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taneamente as experiências religiosas dos participantes. Podemos dis
cutir infinitamente se o conteúdo de tais experiências religiosas é
ainda acessível aos cientistas modernos, reduzidos, como vimos, a
uma documentação bastante precária. Mas, seja qual for a posição
adoptada neste debate metodológico, toda a gente concorda que ape
nas se conseguirão resultados válidos à custa de uma exegese longa e
minuciosa. Não podemos empreendê-la aqui. Assim vemo-nos força
dos a contentar-nos, na maior parte do tempo, com paralelismos, na
expectativa de trabalhos ulteriores.
A ÍNDIA
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Por vezes, o cenário de uma iniciação arcaica mantém-se quase
integralmente, embora a experiência da morte iniciática introduza no
vos valores. Encontramos os exemplos mais nítidos de continuidade
e, ao mesmo tempo, de revalorização de um cenário arcaico no tau
trismo indo-tibetano. O tantrismo é, por excelência, a expressão da
espiritualidade autóctone, a reacção das camadas populares insufi
cientemente convertidas aos hinduísmo. É por isso natural que ele uti
lize as categorias religiosas arcaicas, pré-arianas. Assim, por exem
plo, encontramos motivos específicos das iniciações xamânicas nos
mitos, nos ritos e no folclore dos siddha tântricos, especialmente de
Matsyendranâth e de Gorakhnâth, personagens que marcaram forte
mente a imaginação popular. Segundo certas lendas, Gorakhnâth ini
ciou os dois rapazes de Matsyendranâth da seguinte maneira: matou-os,
lavou-lhes o interior «à maneira das lavadeiras», pendurou as suas
peles nos ramos de uma árvore - e ressuscitou-os a segu.i.J:<1l. O cenário
recorda-nos estranhamente um dos temas específicos das iniciações dos
xamãs siberianos e dos medicine-men australianos. E a rainha Maya
nâmati, também ela iniciada por Gorakhnâth, comportava-se como um
xamã: ela era incombustível, flutuava na água, podia atravessar uma
ponte feita de um cabelo, caminhava numa lâmina de barbear, descia
aos Infernos, combatia o deus da Morte e recuperava a alma do seu
marido, etc.<2l Temas folclóricos cuja réplica mais próxima se encontra
na literatura oral dos xamãs centrais-asiáticos e siberianos(3).
Mas esses temas folclóricos têm o seu equivalente nos ritos tân
tricos. Vejamos apenas um exemplo: no rito indo-tibetano chamado
tchoed (gtchoá) o noviço oferece a sua própria carne aos demónios
para estes a devorarem. Pela força da meditação, o noviço faz surgir
uma deusa, com um sabre na mão, que o decapita e decepa: ele vê
depois os demónios e os animais selvagens precipitarem-se para as
suas carnes e devorarem-nas. Uma outra meditação tântrica consiste
em despojar-se, através da imaginação, das carnes e ver-se como um
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«esqueleto branco luminoso e enorme»<41• Encontrámos o mesmo te
ma iniciático do xamanismo siberiano e esquimó. Mas no caso do
tchoed indo-tibetano estamos perante uma nova valorização do tema
tradicional do desmembramento e da redução a esqueleto: o noviço
enfrenta uma prova iniciática ao provocar, através da imaginação,
uma visão aterradora, que ele domina aliás através do poder do seu
pensamento. Sabe que se trata de uma criação do seu próprio espíri
to, que a deusa e os demónios são tão irreais como o seu próprio cor
po e, de resto, todo o cosmos. Porque o noviço é um budista perten
cente ao Grande Veículo, ele sabe que o mundo está «vazio», isto é:
ontologicamente irreal. Esta meditação iniciática é ao mesmo tempo
uma experiência post-monem, por isso uma «descida aos Infernos» -
mas o noviço apercebe-se nesta ocasião da vacuidade de toda a expe
riência póstuma, a fim de se libertar de todos os medos no momento
da morte e, por consequência, de evitar um novo nascimento sobre a
terra. A experiência tradicional do desmembramento do corpo de
sencadeada, no mundo xamânico, por ritos apropriados, por «doenças
iniciáticas» ou por sonhos e visões- já não se interpreta como uma
morte mística, indispensável à «ressurreição» para um novo modo de
ser. Esta experiência serve agora de instrumento de conhecimento:
graças a ela, o noviço compreende o que significa a «vacuidade uni
versal» e daí, aproxima-se da salvação final. Um outro rito tântrico,
cuja estrutura iniciática é claramente conservada, é o da penetração
cerimonial numa mandata. Homóloga ao hora australiano, e, em ge
ral, a qualquer outro «espaço sagrado», a mandata é simultaneamente
uma imago mundi e um panteão. Ao penetrar na mandata, o noviço
aproxima-se em certa medida do «Centro do Mundo»: mesmo no âma
go da mandata é possível empreender a ruptura dos níveis e aceder a
um modo de ser transcendental<51•
A iniciação faz-se sob a direcção de um mestre que, por um rito
especial, investe no discípulo o poder da compreensão e do conheci
mento. Ordena-lhe que guarde bem o segredo. «Como o conhecimen
to supremo surgirá em ti, não digas nada aos que não viram o grande
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círculo das divindades (ou seja, a mandala), ou então o laço (místico)
será quebrado.» E o mestre acrescenta: «Este é o teu laço com Vajra
(ou seja, a doutrina tântrica). Se falares seja com quem for, o teu crâ
nio rebentará em bocados.»(6>
Mas é sobretudo considerando o seu conjunto, o corpus de técni
cas variadas que constituem o ioga, que nos apercebemos do proces
so de revalorização de um tema iniciático tradicional. O aspecto apa
rente da prática ioga não é o único a recordar o comportamento do
noviço durante o seu treino iniciático: com efeito, o iogui abandona a
sociedade dos homens, retira-se para a solidão, submete-se a uma
ascese por vezes excessivamente severa e segue os ensinamentos
orais de um mestre, ensinamento secreto por excelência, comunicado
«de boca em boca» como referem os textos hindus. E mais ainda: o
conjunto das práticas ioga reproduz um esquema iniciático. Como
qualquer outra iniciação, o ioga acaba por modificar radicalmente o
regime existencial daquele que se submete às suas regras. Graças ao
ioga, o asceta elimina a condição humana - ou seja, em termos india
nos, a existência não iluminada, condenada ao sofrimento- e obtêm
um modo de ser incondicionado: o que os indianos chamam a salva
ção, a liberdade, moksa, mukti, nirvâna. Mas eliminar a condição hu
mana profana a fim de obter a liberdade absoluta significa morrer pa
ra este modo de ser condicionado e renascer para um outro, transcen
dente, não condicionado.
