos vendidos pela
Igreja como resultado de erros dos homens pecaminosos
e produtos do castigo de Deus, ou seja, tudo era usado
como sinal inequívoco do Apocalipse.3

Num ambiente completamente hostil como esse, a


cobrança de indulgências, pagamentos que se faziam à
Igreja – portadora na terra dos desígnios de Deus – para
a remissão dos pecados cometidos O Dia das Bruxas

177

na terra, se intensificou imensamente. Não por acaso, o


principal motivo do seu ato desesperado era a tolerância
em relação à questão da cobrança abusiva de
indulgências que gerava protestos inclusive no interior
da Igreja. A Reforma Protestante foi, no fim das contas,
uma tentativa de desvincular Igreja e Estado, partindo do
princípio da fala de Cristo de que o seu reino não era
deste mundo, portanto a Igreja devia se preocupar com o
outro mundo e deixar este a cargo dos príncipes e dos
Estados. Esse discurso era música para os ouvidos dos
estadistas. Maquiavel estava atentíssimo a este
movimento de contestação do catolicismo – já havia
inclusive escrito O Príncipe – e devia estar aplaudindo de
pé a afronta ao poder da Igreja. Os grandes capitalistas,
comerciantes e banqueiros, eram extorquidos pela Igreja
com a cobrança de indulgências. O fim dessa cobrança e
dessa prática implicava a criação de um movimento em
que todo capital convergiria para os negócios, para o
comércio, e alimentaria a roda da fortuna do
enriquecimento dos comerciantes e, consequentemente,
dos reis.

No fim do século XV e início do XVI, a Igreja arrecadava


verdadeiras fortunas com o comércio de indulgências.
Havia até uma tabela de valores para os pecados. Entre
os mais interessantes estavam: “Os sacerdotes que
quisessem viver em concubinato pagariam 76 libras;
para cada pecado de luxúria a absolvição custará 27
libras; a mulher adúltera que quiser se ver livre de
qualquer processo e que quiser continuar na relação
ilícita pagará 87 libras; a absolvição por crime de roubo,
furto ou incêndio custará 131 libras; a absolvição de
homicídio contra uma pessoa custará 15 libras; quem
afogar o filho pagará 17 libras; compra antecipada de
absolvição para homicídio custará 168 libras; o delito de
contrabando e contra os direitos dos príncipes custará 87
libras.”4

Um dos mais conhecidos vendedores de indulgências na


Europa foi o frade dominicano Johann Tetzel, que era
tratado como o grande comissário do papa para
indulgências. Ele havia sido encarregado de arrecadar
dinheiro por meio da venda de indulgências por João de
Lourenço de Médici – filho do grande estadista e
comerciante florentino Lorenzo de Médici –, ordenado
papa com o nome de 178

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

Leão X em 1513. Além de indulgências, outros produtos


do port-fólio da Igreja eram as vendas de títulos como os
de arcebispo e de cardeal. O próprio Leão X foi o último
não sacerdote a ser eleito papa, tendo sido escolhido
certamente por causa de sua fortuna pessoal. O papa
Clemente VII, que vimos envolvido na questão da
Inquisição portuguesa, era seu primo, chamava-se Giulio
di Giuliano de Médici e o sucederia no pontificado, que
parecia ser, no início do século XVI, mais um dos
negócios dos Médicis. Essas práticas se intensificavam
justamente nos períodos mais tenebrosos, como os
episódios de surtos de lepra, peste negra e crises
econômicas, em que o medo da morte contribuía
significativamente para o aumento da demanda por
perdão, clemência etc. Todo dinheiro, a princípio, seria
empregado na reforma da Basílica de São Pedro, no
Vaticano.

Esse era o motivo oficial, mas por trás disso havia outras
razões menos altruístas. Inevitavelmente, parte era
desviada e proporcionou a abastança de grande número
de famílias.

Quanto ao dinheiro arrecadado nas vendas de


indulgências, ele realmente havia sido aplicado na
construção da Basílica de São Pedro, mas quanto desse
montante teria sido desviado para os cofres particulares
dos Médicis? Isso porque com a guinada do centro do
mundo, em 1453, após a queda de Constantinopla, do
Mediterrâneo para o Atlântico, as grandes cidades, que
eram os principais centros comerciais e, portanto, as
mais opulentas e abastadas da Europa – Veneza, Gênova,
Florença – tornaram-se menos importantes e, portanto,
empobreceram.

Certamente a questão da venda de indulgências


transformou a Igreja num grande negócio, numa época
de crise econômica.
Negócio, não por acaso, iniciado no papado de um
Médici, descendente e herdeiro da dinastia dos grandes
banqueiros florentinos.

O patriarca Giovanni di Médici fundou o primeiro banco


em Florença, e, em pouco tempo, chegou a ter nada
menos que vinte bancos espalhados pela Europa.
Quando a Igreja Católica sofreu uma grave cisão – o
chamado Grande Cisma do Ocidente –, ocasião em que
chegou a haver três papas, o banqueiro usou todo seu O
Dia das Bruxas

179

poder de persuasão sobre os príncipes para levar de


volta o papado para a cidade de Roma. Foi uma
estratégia extremamente eficiente para que a Igreja
fizesse vista grossa para a usura praticada pelo
banqueiro. A usura, como sabemos, era um dos mais
combatidos negócios da época. A Igreja tratava a
obtenção de lucros por meio de empréstimos a juros
como um pecado grave.

Era, porém, um dos melhores negócios da época, pois a


logística do mercantilismo, ou seja, a compra e venda de
mercadorias, além do altíssimo custo das viagens, era
quase em sua totalidade bancada por empréstimos que
faziam a fortuna e a opulência dos banqueiros e dos
financistas. Não por acaso, Cosimo di Médici, seu filho, foi
o grande mecenas do Renascimento italiano, para ele
trabalharam nomes como Michelangelo, Dante, Da Vinci,
Brunelleschi, Botticelli e Maquiavel.

A tolerância da Igreja em relação à usura praticada pelos


Médicis prova como havia um viés extremamente
unilateral nas suas tomadas de decisão. Isso porque o
lucro e o enriquecimento sempre pertur-bou o
cristianismo. Dentro da Igreja, esse foi um tema caro,
eivado de conflitos morais e éticos. As ordens
mendicantes – franciscana e dominicana – e o seu
comprometimento em viver na pobreza e na humildade
condenavam o acúmulo de riquezas. À medida que a
prática do comércio vai se ampliando e
consequentemente o acúmulo de riquezas, a
repugnância e a condenação dessa prática por parte do
catolicismo vão se intensificando, resultando em ações
cada vez mais agressivas, intolerantes e fanáticas.

A Igreja agia de forma dupla: para os ricos oferecia


empréstimos e a tolerância em relação à usura; para os
pobres fazia apologia da pobreza, partindo da premissa
de que rico não entra no reino do céu e de que era
preciso agradecer perante Deus apenas “o pão nosso de
cada dia que nos dai hoje”, como prega a reza. Dessa
dupla função surgirão os conflitos internos e também os
conflitos com os judeus que eram banqueiros e usurários
concorrentes da Igreja.5

O parto do capitalismo, no fim do século XIV e início do


século XV, foi, portanto, feito a fórceps. Teve de abrir
caminho e 180

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

vencer a resistência da Igreja, que lutaria com todas as


suas forças contra as práticas capitalistas que julgava ser
um obstáculo, uma ameaça ao poderio do catolicismo,
conquistado a duras penas.

Contraditoriamente, o catolicismo era uma das religiões


que mais acumulavam riquezas. Talvez a grande
resistência do catolicismo ao capitalismo tenha sido o
medo da perda da sua principal fonte de acumulação de
riquezas, representada pela figura dos reis. Isso se
intensifica, sobretudo, na passagem da Idade Média para
a Idade Moderna, com cada vez mais protagonismo dos
comerciantes, esses, sim, extremamente avessos aos
dogmas da Igreja e visceralmente partidários do
reformismo.

Uma das vertentes mais poderosas e violentas da


relutância da Igreja com a emergência do capitalismo
serão as Cruzadas. Basta lembrarmos do famoso sermão
do papa Urbano II em Clermont-

-Ferrand, na França, em 27 de novembro de 1095,


convocando a primeira cruzada, em que dizia: “Desde
Jerusalém e desde Constantinopla chegou até nós, mais
de uma vez, uma dolorosa notícia: os turcos, povo muito
diverso do nosso, povo de fato afastado de Deus, estirpe
de coração inconstante e cujo espírito não foi fiel ao
Senhor, invadiu as terras daqueles cristãos, as devastou
com o ferro, a rapina e o fogo [. .]. Empreendei o
caminho do Santo Sepulcro, arrancai aquela terra, aquele
povo celerado e submetei-la a vós: ela foi dada por Deus
em propriedade aos filhos de Israel; como diz a Escritura,
nela correm rios de leite e mel. Jerusalém é o centro do
mundo, terra feraz por cima de qualquer outra quase
como um paraíso de delícias; o Redentor do gênero
humano a tornou ilustre com sua vinda, a honrou com
sua passagem, a consagrou com sua Paixão, a redimiu
com sua morte e a tornou insigne com sua sepultura.”6

Claro que por trás dessa fúria do papa Urbano II não


estava a defesa do Santo Sepulcro. Não podemos
esquecer que havia grandes interesses políticos e
econômicos na região da Palestina, de Jerusalém, que
havia caído nas mãos dos muçulmanos. A Terra Santa era
na verdade um grande entreposto comercial. Era o
entronca-mento entre as rotas do comércio do Extremo
Oriente, da Ásia, da O Dia das Bruxas

181

África com a Europa. Como se pode ver, havia coisas


mais mundanas em jogo. É a partir da tomada de
Jerusalém, nessa primeira cruzada, que surgem os
lendários cavaleiros templários – espécie de exército
criado para proteger a conquista dos cristãos, a pere-
grinação dos fiéis e, é claro, o fluxo das preciosas
mercadorias do Oriente para o Ocidente.

Essa guerra entre Igreja e capitalismo vai perdurar por


séculos e reverberar inclusive no Brasil. Mas não nos
antecipemos.

Os judeus, agentes desse capitalismo nascente – sejam


como financistas e banqueiros, sejam como comerciantes
–, vão ser, como não podia ser diferente, as grandes
vítimas do ódio da Igreja.

Durante as Cruzadas, os judeus foram um dos alvos


principais da fúria cristã. A Inquisição foi outro elemento
repressivo e persecu-tório enfrentado pelos judeus
capitalistas em direção à desmistificação do mundo.

Mas, como dissemos, a atitude de Lutero foi a gota


d’água, uma vez que essa história, como vimos, não
começou e não terminaria aqui. Vamos ver como esse
copo foi se enchendo de cólera! Tudo se inicia quando
dois outros personagens resolveram igualmente entrar
para a história junto com a reforma religiosa: a revolução
política e a revolução científica. O Brasil vai nascer em
meio a esse turbilhão que geraria aquilo que se
convencionou chamar de mundo moderno. Vejamos
como tudo isso aconteceu.

182

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

REVOLUÇÃO POLÍTICA, REVOLUÇÃO

CIENTÍFICA E O MUNDO EM CONVULSÃO

Segundo se lê nas Escrituras, Non est potestas nisi a


Deo, ou seja,

“Não há poder que não venha de Deus, e, os que


existem, foram instituídos por Deus”.1 É centrada nessa
premissa que a Igreja, que se arvorava representante
exclusiva de Deus na terra, dava uma espécie de
concessão do poder aos reis, que permaneciam, claro,
dependentes e vinculados a ela. Quem visita hoje o
Palácio Público de Siena, na belíssima província da
Toscana, na Itália, pode ver um conjunto de afrescos
pintado nas suas paredes muito repre-sentativos da
intrincada relação entre os poderes do rei e do papa
naquilo que se convencionou chamar de as duas
espadas. Nesse período, no fim da Idade Média, reinavam
o poder temporal e o espiritual, poder dos reis e da
Igreja, a cidade de Deus e a cidade dos homens,
divididos de forma quase equivalentes. O conjunto de
afrescos foi pintado por Ambrogio Lorenzetti entre os
anos de 1338-1340 e chama-se Alegoria do Bom
Governo, dividido em duas partes: “Alegoria do Bom
Governo e seus efeitos na cidade e no campo” e
“Alegoria do Mau Governo e seus efeitos na cidade e no
campo”.
Os afrescos oferecem uma espécie de manual de como o
rei ou o príncipe devem governar: na Alegoria do Bom
Governo vemos as virtudes humanas: sabedoria,
harmonia, prudência, temperança e fé e a tônica do
governo é a justiça; já na alegoria do mau governo,
vemos as figuras que personificam todos os aspectos
negativos do ser humano: orgulho, avareza, traição,
fraude, vaidade – e a tirania governa no lugar da justiça.

É a típica teocracia, ou seja, um regime no qual as ações


do governo estão submetidas inexoravelmente a uma
autoridade religiosa. O quadro induz a compreensão de
que o “governo não existe a não ser sob a tutela e
garantia de Deus, fonte da autoridade, conduzida pela fé,
esperança e caridade. O encantamento do mundo atinge
o ápice, no ponto em que a religião confere legitimidade
à sede de poder”.2

Relação típica da dependência, como vimos, dos reis


católicos de Portugal e da Espanha com o papa, que a
tudo dava seu aval, sua autorização, ou sua negativa,
seu porém – tudo era expresso por meio das bulas. Essa
era a tensão em que se vivia ainda no início do século
XVI, herança de práticas medievais.

E é justamente contra isso tudo que a Reforma e, ato


contínuo, a ruptura dos reis com a Igreja vão se opôr. E
com essa oposição inaugurar o Absolutismo. Mais tarde,
depois de Maquiavel e da Reforma Protestante, Bossuet,
na França, nas obras Política tirada da Sagrada Escritura
e Discurso sobre a história universal, vai argumentar no
sentido de que “Deus se manifesta mais precisamente na
pessoa do rei do que na do papa, visto que o rei é uma
potência nomeada por Deus. Nascia a teoria do direito
divino dos reis. A teoria da monarquia de direito divino,
segundo a qual o rei legislador é provido de um poder
que emana diretamente de Deus e como tal o rei só tem
responsabilidade perante Deus. Essa nova filosofia
política concede ao rei total independência da Igreja. A
pessoa do rei é considerada sagrada e ninguém poderia
atentar a seu poder”.3

Outro nome na Inglaterra é o de Robert Filmer, que na


sua obra Patriarca: o poder natural dos reis, vai
argumentar como Bossuet, 184

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

que o direito divino dos reis deve partir da destruição de


uma comunidade política universal sob a direção dos
papas.4

Era o início de um movimento que podemos chamar de


uma verdadeira revolução política.

Desse modo, podemos dizer que “a importância do


protestantismo não diz respeito aqui ao conteúdo da sua
fé, mas à sua rejeição ao poder temporal dos papas”5 e
essa rejeição não era nova – foi um questionamento
recorrente ao longo de toda a Idade Média. Ao menos
três precursores de Lutero haviam se revoltado contra o
poder papal e foram condenados e queimados como
hereges pelo Concílio de Constança. Foram eles: Jan Hus,
John Wycliffe e Jeronimo de Praga. Quem visita a cidade
velha em Praga pode ver um monumento erigido em
homenagem a Jan Hus. Se no século XV a Igreja teve
poder para barrar as críticas, no Início do século XVI
Lutero, embora contestado e excomungado pela Igreja,
consegue arrancar um movimento vigoroso do homem
em direção à liberdade.

Lutero liberta o homem de uma espécie de vassalagem


espiritual e faz isso também na prática cotidiana. Toda a
liturgia da Igreja era feita em latim – uma língua erudita
que no século XVI apenas os homens cultos e os clérigos,
evidentemente, dominavam –, desse modo, a tradução
da Bíblia para a língua vulgar, a língua falada, no caso o
alemão, vai colocar o povo em contato direto com Deus,
eliminando, assim, os intermediários. Era o início de uma
cons-cientização que “surge também do fato de que a
partir de agora o homem se expressa, pensa e sente em
sua própria língua e torna-se parte essencial do
movimento de libertação do espírito. É algo de uma
importância extraordinária, infinita [. .]. Lutero não
poderia levar a cabo o movimento da reforma sem
traduzir a Bíblia para o alemão”.6 Em 1523, Lutero volta
a exprimir sua posição e revolta num tratado intitulado
De l’autorité temporelle et des limites de l’obéissance
qu’on lui doit, no qual afirma a necessidade de
“separação entre os dois reinos, o de Deus e o do
mundo”.7

É aqui, portanto, dessa conspiração em torno da


separação dos poderes que um novo pensamento político
surge e o nome do Revolução política, revolução
científica e o mundo em convulsão 185

responsável por tal ruptura vai ser Maquiavel. Poucos


anos antes de Lutero ter se rebelado contra o poder dos
papas, Maquiavel já havia se posicionado contra a
dependência dos reis em relação à Igreja. Até que ponto
a obra O Príncipe, de 1513, não teria encora-jado Lutero?
É Maquiavel que mostrará ao mundo que “se se quer o
poder é preciso querer a onipotência; que essa exige não
apenas um ato de fundação absoluta, mas também uma
resolução que não admite nem fraquezas nem
compromissos; que as considerações morais e religiosas
devem ser afastadas do cálculo através do qual se
estabelece ou se mantém o Estado; que as coisas são
assim ainda em maior medida porque o príncipe é senhor
da legislação, porque define o bem e o mal públicos e,
por conseguinte, no que se refere às questões públicas e,
nem ele nem os cidadãos devem se valer dos
mandamentos da Igreja ou da tradição moral; que,
nessas mesmas questões, a recusa da violência é uma
tolice e que, de resto, cabe distinguir a violência que
conserta daquela que destrói”.8

Maquiavel ressalta o espírito de orgulhosa mundaneidade


dos cidadãos florentinos que, em suas lutas contra o
poder papal e diante de uma excomunhão iminente,
sempre mantiveram o “amor por sua cidade natal acima
do medo pela salvação de suas almas”.9

Outra questão envolvendo a Igreja e que passou a ser


alvo de críticas contundentes foi a perseguição religiosa
que impactava diretamente nos cofres públicos e
determinava a riqueza e a pobreza das nações. A
perseguição ou a tolerância religiosa vão definir os países
ricos e os pobres, isso porque, como definiu Max Weber,
a riqueza estava vinculada à liberdade religiosa no início
da Idade Moderna.10

A perseguição religiosa redundou, onde quer que tenha


pre-valecido, numa elevada perda de capital humano –
os autos de fé eram altamente letais para os condenados
– e de bens materiais, de modo que despertava por toda
a Europa uma onda crescente de críticas e de apelo à
tolerância, sobretudo por parte daqueles que
sagazmente perceberam que “a intolerância interferia no
acesso à riqueza. Imigração por motivos de consciência,
quer da Inglaterra para a América, quer para a Inglaterra,
Prússia, Escandinávia e 186

O livro obscuro do descobrimento do Brasil


Holanda de metade da população da Europa,
impressionou rapidamente o espírito dos homens como
uma fonte de lucro para as nações tolerantes e de
prejuízo para as nações perseguidoras.

A raiz do racionalismo, que, depois da Restauração, se


alastrou numa escala sempre crescente, foi a percepção
de que a política de perseguição religiosa, sendo
incompatível com a paz e a segurança, era obstáculo à
prosperidade”.11

E a prosperidade que todos buscavam incessantemente


“estimu-lou a aceitação do secularismo porque seus
objetivos não poderiam ser alcançados em outros
termos. E essa aceitação viu-se rapidamente cercada de
um halo de aprovação religiosa. A busca de lucros, em
vez de perdas, tornou-se um dever cristão. Mas quando a
opção favorável aos lucros não pode ser concretizada
porque o Estado ou a Igreja barram o caminho, então um
ou outro, ou ambos os obstáculos terão de ser removidos
desse caminho”.12

Esse pragmatismo foi o segundo ato da revolução


política, e vai ocorrer em função de uma percepção sobre
as oportunidades promissoras que se abriram para as
nações tolerantes com as perseguições religiosas, como
as que ocorreram em Espanha e em Portugal. Para uma
nova ordem social que havia surgido com a expansão
comercial e marítima “a Igreja, tal como estava
organizada, parecia ser, em definitivo, um estorvo”.13

Nessa queda de braços, em muitos lugares a Igreja será


jogada aos leões. E o primeiro ato da revolução política
vai ser a ruptura de Henrique VIII com a Igreja, seguido
da assimilação dos bens da Igreja e da instituição do
poder absoluto do rei, numa quebra do paradigma
anterior em que os Estados eram governados por duas
espadas: o rei e o clero.

Esse novo modo de pensar nos âmbitos político e social


será o complemento indispensável de um novo modo de
vida. Todas essas mudanças são frutos da “modernização
econômica que resultará da decomposição dos controles
sociais e políticos, da abertura dos mercados e dos
progressos da racionalização e, portanto, do triunfo do
lucro e do mercado”.14

Revolução política, revolução científica e o mundo em


convulsão 187

As imensas mudanças geradas a partir da expansão


comercial implodiram o pensamento medieval e
deixaram no ar um dilema ético a ser resolvido. Agora,
havia novas possibilidades de negócio e de
enriquecimento cada vez mais auspiciosas. O
pensamento medieval, por sua vez, dominado por um
forte sentimento religioso, divergia do desenvolvimento
econômico, da obtenção de lucro.

Muita coisa jazia na cobrança de juros, ou seja, aquilo


que a Igreja tratava como usura, um pecado. Esses dois
mundos entraram, inevitavelmente, em rota de colisão.

As novas relações materiais originaram novas relações


sociais.

E o pensamento medieval, baseado todo ele na filosofia


expressa em A cidade de Deus, de santo Agostinho, já
não dava mais conta de abarcar o novo mundo. Nesse
livro, santo Agostinho faz uma distinção entre a cidade
de Deus e a cidade dos homens, esta apenas um reflexo
distorcido da perfeição da cidade de Deus. Para a Igreja,
tudo que o homem devia desejar era pertencer à cidade
de Deus. A vida na terra é vista como uma provação,
todos teriam de pagar pela culpa por conta do pecado
original. Era o monasticismo atuando desesperadamente
e em vão contra a influência secularizante da riqueza.
Esse argumento pífio, o da culpa, no entanto, só
convencia os incautos e ignorantes e servia àqueles que
lucravam com o medo.

O homem da reforma jamais se deixaria levar por um


sentimento tão infantil e por essa espécie de “renúncia
radical do mundo”. O

seu ponto de vista era diametralmente oposto àquele


que pretendia impor-se por meio da violência e da
resignação à insignificante luta pelo “pão nosso de cada
dia”. Não por acaso, somente a partir do surgimento de
uma ética que negasse os obscuros princípios do
catolicismo medieval é que pôde prosperar o espírito do
capitalismo.

Com o avanço do pensamento racional e do


conhecimento científico, a desmistificação do mundo
tornava cada vez mais evidente a constatação de que
“nesta vida, o escolhido em nada difere externamente do
condenado”, de modo que pobreza ou riqueza não eram,
por si só, parâmetros para a salvação ou para a danação
eternas. Instaura-se uma guerra velada entre diversas
religiões 188

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

que se dividiam entre as que tinham “favorecido ou


perturbado a secularização e a racionalização
modernas”.

Nos países nos quais a relação entre rei e Igreja


prevaleceu, o desenvolvimento econômico ficou limitado
por essas imposições.

Já em outras nações que optaram pela ruptura e por


fomentar o sistema mercantilista, capitalista e liberal,
criou-se um ambiente de “ação autônomo para os
agentes do desenvolvimento econômi-co”.15 O resultado
apareceu em pouco tempo e separou aqueles que
optaram por viver na insignificância de sua astenia e
pereceram, daqueles que optaram pelo protagonismo,
pela coragem, liberdade e prosperaram.

Desse modo que a grande ruptura promovida pela


revolução religiosa e pela revolução política sacudiu a
história da humanidade no século XVI e separou aqueles
que estavam destinados a vencer pelos próprios méritos,
daqueles que estavam destinados a dobrar os joelhos, a
rezar e servir aos vencedores. À medida que o medo era
enfrentado com coragem e ia se dissipando aos poucos,
o ambiente se tornava naturalmente mais iluminado,
mais fecundo para os estudos e, portanto, mais propício
para o conhecimento. E é a partir desse momento que
outra criatura que se encontrava imersa no pântano
sombrio da Idade Média passa a reivindicar seu espaço
no novo mundo: a ciência. E, ato contínuo, a revolução
científica. Esses três eventos praticamente simultâneos –
revolução científica, revolução religiosa e revolução
política – fizeram ranger forte as dobradiças enferrujadas
da porta da imensa muralha que separava o mundo
medieval e o mundo moderno, libertando-o da prisão em
que se encontrava, uma espécie de universo paralelo.

Tratava-se de uma contradição intrínseca que o


catolicismo não notou, a tempo – ou notou, mas era um
risco inevitável? A política de incentivo à expansão
comercial e marítima demandava o conhecimento
experimental, que se faz na prática cotidiana, vendo,
avançando, conhecendo, desafiando o desconhecido e
com isso desvendando a realidade, e não simplesmente
teorizando e especulando coisas em gabinetes. De certa
forma – sem que eles Revolução política, revolução
científica e o mundo em convulsão 189

soubessem? –, esse comportamento dos navegadores


redundará numa relação de causa e efeito, no
desenvolvimento de práticas que desembocariam
inexoravelmente no conhecimento científico.

Era o fim do medo, até então tônica do mundo medieval.


Era o princípio de uma mentalidade que valorizava a
experimentação e tinha a convicção de que “Deus ajuda
quem ajuda a si mesmo”.16

Os homens então passaram a ter um conhecimento que,


embora desde o século XIII rondava a Europa como um
fantasma, assustava a visão medieval de mundo e só
naquele momento havia encontrado ambiente favorável
para florescer. As várias semeaduras lançadas
anteriormente não haviam vingado e por isso o
conhecimento prático, processual, que só agora se fazia,
havia permanecido incompreendido e relegado às
sombras por séculos. Esse tipo de conhecimento, que se
revela no fazer, se deve a uma retomada do pensamento
clássico, que completamente abandonado, e até
proibido, no Ocidente era cultivado no Oriente e havia
sido trazido sorrateiramente para a Península Ibérica por
meio dos povos árabes e judeus que habitavam,
sobretudo, o território conhecido como Al-Andalus, a
belíssima região da Andaluzia, na Espanha. Os principais
nomes dessa retomada são Alhazen, Avicena e Abucacer
e o principal pensador clássico que eles professavam era
Aristóteles, o pai do experimentalismo, da teoria que
daria um novo norte para o mundo ocidental. Desse
renascimento surgiria o debate em torno do empirismo e
essa teoria contribuiria para algo fundamental na
modernidade, que é a desmistificação do mundo e,
consequentemente, um equacionamento nas relações de
poder: a diminuição do poder daqueles que eram
beneficiários de um mundo místico, mitológico, e o
aumento do poder daqueles que apostaram na
racionalização das relações do homem com a natureza,
no pensamento científico. Obviamente essa passagem
não se fez sem que por debaixo da ponte rolassem rios
de sangue. O caso mais emblemático foi o de Giordano
Bruno, que ao defender as ideias de Copérnico e,
portanto, afrontar a visão de mundo da Igreja, foi
queimado vivo em praça pública. Outra prova dessa
perseguição são os inúmeros textos e 190

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

livros que foram forçosamente escritos em linguagens


criptografadas para ludibriar os censores e livrar seus
autores do fogo. Eram livros, textos que circulavam
apenas nas sociedades secretas que surgiram ainda
durante a Idade Média e que se multiplicaram pela
Europa a partir do século XV. Muitos desses livros, que
continham certamente grandes tesouros da humanidade,
foram destruídos ou jazem em arquivos secretos ou
simplesmente estão espalhados pelo mundo e ainda
desconhecidos.

A obra Órganon, de Aristóteles – não por acaso o livro do


pai do método científico e do empirismo –, vai influenciar
muito tempo depois Francis Bacon, que escreveu Novum
Organum. Outros livros, sobretudo de alquimia, foram
traduzidos: primeiro para o latim, depois se vulgarizaram
por meio da fabulosa descoberta de Gutenberg, que, com
seu sistema mecânico de impressão, com tipos móveis,
iniciou uma verdadeira revolução na imprensa e
consequentemente no universo da leitura, da escrita e da
difusão do saber, livrando a humanidade dos intragáveis
incunábulos que eram produzidos em mosteiros e,
porque imitavam os manuscritos, eram caros, quase
ilegíveis, sua circulação sendo restrita a um grupo de
notáveis. Entre os primeiros livros que entraram no
Ocidente de forma clandestina encontram-se o Liber de
Compositione Alchemiae e os livros de Khalid Ibn Yazid,
tais como El libro de los amuletos, El livro grande e
pequeno del pergamino e Secreto de la alquimia; vários
outros livros atribuídos a um autor hispano-árabe
conhecido como Pseudo-Rachi foram traduzidos, tais
como os intitulados De Aluminibus et Salibus, Liber
Luminis Luminum e o Segredo dos segredos; o livro de
Avicena De Anima, além dos famosos e intrigantes A
tábua de esmeralda e O livro dos mortos, atribuídos a
Hermes Trismegisto, e do não menos famoso e badalado
Picatrix,

do filósofo e astrônomo andaluz Maslama al-Majriti.

Essa avalanche de conhecimento é o que caracteriza o


pensamento moderno que “afirma que os seres humanos
pertencem a um mundo governado por leis naturais que
a razão descobre e às quais ela própria está sujeita. E ele
identifica o povo, a nação, Revolução política, revolução
científica e o mundo em convulsão 191

o conjunto dos homens como um corpo social que


funciona, ele também, segundo leis naturais e que
precisa livrar-se das formas de organização de
dominação irracionais que fraudulentamente procuram
se legitimar recorrendo a uma revelação ou a uma
decisão supra-humana. É um pensamento do homem no
mundo, portanto, de um homem social. Esse pensamento
se opôs ao pensamento religioso com uma violência que
variou segundo os vínculos que uniam poder político e
autoridade religiosa”.17

Com as crenças religiosas ficando restritas à vida


privada, as ciências experimentais proliferaram. Surgem
a botânica, a astronomia, a química, a mecânica, a
medicina, entre tantos outros ramos do saber. O caso
mais emblemático de passagem de uma visão de mundo
a outra foi o de Andries van Wesel, Andreas Vesalius, que
elaborou um verdadeiro atlas do funcionamento do corpo
humano, o De Humani Corporis Fabrica Libri Septem.
Para os seus estudos dissecava na calada da noite os
cadáveres dos assassinos condenados que eram
executados. Muitos eram condenados por seus próprios
conhecimentos, considerados então pecados. Outro
personagem importante que também dissecava
cadáveres em busca de conhecimento técnico para sua
arte era Michelangelo Buonarroti. O resultado pode ser
visto no extenso afresco do teto da Capela Sistina, no
Vaticano, como também na parede do altar, o Juízo final.
Um quadro ilustrativo dessa nova mentalidade e da nova
sede de conhecer o mundo é A lição de anatomia do dr.
Tulp, de Rembrandt. Era o pensamento conquistando
“sua independência e abandonando assim sua unidade
com a teologia; se separando desta como já entre os
gregos se havia se separado da mitologia, da religião
popular”.18

Não era apenas do ponto de vista religioso – o combate à


heresia e ao acúmulo de riquezas – que a Igreja vai ser
contestada por outras religiões. A Igreja será atacada
também do ponto de vista do conhecimento e, portanto,
da sua hegemonia no mundo. A revolução científica
surge no horizonte para ficar.
Foi no âmbito de profunda efervescência intelectual,
promovida pelo Renascimento, que os estudos do
homem e da natureza foram 192

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

impulsionados. O Universo e a natureza já não eram mais


aceitos como obra meramente transcendente, fruto dos
preceitos cristãos.

Somente por meio de práticas experimentais somadas às


explicações racionais é que o homem poderia chegar ao
saber. Dessa nova realidade surgiram as obras De
Revolutionibus Orbium Coelestium, de Nicolau Copérnico
(1473-1543), que formulou a teoria heliocêntrica, que
seria completada no século XVII pela obra Diálogo sobre
os dois principais sistemas do mundo, de Galileu Galilei
(1564-1642), outro que também sofreu perseguição da
Igreja, tendo sido processado e obrigado a desdizer o que
dissera. Está enterrado na Basílica de Santa Cruz, em
Florença, ao lado de Maquiavel e Michelangelo.

Outros grandes e corajosos foram Tycho Brahe (1546-


1601), que fez observações muito precisas sobre os
astros, e Johannes Kepler (1571-1630), que apontou o
movimento elíptico dos astros, preparando o caminho
para a maior descoberta da época, a lei da gravitação
universal de Isaac Newton (1642-1727).

Na literatura, Giovanni Boccaccio, autor da obra


Decamerão, e François Rabelais, autor de Gargântua e
Pantagruel, contribuíram para a exaltação do
humanismo, do individualismo e da liberdade
combatendo e satirizando a rígida moral escolástica e a
superstição.
Todo esse movimento tem como motor o método
experimental, principal meio de alcançar o saber
científico, que, consequentemente, acabou por retirar da
Igreja o monopólio da explicação das coisas do mundo. A
principal barreira ao progresso científico foi finalmente
superada, depois de séculos, para não mais representar
ameaça ao progresso dos homens. Mas a Igreja, que já
havia criado o Malleus Maleficarum, um manual de
tortura, e o Index Librorum Prohibitorum, um índice que
continha títulos de livros proibidos, não ia vender barato
o desprestígio e a perda de poder. Vamos ver o que nos
aguarda.

Revolução política, revolução científica e o mundo em


convulsão 193

A GUERRA DOS MUNDOS

Como vimos, a Igreja levou até o limite do insuportável


suas contradições internas e sua recusa em aceitar as
mudanças que, apesar das cruéis perseguições impostas
por ela avançam como um tsunami.