O simbolismo da morte iniciática é transparente nas diversas téc
nicas psicofisiológicas específicas do ioga. Se observarmos um iogui
durante a sua prática, temos a impressão que se esforça para fazer
exactamente o contrário do que fazemos «no mundo», isto é, do que
fazem os homens enquanto homens, prisioneiros da sua própria
ignorância. Com efeito, em vez de se mover continuamente, o iogui
imobiliza-se numa posição absolutamente estática, chamada âsana, e
que o faz assemelhar-se a uma pedra ou a uma planta. À respiração
agitada e arrítmica de um homem que vive no mundo, ele opõe a
prânâyâma, o abrandamento rítmico da respiração, e aspira mesmo a
conseguir uma retenção total do fôlego. Ao fluxo caótico da vida
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psico-mental dita normal, ele responde com uma fixação do pensa
mento num único ponto (ekâgratâ). Em resumo, ele faz o inverso do
que a vida força o homem a fazer- e age deste modo a fim de se afas
tar dos múltiplos sistemas de condicionamento que constituem toda a
existência profana e de atingir um plano não condicionado, de liber
dade absoluta. Mas ele apenas pode ter acesso a essa situação, com
parável e mesmo superior à dos Deuses- se morrer para a vida não
iluminada, para a existência profana.
No caso do ioga, estamos em presença de um complexo de crenças,
ideias e técnicas ascéticas e contemplativas que visam a transmutação,
e portanto a abolição, da condição humana. Ora, é importante constatar
que este longo e difícil itinerário ascético se desenrola segundo sinais
bem conhecidos de um cenário de iniciação: no fim de contas, a práti
ca do ioga «mata>> o homem normal, ou seja, metaflsicamente «igno
rante», preso a ilusões e «cria» um homem novo, des-condicionado e
livre. É certo que o objectivo final do ioga não corresponde aos objec
tivos visados pelas diferentes iniciações xamânicas ou das confrarias
secretas, analisadas nos dois capítulos precedentes. Porque se existem
ioguis que visam a unio mystica com a Divindade, o verdadeiro iogui
esforça-se sobretudo para obter a autonomia espiritual perfeita. Mas o
que interessa para a nossa pesquisa é que todos estes objectivos diver
gentes perseguidos pelos místicos ou mágicos, pelos xamãs ou ioguis,
exigem esforços ascéticos e exercícios espirituais que deixam entrever,
na própria estrutura, o plano clássico da iniciação: a transmutação do
neófito através de uma morte mística.
Isto toma-se ainda mais evidente se examinarmos certos exercí
cios de meditação do ioga. Vimos há pouco em que sentido o sim
bolismo da morte mística foi revalorizado pelo tchoed tântrico. O
conhecimento dos estados post-mortem obtém-se igualmente por um
exercício ao qual faz alusão a Shiva Samhitâ: uma certa meditação
permite ao iogui antecipar o processo de reabsorção que tem lugar
após a morte. E como o sâdhama do ioga comporta um contexto cós
mico, esta meditação revela também o processo pelo qual o Cosmos
se reabsorve periodicamente<71•
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Um outro tema iniciático tradicional retomado e revalorizado
pelo ioga e pelo budismo é o do «novo corpo» no qual renasce o ini
ciado. O próprio Buda proclama que mostrou aos seus discípulos os
meios de se constituírem, a partir do corpo carnal, num «outro corpo»
formado por uma «Substância intelectual» (nípim manomayam)<8>. E
os hatha-ioguis, os tântricos e os alquimistas esforçam-se, através das
suas técnicas respectivas, por obter um «corpo divino» (divya deha),
absolutamente espiritual (cinmaya), ou por converter o corpo natural,
que está «Verde» (apakva) num corpo perfeito, «maduro» (pakva)<9>.
A ordenação dos monges budistas comporta certos rituais que ainda
mantêm a sua estrutura iniciática<10>. Para além disso, os clichés ini
ciáticos abundam nos mitos e lendas budistas. Por entre as provas que
deve enfrentar Anada no Concílio de Rajagriha, para ser recebido na
samgha, está também a passagem pelo buraco da fechadura<ll), prova
bem conhecida de tipo symplegade. Por outro lado, as lendas de
Bouddha e outros santos e sábios, tanto budistas como hindus, reto
mam incansavelmente os velhos temas iniciáticos do «calor interior»
e das chamas que brotam da cabeça daquele que transcendeu a
condição humana<l2). Quando Ananda atinge o nirvâna, explode em
chamas e o seu corpo consome-se por inteiro<l3).
Em resumo, encontramos na Índia, carregadas de outros valores,
as mesmas imagens primordiais das iniciações tradicionais: desmem
bramento do corpo, morte e ressurreição, geração e novo nascimento,
provas e symplegades, obtenção de um novo corpo, sobrenatural,
calor mágico. Por muito diferentes que possam ser os objectivos visa
dos pelo sábio, mágico ou místico indianos, eles pensam realizá-los
através de técnicas corporais e psico-mentais que visam abolir a
condição humana. Mais ainda: o processo de libertação ou diviniza
ção do homem pode sempre ser equiparado aos momentos essenciais
8. Majihima- Nikây a, II, 17; cf. Ananda K. Coomaraswamy, «Some pàli words» (Harvard
Joumal ofAsiatic Studies, IV, 1939) pp. 116-190, p. 144 sq.
9. M. Eliade, Le Yoga, p. 282, 315.
10. Cf. Paul Lévy, Budhism: a «Mystery Religion»? (Londres, 1957).
l l. Ver os textos em Jean Przyluski, Le Concile de Rajagrha (Paris, 1926-1928), p. 68.
12. CE M. Eliade, «Sígnifications de la "Lumíere intérieure"» (Eranos-Jahrbuch, XXVI,
1958, pp. 189-242), p. 196 sq.
13. Cf. Paul Lévy, p. 95 sq., etc.
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de uma iniciação e nunca é mais claramente expresso do que nas ima
gens e na terminologia tradicionais das iniciações.
14. Cf. H. Jeanmaire, Couroí" et Couretes (Lille, 1939), p. 323 sq., 338 sq. e passim.
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-se o adolescente para as montanhas e ele devia viver lá um ano
inteiro do saque, tendo cuidado para não ser visto por ninguém; aque
le que se se deixasse ver era castigado(Is). Por outras palavras, o
couros espartano levava durante um ano a existência de um lobo.
Existem aliás semelhanças entre a criptia e a licantropia. Transfor
mar-se em lobo ou comportar-se ritualmente como um lobo são,
como vimos (p. 132 sq.), notas específicas das iniciações guerreiras e
xamânicas. Tratam-se de crenças e ritos arcaicos que durante muito
tempo se mantiveram tanto no norte como no sul da Europa.
Alongaríamos facilmente a lista das figuras e dos cenários ini
ciáticos que sobreviveram nos mitos e nas lendas gregas. Ainda po
demos decifrar na figura dos Curetes míticos a função de Mestres de
iniciação: eles educam os adolescentes no mato, ensinando-lhes as
técnicas arcaicas da colheita e da caça, da dança e da música. Tam
bém certos momentos da história de Aquiles se deixam interpretar
como provas iniciáticas: foi educado pelos Centauros, isto é, foi ini
ciado no mato pelos Mestres mascarados ou que se manifestavam sob
aspectos animalescos; fez a passagem pelo fogo e pela água, provas
clássicas de iniciação, e também viveu algum tempo entre as rapari
gas, vestido como uma rapariga, segundo um costume específico de
certas iniciações primitivas de puberdade.
Fizemos a distinção entre alguns traços iniciáticos nos mitos e
lendas de Hefestos. O deus é atirado do céu e permanece nove anos
no mar; tem os tendões cortados ou os pés revirados, mutilações espe
cíficas das iniciações dos mágicos e ferreiros; por fim, «aprende a sua
arte na forja subterrânea de Cedalião ou na gruta de Eurínome (a
Morte) que o recebe no seu seio (Ilíada, XVill, 398) o que implica
adopção e mudança de personalidade».06l
Ignora-se quase tudo das iniciações das raparigas na Grécia anti
ga. Contudo, H. Jeanmaire mostrou que se pode interpretar nas
Termosfórias um cenário iniciático feminino<m. Mesmo o agrupamen
to de raparigas em redor de Safo mantinha ainda a significação dos
15. Cf. Scholiaste à Platon, Lois 633 B, reproduzido por Jeanrnaire, op. cit., p. 552. Sobre a
criptia e a licantropia ver ibid., p. 540 sq.
16. Marie Delcourt, Hephaistos ou la légende du magicien (Paris, 1957), p. 136 e passim.
17. H. Jeanmaire, op. cit., p. 301 sq.
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antigos ritos de puberdade. As noviças ficavam sob a direcção de Sa
fo - ou de uma outra monitora rival - até ao casamento; elas inicia
vam-se nos trabalhos especificamente femininos (tecelagem, etc.) e
aprendiam os «bons costumes»; esta instrução tinha um modelo míti
co<18>. A homossexualidade lésbica era a réplica do amor «dórico» das
efebias. As relações homossexuais entre instrutores e noviços tam
bém são atestadas em várias sociedades primitivas.
18. Cf. Reinhold Merkelbach, «Sappbo und ihr Kreis» (Philologus 101, 1957, pp. 1-29).
19. Para as fontes literárias, ver L. R. Farnell, Cults of the Greek States, vol. III (Oxford,
1907), p. 307-367. Para a exploração arqueológica, ver F. Noack, Eleusis: die bauges
chichtliche Entwicklung des Heíligtums (Berlim-Leipzig, 1927); K. Kuruniotis, «Das
eleusinische Heiligtum von den Anfangen bis zur vonperikleische Zeit>> (Archiv. F.
Religionswissenschaft, XXXII 1935, pp. 52-78); G. E. Mylonas, The Hymn to Demeter
,
Meaning of the Eleusinian Mysteries, in The Mysteries, Papers from the Eranos Year
books, II, Nova Iorque, 1955, p.14-3 l).
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repente um arauto anunciou-lhes que Hélios revelara onde se encon
trava a jovem deusa e foi de novo a alegria, a música e as danças. O
mito de Deméter e de Perséfone tomava-se contemporâneo: o rapto
da rapariga, as lamentações de Deméter, têm agora lugar, hic et nunc,
e é graças a esta proximidade das Deusas e, por fim, à sua presença
que o iniciado terá a inesquecível experiência da iniciação.
Porque, como já notara Aristóteles (fr. 15), o myste não aprendia
nada de novo: já conhecia o mito e não lhe ensinavam uma doutrina
propriamente secreta; mas ele fazia gestos litúrgicos e via objectos
sagrados. A iniciação propriamente dita efectuava-se no telestério de
Elêusis. Começava pelas purificações. A seguir, com a cabeça cober
ta com um tecido, o myste era introduzido no telestério e colocado
num assento coberto com uma pele de animal.
Sobre tudo o que se passava a seguir, estamos reduzidos a conjec
turas. O segredo iniciático foi bem guardado. «Um grande terror dos
deuses retém a voz>>, proclamava o Hymne à Déméter (479). E o coro
de Oedipe Roi (1052) dizia que os sacerdotes Eumólpidas colocavam
uma chave de ouro sob a língua dos mortais. Clemente de Alexandria
(Protreptique, II, 21, 2) transmitiu-nos a fórmula sagrada dos Misté
rios: «Fiz jejum, bebi o cycéon; tirei do recipiente e, depois de o ma
nusear, coloquei no cesto, depois, tirando do cesto, voltei a pôr no re
cipiente.» Compreende-se a primeira parte do rito: o jejum e a
absorção do cycéon; este era uma mistura feita de sêmola de cevada,
de água e de menta que, segundo o mito, a rainha Metanira tinha ofe
recido a Deméter, exausta devido à sua longa busca de Coré. Quanto
ao resto da fórmula sagrada transmitida por Clemente, foram pro
postas numerosas interpretações que não serão analisadas aqui(20>. Não
estava excluída uma certa forma de morte iniciática, ou seja, uma
descida simbólica aos Infernos, pois o jogo de palavras entre «inicia-
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co, mas os mistérios de Deméter e Perséfone eram celebrados em
Elêusis há séculos. A iniciação eleusiana deriva directamente de um
ritual agrário organizado em redor da morte e da ressurreição de uma
divindade que preside à fertilidade dos campos. O bull-roarer, pre
sente nas cerimónias orfico-dionisíacas<24>, é um objecto religioso pró
prio das culturas dos caçadores primitivos. Os mitos e os ritos que
ilustram o desmembramento de Dionísio e de Orfeu, ou de Osíris, re
cordam estranhamente os factos australianos e siberianos analisados
no capítulo precedente. Os mitos e ritos de Elêusis encontram o seu
equivalente nas religiões de certas culturas tropicais de estrutura agrí
cola e matriarcal<25>.
O facto destes elementos de religiosidade arcaica se encontrarem
mesmo no âmago dos Mistérios gregos e greco-orientais é prova da
sua extraordinária vitalidade, mas também da sua importância para a
vida religiosa da humanidade. Tratam-se, sem dúvida, de experiên
cias religiosas simultaneamente primordiais e exemplares. Para o
objectivo da nossa pesquisa, interessa-nos sobretudo uma coisa: que
estas experiências sejam ocasionadas por ritos que, tanto no mundo
greco-oriental como no mundo primitivo, sejam de essência iniciáti
ca, isto é, visem a transmutação espiritual do noviço.
Em Elêusis, tal como nas cerimónias orfico-dionisíacas, e tal
como nos Mistérios greco-orientais da época helenística, o myste efec
tua a iniciação a frm de transcender a condição humana e de obter um
modo de ser superior, sobre-humano. Os ritos iniciáticos reactualizam
um mito de origem que conta as aventuras, a morte e a ressurreição
de uma divindade. Se sabemos muito pouco sobre esses ritos secre
tos, sabemos pelo menos que os mais importantes estavam relaciona
dos com a morte e ressurreição místicas do neófito. Por ocasião da
iniciação nos Mistérios de Ísis, Apuleio sofre «uma morte voluntária»
(ad instar voluntariae mortis) e «aproxima-se do reino da morte»
para obter o seu «dia de nascimento espiritual» (natalem sacrum)0.6>.
24. A. Dieterich, Eine Mithrasliturgie, p. 10. W. K. C. Guthrie, Orpheus and the Greek
Religion (Londres, 1935; 2" ed. 1952), p. 121 sq.