A Igreja Católica atribuía a uma conspiração de judeus,


protestantes e hereges as grandes transformações que
estavam ocorrendo no mundo, as quais colocavam em
xeque seu poder absoluto. Ela demorou a perceber que
as mudanças eram parte de um movimento natural,
reação adversa aos remédios que ela mesma aplicava. A
expulsão dos judeus da Espanha e de Portugal,
acompanhada de perseguições, sequestros de crianças e
arresto de bens seria a gota d’água para o
transbordamento de um copo que há tempos vinha se
enchendo de cólera, mágoa e ressentimento.
A maior antinomia era: como fomentar o
desenvolvimento econômico sem por um lado levantar
capital, ele mesmo transformado em produto, por meio
de empréstimos e sem, por outro lado, auferir lucro com
os negócios da compra e venda de produtos do Oriente –
as especiarias? Como todos sabemos, a acumulação de
riqueza que se

faz por meio do comércio e dos empréstimos a juros –


condenados pela Igreja – eram, ao mesmo tempo,
praticados por ela. Os templá-

rios, aliás, foram pioneiros no negócio com bancos. Quem


vai hoje a Londres pode visitar a capela Temple Church,
construída pela Ordem dos Templários em 1185. Essa
capela não foi só capela, mas foi também o que pode ser
considerada como a primeira agência bancária do mundo
ocidental e que pertencia à Igreja Católica. Os peregrinos
que partiam para Jerusalém a fim de fazer negócios, os
quais levavam dinheiro e poderiam, portanto, ser alvo de
bandidos simplesmente depositavam o dinheiro na
Temple Church, em Londres, e sacavam depois já em
Jerusalém, por meio da apresentação de uma carta de
crédito, exatamente como fazemos hoje com os cartões.

No século XX, o Vaticano fundou seu próprio banco, cujo


nome oficial é Instituto para as Obras de Religião, que
inclusive auferiu grande lucro com o processo de
recuperação da Europa depois da Segunda Guerra
Mundial e é, hoje, um dos bancos mais ricos e poderosos
do mundo. Quanto à acumulação de riqueza por meio da
produção e do comércio – que a Igreja tanto condenava
–, ela é acionista, hoje, de grandes empresas comerciais
ao redor do mundo.
Na verdade, a expansão marítima e comercial não
afrontava o pensamento da Igreja sobre acumulação de
riqueza. O que de fato começou a incomodar a Igreja
Católica foi que essa expansão econômica e territorial,
que desde a época das Cruzadas medievais ocorria num
consórcio entre reis e Igreja, estava ocorrendo então a
partir de um novo consórcio que envolvia reis e
comerciantes, quase em sua grande totalidade judeus.
Com a guinada na (re)orientação da parceria, vinha
também a perda progressiva de prestígio. Era o fim da
união entre trono e altar e o início do Absolutismo.

Para Maquiavel, por exemplo, o homem passa a ser o


motor das transformações pessoais e sociais, não fica
mais refém de um destino designado por Deus. A ação do
homem transformaria o mundo. Não por acaso um de
seus exemplos vai ser o de d. João II, que quis porque
quis a expansão portuguesa e fez de tudo para que ela
acontecesse, matando inclusive aqueles que se
colocaram contra A guerra dos mundos

195

seu projeto. Bossuet, Jean Bodin, Hugo Grotius e Hobbes,


como vimos, também defenderam o direito divino dos
reis, a soberania não partilhada e, portanto, o governo
despótico e o poder ilimitado do Estado, que, em última
instância, era o rei.

A visão geocêntrica do mundo vai ser substituída pela


visão heliocêntrica. A Terra, portanto, sai do
protagonismo e passa a ser mais uma coadjuvante em
meio ao infinito do espaço sideral. É a passagem de uma
visão de mundo mitológica, onde dominavam a crença e
a fé, para um mundo mais material, mais plausível,
palpável, racional e empírico.
Contra essa realidade que batia na porta da Igreja
erguiam-se cada vez mais fervorosos aqueles que
defendiam a infalibilidade papal, ou seja, o princípio do
sagrado magistério, ou seja, quando o papa deliberava
sobre algo ele estava sempre certo. Quando parecia ter
entrado uma enxurrada que varreu tudo e que a Igreja
faria uma espécie de mea-culpa, de adaptação ao novo
mundo, o que vemos é o início de uma declaração de
guerra, de uma reação virulenta

– o primeiro passo da Igreja para dar uma resposta à


Reforma Protestante, à Reforma Política e à Reforma
Científica, que estavam afrontando seu poder, foi a
convocação do Concílio de Trento, considerada a primeira
batalha da guerra entre dois mundos que passaram a se
hostilizar e a se digladiar sistematicamente numa guerra
que se estenderia por séculos.

O Concílio de Trento determinará uma série de mudanças


institucionais na Igreja Católica que vai ao encontro de
tudo aquilo que havia sido proposto pela Companhia de
Jesus desde a sua fundação, e que, como veremos, havia
ficado no modo stand by. Na bula convocatória do
concílio, pode-se ler: “Considerando que em tempos tão
revoltosos e que em circunstâncias tão mesquinhas de
quase todos os negócios [. .] desejávamos por certo
aplicar soluções aos males que há tanto tempo têm
afligido, e quase oprimido a república cristã [. .]. Então,
como entendêssemos que se necessitava de paz, para
libertar e conservar a república de tantos perigos que a
ameaçavam, achamos ao contrário que tudo estava
cheio de ódios 196

O livro obscuro do descobrimento do Brasil


e contradições e, em especial, opostos entre si aqueles
príncipes aos quais Deus havia confiado todo o
gerenciamento das coisas. Assim sendo, tomando-se por
necessário que fosse apenas um o redil, e um só o pastor
do rebanho do Senhor, para manter a unidade da religião
cristã, e para confirmar entre os homens a esperança dos
bens celestiais; se achava quase quebrada e
despedaçada a unidade do nome cristão com cismas,
contradições e heresias. E desejando nós também que
fosse prevenida e assegurada a república contra as
armas e os feitos dos infiéis; pelos erros e culpas de
todos nós, visto que ao descarregar a ira divina sobre
nossos pecados, foi perdida a ilha de Rodes, foi
devastada a Hungria e concebida e projetada a guerra
por mar e por terra contra a Itália, contra a Áustria e
contra a Eslavônia: porque, não sossegando em tempo
algum nosso ímpio e feroz inimigo, os turcos; julgava que
os ódios e contradições que fomentavam os cristãos
entre si, era a ocasião mais oportuna para executar de
modo feliz seus desígnios. Sendo pois chamados, como
dizíamos, em meio de tantas turbulências, de heresias,
de contradições, de guerras, de tormentas tão
revoltosas.”1

As primeiras medidas tomadas pela Igreja para reparar o


que chamou de “as nossas próprias debilidades” foram
no âmbito de sua estrutura interna e contemplavam “a
criação de uma espécie de regulamentação para coibir os
exageros e a venda indiscriminada de indulgências – que
era o principal ponto da crítica de Lutero nas suas
noventa e cinco teses – e proibiu também a negociação
de cargos dentro da hierarquia da Igreja, e a partir
daquele momento determinou a formação dos seus
eclesiásticos por meio de seminários”.2 Quanto às
mudanças na relação da Igreja com a sociedade, as
novas determinações levariam a Igreja para um lugar um
pouco mais distante dos reis, que haviam se tornado em
sua maioria seus inimigos, e iriam levá-la a se imiscuir na
vida do povo, no seu cotidiano.

O Concílio de Trento promoverá, portanto, a mais


importante transformação de todos os tempos no âmbito
da Igreja, adequando-a àquilo que era a nova e
inexorável realidade do mundo e de acordo A guerra dos
mundos

197

com a grande ideia surgida para salvaguardá-la do


inevitável fim, trazida pela Companhia de Jesus e que
ficaria conhecida como Contrarreforma. Foram três as
principais mudanças: 1) a defesa da exclusividade na
interpretação da Escritura, o que tinha como objetivo
repelir qualquer outra religião que ousasse fazer
qualquer reinterpretação da Bíblia; 2) a observância do
pecado original e a consequente condenação de toda a
humanidade, o que tornava todo ser humano pecador e,
portanto, obrigado a continuamente expiar seus
pecados; e 3) a confissão como instrumento de remissão
dos pecados, o que reservava à Igreja o poder exclusivo
de perdoar e, portanto, de decidir sobre os condenados e
os eleitos para o reino dos céus.

Numa declaração de guerra contra os reis, contra as


religiões e contra a ciência, esta era uma batalha de vida
ou morte entre o mundo medieval, que já se encontrava
moribundo, e o mundo moderno, que lutava por vir à luz.
As espadas começavam a ser brandidas.

Quanto à defesa da exclusividade na interpretação da


Sagrada Escritura, na quarta sessão do Concílio de
Trento, de 8 de abril de 1546, podemos ler as seguintes
determinações: “Com a finalidade de conter os ingênuos
insolentes, que ninguém, confiando em sua própria
sabedoria, se atreva a interpretar a Sagrada Escritura em
coisas pertencentes à fé e aos costumes que visam à
propagação da doutrina Cristã, violando a Sagrada
Escritura para apoiar suas opiniões, contra o sentido que
lhe foi dado pela Santa Amada Igreja Católica, à qual é
de exclusividade determinar o verdadeiro sentido e
interpretação das Sagradas Letras; nem tampouco contra
o unânime consentimento dos santos Padres, ainda que
em nenhum tempo se venham dar ao conhecimento
estas interpretações. Aos medíocres, sejam declarados
contraventores e castigados com as penas estabelecidas
por direito. E querendo também colocar um freio nesta
parte aos impressores que sem moderação [. .] imprimi-
rem, sem licença dos superiores eclesiásticos, a Sagrada
Escritura,

[. .] este Concílio decreta e estabelece que de ora em


diante seja 198

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

impressa, com a maior compreensão possível, a Sagrada


Escritura, principalmente a antiga edição da Vulgata, e
que a ninguém seja lícito imprimir nem fazer com que
seja impresso livro algum de coisas sagradas ou
pertencentes à religião, sem o nome do autor da
impressão, nem vendê-los, nem ao menos tê-los em sua
casa, sem que primeiro sejam examinados e aprovados
pela Igreja, sob pena de excomunhão e de multa
estabelecida no Cânon do último Concílio de Latrão.”3

Impõem-se, como se pode ver, intensas restrições à


leitura e à interpretação da Bíblia por pessoas comuns e
àqueles que não pertenciam aos quadros hierárquicos da
Igreja. Restrições tais que equivaliam a uma verdadeira
proibição, justamente num momento em que Lutero
havia traduzido a Bíblia para o alemão e Gutenberg
desenvolvido seu mecanismo de impressão que seria
capaz de reproduzir e colocar a Bíblia ao alcance de cada
um. O que seriam essas determinações do Concílio de
Trento senão a suspeição da razão humana, recém-
liberta pela revolução científica e pelo Renascimento,
condenando a humanidade a pensar e a ler o mundo pelo
pensamento e pelos olhos de um seleto grupo de eleitos?

Depois de monopolizar a interpretação das Sagradas


Escrituras, a quinta sessão do Concílio de Trento, de 17
de junho de 1546, tra-taria do pecado original e de todas
as suas consequências, ou seja, a incapacidade do
homem de se salvar por seu próprio merecimento,
dependendo para isso da intermediação da Igreja, uma
vez que o pecado original gerou a condenação
hereditária da humanidade.

Dizem as determinações: “Para que nossa santa fé


católica [. .] se conserve inteira e pura em sua
sinceridade, e para que não flutue no povo cristão todos
os ventos de novas doutrinas, [. .]estabelece, confessa e
declara estes dogmas sobre o pecado original: I. Se
alguém não acreditar que Adão, o primeiro homem,
quando anulou o preceito de Deus no paraíso, perdeu
imediatamente a santidade e justiça em que foi
constituído, e incorreu, por culpa de sua prevaricação, na
ira e indignação de Deus [. .] seja excomungado.

II. Se alguém afirmar que o pecado de Adão prejudicou


apenas a A guerra dos mundos

199
ele mesmo e não à sua descendência, não incluindo nós
todos [. .]

seja excomungado. III. Se alguém afirmar que este


pecado [. .] se pode retirar pelas forças da natureza
humana, ou por outro meio que não seja pelo mérito de
Jesus Cristo, Nosso Senhor, único mediador, e que nos
reconciliou com Deus, [. .] seja excomungado

[. .]. IV. Se alguém negar que as crianças recém-nascidas


precisam ser batizadas, [. .] que elas em nada
participaram do pecado de Adão, para ser preciso
purificá-los com o banho da regeneração para conseguir
vida eterna [. .] sejam excomungadas.”4

O pecado original havia condenado a humanidade e a


vida deveria ser um processo de imolação e sofrimento
contínuos com o fim de extirpar a culpa e de atingir a
salvação eterna. Era uma forma de propagar o terror e o
medo, matérias-primas para a dominação dos corações e
das mentes dos incautos. Essa espé-

cie de algema limitava e podava a liberdade humana –


assim, o pecado original preparou o terreno para outra
determinação, de modo que a décima quarta sessão do
Concílio de Trento, de 25

de novembro de 1551, que versava sobre a penitência,


dizia: “Cap.

I – Da necessidade e instituição do sacramento da


Penitência. Se tivessem todos os regenerados tanto
agradecimento a Deus que conservassem perenemente a
santidade, que por seu benefício e graça receberam no
Batismo, não haveria sido necessário que se tivesse
instituído outro sacramento diferente deste para
conseguir o perdão dos pecados. Mas como Deus com
toda sua misericórdia conhece nossa debilidade,
estabeleceu também um remédio para a vida daqueles
que, depois de batizados, se entregarem à servidão do
pecado e ao poder ou escravidão do demônio, o qual é
exatamente o sacramento da Penitência [. .]. Por isso diz
o Profeta: convertei-vos e fazei penitência de todos
vossos pecados e com isso vossa iniquidade não será
causa de vossa destruição. Também disse o Senhor: Se
todos vós, sem exceção, não fizerem penitência, todos
vós perecereis. Cap. II – Da diferença entre o sacramento
da Penitência e o Batismo. Se conhece muitas razões da
diferenciação deste sacramento (Penitência) com aquele
do Batismo, porque 200

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

além da matéria e da forma com as quais são


ministrados os dois sacramentos, que são bastante
diferentes, consta evidentemente que o ministro do
Batismo não deve ser juiz, pois a Igreja não exerce
jurisdição sobre as pessoas que não tenham antes
adentrado seu seio pela porta do Batismo. Que tenho eu
a ver, disse o Apóstolo, sobre o juízo dos que estão fora
da Igreja? Não sucede o mesmo com os que já são
batizados e vivem na fé, aos quais Cristo Nosso Senhor
tornou membros de Seu Corpo, lavando-os com a água
do Batismo e não quis que estes, se contraíssem alguma
culpa, fossem novamente purificados repetindo o
Sacramento do Batismo, pois isto não seria lícito por
nenhuma razão na Igreja Católica, porém essa nova
purificação poderá ser alcançada se esses pecadores se
apresentarem como réus ante o tribunal da Penitência
para que por uma sentença dos sacerdotes possam ficar
absolvidos, não somente uma vez, mas quantas forem
necessárias, desde que recorram a Ele arrependidos dos
pecados que cometeram. Cap. III – Das partes e fruto
deste Sacramento. Ensina além disso, o Santo Concílio,
que o princípio do sacramento da Penitência, e no qual
principalmente consiste sua eficácia, se concentra
naquelas palavras do ministro: Eu te absolvo, às quais
louvavelmente se incluem certas preces por costume da
Santa Igreja. Mas de nenhum modo visam estas, a
essência do princípio, e nem tampouco são necessárias
para a administração do mesmo Sacramento. Cap. IV –
Da Contrição (Arrependimento). A Contrição, que deve
tomar o primeiro lugar nos atos do penitente já
mencionado, é uma intensa dor e abominação dos
pecados cometidos, com o propósito de não pecar daí em
diante. Em todos os tempos foi necessário esse processo
de Contrição para alcançar o perdão dos pecados da
pessoa que delin-quiu depois do Batismo de modo que
este penitente seja preparado até conseguir a remissão
das culpas. Cap. V – Da Confissão. Consta então que não
poderiam os sacerdotes exercer essa autoridade de
juízes sem o conhecimento da causa, e nem proceder
com equidade na imposição das penas, se os penitentes
apenas os tivessem dado a conhecer que haviam pecado
de modo geral e não em espécie e A guerra dos mundos

201

individualmente seus pecados. Disto se depreende que é


necessário que os penitentes exponham em confissão
todos os pecados mortais que se lembrem depois de um
minucioso exame de consciência, ainda que sejam
absolutamente muito ocultos e apenas cometidos contra
os dois últimos mandamentos do Decálogo, pois algumas
vezes estas faltas prejudicam gravemente a alma e são
mais perigosas que as que foram cometidas
externamente. Assim sendo, quando os fiéis cristãos se
esmeram em confessar todos os pecados de que se
lembram, os propõe a todos, sem dúvida, à divina
misericórdia com a finalidade de que sejam perdoados.
Os que assim não o fizerem, e omitem alguns pecados
em sã consciência, nada apresentam a ser perdoado
ante a bondade Divina, pela ação do sacerdote. Isto pode
ser entendido como um enfermo que omite ao médico
todos os sintomas de sua enfermidade, e assim a
medicina não o pode curar, pois não conhece o mal. [. .]
Cap. VIII – Da necessidade e fruto da Reparação. Devem
pois, os sacerdotes do Senhor, impor penitências
saudáveis e oportunas conforme lhes dite seu espírito e
prudência, segundo a qualidade dos pecados e
disposição dos penitentes. Não ocorra porém que devido
a estas palavras os sacerdotes olhem com muita
condescendência para as culpas e procedam com muita
suavidade com os penitentes, impondo-lhes uma
reparação muito leve por delitos graves, e sejam
partícipes dos pecados alheios.