25. Cf. Ad. E. Jensen, Die Religiose Weltbild einerfrühen Kultur (Estugarda, 1948), p. 66 sq.
26. Metamorphoses, XI, 21, 24, ao ler sacrum, com S. Angus (The Mystery-Religions and
Christianity, Londres, 1925, p. 96, n." 4); cf. também de Jong, op.cit., p. 207 sq.
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O modelo exemplar destes ritos era constituído pelo mito de Osíris,
mas é provável que nos Mistérios da Grande Mãe frísia, talvez mesmo
noutros locais, o myste fosse simbolicamente enterrado num túmulo<27).
Segundo Finnicus Matemus, era considerado moriturus, «moribun
do»<28>. A esta morte mística sucedia-se um novo nascimento, espiritual.
No rito frísio, escreve Sallustre, os novos iniciados «eram alimentados
com leite como se fossem re-nascidos»<29>. E no texto conhecido sob o
nome de Liturgia de Mithra, mas que está impregnado de gnose her
mética, podemos ler: « ... Hoje, tendo sido criado de novo por Ti, entre
as miríades tomado imortal... » ou: «Nascido de novo a fim de renascer
neste nascimento criador de Vida...»<30>
Trata-se por todo o lado de uma regeneração espiritual, de uma
palingenesia, que se traduzia pela mudança radical do regime existen
cial do myste. Graças à iniciação, o neófito tinha acesso a um outro
modo de ser: tomava-se igual aos Deuses, identificava-se com os
Deuses. Apoteose, divinização, «i-mortalização» (apathanatismos) são
concepções familiares a todos os Mistérios helenísticos<3n. Aliás, pa
ra o mundo antigo tardio, a divinização do homem não tinha nada a
ver com um sonho extravagante. «Deves então saber que és um deus»
escrevia Cicerone (De Republ., VI, 17). E num texto hermético podia
ler-se: «Eu conheço-te, Hermes, e tu conheces-me: eu sou Tu, e Tu és
eu.»<32> Encontram-se expressões semelhantes nos escritos cristãos.
Como diz Clemente de Alexandria, o verdadeiro gnóstico (cristão)
<<já se tomou Deus» (Prot. VIIT, 4). E para Lactâncio, o homem casto
acabará por se tomar consimilis Deo, «totalmente semelhante a Deus»
(Instit. Divinae, VI, 23).
A transmutação ontológica do iniciado verificava-se sobretudo na
sua existência após a morte. Já em certas populações primitivas (Me-
27. H. Hepding,Attis, seine Mythen u. sein Kult (Giessen, 1903), p. 1%; S. Angus, op. cit., p.97.
28. Finnicus Matemus, De Errore profanarum religionum, 18. Cf. de Jong, op. cit., p. 203 sq.
29. Sallustre, De Diis et Mundo, 4.
30. A. Dieterich, Eine Mithraliturgie, p. 10.
31. Cf. R. Reitzenstein, Die Hellenistiche Mysterien-religionen (2" ed., Leipzig, 1920), p. 29
sq.; S. Angus, op. cit., p. 106 sq. Precisemos que se tratam de concepções da época
helenística, radicalmente diferentes do horizonte religioso de Homero e de Hesíodo. Para
o Egipto da época greco-romana, cf. ldris Bell, Cults and Creeds in Graeco Roman Egypt
(Liverpool, 1953), pp. 87 sq., 102 sq.
32. Cf. S. Angus, op. cit., p. 110, n.0 5.
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lanésias, Africanas, etc.) insiste-se enfaticamente na diferença entre o
destino post-mortem dos iniciados nas confrarias e o dos não inicia
dos. Desde o Hymne a Déméter exaltava-se a felicidade dos iniciados
no outro mundo e lamentavam-se aqueles que morriam sem terem par
ticipado aos Mistérios. <<Feliz daquele entre os Homens na Terra que
viu essas coisas! Aquele que não conheceu as santas orgias, e aquele
que não participou, não terá após a morte o mesmo destino nas estadas
sombrias» (Hymne a Déméter, 480-482). «Feliz daquele que viu isso
antes de ir para debaixo da terra! exclamava Píndaro. Ele conhece o fim
da vida! Ele também conhece o começo... » ( Threnoi, frg. 10). «Oh três
vezes feliz aqueles mortais que, após terem contemplado esses
Mistérios, partirão para o Hades; só eles aí poderão viver; para os ou
tros, tudo será sofrimento.» (Sófocles, frg. 719, Dindotf, 348 Didot).
Na época helenística, a ideia de que o iniciado aos Mistérios go
zava de uma situação espiritual privilegiada, tanto durante a vida como
depois da morte, tinha-se tomado ainda mais popular. Era-se assim ini
ciado para se obter um estatuto ontológico sobre-humano, mais ou me
nos divino, e garantir a sobrevivência post mortem, até mesmo a imor
talidade. E, como acabámos de ver, os Mistérios utilizam o cenário
clássico: a morte mística do noviço, seguida de um novo nascimento,
espiritual. Para a história das religiões, a importância dos Mistérios gre
co-orientais reside sobretudo no facto de eles ilustrarem a necessidade
de uma experiência religiosa pessoal, comprometendo a existência total
do homem, ou seja, utilizando a terminologia cristã, igualmente a sua
«salvação» na eternidade. Tal experiência religiosa pessoal não podia
realizar-se no contexto dos ritos públicos, cuja principal função era ga
rantir a santificação da vida cívica e a durabilidade do Estado. Nas
grandes civilizações históricas onde proliferaram os Mistérios, já não
figura a situação específica das culturas primitivas; aí, como o fizemos
notar várias vezes, as iniciações dos jovens eram igualmente uma
ocasião de regeneração total, tanto da colectividade como do Cosmos.
A situação era totalmente outra na época helenística: o enorme sucesso
dos Mistérios ilustra a ruptura entre as elites religiosas e a religião do
Estado, ruptura que o cristianismo vai aprofundar e tomar, pelo menos
durante algum tempo, deftnitiva<33l.
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Mas para a nossa pesquisa, o interesse dos Mistérios reside no
facto de mostrarem a perenidade dos temas tradicionais de iniciação
e a sua capacidade em serem indefinidamente reactivados e enrique
cidos de novos valores. Encontramos no mundo helenístico o mesmo
estado de coisas constatado na Índia: um cenário arcaico é susceptí
vel de ser retomado e utilizado para fins espirituais múltiplos e vari
ados, da unio mystica com a Divindade à conquista mágica da imor
talidade ou para a obtenção da salvação final, o nirvana. É como se os
cenários de iniciação estivessem indissoluvelmente ligados à própria
estrutura da vida espiritual. Como se a iniciação fosse um processo
indispensável a qualquer tentativa de regeneração total, a qualquer es
forço de transcender a condição natural do homem a fun de ter aces
so a um modo de ser santificado.
Igualmente significativo é o facto de as imagens dos Mistérios aca
barem por impregnar uma vasta literatura filosófica e espiritualista,
sobretudo na antiguidade tardia. A equiparação da filosofia à iniciação
foi umleit motiv desde os inícios do pitagorismo e do platonismo.