Tenham pois sempre à vista que a reparação que


impuserem, não somente sirva para que se mantenham
em vida nova e os cure de sua enfermidade espiritual,
mas também para compensação e castigo dos pecados
passados. Doutrina do Santo Sacramento da Extrema-
Unção. Em relação à instituição da Extrema-Unção,
declara e ensina coisas que assim como nosso
clementíssimo Redentor, com o intuito de que seus
servos estivessem sempre abastecidos de remédios
saudáveis contra todos os ataques de seus inimigos, lhes
preparou nos demais Sacramentos eficientes auxílios
com os quais pudessem os Cristãos manter-se nesta
vida, livres de todo grave prejuízo espiritual, e do mesmo
modo fortaleceu o fim da vida com o sacramento da
Extrema-Unção.”5

202
O livro obscuro do descobrimento do Brasil

A extrema-unção era importantíssima, pois se tratava de


enquadrar o pecador poucos instantes antes da morte,
em estado de extrema vulnerabilidade. Para as opiniões
contrárias e para todos aqueles que se colocassem
contrários a essas determinações o Concílio de Trento
definiu também nos cânones que: “Se alguém disser que
a Penitência na Igreja Católica não é verdadeira e pro-
priamente Sacramento instituído por Cristo Nosso Senhor
para que os fiéis se reconciliem com Deus quantas vezes
caiam em pecado depois do Batismo, seja excomungado.
[. .] Se alguém negar, que se requerem, para o inteiro e
perfeito perdão dos pecados, três atos por parte do
penitente, que são a matéria do Sacramento da
Penitência, a saber: a Contrição, a Confissão e a
Reparação, seja excomungado.

[. .] Se alguém negar que a Confissão sacramental que


está instituída, não é necessária e de Direito Divino, ou
disser que o modo de confessar em segredo com o
sacerdote, adotado desde o princípio pela Igreja, e
observa até o presente, é alheio da instituição e preceito
de Jesus Cristo, e que é invenção dos homens, seja
excomungado.

[. .] Se alguém disser que não é necessário e nem de


Direito Divino confessar no sacramento da Penitência
para alcançar o perdão dos pecados, todas e cada uma
das culpas mortais que com o devido e minucioso exame
de consciência se traga à memória [. .] nem que é
necessário confessar as circunstâncias em que ocorreram
os pecados, senão que esta confissão apenas é útil para
dirigir e consolar o penitente [. .] ou finalmente, que não
é lícito confessar os pecados veniais, seja excomungado.
[. .] Se alguém disser que a Confissão de todos os
pecados, como observa a Igreja, é impossível, e que é
uma tradição humana que deve ser abolida, ou que todos
e cada um dos fiéis cristãos de ambos os sexos não estão
obrigados a confessar pelo menos uma vez por ano, e
que por esta razão deve-se persuadir a todos os fiéis
cristãos que não se confessem no tempo da Quaresma,
seja excomungado. [. .] Se alguém disser que a
Absolvição sacramental, que é dada pelo sacerdote, não
é um ato judicial, senão mero ministério de pronunciar e
declarar que os pecados serão perdoados ao penitente [.
.] seja excomungado.

A guerra dos mundos

203

Cânones do Santo Sacramento da Extrema-Unção. Cân. I


– Se alguém disser que a Extrema-Unção não é
verdadeira e propria-mente um sacramento instituído por
Cristo Nosso Senhor, senão que apenas é uma cerimônia
feita pelos Padres, ou uma ficção dos homens, seja
excomungado. Cân. II – Se alguém disser que a sagrada
Unção dos enfermos não confere graça nem perdoa os
pecados, nem alivia os enfermos, seja excomungado. [. .]
Cân. IV – Se alguém disser que os presbíteros da Igreja
não são os sacerdotes ordenados pelo Bispo, mas sim os
mais idosos de qualquer comunidade, e que por esta
causa não é apenas o sacerdote o ministro apropriado da
Extrema-Unção, seja excomungado.”6

Se sem a confissão não há como se chegar ao perdão


dos pecados e a confissão deve ser feita junto aos
padres, o que a Igreja afirma aqui, no fundo, é a
incapacidade do homem de se comunicar com Deus de
forma direta, sem o intermédio da Igreja. Estava fundada
assim uma das mais temíveis formas de poder exercidas
pela Igreja, que se funda nas informações que se obtêm
no confessionário e que vão servir, muitas vezes, para se
imiscuir na vida das comunidades e, como foi comum na
história do Brasil, como uma forma de chantagem e
extorsão.

O catolicismo que emergiu do Concílio de Trento


inaugurou uma espécie de despotismo religioso sem
precedentes na história da humanidade. As reformas
propostas por um Lutero, um Zwinglio, um Oecolampad,
um Melanchthon e um Calvino significam, no fundo, o
protesto do sentimento cristão, livre e independente,
contra essas tendências autoritárias. O catolicismo é,
desse modo, uma organização institucional que ao longo
de sua história foi degenerando a prática cristã. No
século XVI, todos clamavam por reforma, “reis, povos e
sacerdotes [. .] mas aqui aparecia o problema: que
espécie de reforma? A opinião, em geral, das populações
católicas pronunciava-se no sentido de uma reforma
liberal, em harmonia com o espírito da época, chegando
muitos até a desejar uma conciliação com os
protestantes. Em Roma, porém, a solução que se dava ao
problema tinha um bem diferente caráter. O ódio 204

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

e a cólera dominavam os corações dos sucessores dos


apóstolos.

Repelia-se com horror a ideia de conciliação, da menor


concessão.

Pensava-se que era necessário fortificar a ortodoxia,


concentrando todas as forças, disciplinando e
centralizando, empedernir a Igreja para a tornar
inabalável. Era a opinião absolutista, representante do
papado. Esta opinião [para não dizer este partido]
triunfou e foi esse triunfo uma verdadeira calamidade
para as nações católicas”.7

Esse estado de coisas vai levar o filósofo Friedrich


Nietzsche a dizer, no século XIX, que só houve um cristão
e que o evangelho, portanto, morreu na cruz.8 O
cristianismo ao se transformar em catolicismo dera lugar
a uma ótica teológica baseada no pecado, na culpa e no
castigo. Os arautos e bedéis desse novo modus operandi
vão ser os padres da Companhia de Jesus.

A guerra dos mundos

205

O PAPA NEGRO E O IMPÉRIO

TEOCRÁTICO DA AMÉRICA DO SUL

Perinde ac cadaver – viver como um cadáver, diz o


estatuto da Companhia de Jesus. Era o resumo do manto
negro com o qual o Concílio de Trento queria cobrir o
mundo ocidental. Era um convite a se viver como uma
rês doméstica e em obediência irrestrita a outrem, sem
vontade e totalmente sujeito aos desejos alheios, como
verdadeiro corpo morto. Era tudo que poderia haver de
mais contrário ao espírito moderno.

A fundação da Companhia de Jesus remonta ao ano de


1534, quando Inácio de Loyola a concebeu na Basílica de
Saint-Denis, em Montmartre, na França, onde era
professor. A Companhia tinha como objetivo formar um
verdadeiro exército para a defesa do catolicismo. Pode-se
dizer que com a Companhia de Jesus se dá uma guinada
estratégica nos rumos da Igreja. Já que estava perdendo
o apoio dos reis, a Igreja formará um exército para se
imiscuir na vida cotidiana do povo. Se conseguisse
penetrar ali, imaginava, teria seu poder preservado.
Antes, a presença da Igreja na sociedade se resu-mia aos
custos que ela cobrava por seus serviços – as
indulgências

– e nada mais. A partir da Companhia de Jesus, ela se


aproximará

mais do povo, na mesma medida em que se afastará dos


poderosos, dos reis. A questão dos jesuítas não era
somente contra os hereges, mas contra os reis, sua
atuação passa a ter uma forte marca política com o
intuito de penetrar nos países e, se possível,
desestabilizar os reis que haviam rompido com o papa.

A Companhia de Jesus foi formalmente estabelecida em


1540

pela bula Regimini Militantis Ecclesiae e referendada no


Concílio de Trento em 1545. A partir dessa chancela,
criou para si um estatuto secreto para nortear tanto a
formação de seus componentes como a sua atuação
junto à sociedade, sempre de acordo com os novos
cânones estabelecidos. Na apresentação de tal
documento pode-se ler: “Os Superiores devem guardar
cuidadosamente em suas [pró-

prias mãos] tais instruções específicas e não devem


comunicá-las a não ser a alguns dos não religiosos,
quando for de conveniência da Sociedade; e isso se fará
sob o selo do silêncio e não como se tivessem sido
transmitidas por escrito por outro, mas sim como se
fosse produto da experiência daquele que as dá. Como
muitos religiosos conhecem esses segredos, a Sociedade
determinou, desde sua origem, que os conheçam e não
possam passar a outras ordens, a não ser à dos cartuxos,
dado o retiro e o silêncio em que vivem, e o papa no-lo
concedeu. É preciso que se tenha o máximo cuidado para
que essas advertências não caiam em mãos de
estranhos, porque estes darão a elas uma interpretação
sinistra, por inveja de nossa Instituição. Se tal suceder,
assim não queira Deus, deve-

-se negar que tais são os sentimentos da Sociedade, de


modo que dessa forma fiquem disso seguros aqueles que
com certeza se sabe que o ignoram, e opondo a eles
nossas instruções gerais e regras, impressas e
manuscritas. Os Superiores devem sempre investigar
cuidadosamente e com prudência se algum dos nossos
revelou a estranhos essas instruções secretas; e a
ninguém se tolerará que as copie, nem para si mesmo
nem para outro, sem o consentimento do Intendente-
geral, ou ao menos do Intendente da província; e se
dúvida houver, quanto a alguém não ser capaz de
guardar segredos,

[este] deverá ser afastado.”1

O papa negro e o império teocrático da América do Sul


207

Do ponto de vista prático, ou seja, de como a Companhia


deveria agir para salvar o catolicismo da derrocada
iminente, foram propostas as seguintes ações, expostas
num livro altamente confidencial, que só circulava entre
os jesuítas, chamado Monita Secreta.

O primeiro capítulo trata de como a Companhia deveria


se conduzir quando do início de algum novo
empreendimento: “Para tornarem-se agradáveis aos
outros cidadãos do povoado, é muito importante explicar
a eles o objetivo da Sociedade, tal como está prescrito
nas regras em que se diz que a Sociedade deve aplicar-
se com afã tanto na salvação do próximo como na sua
própria. Para isso devem desempenhar nos hospitais as
funções mais humildes, visitar os pobres, os aflitos e os
presos. É preciso ouvir as confissões com benevolência e
ser muito indulgente com os pecadores, a fim de que as
pessoas mais importantes admirem os nossos [membros]

e os amem, tanto pela caridade que demonstrem para


com todos como pela novidade de sua brandura. De
início, nossos membros devem evitar comprar
propriedades; mas se julgarem necessário comprá-las,
que o façam em nome de amigos e fiéis, que emprestem
sua imagem e guardem segredo. Para que nossa pobreza
seja melhor vista, convém que as terras possuídas junto
de um colégio figurem no nome de pessoas que estejam
dali distantes, o que impedirá que príncipes e
magistrados saibam a quanto montam as rendas da
Sociedade. Que não se estabeleçam colégios a não ser
em cidades ricas. Às velhas viúvas cumpre aumentar
nossa extrema pobreza, para delas arrancar tanto
dinheiro quanto for possível. Que só o

[Intendente] provincial saiba em cada província a quanto


montam nossas rendas; e que o montante [total] do
tesouro da Companhia seja um mistério sagrado.”2

O segundo capítulo trata de que maneira os padres da


Companhia poderiam adquirir e conservar familiaridade
com os príncipes, os ricos e personagens importantes: “É
preciso consagrar nossos esfor-

ços para conquistar a simpatia e o ânimo [boa vontade]


dos príncipes e das pessoas mais importantes, a fim de
que ninguém se atreva a opor-se a nós, mas, pelo
contrário, todos sejam obrigados a depender 208

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

de nós. Como nos ensina a experiência, já que os


príncipes e grandes senhores são particularmente
aficionados aos eclesiásticos, quando estes ocultam suas
ações odiosas e as interpelam favoravelmente, como se
vê nos casamentos que contraem com parentes e
aliadas, ou em coisas semelhantes, é preciso incentivá-
los a contrair essas alianças, fazendo-os esperar que por
nossa mediação obtenham do papa as licenças e perdões
necessários, se a ele forem explicados os motivos e se
forem apresentados casos análogos e se se atestar
sentimentos que falem em favor deles, sob o pretexto do
bem comum e da maior glória de Deus, objeto maior da
Sociedade. As princesas serão facilmente conquistadas
por meio de suas donzelas; e para tanto é preciso ganhar
a amizade destas últimas, pois esse é o meio de entrar
em toda parte e ficar sabendo dos assuntos mais
secretos das famílias. Também cumpre insinuar, com
habilidade e prudência, o amplíssimo poder detido pela
Sociedade de absolver até os casos reservados, [poder
este] imensamente superior ao de outros pastores e
religiosos; e para conceder às jovens a dispensa dos
deveres que devem dar ou pedir, dos impedimentos de
matrimônio e outros.

Isso fará com que muitos recorram a nós e fiquem


devedores. Será necessário promover a reconciliação dos
grandes em suas inimi-zades e dissenções, porque assim,
pouco a pouco, conheceremos aquelas que lhes são
familiares, e também seus segredos, e umas e outros nos
terão serventia. E se algum deles que não gostar de
nossa Sociedade servir a algum príncipe ou monarca,
que através de nossos [membros], ou melhor, por meio
de outros se trabalhe no sentido de torná-lo nosso amigo
e familiar à Sociedade, com promessas e favores, e
procurando que o príncipe ou monarca a quem serve
melhore seu Estado. Por último, que cada um faça o que
puder para obter o favor dos príncipes, grandes e
magistrados, a fim de que, quando se apresentar a
ocasião, trabalhem vigorosa e fielmente por nós, mesmo
que seja contra seus parentes, aliados e amigos.”3

Já o capítulo terceiro expõe como a Companhia deveria


se portar com aqueles que exerciam autoridade nos
Estados e que, ainda O papa negro e o império teocrático
da América do Sul 209

que não fossem ricos, pudessem prestar outros serviços:


“Além das coisas que acabam de ser ditas e que com
discernimento podem ser praticamente todas aplicadas,
é preciso cuidar para não atrair seu favor para com
nossos inimigos. Cumpre servir-se de sua autoridade, de
sua prudência e de seu conselho para que a comunidade
adquira bens e obtenha empregos que possam ser
exercidos por nossos membros, servindo-se em segredo
de seus nomes para a aquisição de bens temporais, se se
considerar que se pode confiar neles. É preciso também
servir-se dessas pessoas para abrandar os vis e o
populacho, contrários a nossa Sociedade.”4

O quarto capítulo trata de como os pregadores e os


confessores de pessoas importantes devem se
comportar: “Por isso devem com frequência advertir que
a distribuição das honras e das dignidades na Sociedade
pertence à Justiça e que os príncipes ofendem
gravemente a Deus, quando eles procedem de modo
apaixonado. Quando os príncipes tiverem entendido isso,
deve-se explicar a eles as virtudes que precisam ter os
escolhidos para as prebendas e cargos públicos, e fazer
de modo que eles nomeiem para tais cargos amigos
sinceros da Sociedade. Que os confessores e pregadores
se lembrem de que devem tratar os príncipes com
suavidade e lisonjeando-os, sem afrontá-los nos sermões
nem em conversas particulares, afastando de seu ânimo
todo temor e exortando-os principalmente à fé, à
esperança e à justiça política.”5

O sexto capítulo apresenta uma “fórmula” para


conquistar as viúvas ricas: “Que se escolham para isso
padres avançados em anos, que sejam de compleição
viva e de conversa agradável. Que eles visitem essas
viúvas e que assim que perceberem nelas algum afeto
pela Sociedade lhes ofereçam as obras e que as façam
presentes nos méritos da Instituição. E se elas aceitarem
e visitarem nossas igrejas, que se providencie para elas
um confessor que as dirija bem, com o objetivo de
mantê-las no estado de viuvez, falando a elas de suas
vantagens e ponderando sobre a felicidade que terão;
prometendo-lhes como certo. Deve-se aconselhar [à
viúva] o uso frequente dos Sacramentos, sobretudo o da
penitência, em que se 210

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

descobrirão seus mais secretos pensamentos e


tentações, com toda a liberdade. Haverá que comungar
com frequência e ir escutar seu confessor, para o que ela
deve ser convidada, prometendo-se a ela orações
particulares. Também se recitarão litanias e se
providenciará que [as viúvas] façam exame de
consciência. Se for o caso, a viúva deverá ser
suavemente levada a fazer boas ações e sobretudo dar
esmolas, mesmo que sempre sob o comando de seu pai
espiritual; em função do que é importante aproveitar
discretamente do talento espiritual: as esmolas mal
empregadas o podem ser por causa de diversos pecados,
ou os alimentam, de modo que se tira delas pouco
fruto.”6

O sétimo capítulo expõe como se devem entreter as


viúvas e as dispor de seus bens: “Que se insista
incessantemente para que continuem em sua devoção e
boas ações, de modo que não se passe uma semana sem
que reduzam seus gastos supérfluos, em honra de Jesus
e da Virgem, ou do santo de sua devoção, dando aos
pobres, ou para provento da Igreja, até que se as despoje
inteiramente das primícias ou das ondas do Egito. A fim
de que uma viúva disponha de suas rendas a favor da
Sociedade, se exaltará a ela a perfeição de estado dos
santos varões que, tendo renunciado ao mundo, a suas
famílias e bens, se consagraram ao serviço de Deus, com
grande resignação e gozo, explicando a elas com esse
objetivo o que diz nossa Constituição e o exame da
Sociedade, referente à renúncia de todas as coisas
humanas. Que se mostre a elas o exemplo das viúvas
que em pouco tempo chegaram assim a ser quase
santas, e faça-se que elas tenham esperança de ser
canonizadas, se perseverarem até o fim, fazendo-as ver
que não faltará a elas nossa influência junto do papa. Os
confessores devem propor a elas e persuadi-las a pagar
pensões ordinárias e tributos todos os anos, para ajudar
a sustentar os colégios e casas de religiosos, sobretudo a
casa de Roma. . e que não esqueçam o provento dos
templos, a cera, o vinho, necessários para rezar a missa.
Se uma viúva não der todos os bens em vida à
Sociedade, deve-se procurar uma ocasião, especialmente
quando ela estiver doente ou com a vida em risco, para
lembrar concretamente O papa negro e o império
teocrático da América do Sul 211
a ela a pobreza de nossos colégios e os muitos que estão
para serem fundados, induzindo-a com doçura, mas com
força, a fazer esses gastos, sobre os quais fundamentará
sua glória eterna. A mesma coisa deve ser feita com
príncipes e outros benfeitores. Eles devem ser
persuadidos a fazer doações perpétuas neste mundo,
para que Deus lhes conceda a glória eterna no outro.
Como há menos a esperar das viúvas que educam seus
filhos para o mundo, tente-se então que os dediquem à
Igreja.”7

O nono capítulo tem como tema as formas para se


aumentar as rendas dos colégios: “Os confessores não
deixarão de perguntar a seus penitentes, no momento
oportuno, seu nome, família, parentes e bens de fortuna;
e depois se informarão sobre seu estado, sucessores e
propósitos; e se todavia não tiverem tomado uma
resolução definitiva, será conveniente influenciar para
que aquela que vierem a tomar seja favorável à
Sociedade. O que foi dito sobre as viúvas deve-se
também fazer com os comerciantes, com os ricos
casados e sem filhos, dos quais a Sociedade será
herdeira, se com prudência forem empregadas as
práticas indicadas. Tais práticas devem sobretudo ser
observadas com os devotos ricos frequentados pelos
nossos, mesmo que o vulgo faça comentários, se não
forem pessoas de bom nível. Os reitores dos colégios
tratarão de conhecer as casas, jardins, fazendas,
vinhedos, aldeias e outros bens possuí-

dos pela principal nobreza, pelos comerciantes e outras


pessoas; e, se possível, averiguarão todos os juros e
rendas que recebam. Isso será feito com astúcia, porém
com eficácia, em particular na confissão e em conversas
privadas. Quando um confessor encontrar um penitente
rico, avisará primeiro ao reitor e deverá conservá-lo, por
todos os meios possíveis. Se os viúvos ou viúvas ricas,
adeptos da Companhia, tiverem filhas e não filhos, os
nossos os induzirão suavemente a escolher a vida devota
ou religiosa, para que, deixando-lhes algum dote, o resto
de seus bens passe pouco a pouco para a Sociedade.
Também será conveniente tomar dinheiro emprestado a
juros anuais e investi-lo em outra modalidade com maior
renda, compensando assim com usura o que se paga,
podendo também 212

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

acontecer que os amigos que nos emprestem dinheiro


fiquem com pena de nós e não nos cobrem juros,
declarando-o em testamento, já como doação em vida,
ao verem que empregamos esse dinheiro na fundação de
colégios e na construção de igrejas. A Companhia
também poderá negociar com proveito, servindo-se da
empresa de comerciantes ricos que lhe sejam adeptos;
mas nesse caso será necessário assegurar um lucro certo
e copioso, mesmo que seja nas Índias, que até agora,
com a ajuda de Deus, não só tem produzido almas para a
fé, como também grandes riquezas para a Sociedade.

Mesmo que com prudência, é preciso infundir-lhe o medo


do inferno, ou no mínimo do purgatório, evocando-o e
certificando que assim como a água apaga o fogo, a
esmola apaga o pecado, e que não se pode empregar
melhor a esmola do que em alimentar e vestir pessoas
que, por sua vocação, se consagraram a alcançar a
salvação do próximo; e que, dessa forma, o doente
participará desses méritos e encontrará satisfação para
seus próprios pecados, porque a caridade limpa muitos
deles. Também pode-se pintar a caridade como um
vestido de noiva, sem o que ninguém pode se sentar à
mesa do paraíso. Por fim, cumpre evocar a passagem das
Escrituras e dos Santos Padres, que, em função da
capacidade

[física e mental] e os hábitos do doente, sejam mais


eficazes para comovê-lo.”8

O laboratório de todo esse enredo maquiavélico,


desenvolvido pela Companhia, se deu na França. O caso
da França é um dos mais significativos para termos ideia
de como a Companhia de Jesus passou a agir de forma
extremamente sórdida na defesa de seus objetivos e na
manutenção do seu império. Em 1554, se estabeleceram
na cidade de Billom, na região do Auvergne, onde
“organizaram uma intensa luta contra a Reforma
Protestante nas províncias do sul da França”.9 No mesmo
ano de 1554, com o estabelecimento dos jesuítas na
França, que eram tratados como “uma sociedade
extremamente perigosa [. .] e que parece ter nascido
para causar ruína em vez de edificar”,10 a perseguição
aos protestantes franceses pelos católicos se intensifica,
obrigando o rei francês Henrique II a ordenar ao O papa
negro e o império teocrático da América do Sul 213

seu ministro Gaspard de Châtillon, conde de Coligny, a


invasão e fundação de uma colônia de huguenotes,
protestantes franceses, no Rio de Janeiro. Já em 1555,
Nicolas Durand de Villegagnon partiu do famoso porto de
Dieppe para fundar no Brasil a colônia que seria
chamada de Henriville, em homenagem ao rei.

No Brasil, o conflito religioso europeu aparecerá na


caçada aos huguenotes franceses no Rio de Janeiro. Um
desses huguenotes que será brutalmente assassinado –
na Guerra dos Tamoios, em 1554, na qual os jesuítas
articularam a expulsão dos franceses, logo que se funda
a cidade de São Paulo – chamava-se Jean-Jacques le Beul
e, que a mando dos jesuítas, sobretudo Anchieta, vai ser
enforcado, esquartejado e ter seus membros queimados
na fogueira.

A Paris, eles chegariam apenas em 1561, durante o


reinado de Catarina de Médici, quando abriram o Colégio
Clermont. Atuando em Paris, a perseguição implacável
dos jesuítas aos protestantes se intensifica e é atribuída
a eles forte influência na mais sinistra noite francesa de
todos os tempos: o massacre de São Bartolomeu. Teve
início na noite de 24 de agosto de 1572 e se estendeu
por vários dias e várias cidades francesas. Depois desse
dia, em que cerca de 30

mil protestantes foram mortos, era como se a Inquisição


tivesse se estendido da Espanha e de Portugal para a
França e levado consigo suas atrocidades. Estavam tão
envolvidos que o papa Clemente XIII mandou rezar um
te-déum agradecendo a Deus pelo ocorrido, além de
mandar cunhar uma medalha comemorativa ao
massacre dos protestantes franceses. A cabeça de
Coligny havia sido enviada como presente ao papa em
Roma, que encomendou ao grande pintor Giorgio Vasari
a imortalização da cena que pode ser vista hoje na sala
régia do Vaticano, uma espécie de antessala da Capela
Sistina.

Em 1573, Henrique III torna-se rei da França e, tolerante


com o protestantismo, publica uma série de éditos com o
intuito de coibir a perseguição aos protestantes. Depois
de uma longa conspiração que envolveu vários
assassinatos, o papa Sisto V publicou uma bula
excomungando o rei. No dia 1o de agosto de 1589, o
dominicano 214

O livro obscuro do descobrimento do Brasil


Jacques Clément invadiu a corte real e assassinou o rei
Henrique III. Em 16 de maio de 1610, outro rei francês,
Henrique IV, também seria assassinado por um fanático
religioso chamado François Ravaillac. Por trás desse novo
assassinato estava o jesuíta espanhol Juan de Mariana,
autor do livro De Rege et Regis Institutione, no qual se
pode observar claramente uma apaixonada defesa do
regicídio. No capítulo VI do Livro I, por exemplo, ele diz
que “se for necessário e não havendo outro modo
possível de salvar a pátria, matar o príncipe como
inimigo público, com a autoridade legítima do direito de
defesa [. .] nunca poderei crer que tenha agido mal
aquele que, cuidando dos desejos públicos, tenha
atentado em tais circunstâncias contra a vida de seu
príncipe”.11 No livro, o jesuíta faz elogiosas menções ao
ato praticado por Jacques Clément. No dia 8 de junho de
1618 o seu livro De Rege et Regis Institutione foi proibido
e queimado em frente à Catedral de Notre-Dame, na
França.

A Companhia de Jesus havia tomado uma dimensão tão


grande, era tão poderosa dentro da hierarquia da Igreja,
que seu chefe era conhecido como o papa negro.

A guerra religiosa era, portanto, iminente, e estourou na


Europa em 1517. Em 1549, chegam à Bahia com Tomé
de Sousa os primeiros jesuítas comandados por Manuel
da Nóbrega, amigo de Loyola, o fundador da Companhia
de Jesus. As colônias na América, tanto a portuguesa
como a espanhola, seriam o palco no qual a tensão entre
Reforma e Contrarreforma iria fervilhar.

Ao que parece, os jesuítas portugueses, e, em especial, o


padre da Nóbrega, alimentavam projetos ambiciosos e
sonhavam estender-se pelo vale do Prata. Basta recordar
que naquele mesmo ano de 1553, Manuel da Nóbrega
fundou São Paulo de Piratininga – “escala para muitas
nações de índios”.

A América era o lugar mais importante do mundo no


início do século XVI. Desse modo, em 1587, os jesuítas
portugueses do Brasil conseguem fundar uma missão no
Paraguai, onde criaram o Estado jesuítico do Paraguai,
que seria a sede de uma espécie de império teocrático
na América do Sul. A intenção era abocanhar, O papa
negro e o império teocrático da América do Sul 215

é claro, os tesouros americanos, cobiçados pelos


protestantes sedi-ciosos franceses, holandeses e
ingleses.

Do ponto de vista geográfico, a província jesuítica do


Paraguai está longe de se confundir em extensão com o
atual território do Paraguai. Na época, se estendia à
parte meridional da atual Bolívia, ao sul de Mato Grosso e
parte do atual estado brasileiro do Paraná.

Alargou-se muito no decorrer do século XVII, entre o


Paraná, o Uruguai e a parte ocidental do território do
atual estado brasileiro do Rio Grande do Sul, assim como,
ao findar aquele século, à região de Chiquitos, na atual
Bolívia. Todo esse território era dividido em três grandes
regiões denominadas Itatim, Tapes e Guairá.12

Na América, aplicaram igualmente e de forma efetiva os


mandamentos secretos da Companhia, bem como as
determinações do Concílio de Trento. É quase regra nos
testamentos e inventários do período colonial no Brasil a
doação – muitas feitas no momento da extrema-unção –
de todos os bens para a Companhia de Jesus, em que o
testador fazia sua profissão de fé e deixava sua herança
para a encomenda de missas, para associações religiosas
e para esmolas em nome da salvação da alma. Aliás,
provinha do ato de elaborar testamentos o grosso da
riqueza que a Companhia auferiu no Brasil.

Para isso, a Companhia investia violentamente contra os


herdeiros legítimos que não respeitassem a decisão do
moribundo em deixar todas suas riquezas para ela.

Dentro das vastas determinações propostas pela Igreja,


desde o Concílio de Trento, havia as chamadas
Constituições Sinodais, que no Brasil colonial foram
muito frequentes e nada mais eram do que adaptações
das regras gerais de atuação de acordo com as
especificidades locais. Uma dessas determinações tinha
como título

“Que nenhuma pessoa impeça por força ou engano aos


testadores disporem livremente de seus bens”13 e dizia
o seguinte: “Porque muitas pessoas, (sem atenderem à
culpa que cometem e restitui-

ção a que ficam obrigados) por haverem os bens


daqueles, a quem esperam suceder, os impedem com
enganos, força, e outros ilícitos meios, que não
disponham livremente de seus bens, maiormente 216

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

em favor da Igreja, obras e lugares pios, sendo conforme


o direito natural, Divino e humano, poderem, e deverem
as pessoas dispor, e testar livremente de seus bens, o
qual crime procuraram atalhar as Leis seculares: Nós
querendo ajudar as mesmas Leis com a espada
espiritual, mandamos com pena de excomunhão maior
ipso facto incurrenda, e as mais estabelecidas em direito,
e obrigação de res-tituir nos casos que a houver, que
nenhuma pessoa Eclesiástica, de qualquer qualidade, ou
condição que seja, per si, ou por inter-posta pessoa, em
nosso arcebispado por força, ameaças, engano, ou outro
modo ilícito proíba, ou impeça a pessoa alguma fazer seu
testamento, ou outra alguma disposição, por última
vontade de seus bens livremente, como quiser e bem lhe
parecer [. .] que nenhum dos ditos modos as sobreditas
pessoas constranjam a alguma outra a fazer herdeiro,
deixar legado, ou a revogar, mudar ou alterar o
testamento, ou codicilo, que já tiver feito em parte, ou
em todo, contra sua livre vontade; nem proíbam por
qualquer via os Tabeliães, pessoas, ou testemunhas, que
forem chamadas para escrever, assistir, ou aprovar os
testamentos; nem outrossim tolham, ou impeçam falar o
testador com os Párocos ou outros Sacerdotes, ou
Religiosos, ou pessoas com quem quiser aconselhar, ou
tratar, o que convier à sua consciência.”14

Com esse modus operandi a Companhia de Jesus


conseguiu amealhar uma imensurável riqueza em bens –
propriedades, fazendas, lavouras, gados, escravos – e
valores pecuniários.

Como se pode ver, era a aplicação ipsis litteris da


Constituição secreta da Companhia de Jesus – a Monita
Secreta –, que determinava também que os dissidentes
da ordem, que porventura a denunciasse, fossem
tratados da forma descrita no capítulo onze:

“Como os expulsos saberão de alguns de nossos


segredos, poderão prejudicar a Companhia e será preciso
opor-se a eles do seguinte modo: antes de expulsá-los,
dever-se-á obrigá-los a prometer por escrito e a jurar que
não dirão nem escreverão nunca nada prejudicial à
Companhia. Também far-se-á necessário antecipar-se às
acusações que possam ser feitas pelos expulsos,
servindo-se O papa negro e o império teocrático da
América do Sul 217

para tanto da autoridade de pessoas importantes, que


digam que a Sociedade não expulsa ninguém a não ser
por causas gravíssimas, que não expulsa membros
sadios, o que pode ser comprovado pelo zelo que dedica
à salvação das almas dos que são seus membros e que
pela mesma razão se preocupará mais com a salvação
dos seus. Deve-se providenciar prontamente que não
assumam cargos importantes na Igreja, como o são as
faculdades de pregar, de confessar, de publicar livros,
para evitar que atraiam a simpatia e o aplauso do povo.
Para isso, deve-se investigar maliciosamente sua vida e
seus costumes, para o que será conveniente estabelecer
relações com algum membro da família com o qual
vivam depois de serem expulsos. Quando se descubra
algo indigno e censurável em sua conduta, isso deverá
ser tornado público por pessoas de menor estrato social,
para que chegue aos ouvidos dos importantes e dos
prelados, favorecedores dos expulsos, a fim de que estes
os repudiem, temerosos que sua infâmia recaia sobre
eles próprios.

Se [os expulsos] não fizerem nada censurável e, pelo


contrário, se comportarem de modo honrado, haverá que
atenuar com sutilezas e palavras ambíguas suas virtudes
e ações louváveis, para minguar, até onde se puder, o
afeto e a confiança que inspirem.”15

Portanto, esqueça a imagem de jesuítas escrevendo na


areia e trazendo a civilização para os trópicos. No fundo,
eram os índios que ensinavam aos jesuítas. Os índios
tinham o mapa da terra, sabiam de cada rio, cada
caminho, cada atalho. Sabiam como e onde encontrar
ouro, prata, diamantes, que para eles não tinham o
menor valor. Sabiam ler a natureza hostil.

Com o tempo os forasteiros perceberam que a forma de


conseguir essas informações dos índios não era por meio
da força, da guerra, da tortura, como havia sido feito no
início. A forma de tirar todas as informações importantes
era tornar os índios, por meio da assimilação, parte do
Ocidente. Assimilando-os e tornando-os um de nós –
pensavam os europeus – talvez contribuíssem, já que de
outro modo preferiam a morte ao trabalho escravo. Foi
este também o trabalho realizado pelos jesuítas nas
colônias portuguesas e 218

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

espanholas na África. Era papel, portanto, dos jesuítas –


na África e no Brasil – realizar a tarefa de aproximação e
ruptura da alteridade inicial que havia entre
“estrangeiros” e naturais da terra.

É nesse sentido que os jesuítas formaram escolas e se


dedicaram à comunicação com os índios, porque queriam
romper a barreira do desentendimento, da diferença
entre as línguas para obter informações precisas sobre as
riquezas do Brasil e da América. Eles sabiam ser esse o
único caminho para a obtenção de riquezas, já que não
havia aqui impérios como, no caso das Américas, os dos
incas, astecas e maias.