Mesmo a maiêutica (de maia, «parturiente»), pela qual Sócrates se
esforçava por «dar à luz» um homem novo, tinha o seu protótipo no tra
balho dos mestres de iniciação das sociedades arcaicas: também eles
«davam à luz» os noviços, ou seja, ajudavam-nos a nascer para a vida
espiritual. O motivo do «parto» iniciático é acompanhado, até ao fim da
antiguidade, pelo tema da paternidade espiritual, já atestada no brama
nismo e no budismo tardio (ver mais acima, p. 88 sq.). São Paulo tem
«filhos espirituais». Filhos que ele criou através da fé.
Mas ainda há mais. Sempre evitando revelar o segredo dos diver
sos Mistérios helenísticos, vários filósofos e teósofos propuseram
interpretações alegóricas dos ritos iniciáticos. A maioria dessas inter
pretações relatavam os ritos dos Mistérios nas etapas sucessivas que
a alma humana deve atravessar na sua ascensão até Deus. Basta ler
Jâmblico, Proclo, Sinésio, Olimpiodoro, e tantos outros neoplatónicos
ou misteriósofos dos últimos séculos da antiguidade, para nos aper
cebermos até que ponto eles comparavam a iniciação aos Mistérios a
um psicodrama, graças ao qual a alma se pode destacar da matéria e,
regenerada, voar para a sua pátria verdadeira, o mundo inteligível.
Deste modo, eles prolongavam um processo de revalorização espiri
tual j á articulado nos Mistérios de Elêusis. Aí também, num dado mo-
178
�
mento da história, um ritual agrícola tinha trazido novos valores reli
giosos. O Mistério, conservando sempre a estrutura agrícola primiti
va, já não se referia à fecundidade da gleba e ao bem-estar da comu
nidade, mas ao destino espiritual da cada myste individualmente. Os
analistas recentes «inovavam» no sentido em que liam nos ritos anti
gos as suas próprias situações espirituais, interdependentes das pro
fundas crises do seu tempo.
É por isso duvidoso que se possa utilizar essa massa enorme de
escritos hermenêuticos para decifrar o significado espiritual original
dos Mistérios eleusino, órfico e helenístico. Mas se essas interpretações
alegóricas não forem susceptíveis de nos comunicar «realidades
históricas», não deixam de ter por isso um valor consideráveL Com
efeito, essas interpretações marcaram toda a história da espiritualidade
sincretista ulterior. As inumeráveis gnoses, cristãs ou heterodoxas, dos
primeiros séculos da nossa era tiraram daí as suas ideologias, os seus
símbolos, as suas imagens-chave. O drama patético da alma humana,
ofuscada e ferida a seguir ao esquecimento de si própria, foi relatada
pelos autores gnósticos com a ajuda dos cenários derivantes, em última
instância, da exegese filosófica dos Mistérios. É através destas gnoses
sincretistas que a valorização dos Mistérios helenísticos se difundiu na
Europa e na Ásia enquanto experiência ritualmente guiada pela
<<queda» e regeneração da alma. Certos aspectos desta misteriosofia
resistiram mesmo até bastante tarde na Idade Média. Finalmente, toda
a doutrina foi reanimada, nos círculos de letrados e filósofos, pela
redescoberta do neoplatonismo na Itália do Renascimento.
CRISTIANISMO E INICIAÇÃO
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�
Não nos compete debater todos os aspectos desse problema<34l.
Contudo, é importante precisar que a eventual presença de um tema
iniciático no cristianismo primitivo não implica necessariamente a
influência das religiões dos Mistérios. Um tema destes poderia ser de
calcado directamente de uma das seitas esotéricas judias, na primeira
linha das quais, dos Essénios, sobre quem os manuscritos do mar
Morto nos trouxeram recentemente informações sensacionais<35J. Me
lhor, nem sequer é necessário supor que um tema iniciático fosse
«emprestado» pelo cristianismo a uma outra religião. Como disse
mos, a iniciação é coexistente com qualquer nova revalorização da
vida espiritual. Estamos portanto perante dois problemas diferentes e
confundi-los seria imprudente. O primeiro coloca a questão dos ele
mentos iniciáticos (cenários, ideologia, vocabulário) no cristianismo
primitivo. O segundo é relativo às eventuais relações históricas entre
o cristianismo e as religiões dos Mistérios.
Comecemos por precisar em que sentido podemos falar de ele
mentos iniciáticos no cristianismo primitivo. É evidente que o baptis
mo cristão correspondia, desde o começo, a uma iniciação: o baptis
mo introduzia o convertido numa nova comunidade religiosa e toma
va-o digno da vida eterna. Sabemos que, entre 150 a. C. e 300 d. C,
existia na Palestina e na Síria um movimento baptista bastante divul
gado. Também os Essénios praticavam os banhos rituais ou os baptis
mos. Era, como nos cristãos, um rito iniciático: diferentemente dos
cristãos, os Essénios repetiam periodicamente esses banhos rituais.
Seria portanto inútil procurar um paralelo ao baptismo cristão entre os
ritos de lustração dos Mistérios ou de outras cerimónias da Antigui-
180
�
dade pagã. Não só os Essénios mas também outros movimentos reli
giosos judeus os conheciam. Mas se o baptismo pode tomar-se um
sacramento para os primeiros cristãos é justamente porque tinha sido
instituído por Cristo. Por outras palavras, o valor sacramental do bap
tismo derivava do facto de os cristãos reconhecerem em Jesus o Mes
sias, o Filho de Deus.
Tudo isto já é assinalado por São Paulo (/Cor., x) e desenvolvi
do no Evangelho de São João: o baptismo é um dom livre de Deus,
que toma possível um novo nascimento a partir da água e do Espírito
(São João, lli, 5). Como veremos mais tarde, a simbologia do bap
tismo é enriquecida consideravelmente após o século ID. Encontra
remos então empréstimos feitos à linguagem e às imagens dos Mis
térios. Mas nenhum destes empréstimos é indecifrável no cristianis
mo primitivo.
Um outro acto de culto de estrutura iniciática é a eucaristia, insti
tuída por Jesus na Ceia. Pela eucaristia, o cristão partilha o corpo e o
sangue do Senhor. Os banquetes rituais eram frequentes nos Mis
térios. Mas os precedentes históricos da Ceia não devem ser procura
dos tão longe. Os textos de Qumram ensinaram-nos que os Essénios
consideravam as refeições comuns como uma antecipação do Ban
quete Messiânico. Como recorda Krister Stendhal (op. cit. , p. 10), es
ta ideia é igualmente atestada nos Evangelhos. « ... Muitos virão do
nascente e do poente para participar no festim com Abraão, Isaac e
Jacob no Reino dos Céus» (Mateus, Vlll, 11). Mas aqui nasce uma
nova ideia: os cristãos consideravam Jesus já ressuscitado e elevado
ao Céu, enquanto os Essénios esperavam que o Mestre de Justiça
ressuscitasse como Messias sacerdotal ao mesmo tempo como o
Ungido de Israel. Para além disto, a eucaristia dependia, para os
cristãos, de uma pessoa e de um acontecimento histórico (Jesus e a
Ceia), mas não encontramos, nos textos de Qumram, um significado
redentor atribuído a uma personagem histórica<36l.