A questão indígena para os jesuítas, portanto, não


passava por um sentimento humanitário, altruísta,
posicionando-se contra a escravidão a que eram
submetidos, mesmo porque os próprios jesuítas se
utilizavam desse expediente, ou seja, do trabalho
escravo nos seus aldeamentos. A luta contra a
escravidão indígena era a cor da tinta com que eles
gostavam de pintar o cenário, para esconder a escuridão
das camadas de tintas anteriores. A obsessão do
monopólio da propriedade dos indígenas tinha a ver com
o conhecimento indiciário que eles tinham da terra, ou
seja, eles eram conhecedores dos sinais, dos indícios,
das evidências e dos caminhos que poderiam levar à
descoberta dos tesouros ocultos.

A partir de sua instalação em São Paulo, em 1554, a


Companhia de Jesus criará empecilhos ao grande volume
de apresamento, escravização e comércio de índios que
então se fazia, sobretudo índios vindos do grande Estado
jesuítico que, como vimos, eles haviam fundado na
América. Se a faixa litorânea era servida por escravos
negros vindos da África, cujo fornecimento era um
monopólio da Coroa portuguesa, no interior do país ou
até mesmo nas pequenas propriedades do litoral,
prevalecia o trabalho do escravo vermelho, que era como
se denominava a escravidão do índio à época.

Em 1638, o padre Manuel Nunes determinou a


excomunhão de todos os traficantes de escravos
indígenas. Nesse mesmo ano, partiram para a Espanha
os jesuítas Francisco Díaz Taño e Ruiz de Montoya em
busca de uma audiência com o rei e o papa para O papa
negro e o império teocrático da América do Sul 219

denunciar e buscar por paradeiro “as ferozes tropas


mamelucas, todas compostas por facínoras, ladrões
perversos e ladrões tole-rados”.16 Conseguiram do rei e
do papa Urbano VIII em 24 de abril de 1639 o Breve
Commissum Nobis, na qual o papa ordenava a pena de
excomunhão para quem prendesse, vendesse, trocasse,
doasse ou tratasse como cativos os índios da terra.
Foi a gota d’água!

No Rio de Janeiro, em Santos e em São Paulo, a bula do


papa havia provocado imensa animosidade contra os
jesuítas, o que resultou na expulsão de todos eles em 13
de julho de 1640. São Paulo reunia a fina flor dos
bandeirantes: Antônio Raposo Tavares, Amador Bueno,
Fernão Dias Paes, Domingos Jorge Velho, Sebastião
Fernandes Preto, Bartolomeu Fernandes de Faria, muitos
deles judeus ou descendentes de judeus.

Desse modo, por trás dessa aparente discordância, desse


desentendimento surgido no âmbito da colonização do
Brasil, havia uma guerra que já durava séculos a fio. Os
judeus haviam chegado ao Brasil fazia pelo menos vinte
anos – em 1534, no processo de divisão do país em
capitanias hereditárias – e os jesuítas em 1549, na Bahia

por ocasião da criação do Governo-geral – e em São


Paulo em 1554, quando fundaram o colégio jesuítico. A
partir desse reencontro, a guerra, que estava em banho-
maria, ganhou fervura novamente.

O mais importante personagem judeu em São Paulo era


Antônio Raposo Tavares, que comandou a destruição do
Estado teocrático que os jesuítas haviam fundado na
América do Sul. Em 1628, comandou uma bandeira para
a região do Guairá – atual estado do Paraná – que
destruiu todos os aldeamentos jesuítas que existiam por
lá. Em 1638, comandou a bandeira que avançou em
direção ao Tapes – atual região do Rio Grande do Sul –,
destruindo também as reduções. Em 1648, enfim, atacou
a região do Itatim – atual região de Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul –, destruindo ali também as reduções
jesuítas. A partir de Mato Grosso do Sul, a expedição de
Raposo Tavares empreendeu uma das mais fantásticas
aventuras em território brasileiro, tendo percorrido mais
de dez mil quilômetros 220

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

pelos rios Paraguai, Mamoré, Madeira e Amazonas, até a


sua foz no atual estado do Pará, de onde retornaram para
São Paulo.

Com essas expedições Raposo Tavares havia conquistado


para Portugal nada mais, nada menos que os estados de
Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e
Mato Grosso do Sul.

Conquistas que seriam ratificadas mais tarde pelo


Tratado de Madri, de 1750. Não seria por mero acaso que
a Inquisição visitaria as capitanias do Sul, especialmente
as de São Paulo, Santos e São Vicente, na década de
1560, atrás justamente dos judeus que foram
processados, sentenciados e presos.17

Com a Companhia de Jesus sendo combatida na Europa,


os jesuítas vão dominar a América – por meio da
chamada conquista espiritual –, que era o que havia
sobrado e não era qualquer coisa, era uma das partes
mais auspiciosas do mundo. A partir do momento em que
os jesuítas espalharam seu poder por todas as regiões, a
América não era colônia da Espanha nem de Portugal,
era, sim, colônia da Companhia de Jesus. Embora ela
houvesse perdido essa primeira batalha.

O papa negro e o império teocrático da América do Sul


221

MAGIA, PODER E AMBIÇÃO NO SERTÃO DO


BRASIL: AS CAPITANIAS HEREDITÁRIAS

No início da década de 1530, como vimos, era notória a


posição pendular do rei de Portugal na guerra entre
Igreja e judeus. Era dessa forma que ele procurava
equilibrar-se no atendimento das contraditórias
demandas de ambos os lados. Ao mesmo tempo em que
ordenava os esforços junto ao papa para a instauração
da Inquisição, ele criava condições para que judeus
saíssem de Portugal, burlando inclusive a lei que ele
mesmo, d.

João III, havia criado para proibir os judeus de sair do


reino. É

fato que ele tinha criado a toque de caixa as capitanias


hereditárias no Brasil.

Isso se dá no momento exato em que a instauração da


Inquisição fracassa com a morte do papa Clemente VII e
a ascensão do papado de Paulo III leva adiante o projeto
português – d. João III resolve quase que de improviso
criar as capitanias hereditárias no Brasil.

Fica claro que a criação das capitanias hereditárias no


Brasil está umbilicalmente ligada ao fracasso da
contenção da instauração da Inquisição em Portugal.
Contenção que, no período em que foi mantida, custou
muito dinheiro pago ao papa e a seus prepostos,

dinheiro que bancou inclusive melhoramentos


significativos no patrimônio da Igreja, pois foi no papado
de Clemente VII, por exemplo, que Michelangelo
Buonarroti pintou a obra Juízo Final no teto da Capela
Sistina. E não por acaso também depois desses
escândalos, o Concílio de Trento proibirá que não
sacerdotes fossem alçados a qualquer posição na
hierarquia eclesiástica. A criação das capitanias é uma
reação imediata ao fracasso das negociações em Roma,
pois com a Inquisição era preciso proteger o que rendia
ainda a Portugal algum dividendo – o comércio que
estava nas mãos sobretudo de judeus.

Enquanto em Portugal esse dilema se prolongava, no


Brasil estava em curso a expedição de Martim Afonso. A
urgência de se tomar uma decisão faz com que o rei
aborte aquela missão e solicite a Martim que retorne
imediatamente a Portugal, como se pode observar em
sua carta: “Depois de vossa partida se praticou se seria
meu serviço povoar-se toda essa costa do Brasil, e
algumas pessoas me requeriam capitanias em terra dela.
Eu quisera, antes de nisso fazer coisa alguma, esperar
por vossa vinda, para com vossa informação fazer o que
me parecer. [. .].”1

Das doze capitanias que foram criadas, ao menos oito


pertenciam a judeus: Duarte Coelho, Martim Afonso de
Sousa [que ficou com duas], Pero Lopes de Sousa, Vasco
Fernandes Coutinho, Pero do Campo Tourinho, Pero de
Góis e Francisco Pereira Coutinho eram judeus.

O rei sabia que a perseguição e expulsão de judeus era,


no longo prazo, um problema insolúvel para as finanças
do reino, embora momentaneamente parecesse ser a
solução mais imediata para a sua situação
extremamente deficitária. Desse ponto de vista, a
criação das capitanias hereditárias no Brasil vai ser uma
jogada de mestre que frutificaria apenas mais tarde.

Martim Afonso, antes de voltar para Portugal a fim de


tratar da divisão do Brasil em capitanias, faz uma parada
estratégica na ilha Terceira, nos Açores, para falar com
Duarte Coelho e dali vão juntos a Lisboa. Não foi por
acaso, pois o arquipélago dos Açores Magia, poder e
ambição no sertão do Brasil: as Capitanias Hereditárias
223

era pioneiro na fabricação de açúcar e um importante


oásis da comunidade judaica na Europa.

Desse modo, pela expertise no cultivo da cana e na


produção do açúcar, a mais importante capitania criada
no Brasil foi dada a Duarte Coelho. Por que não ficou
para Martim Afonso de Sousa, já que o rei disse ao
próprio Martim que ele escolhesse o melhor quinhão para
si? Porque ele escolheu a região de São Vicente e não a
de Pernambuco, que já tinha uma feitoria conhecida e
produzia algum açúcar, além do pau-brasil, somando-se
a isso o fato de ser a mais próxima da Europa. Enquanto
em São Vicente não havia nada? Será que Martim Afonso
estava esperançoso de encontrar o ouro dos Andes pelo
caminho que se fazia até lá a partir de São Vicente? Ou a
motivação para tal escolha seria o fato que ele já havia
se decidido a abandonar suas donatarias, seguir seu
espírito aventureiro e nunca mais voltar ao Brasil, como
realmente fez?

Martim Afonso e Duarte Coelho serviram a Portugal nas


lutas travadas nas Índias, o que os havia aproximado
muito, numa espécie de irmandade, além da
ancestralidade judaica comum a ambos.

Isso explica o fato de a donataria de Pernambuco, que


era de longe a melhor, ter ficado com Duarte Coelho por
indicação de Martim Afonso. Embora pertencesse
oficialmente apenas a Duarte Coelho, ela era
propriedade da rede de apoio mútuo que unia a
comunidade judaica portuguesa naquele momento
conturbado de sua história na Península Ibérica.
A carta de doação da capitania de Pernambuco a Duarte
Coelho, de 5 de setembro de 1534, diz: “Faço doação e
mercê de juro e herdade para todo sempre como dito e
quero e me apraz que o dito Duarte Coelho e todos seus
herdeiros e sucessores que a dita terra herdarem e
sucederem se possam chamar e chamem capitães e
governadores dela e outrossim lhe faço doação e mercê
de juro e herdade pera sempre pera ele e seus
descendentes e sucessores no modo sobredito da
jurisdição civil e crime da dita terra da qual ele dito
Duarte Coelho e seus herdeiros e sucessores e nos casos
crimes hei por bem que o dito capitão e governador e
seu ouvidor 224

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

tenham jurisdição e alçada de morte natural inclusive em


escravos e gentios e assim mesmo em peões cristãos
homens livres em todos os casos assim para absolver
como para condenar.”2

A Inquisição em Portugal, somada à crise do monopólio


das especiarias do Oriente e às malfadadas tentativas de
encontrar riquezas na América, deixou claro que a única
forma de explora-

ção do Brasil seria por meio do trabalho produtivo, por


meio da transformação da natureza. Mas o problema
fundamental era que a produção do açúcar exigia uma
grande e precisa racionalização do trabalho. Quem iria
trabalhar, já que a isso o espírito português, acostumado
com as grandes conquistas, não se predispunha? A
resposta é simples: os comerciantes judeus.

Essa talvez seja também uma das respostas possíveis


para a escolha de Duarte Coelho, ou seja, por conta de
suas relações com a comunidade judaica portuguesa que
vivia na Holanda, mas que formava, como veremos, uma
rede mundial de negócios. Eles dominavam toda a
expertise da produção do açúcar, desde a plantação da
cana até o trabalho nos engenhos, a produção, a
transformação da natureza em riqueza.

De 1534 a 1549, as capitanias hereditárias viveram


tempos relativamente bons. Mas as intrigas que
assolavam a Europa embarcaram rumo ao Brasil, e era só
o tempo de atravessar o oceano para que a lufada de
confusão chegasse também por aqui. Não eram poucas e
seriam devastadoras.

Magia, poder e ambição no sertão do Brasil: as


Capitanias Hereditárias 225

MAGIA, PODER E AMBIÇÃO NO SERTÃO

DO BRASIL: O GOVERNO-GERAL

Passados quinze anos da fundação das capitanias, a


verdade é que quase nenhuma delas havia prosperado,
salvo as da Bahia, de Pernambuco e de São Vicente, de
modo que não havia muito para o governo português
arrecadar em 1549, quando criou o Governo-

-geral e trouxe na bagagem o regimento de Tomé de


Sousa de 17 de dezembro de 1548, que em matéria de
arrecadação e monopólio dos produtos da colônia dizia:
“Hei por bem que com os ditos capitães e oficiais
assenteis os preços que vos parecer que honestamente
podem valer as mercadorias que na terra houver e assim
as que vão do reino e de quaisquer outras partes para
terem seus preços certos e honestos conforme a
qualidade de cada terra e por eles se venderem,
trocarem e escambarem.”1
E sobre a questão da fé dizia: “Porque a principal coisa
que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil
foi para que a gente dela se convertesse a nossa santa fé
católica vos encomendo muito que pratiques com os
ditos capitães e oficiais a melhor maneira que para isso
se pode ter e de minha parte lhes direis que lhes
agradecerei muito terem especial cuidado de provocá-los
a serem

cristãos e pera eles mais folgarem de o ser tratem bem


todos os que forem de paz e os favoreçam sempre e não
consintam que lhes seja feita opressão nem agravo
algum e fazendo se lhe façam corrigir e emendar de
maneira que fiquem satisfeitos e as pessoas que lhes
fizerem sejam castigadas como for justiça.”2

Essas duas determinações trazidas por Tomé de Sousa


procuravam atender a duas demandas: a do rei e a da
Companhia de Jesus.

É dessa maneira que a guerra religiosa desembarcava no


Brasil e a primeira vítima será Francisco Pereira Coutinho,
donatário da capitania da Bahia, que foi envolvido numa
mal esclarecida guerra com os naturais da terra, iniciada
por um padre de nome João Bezerra. O donatário acabou
sendo, por isso, expulso da capitania e mais tarde foi
capturado na ilha de Itaparica, onde aconteceu uma

“cena hedionda de carnificina” sendo que seu corpo


“terminou num bestial repasto de antropófagos”.3

Duarte Coelho, prevendo que o perigo rondava como um


lobo feroz, sai veementemente em defesa de Francisco
Coutinho, seu irmão de armas no Oriente. Na carta de 20
de dezembro de 1546, enviada ao rei d. João III, Duarte
Coelho aconselhava-o a mandar o padre João Bezerra
“preso para Portugal e nunca mais torne ao Brasil porque
tenho sabido ser um grão ribaldo”,4 ou seja, um grande
velhaco, um patife. O rei, que estava de mãos atadas em
Portugal, nada fez em relação ao padre e à carnificina.

Outro grande injustiçado sobre o qual os jesuítas


derramaram sua fúria foi o donatário de Porto Seguro,
Pero do Campo Tourinho, que foi processado e preso pela
Inquisição. Denunciado à Inquisição de Lisboa por João
Barbosa Pais, em 13 de setembro de 1543, três anos
depois, em 24 de novembro de 1546, foi preso em Porto
Seguro e remetido com algemas para o reino, onde
compareceu perante o Tribunal do Santo Ofício. Segundo
seu processo: “Aos oito dias do mês de outubro de 1550,
em Lisboa, na casa do despacho da Santa Inquisição,
estando os senhores deputados, mandaram vir perante si
a Pero do Campo Tourinho, capitão do Porto Seguro das
terras do Brasil, e pelo juramento dos Santos Evangelhos
lhe fizeram Magia, poder e ambição no sertão do Brasil: o
Governo-Geral 227

pergunta. Quanto tempo havia que era capitão do dito


porto e capitania? Disse que haverá dezessete ou
dezesseis, e que ao tempo que lhe el-rei Nosso Senhor
fez mercê da dita capitania estava em Viana de Caminha
onde era morador e nascera e fora batizado.

Perguntado em que causas gastara seu tempo enquanto


estivera na sua capitania, disse que [. .] em Porto Seguro
[. .] mandara fazer muitos engenhos na terra e outras
causas necessárias pera ela. [. .]

Perguntado se era lembrado, estando na dita sua


Capitania, dizer ou fazer alguma coisa que fosse contra
nossa Santa Fé Católica e contra o que tem e crê a Santa
Madre Igreja, para que de qualquer coisa de que sentisse
nesta parte sua consciência encarregada pedisse perdão
a Nosso Senhor e misericórdia à Santa Madre Igreja, para
ser recebido com muita misericórdia, disse que não era
lembrado dizer nem uma coisa que fosse contra a Santa
Fé Católica, antes reprendia as pessoas que via fazer o
que não deviam. Perguntado se era lembrado dizer
alguma hora, quando fazia alguma coisa, que, se Deus o
não ajudasse nela, que diria que a fé dos Mouros que era
melhor que a dos Cristãos e que se tornaria mouro, disse
que nunca tal disse. [. .] Perguntado se dizia ele na dita
sua Capitania que nem um dia de Nossa Senhora nem
dos Apóstolos nem dos Santos se haviam de guardar e
por isso mandasse trabalhar a seus servidores nos tais
dias, disse que não, mas antes os mandava guardar e
festejar; somente que reprendia às vezes o vigário
francês por dar de guarda S. Guilherme, São Martinho, S.
Jorge e outros Santos que não mandava guardar a Santa
Madre Igreja, nem os prelados mandavam guardar em
suas constituições, porquanto a terra era nova e era
necessário trabalhar para se povoar a terra e fazerem-se
algumas coisas do serviço de Deus. Perguntado se era
lembrado dizer alguma hora que merecia mais que os
Santos Apóstolos e que, se Deus lhe não dava alguma
cadeira mais alta que a dos profetas, que guardasse seu
paraíso, disse que nunca tal dissera, somente dizia às
vezes, vendo que trabalhava da noite e de dia com
muitos cuidados: que mais trabalhos podia ter S. Pedro
que ele? [. .] Perguntado se dissera alguma hora que não
há tantos 228

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

Santos de guarda [. .] dizia que [. .] quem era preguiçoso


por jogar e folgar buscava muitos Santos, e que isto tudo
disse para animar os homens que trabalhassem pera que
a terra se povoasse e se fizesse o que era necessário [.
.]. Perguntado se dissera alguma hora que os bispos
eram uns bugiares e tiranos que casavam e descasavam
e faziam o que queriam por dinheiro, disse que não
dissera tal e que lhe lembrava mais entender em seu
trabalho e no bem da terra que dizer tais coisas, e que
quando lhe diziam que os prelados tinham rendas e
folgavam, que ele dizia que estes tinham tanto trabalho
como os que trabalham de pela manhã até noite e isto
com suas ovelhas e com o cuidado delas. Perguntado por
que razão deitara de pregador a um frei Francisco que ali
pregava na igreja, disse que não o lançara dali, mas que
ele se fora e lhe pagara tudo o que lhe devia, e que a
causa que se fora era por dizer que se queria ir por ali
lhe pagarem seu trabalho em açúcar e em outra parte
lhe pagarem em dinheiro [. .]. Perguntado se dissera
alguma hora que Deus dizia que, conquanto ele fosse
capitão que não havia de vir guerra à terra e que não era
necessário reparo, disse que não; somente dizia ao povo,
quando lhe ouvia falar em guerra, que não houvessem
medo que Nosso Senhor tinha cuidado deles e que
fossem trabalhar e fazer o que haviam de fazer e não
houvessem medo. Perguntado se tinha algumas pessoas
que lhe quisessem mal, disse que sim, [. .] e que todos
estes estavam mal com ele, por ele bradar com eles que
não queriam trabalhar e lhes repreendia seus vícios e os
castigava e prendia quando era necessário, pelos males
que faziam aos Índios, dormindo-lhes com suas mulheres
e filhas e faziam outras coisas que não deviam.
Perguntado se queria estar pelos autos que contra ele
vieram do Brasil, disse que tudo o que contra ele diziam
era falso, porque os que contra ele testemunhavam eram
seus inimigos, nomeando os sobreditos e outros que lhe
queriam mal por ele fazer o que devia e os castigar e aí
não disse. E disse que as pessoas que tem nomeado de
sua Capitania e estes podiam trazer outros que
testemunhassem contra ele e diriam o que queriam e
fariam o que quisessem depois que o não viram na
terra.”5

Magia, poder e ambição no sertão do Brasil: o Governo-


Geral 229

A Inquisição que acusava, diligenciava, julgava e punia


acabava de conquistar suas primeiras posses no Brasil,
as capitanias da Bahia e de Porto Seguro. Após esse
primeiro ataque, os jesuítas partiram para as capitanias
do Sul, onde fundaram, como vimos, a cidade de São
Paulo em 1554, que serviria de base para atacar tanto os
franceses huguenotes, instalados no Rio de Janeiro, como
para lançar as missões que construiriam o império
teocrático da América do Sul, de onde foram expulsos.
Mas havia algo ainda mais importante para a ambição
dos jesuítas, que era se apoderar da capitania de
Pernambuco, pois estava claro para eles que se tratava
da mais rica do Brasil e que era completamente
dominada por judeus.

O objetivo era ir até lá impor suas diligências, seu poder


e fazer o que sempre faziam: as devassas. Se a capitania
não interessava ao rei que dera a Duarte Coelho
jurisdição total sobre ela, o problema era dele. Nos
planos da Companhia de Jesus ela era fundamental, e
para lá a Companhia rumou mesmo sem ter sido
investida de poderes para tal pelo rei de Portugal. Mas
uma vez instituída a Inquisição em Portugal, quem dava
ouvidos ao rei?

230

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

MAGIA, PODER E AMBIÇÃO NO


SERTÃO DO BRASIL: A COMPANHIA

DE JESUS NA NOVA LUSITÂNIA

Os jesuítas, como vimos, chegaram ao Brasil junto com


Tomé de Sousa e as determinações do Concílio de Trento,
com a cartilha da Companhia de Jesus embaixo dos
braços, se arvorando não só em defensores dos “naturais
da terra”, mas também se dizendo evange-lizadores dos
colonos, supostamente com o objetivo de introduzir
numa terra cheia de pecados “o elemento moral, superior
ao político e a qualquer outro, no meio das contendas
físicas pela existência e das rivalidades de apetites, das
quais o único freio consistia numa religião que, mal
compreendida ou mal interpretada, perdera a
espiritualidade para sobreviver em ritos, num quase
fetichismo.

Aos planos de catequese e de colonização teocrática da


Companhia sorria de preferência o regime de
centralização administrativa, sob uma responsabilidade
única, que dela recebesse inspiração”.1

Foi com esse espírito autoritário que em 1551 estiveram


na capitania de Pernambuco os jesuítas Manuel da
Nóbrega e Antônio Pires para dar prosseguimento à sua
verdadeira cruzada, como se pode notar a partir de suas
cartas. Na carta de 1549, o jesuíta faz uma declaração
reveladora quando diz que “esta terra é nossa

empresa”.2 Em outra carta revela um pouco mais sobre


os verdadeiros objetivos da missão quando diz que “há
aqui grande quantidade de ouro e do mesmo modo
pedras preciosas, mas pelas poucas forças dos cristãos
não se descobre”.3
As impressões sobre a sua estada em Pernambuco em 11
de agosto de 1551 são as seguintes: “Nesta capitania de
Pernambuco onde agora estou tenho esperança que se
fará muito proveito, porque como é povoada de muita
gente, há grandes males e pecados nela. Andam muitos
filhos dos cristãos pelo sertão perdidos entre os gentios,
e sendo cristãos vivem em seus bestiais costumes. [. .]

os clérigos desta terra têm mais ofício de demônios que


de clérigos, porque além de seu mal exemplo e
costumes, querem contra-riar a doutrina de Cristo, e
dizem publicamente aos homens que lhes é lícito estar
em pecado com suas negras, pois que são suas escravas
e que podem ter os salteados, pois que são cães e outras
coisas semelhantes, por escusar seus pecados e
abominações, de maneira que nenhum demônio temos
agora que nos persiga senão estes. Querem-nos mal
porque lhes somos contrários a seus maus costumes e
não podem sofrer que digamos as missas de graça, em
detrimento de seu interesse.”4

Em carta de 13 de setembro volta a relatar o que vira em


Pernambuco: “Há um mês que chegamos a esta
capitania de Pernambuco eu e o padre Antônio Pires, a
qual nos faltava por visitar e tinha mais necessidade que
nenhuma outra por ser povoada de muito e ter os
pecados muito arraigados e velhos [. .] havia aqui muito
pouco cuidado de salvar almas, os sacerdotes que cá
havia estavam todos nos mesmos pecados dos leigos e
os demais irregulares, outros apóstatas e excomungados.
Alguns pediram perdão e outros que são contumazes não
dizem missa e andam encartados sem aparecerem por
seus erros serem muito públicos e escandalosos [. .]
estavam os homens aqui numa grande abusão, que não
comungavam quase todos por estarem amancebados.”5
E em carta ao rei d. João III de 14 de setembro de 1551
diz que

“nesta capitania se vivia muito seguramente nos pecados


de todo o 232

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

gênero e tinham o pecar por lei e costume, quase todos


não comungavam nunca e a absolvição sacramental a
recebiam perseverando em seus pecados. Duarte Coelho
é já velho e falta-lhe muito para o bom regimento da
justiça e por isso a jurisdição de toda costa devia ser de
Vossa Alteza”.6

Em outra manifestação diz que “pondo de um lado o que


o erário despendia em cada ano com os aprestos das
naus que mandava à Índia; os soldos da gente de guerra
e marítima; moradias de seus criados; mercês feitas a
particulares; juntamente com o cabedal que remetia para
a compra de pimenta do Malabar; e do outro o que esta
lhe rendia e mais o arrendamento dos direitos que
pagavam a canela de Ceilão, o cravo de Maluco, a massa
e noz-moscada da Banda, o almíscar, benjoim, porcelana
e sedas da China, as roupas e anil de Cambaia e
Bengala, a pedraria do Balaguate e Bisnaga e Ceilão, os
ganhos excedentes ficavam todavia aquém do
rendimento do consulado e da entrada no reino do
açúcar de Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, cultivado
somente no litoral”. Insinuava novamente o jesuíta ao
monarca que reivindicasse para a Coroa a capitania de
Pernambuco, que ele reputava como “uma das melhores
da terra”.7

Como se pode ver o espírito de milícia da Companhia de


Jesus se fez presente desde o primeiro instante em que
pisou no Brasil e na América. O modus operandi era o de
sempre, ou seja, reduzir tudo à maniqueísta batalha
entre Deus e o Diabo e tratar tudo aquilo que fugisse ao
seu dogma como maldito e sujeito a perseguição pela
verdadeira matilha em que se transformaram os jesuítas,
ávidos para abastecerem, por meio dos autos de fé, as
chamas da Inquisição e os cofres da Igreja. Contra esse
estado de coisas que começou a se implantar no Brasil a
partir do Governo-geral, Duarte Coelho envia em 24 de
novembro de 1550 uma furiosa carta ao rei d. João III em
que diz: “E quanto ao que por esta me V.A. escreve e diz
que há por bem assim por folgar de me fazer mercê,
como pelas mais razões conteúdas em minhas cartas que
lhe o ano passado escrevi que é estar como estava e
guardar-me minhas doações e que não se estenda em
mim o que tinham mandado a Tomé de Sousa nem
Magia, poder e ambição no sertão do Brasil: a Companhia
de Jesus…

233

ele venha cá nem entenda em minha jurisdição, no qual


V.A. fez como magnânimo e virtuosíssimo e justíssimo Rei
e Senhor, e eu tal confiança de V.A. tinha e tenho muito
perfeitamente e lerei em mostrar ao Senhor Deus lhe
sustentar os dias de vida e afirmo a V.A. que a todos
pareceu tanto bem e tão excelente exemplo qual era
razão e se de V.A. esperava por sua real e magnânima
condição e virtuosíssima inclinação e pois e Luzeiro e
estrela do norte por onde todos havemos de navegar e
seguimos as nossas obrigações os que carregos per V.A.
tivermos. E quanto, Senhor, a mercê que me ora per esta
sua faz para mim e em vida de V.A. bastava porque
outras mercês e honras ainda espero, mas para o de
diante pera com seus filhos que Deus deixará lograr
depois de V.A. e por fim de seus dias, seus Reinos e
senhorios e senhor necessário ser por alvará de
confirmação assinado por V.A. e selado de seu selo e
passado por sua chancelaria conforme as minhas
doações e isto outrossim por causa destas mudanças que
ora houve, depois ao diante não haja alguns maus
conselheiros que com os Reis se querem congraçar às
custas de suas consciências de que se os tais induzidores
não dão nada por não terem amor verdadeiro senão aos
seus interesses seguindo suas inclinações não olhando a
obrigação do seu Rei e Senhor que diante se devia de pôr
e respeitar pelo qual peço a V.A.

pois começou acabe de me fazer esta justa mercê.”8

Nesse início pede ao rei que mantenha sua jurisdição


sobre a capitania e segue: “Senhor, me obriga por
descarrego de consciência a dar disto esta breve conta a
V.A. e digo que todo este povo e república desta nova
Lusitânia foi e está muito alterado e confuso com estas
mudanças e afirmo a V.A. que se por mim não fora se
queriam muitos ir da terra e isto sobretudo em lhes não
quererem seus ofícios que nem no Reino guardar suas
liberdades e privilégios conteúdos em minhas doações e
foral que lhe foram provicados e pregoados e estes
oficiais que cá vieram quiseram usar asperezas que para
em tal tempo e rezam e para em terras novas não eram
então cedo, porque são, Senhor, coisas mais para
despovoar o povoado que para povoar o despovoado.[. .]
seus oficiais que cá vieram [. .]

234

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

agora fizeram-me grandes requerimentos e protestos


para que lhes guardasse e fizesse guardar as liberdades
e privilégios que até aqui lhe foram guardados e lhes ora
queriam quebrar e se não que largariam a terra [. .],
Senhor, digo que e necessário dizer acerca disto a V.A. a
verdade do que me parece seu serviço e descarrego de
sua consciência e da minha se o não dizer pelo qual digo
que e muito odiosa cousa e prejudicava ao serviço de
Deus e seu e proveito de sua fazenda e bem e aumento
das coisas que tão caro custam quebrar e não guardar as
liberdades e privilégios aos moradores e povoadores e
vassalos [. .]. Tome V.A. isto de mim como o deve de
tomar de quem se disso doe e o deseja servir assim
acerca do que a sua obrigação e consciência toque como
nas do seu proveito porque a gente contente e quieta
estará e arreigará na terra e faram fazendas de que
muito dobrado e tresdobrado proveito V.A. terá desta
terra e cada vez mais isto senhor.”9

Havia certamente um movimento no sentido de deixar o


Brasil, e Duarte Coelho alertava o rei para o prejuízo da
Coroa: “Que, Senhor, foram provocadas muitas
novidades que por outra dou conta a V.A. e algumas
delas prejudicam a mim e ao povo moradores e
povoadores desta Nova Lusitânia, e são bem contra seu
serviço e assim me deixou aqui disso o provedor mor
Antonio Cardoso em seu regimento as ditas novidades e
assim que V.A. me dava e com pena que eu não
entendesse em sua fazenda ao qual digo que isto me não
prejudica per minha parte, porque nem da minha queria
ter cuidado mas se prejudicar a fazenda de V.A. isso veja
ali que a mim não seria culpa, mas ali de menos não será
pôr me eu nunca em parte alguma nem em tempo algum
aproveitar de sua fazenda nem lhe ser em carrego de um
só real! nem nunca o Deus permita nem mande que lhe
eu, Senhor, seja nunca em tal carrego, mas antes se
achara e é provido e notório ter eu em todo parte além
dos serviços de minha pessoa o servi e a seu pai que
Deus em sua glória tem com muitos gastos de minha
fazenda na Índia e aqui e em todas partes e assim o juro
pelo meu Deus que creio e adoro sem hoje em dia ter
nem levar tença nem juro de V.

Magia, poder e ambição no sertão do Brasil: a Companhia


de Jesus…

235

A. nem essa moradia que tinha depois que de lá parti


que agora faz dezesseis anos nem a serviço se quer pera
especiaria que não posso viver sem ela.”10

As intrigas em torno da possível sonegação de impostos


devidos ao rei foram obviamente levantadas para
desestabilizar a relação entre ambos, abalar a confiança
e, em última instância, interferir na jurisdição sobre as
terras. Sobre este assunto diz Duarte Coelho:

“Digo isto, Senhor, porque isto deste regimento destes


seus novos oficiais ou foi inovação deles, ou alguma falsa
informação dalgum pouco virtuoso que contra mim desse
[. .]. Muitas coisas se me oferecem pera poder dizer que
por não enfadar a V.A. e por ser de tão longa via o deixo
pera quando me com V.A. vir o que bem desejo somente,
Senhor, digo que ao presente estamos de paz e pacíficos
a Deus louvores e estes cinco engenhos estão de todo
moentes e correntes e cada dia se fazem mais fortes as
casas deles pela maneira de um que eu tenho feito, e
tudo vai pera bem se estas mudanças o não estorvar,
mas outros engenhos que comigo estavam averiguados
estes estão duvidosos e me escrevem por não saberem
guardarem lhes as liberdades e privilégios que lhes
foram per mim provicados conteúdos em minhas
doações e foral pois lhes eu guardo o que lhes fiquei que
não viram. Peço a V.A. pelo que a serviço de Deus
cumpre e ao proveito de sua fazenda que mande cumprir
e guardar as liberdades e privilégios conteúdos em
minhas doações e foral aos moradores e povoadores que
eu tiver assentados por moradores e povoadores em o
livro da matrícula e tomo que para isso e feito desde o
princípio e com isto deixe me fazer e verá o proveito que
se disso segue. Desta vila de Olinda a 24 de novembro
de 1550. Servo e vassalo de V.A. Duarte Coelho.
Sobrescrito: Para El-Rei nosso senhor de Duarte
Coelho.”11

O que salta aos olhos na carta de Duarte Coelho ao rei de


Portugal e no processo que a Inquisição moveu contra
Pero Coutinho é a lógica do trabalho. De um lado a
indignação de ambos em relação a um mecanismo
externo – no caso, a intervenção do Estado e da
Companhia de Jesus, impondo regras e criando
dificuldades ao que 236

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

já era difícil – que seria nefasto para o andamento dos


negócios e, consequentemente, para a fazenda do reino.
De outro lado, o modus operandi da Companhia de Jesus
procurando se apoderar de tudo por meio da intriga.