Vemos então em que sentido o cristianismo primitivo comporta
va elementos iniciáticos: por um lado, o baptismo e a eucaristia san
tificavam o fiel, modificando radicalmente o seu regime existencial;
por outro lado, os sacramentos faziam-no sair da massa de «profanos»
182
�
vação total do Mundo. Isto constituía, claro, um «mistério», mas um
mistério que era preciso «gritar aos quatro ventos». E a «iniciação»
ao mistério cristão era acessível a toda a gente.
Em suma, os elementos iniciáticos do cristianismo primitivo
estão ligados ao facto de a iniciação ser uma dimensão coexistente
com qualquer revalorização da vida religiosa. Só se pode aceder a um
modo de ser superior, só se pode participar numa nova irrupção de
santidade no mundo ou na história «morrendo» para a existência pro
fana, não iluminada, e re-nascendo para uma nova vida, regenerada.
Considerando a «inevitabilidade» da iniciação, é surpreendente en
contrar tão poucos vestígios de cenários e vocabulário iniciáticos no
cristianismo primitivo. São Paulo nunca emprega téléte, o nome téc
nico dos Mistérios. E se utiliza mystérion é no sentido que os Setenta
lhe deram, isto é «segredo»(37>. No Novo Testamento, mystérion não
se refere a um acto de culto, como nas religiões antigas. Para São
Paulo, o «mistério» é o segredo de Deus, isto é, a sua decisão de sal
var o homem por intermédio do seu filho, Jesus Cristo. Trata-se, no
fundo, do mistério da redenção. Ora, a redenção é uma ideia religiosa
que apenas é compreensível no contexto da tradição bíblica; somente
nesta tradição é que o homem, originalmente filho de Deus, perdeu,
por pecado, esse privilégiol38>.
Jesus fala dos «mistérios do Reino do Céu» (Mateus, XIII ;
Marcos IV, 11; Lucas V ill, 1 0), mas esta expressão é apenas o equiva
lente ao «segredo do rei» do Antigo Testamento (Tobias, XII, 7).
Neste sentido, os «mistérios» respeitantes ao «Reino» que Jesus torna
acessível aos crentes. Os «mistérios do Reino do Céu» são os «segre
dos» que um Rei comunica unicamente aos seus próximos (cf. Judite,
Il, 2) e que esconde aos outros sob forma de parábolas, «a fim que
vejam sem ver e que ouçam sem ouvir» (Mateus, XIII, 13). Como
conclusão podemos dizer que embora a mensagem de Jesus comporte
uma estrutura iniciática - e isso justamente porque a iniciação faz
parte integrante de qualquer nova revelação religiosa - não somos
levados a considerar o cristianismo primitivo como influenciado pe
los Mistérios helenísticos.
183
�
Mas com a difusão do cristianismo em todas as províncias do
Império Romano, sobretudo após o seu triunfo definitivo com Cons
tantino, assiste-se a uma progressiva mudança de perspectiva. Na me
dida em que o cristianismo se toma uma religião universalista, a sua
historicidade passa para segundo plano. Não que a Igrej a abandone a
historicidade de Cristo, como fizeram certas heresias cristãs e o gnos
ticismo. Mas, tomando-se exemplar para toda a ecúmena, a mensa
gem cristã tende a ser formulada cada vez mais em termos ecuméni
cos. O cristianismo primitivo era interdependente de uma história lo
cal, a de Israel. De um certo ponto de vista, toda a história local é
ameaçada pelo «provincianismo». Quando uma história local se toma
numa história santa, e simultaneamente exemplar, isto é, paradigma
para a salvação de toda a humanidade, exige ser expressa numa lin
guagem universalmente inteligível. Ora, a única linguagem religiosa
universal é a dos símbolos. Os autores cristãos recorrerão cada vez
mais aos símbolos para tomarem acessíveis os mistérios do Evan
gelho. Mas no Império Romano existiam dois movimentos espirituais
«universalistas», ou seja, que não se confinavam às fronteiras de uma
cultura local: os Mistérios e a filosofia. O cristianismo vitorioso vai
buscar tanto de uns como do outro. Temos então um processo triplo de
enriquecimento do cristianismo primitivo: 1) pelos símbolos arcaicos
redescobertos e revalorizados, aos quais se atribuem novos significa
dos, cristológicos; 2) por empréstimo das imagens e dos temas iniciáti
cos dos Mistérios; 3) pela assimilação da filosofia grega.
Apenas a integração dos motivos iniciáticos no cristianismo vito
rioso nos interessa. Mas é necessário fazer uma alusão à utilização
pelos Pais da Igreja dos símbolos arcaicos e universalmente divulga
dos. Encontramos, por exemplo, os símbolos da Árvore Cósmica e do
Centro do Mundo integrados no simboli smo da Cruz. A Cruz é
descrita como uma «árvore que sobe da Terra aos Céus», como a
«Árvore de Vida plantada no Calvário», a árvore que «saindo das pro
fundezas da Terra, se ergueu para o Céu e santifica até aos confins do
Universo»(39>. Noutros termos, para tomar inteligível o mistério da
Redenção universal pela Cruz, os autores cristãos utilizaram tanto os
39. Ver as referências aos textos patrísticos no nosso livro, Images et symbole (Paris, 1952),
p. 2 1 1 'G- c H. Rahner. op. cit .. p. 380 sq.
símbolos do Antigo Testamento e do Próximo Oriente antigo (alusão
à Árvore da Vida) como os símbolos arcaicos da Árvore Cósmica si
tuada no Centro do Mundo, que assegura a comunicação entre o Céu
e a Terra. A Cruz é o sinal visível da Redenção efectuada por Jesus
Cristo: ela deveria então tomar o lugar dos símbolos antigos de as
censão ao Céu. E como a Redenção se estende a toda a humanidade,
a Cruz deveria situar-se no Centro do Mundo, a fim de santificar o
Universo inteiro.
Quanto ao baptismo, os Padres sublinham cada vez mais plastica
mente a sua função iniciática acumulando as imagens de morte e de
ressurreição. A pia baptismal é comparada simultaneamente ao sepul
cro e à matriz: ela é sepulcro onde o catecúmeno enterra a vida terrestre
e a matriz onde é criado para a vida eterna(40). A homologação da
existência pré-natal tanto na imersão na água baptismal como na morte
iniciática é claramente expressa na liturgia síria: «Assim, oh Pai, Jesus
viveu, ainda que pela Tua vontade e a vontade do Espírito Santo nas
três moradas terrestres: na matriz da carne, na matriz da água baptismal
e nas cavernas sombrias do mundo subterrâneo.»(411 Neste caso,
poderíamos dizer que nos esforçamos por reconsagrar um tema iniciáti
co arcaico ligando-o directamente à vida e à morte de Jesus.
Mas a partir do século m, e sobretudo depois do século IV, os
empréstimos feitos à linguagem e à imagem dos Mistérios tornam-se
frequentes. Os motivos iniciáticos do neoplatonismo já tinham pene
trado nos escritos dos Padres através da assimilação da linguagem
filosófica grega. Dirigindo-se aos pagãos, Clemente de Alexandria
utiliza a linguagem dos Mistérios: «Oh mistérios verdadeiramente
santos ! Oh luz sem mistura ! As tochas iluminam-me para contemplar
os céus e Deus, torno-me santo pela iniciação.» (42l
No século IV, consolida-se o advento da arcana disciplina ou, por
outras palavras, a ideia de que os mistérios cristãos devem ser bem
protegidos dos não iniciados acabou por triunfar. Como se exprime o
Padre Hugo Rahner, «os mistérios do baptismo e do altar do sacrifí
cio rodearam-se de um ritual de reverência e de segredo e em breve a
185
�
iconóstase derruba o santo dos santos aos olhos dos não iniciados:
eles tomaram-se os «mistérios que arrepiam o homem de reverência».
«Isso é conhecido dos iniciados», esta fórmula percorre todas as ho
milias gregas e um autor tão recente como pseudo-Aeropagita avisa o
iniciado cristão que experimentou a mistagogia divina: «Tem cuida
do para não divulgar de maneira sacn1ega os mistérios santos entre
todos os mistérios. Sê prudente e honra o segredo divino ... conserva
-o ao abrigo de todos os contactos, de toda a sujidade profana; comu
nica as verdades santas apenas de um modo santo a homens santos
por uma santa iluminação.»<43l
Trata-se em suma de uma sublimação dos temas iniciáticos dos
Mistérios. Este processo foi possível porque fazia parte de um movi
mento consideravelmente mais vasto: o da «cristianização» das tra
dições religiosas e culturais do mundo antigo. Como sabemos, o cris
tianismo triunfante acabara por se apropriar não só da filosofia grega,
do essencial das instituições jurídicas romanas e da ideologia oriental
do Soberano-Cosmocrata, mas também de toda a herança imemorial
dos deuses e heróis, dos ritos e dos costumes populares, sobretudo
dos cultos dos mortos e dos rituais da fertilidade. Essa assimilação
maçiça estava ligada à própria dialéctica do cristianismo. Como re
gião universalista, o cristianismo era obrigado a equiparar todos os
«provincianismos» religiosos e culturais da ecúmena e de lhes encon
trar um denominador comum. Esta grandiosa unificação só podia ser
feita pela tradução em termos cristãos de todas as formas, figuras e
valores que se queria equiparar.
Para o nosso objectivo é importante constatar que, com a filosofia
neoplatónica, os temas iniciáticos e as imagens dos Mistérios foram
os primeiros valores a ser aceites pelo cristianismo. Contudo, não se
pode falar da incorporação do próprio conteúdo dos Mistérios. O cris
tianismo substituiu-se aos Mistérios como se substituiu às outras for
mas religiosas da Antiguidade. A «iniciação cristã» não podia coexis
tir com as iniciações dos Mistérios. Senão, esta religião que se esfor
çava para conservar pelo menos a historicidade de Cristo arriscava-se
186
�
a ser confundida com as inúmeras gnoses e religiões sincretistas. A
intolerância do cristianismo vitorioso é a prova mais evidente de que
era impossível qualquer confusão com os Mistérios helenísticos.
44. Encontraremos material documentário em Otto Hõfler, Kültische Geheimbünde des Germt111en, I
(Francfort-sur-le-Main, 1934); Richard Wolfram, Schwerttanz und Mtinnerbünde (Kassel, 1935);
Hans Metraux, Schweiser Jungendleben in fünf Jahrhunderten. Geschichte und Eigenart der
Jungend und ihre Bünde im Gebiet der protestantischen deutschen Schweiz (Aarau, 1942); Ulrich
Helfenstein, Beitrtige zur Problematik des Lebensalter in der mittleren Geschichte (Zurique, 1952).
187
�
exemplo a dança da espada, etc.) e mesmos nos seus costumes<44>. Por
outro lado, adivinha-se um antigo tema iniciático no cerimonial das
corporações de artes e ofícios, sobretudo na Idade Média. O aprendiz
devia passar um certo tempo junto do seu mestre. Aprendia os «segre
dos da arte ou ofício», as tradições da corporação, o simbolismo da
arte. A aprendizagem comportava um certo número de provas e a pro
moção do noviço a membro efectivo da corporação era acompanhada
do sermão do silêncio. Vestígios de antigos cenários iniciáticos ainda
são reconhecíveis nos ritos específicos dos pedreiros e dos ferreiros,
particularmente na Europa oriental<45l.
Estes poucos exemplos ilustram as diferentes modalidades de
sobrevivência dos ritos iniciáticos na Europa cristã; pois seja qual for
o grau da sua dessacralização, todas essas cerimónias podem ainda
ser consideradas como ritos: elas implicam provas, uma instrução
especial e, sobretudo, o segredo. Paralelamente a este grupo de ritos
que sobreviveram, é preciso citar um certo número de costumes popu
lares que derivam muito provavelmente dos cenários iniciáticos pré
-cristãos, mas cuja significação original se perdeu ao longo do tempo
e que, para além disso, sofreram uma forte pressão eclesiástica orde
nada para a sua cristianização. Entre estes costumes populares de
aspecto um tanto misterioso, é preciso classificar em primeiro lugar
as mascaradas e as cerimónias dramáticas que acompanham as festas
cristãs de Inverno e que decorrem entre o Natal e o Carnaval.
Mas também existem igualmente casos em que certas tradições
iniciáticas se conservaram em círculos muito fechados, levando quase
uma existência clandestina. A alquimia merece uma menção especial.
Importante porque conservou e transmitiu as doutrinas herméticas da
antiguidade tardia, também o é pelo papel que desempenhou na his
tória da cultura ocidental. Ora, é significativo reencontrar no opus
alchymicum o velho tema da tortura, da morte e da ressurreição ini
ciáticas - mas, desta vez, aplicado num outro plano de experiência
totalmente diferente: o da experimentação com as substâncias mine
rais. Para transmutar, os alquimistas tratam a Matéria - e, por con
seguinte, os mystes - como os Deuses eram tratados nos Mistérios he-
45. Cf. nos livros Comentarii la legenda Mesterului Mano/e (Bucareste, 1943) e Forgerons et
alchimistes (Paris, 1956) [Ferreiros e Alquimistas, Relógio d'Água].
188
�
lenísticos: as substâncias minerais «sofrem>>, «morrem» e «renascem»
para um outro modo de ser, isto é, são transmutadas. Zósimo, um dos
maiores alquimistas da época helenística, conta urna visão que teve em
sonhos: um personagem de nome Ion revela-lhe que foi perfurado por
urna espada, cortado aos bocados, decapitado, esfolado e queimado na
fogueira, e que sofreu tudo isso «a ftm de poder mudar o corpo em
espírito». Ao despertar, Zósimo pergunta-se se tudo o que viu em sonho
não se refere a um certo processo alquímico<46>.