É contra as normas absolutistas que tinham sido


implantadas no reino e que se queria fazer passar a valer
no Brasil a partir de 1549, com a instituição do Governo-
geral, que Duarte Coelho, com toda a razão, se mostra
irredutível. Sobretudo no que diz respeito ao que havia
sido convencionado e acordado entre ele e o rei, na
ocasião da doação da capitania, que previa a liberdade e
o privilégio de outorga de franquias e mercês que a ele, e
por meio dele, a quem ele indicasse e, mais que isso, o
resguardo total de sua incondicional jurisdição.

Desconhecemos a resposta do rei d. João III às demandas


e reclamações de Duarte Coelho, mas podemos deduzir
por meio da correspondência entre o rei e Tomé de
Sousa, o governador-geral, que o rei ficou do lado de
Duarte Coelho e manteve a isenção de jurisdição de sua
donataria. Fez a defesa de seus direitos e de forma

“tão apaixonada se mostrara ele na defesa de antigos


foros, privilégios e liberdades, que desejava acrescidos,
em vez de limitados, e tão viva era ainda a lembrança de
seus feitos que d. João III acabou por ceder

[. .] e a Tomé de Sousa, que, pelo seu regimento, estava


obrigado, juntamente com o ouvidor-geral e o provedor-
mor, a governar e visitar as várias capitanias da costa,
não hesitou em mandar uma contraordem, por onde
ficasse resguardada a autonomia das terras de Duarte
Coelho”.12

Ainda em 1549, quando da criação do Governo-geral,


Tomé de Sousa insiste para que d. João III permita maior
jurisdição sobre Pernambuco, e estranha porque aquela
donataria deveria correr livre, como uma espécie de
território independente.

Numa das cartas dirigidas pelo primeiro governador-geral


ao rei, datada de julho de 1551, é manifesto o
ressentimento com que Tomé de Sousa recebeu a ordem
de redução, em relação a Pernambuco, dos amplos
poderes de que viera revestido. Diz ele: “Torno a dizer
que os Magia, poder e ambição no sertão do Brasil: a
Companhia de Jesus…

237
capitães destas partes merecem muita honra e mercê de
V. Alteza, e mais que todos Duarte Coelho, sobre que
largamente tenho escrito a V.A., mas não deixar de ir V.A.
às suas terras parece-me grande desserviço de Deus, de
Vossa consciência e danificamento de vossas rendas.”13
Em outra carta, de julho de 1553, depois de ter
percorrido as capitanias “de baixo”, Tomé de Sousa volta
a insistir com o rei e manifestar seu pesar em não poder,
junto com a Companhia de Jesus, tomar posse da
capitania de Duarte Coelho. Diz ele “que a justiça de V.A.
entre em Pernambuco e em todas as capitanias desta
costa e de outra maneira não se deve tratar da fazenda
que V.A. tiver nas ditas capitanias, nem menos da justiça
que se faz”.14 Esse embate mostra uma espécie de
mosaico de poder que existia no Brasil e que envolvia
jesuítas, o rei, o Governo-geral e os donatários.

Mas se a isenção de jurisdição foi respeitada pelo


Governo-geral, não foi pelos jesuítas, como podemos
notar no caso do ex-jesuíta Antônio Gouveia, que sairia
de Pernambuco a ferros direto para os porões da
Inquisição em Portugal. Era só o prenúncio do que estava
por vir.

238

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

MAGIA, PODER E AMBIÇÃO NO

SERTÃO DO BRASIL: A INQUISIÇÃO

NA NOVA LUSITÂNIA

Antônio Gouveia havia nascido na ilha Terceira dos


Açores, mesmo lugar de onde, como vimos, havia partido
Duarte Coelho para assumir sua donataria. Não seria
então por mero acaso que o ex-jesuíta andava por lá,
certamente protegido da perseguição que sofria da
Companhia de Jesus. Na juventude, nos anos de
formação, entrou em contato com as obras de Alberto
Magno, um frade dominicano autor de obras de teologia,
botânica, astronomia, astrologia, mineralogia, alquimia
reunidas em obras como De Mineralibus, Theatrum
Chemicum e Speculum Astronomiae, entre outras.

Em 1556 transitava pelas ruas de Lisboa se dizendo


alquimista.

No dia 9 de maio foi recolhido aos cárceres da Inquisição


acusado de práticas alquímicas e diabólicas. Em maio de
1557, na sua primeira audiência, negou saber
“nigromancia ou alguma ciência de invocar demônios ou
quiromancia”, mas assumiu ser iniciado em

“astrologia judiciária”, ou seja, a prática segundo a qual


os astros determinam ou influenciam o futuro dos
homens, fato grave para a Igreja Católica, e, para piorar
sua situação, afirmou que sabia a arte de fazer “ouro
potável”.

Na audiência de 23 de maio de 1557, sem nenhuma


cerimô-

nia, Antônio Gouveia confessou que “o demônio lhe


falara com voz clara e distinta, sem que visse figura
alguma e lhe ensinara a entrar no mar adentro, a pé
enxuto, para dali trazer tesouros, o que realmente fez
mais de uma vez, apartando-se as águas do mar ante as
suas encantações e permitindo que, de uma feita,
apanhasse da areia limpa peças que valeriam até vinte
cruzados e dias depois o demônio ofereceu-lhe, em troca
da posse de sua alma, fornecer-lhe o meio de se tornar
invisível”.1

Por essas declarações foi encarcerado por quatro anos


até que o Tribunal da Inquisição determinou que fosse,
além de outras penas, desterrado para o Brasil, para
onde embarcou em 17 de outubro de 1567. Nesse caso
os jesuítas usaram contra um desertor da Companhia de
Jesus o método explicitado na Monita Secreta, que, como
vimos, era o de ridicularizar publicamente a pessoa até
deixá-la completamente desacreditada e, em última
instância, tachá-la de psicologicamente degenerada e
sem juízo. É o que aparece nos autos do processo onde
está escrito que Antônio Gouveia sofria de “doença
mental”.

Era esse homem que se encontrava em Pernambuco na


época do segundo donatário da capitania de
Pernambuco, Duarte Coelho de Albuquerque, filho de
Duarte Coelho e Brites de Albuquerque.

Alguns autores relatam a presença de Antônio Gouveia


em Pernambuco. O primeiro é Anchieta, que relata em
1584, nas guerras contra os índios, a presença de um
homem “que se tinha por nigromante”; Fernão Cardim
também diz que na guerra “juntou-se um clérigo
português mágico, que com seus enganos os acarretou
todos [os índios] a Pernambuco e assim se acabou esta
nação”.

Mas o relato mais impressionante nos dá frei Vicente do


Salvador, o qual, na sua História do Brasil, diz que a
Pernambuco “veio um clérigo a que vulgarmente
chamavam o Padre de Ouro, por ele se jactar de grande
mineiro e por esta arte era muito estimado de Duarte
Coelho de Albuquerque, e o mandou ao sertão com trinta
homens brancos e duzentos índios que não quis ele mais,
nem lhe 240

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

eram necessários, porque em chegando a qualquer


aldeia de gentio, por grande que fosse, forte e bem
povoada, depenava uma ave ou desfolhava um ramo e
quantas penas ou folhas lançava para o ar tantos
demônios negros vinham do inferno lançando labaredas
pela boca, com cuja vista somente ficavam os pobres
gentios, machos e fêmeas, tremendo de pés e mãos e se
acolhiam aos brancos que o padre levava consigo os
quais não faziam mais do que amarrá-los e levá-los aos
barcos e se vendiam porque o padre mágico os tinha
enfeitiçado”.2 Também se refere a ele Capistrano de
Abreu, que diz que “no ano de 1571 foi o padre Luis da
Grã com o bispo Pedro Leitão a visitar a capitania de
Pernambuco, havia muitos dias que os padres padeciam
uma grande perseguição, levantou essa tempestade um
sacerdote por nome Antônio Gouveia que em algum
tempo foi de nossa companhia”.3

Em 1o de outubro de 1569, o padre Silvestre Lourenço,


vigá-

rio-geral da capitania de Pernambuco, recebeu denúncias


secretas de que Antônio Gouveia “ia pelo sertão adentro,
sob o pretexto de descobrir minas de ouro e prata,
levando ornamentos supostos de Inglaterra e de
luteranos, com os quais fazia missa [. .] culpa-vam-no
ainda de jactar-se publicamente de falar com demônios e
de adivinhar muitas coisas”.4 Em 25 de abril de 1571, o
ouvidor eclesiástico Manuel Fernandes Cortiçado, em
nome do bispo de Salvador, Pedro Leitão, determinou sua
prisão colocando-o a ferros. Em 4 de maio do mesmo ano
já estava a bordo de um navio rumo a Lisboa. Na mesa
do Tribunal do Santo Ofício foi acusado de incorrer em
“desobediência e de se haver provado todas as suas
proposições heréticas, simonias judaicas e vitupério feito
ao santíssimo sacramento”.5

Esse acontecimento envolvendo o alquimista Antônio


Gouveia é o primeiro sinal de que a guerra religiosa que
assolava a Europa havia definitivamente ancorado na
América portuguesa. A guerra não era apenas religiosa,
era econômica. A Companhia de Jesus era tão
pragmática quanto os comerciantes. Que ninguém se
engane, desembarcaram no Brasil por motivos venais,
pecuniários.

Magia, poder e ambição no sertão do Brasil: a


Inquisição…

241

O radicalismo das Inquisições portuguesa e espanhola vai


fazer com que mais de cem mil judeus iniciassem uma
fuga para países como França, Turquia, Países Baixos,
Inglaterra e Brasil, onde, em pouco tempo, fizeram
fortuna e suplantaram Portugal, Gênova e Veneza como
players do comércio internacional.

A opinião mais comum é a de que, portanto, saindo de


Portugal, nos reinados de d. Manuel e d. João III, os
judeus foram enriquecer, sobretudo, nos Países Baixos
com os grandes cabedais que levavam consigo. Muito
antes de os judeus serem expulsos da península, já as
praças de Flandres e Holanda estavam em grande
florescência e mantinham considerável comércio com os
países do norte da Europa. Foram habitantes dos Países
Baixos que, refugiando-se na Inglaterra, levaram para lá
a indústria da tecelagem.6

Desse modo, pode-se dizer que os judeus sefarditas, de


tanta perseguição e consequente imigração, formaram
uma rede comercial que se estendia por vários países
europeus e até a outros continentes. Ao mesmo tempo
em que eram parceiros de reis, como o de Portugal e o
da Espanha, eram também concorrentes em outras
praças com outros parceiros. O Brasil holandês vai ser
mais um braço dessa imensa rede comercial.

Os judeus se constituíram na primeira rede mercantil do


mundo com representação em todas as partes. Pode-se
dizer que ante-ciparam as multinacionais e, enquanto os
países viviam por si e competiam entre si, eles atuavam
em todos os países, antecipando, assim, o espírito do
capitalismo, que “pressupõe, se quiser triunfar, uma
rede, uma série de confianças e cumplicidades colocadas
ade-quadamente nos pontos precisos do tabuleiro do
mundo”.7

Eles estavam em busca de ambiente mais propício para


se desenvolver e naquele momento todos os caminhos
levavam para a região dos Países Baixos, sobretudo por
causa de duas características: oportunidades de negócios
– que em Portugal e na Espanha estavam monopolizados
nas mãos dos reis – e tolerância religiosa – em Portugal e
na Espanha vigorava a Inquisição. A sua difusão por toda
a Europa prepara o caminho para os holandeses 242

O livro obscuro do descobrimento do Brasil

e assinala, no relógio da história mundial, a hora inicial


do ciclo de Amsterdã.8
Todos os países se esforçavam para atrair investimentos.
Espanha e Portugal, com seus tribunais inquisitoriais,
expulsavam aqueles que tinham maior poder de
investimento, de capital. Esses judeus foram absorvidos
por países como a Holanda, a Inglaterra e, mais tarde,
pelos Estados Unidos, não por acaso os países que se
sucederam como potência nos ciclos de desenvolvimento
do capitalismo.

Na primeira oportunidade, toda a América vai se tornar


também parte da grande e auspiciosa rede de relações
que os judeus estabeleceram entre o Ocidente e o
Oriente e em qualquer lugar em que vicejava o comércio.
De forma indireta, a instalação da Inquisição em Portugal
foi auspiciosíssima também para o Brasil.

Sem a Inquisição em Portugal não haveria, por exemplo,


as capitanias hereditárias.

Na verdade, podemos dizer que o ano de 1531, com a


primeira consulta ao papa sobre a Inquisição em
Portugal, configura-se como o ato fundador do período
que pode ser considerado o mais moderno da história do
Brasil: o Brasil holandês. No século XVI, e no seguinte, o
império holandês das Índias ocidentais – ou seja, o Brasil
– vai ser um dos mais ricos e prósperos do mundo, uma
potência mundial que fará girar o relógio da história. Não
era qualquer coisa: o Brasil será a vertente de nada mais,
nada menos do segundo ciclo mundial de acumulação de
capital: o ciclo holandês.9

Mas não nos antecipemos, pois a região da Nova


Lusitânia estava extremamente vulnerável e a blindagem
do Brasil, por meio da manutenção da isenção de
jurisdição, e de todos os direitos concedidos pelo rei a
Duarte Coelho e à Nova Lusitânia, não iria se sustentar
por muito tempo.

Em 1580, com a União Ibérica, os jesuítas vão encontrar


o aliado ideal na sanha de invadir o quinhão mais rico
das Américas, que estava nas mãos de “infiéis, hereges e
pecadores”. O aliado era um homem, contraditoriamente
ou não, para aqueles que pregavam a fé em Deus,
cognominado de “O demônio do meio-dia.”

Magia, poder e ambição no sertão do Brasil: a


Inquisição…

243

O DEMÔNIO DO MEIO-DIA E O CÍRCULO

ALQUÍMICO DE EL ESCORIAL

Felipe II, a quem os inimigos chamaram de “O demônio


do meio-dia”, assumiu o trono da Espanha em 16 de
janeiro de 1556 e, a partir desse momento, foi
certamente o mais importante dos reis católicos. Sua
parceria com a Igreja e a Companhia de Jesus seria
duradoura e extremamente fecunda.

Felipe II assumiu o reino em meio a mais uma severa


crise financeira, produto de grandes bancarrotas que
vinham ocorrendo, sabe-se lá por quê, de forma
recorrente justo num momento em que a Espanha havia
se apoderado de imensos tesouros. Inexplicavelmente
porque, assim como as crises, era muito comum também
a chegada de frotas das Índias e da América carregadas
de grandes riquezas, sobretudo ouro e prata. Ao que
parece, essa enorme riqueza não contribuía em nada
para remediar os imensos custos das guerras que a
Espanha travava na Europa. É o que se pode auferir de
uma carta do rei Carlos V datada de 28 de junho de 1552
enviada ao vice-rei de Nápoles, Pedro Alvarez de Toledo,
na qual o rei reclama que o dinheiro que havia sido
enviado daquele reino não cobria os custos das
despesas, pois a Espanha: “Devia tanto que

o que havia chegado só havia o suficiente para começar


a pagar e sendo assim todos os credores confiavam
poder cobrar quando chegassem as esperadas naus [. .]
dias e ainda quase um ano que já não previ tudo o que
me aconteceu e ainda agora buscava em toda parte
remédio de dinheiros, não somente [não] o enviaram
como naquele tempo veio aquele dinheiro do Peru, vós
todos me pedistes que os enviasse [uma parte deles] e
afinal com alguma soma que eu peguei emprestada para
pagar dívidas devoradas pelos juros e por conservar o
crédito, o restante que me sobrou do que havia chegado
à Espanha foi todo consumido nessa negra guerra de
Parma, mas pouco, pois afinal foi bom; de modo que me
vi sem um maravedi [moeda espanhola antiga] e onde
pensei ter granjeado crédito, não farei outro, e com isso
não pude conseguir um homem de guerra, nem quis me
meter nisso, porque já que não tinha como consegui-los,
e nem depois como pagá-los e mantê-los, tudo se
resumiria a perder crédito e dá-lo aos inimigos [. .].
Desde que me enviastes os duzentos mil ducados, com
os cento e sessenta mil que deles me restaram eu
comecei a convocar alguma gente; mas com o que eu
consegui reunir tenho somente o suficiente para fazer o
primeiro pagamento; e se as embarcações não chegarem
rapidamente de Espanha, não seria exagero supor que
essa gente se desfaça, porque já não sei mais de onde
encontrar um real que seja; e mesmo tendo me prestado
um grande serviço ao enviar esse dinheiro, bem sabeis
que é “pouca sopa para tão grande convite”, e que as
mulheres e filhos não podem me servir para cobrar
dinheiro; e que além disso vejo que dizeis não poder
cumprir o

[referente] àquele reino, se não houver provisão [que


venha] de outra parte, e a mesma coisa dizem todos os
outros reinos e senhorios, e maldito seja o remédio para
isso; se deles não me vier algum socorro, pouco poderei
remediar as coisas; e o pior é que se trata de arte, e
nestes termos tenho poucos recursos, mas garanto que
não estou tão perturbado pelas coisas que acontecem
que não sei o que deveria fazer, e sou alguém que nem
mesmo quando mais jovem e sadio temeu os perigos
pessoais e da vida, [por isso] menos O demônio do meio-
dia e o círculo alquímico de El Escorial 245

ainda os temeria agora, tendo a cada dia um pé na fossa


e como pessoa [estando] tão perdido, que por
[simplesmente] manter-se

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