Reconhece-se facilmente na tortura e no desmembramento de Ion
o cenário específico das iniciações xamânicas. Mas aqui já não é o
noviço quem sofre a tortura iniciática mas uma substância mineral e
isto acontece com o objectivo de mudar a sua própria modalidade, de
ser transmutada. Durante o opus alchymicus encontram-se também
outros temas iniciáticos: assim, por exemplo, a fase chamada nigredo
corresponde à «morte» das substâncias minerais, à sua dissolutio ou
p utrefactio, em suma à sua redução à prima materia. Em certos tex
tos dos alquimistas ocidentais tardios, a redução das substâncias à
materia prima corresponde a um regressus ad uterum. Todas as fases
de opus alchymicus parecem indicar não só as etapas de um longo
processo de transmutação de substâncias minerais, mas as experiên
cias íntimas do alquimista. Existe um sincronismo entre as operações
alquimistas e as experiências misteriosas do alquimista, que acabam
por efectuar a sua total regeneração. Como diz Gichtel a propósito da
operação albedo: «Não recebemos unicamente uma nova Alma com
esta regeneração, mas um corpo novo ... »(47)
Tudo isto mereceria desenvolvimentos e precisões que não
podemos empreender aqui. O leitor é convidado a consultar o nosso
livro Ferreiros e Alquimistas. Mas estas breves notas eram necessárias
para mostrar que a alquimia prolongou, na Europa, certos cenários ini
ciáticos de estrutura arcaica até à aurora dos tempos modernos. Mais
ainda: que os alquimistas utilizaram estes processos iniciáticos a ftm de
realizar o seu sonho grandioso da transmutação mineral, ou seja, o
«aperfeiçoamento» dos metais pela sua «esprritualização», pela sua
189
�
transformação final em ouro; porque o ouro era o único metal <<per
feito», o único que ao nível da existência mineral correspondia à per
feição divina. Numa perspectiva cristã, poderia dizer-se que os alqui
mistas se esforçavam por «salvar>> a Natureza das consequências da
queda; e em última instância por «salvá-la». Para esta proeza ambiciosa
de soteriologia cósmica, os alquimistas utilizaram o cenário clássico de
qualquer iniciação tradicional: «morte» e «ressurreição» das subs
tâncias minerais, com o objectivo de as regenerarem.
190
�
tração do herói no outro mundo.
É difícil avaliar em que medida essa Matéria da Bretanha conti
nha não só os vestígios da mitologia céltica, mas também a diferença
dos ritos reais. Nas regras de admissão ao grupo guerreiro conduzido
por Artur podem decifrar-se certas provas de entrada numa sociedade
secreta do tipo Miinnerbünde. Mas é a proliferação dos símbolos e
ternas iniciáticos nos romances arturianos que é significativa para o
nosso estudo. No castelo do Graal, Parsifal deve passar a noite numa
capela onde repousa um cavaleiro morto; enquanto a trovoada ruge, ele
vê urna mão negra que apaga o único círio acesd49l. É o tipo próprio da
vigl1ia iniciática nocturna. As provas que os heróis enfrentam são inú
meras: devem atravessar urna ponte que mergulha debaixo de água, ou
feita de um material cortante ou guardada por leões ou monstros. Além
disso, à entrada dos castelos rondam autómatos, fadas ou demónios.
Todos estes cenários recordam a passagem para o além, as descidas pe
rigosas aos Infernos; e quando estas viagens são empreendidas por se
res vivos, fazem sempre parte de urna iniciação. Ao assumir os riscos
de tal descida aos Infernos, o herói persegue a conquista da imortali
dade ou outro objectivo tão extraordinário corno esse. As inúmeras
provas porque passam as personagens do ciclo arturiano classificam-se
na mesma categoria: no fmal da sua Demanda, os heróis curam a mis
teriosa doença do Rei e, deste modo, regeneram o «Gaste Pays»; ou
acedem eles próprios à Soberania. Ora, sabemos que a função de Sobe
rania é geralmente interdependente de um ritual iniciático.
Toda esta literatura semeada de ternas e cenários iniciáticos<50> é
preciosa para a nossa pesquisa devido ao seu «sucesso junto do públi
co». P arece-nos que o facto de se ouvirem com deleite as histórias
romanescas onde os clichés iniciáticos eram abundantes prova que tais
aventuras respondiam a urna necessidade profunda do homem medie
val. Os cenários iniciáticos só alimentavam a imaginação, mas a vida
imaginária, tal corno a vida onírica, também é importante para a totali
dade psíquica do ser humano corno a vida diurna. Abordamos aqui um
problema que ultrapassa a competência do historiador das religiões pois
49. Cf. a análise de Jean Marx, La Légende arthurienne et le Graal, (Paris, 1952) p. 281 sq.
50. Cf. Antoinette Fierz-Monnier, Initiation und WandlUllg. Zur Geschichte des altfram:õsischen
Romans in XII Jahrundet (Studiorum Roruanorum, vol. V, Berna, 1951).
1 91
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ele pertence por direito ao psicólogo. Mas é preciso abordá-lo para
compreender o que aconteceu à maioria dos cenários iniciáticos quan
do perderam a sua realidade ritual: tomaram-se naquilo que encon
tramos, por exemplo, em romances arturianos: «temas literários», isto
é, que entregam agora a sua mensagem espiritual sob um outro plano
de experiência humana, dirigindo-se directamente à imaginação.
Alguma coisa semelhante se passou, e já há muito tempo, com os
contos de fadas. Paul Saintyves já tinha tentado demonstrar que uma
certa categoria de contos de fadas é de estrutura - e acrescentava: de
origem iniciática. Outros folcloristas retomaram a mesma tese e
recentemente o germanista holandês Jan de Vries valorizou os ele
mentos iniciáticos das sagas e dos Mãrchem<sn. Seja qual for a posição
que se assuma neste debate sobre a origem e o significado dos contos
de fadas, é inegável que as provas e as aventuras dos heróis e das
heroínas são quase sempre traduzíveis em termos iniciáticos. Ora, isto
parece-nos de uma importância capital: desde o tempo, tão difícil de
precisar, em que os contos de fadas se definiram como tal, os homens,
tantos os primitivos como os civilizados, ouviram-nos com um prazer
nunca saciado. Basta dizer que os cenários iniciáticos - mesmo camu
flados, como o são nos contos - são a expressão de um psicodrama
que responde a uma necessidade profunda do ser humano. Qualquer
homem deseja conhecer certas situações perigosas, enfrentar provas
excepcionais, aventurar-se no «outro mundo» e experimenta tudo
isso ao nível da sua vida imaginária, a ouvir e a ler contos de fadas ou
- ao nível da sua existência onírica - a sonhar.
Um outro movimento que aparentemente era sobretudo «lite
rário», mas que comportava, muito provavelmente, uma organização
iniciática é o dos Fede/i d'Amoré52). Há confirmação de representan
tes deste movimento no século XII tanto na Provença e na Itália como
S l . P. Saintyves, Les Contes de Perrault et les récits parai/eles (Paris, 1 923); Jan de Vries,
Betrachtungen zum Miírchen, besonders in seine Verhiiltnis zu Heldensage und Mythos
(FF Comm. Nr. 150, Helsínquia, 1 954). Cf. também Hedwig von Beit, Symbolik des
Mãrchen. Versuch einer Deutung, I (Berna, 1 952), para uma interpretação dos temas ini
ciáticos em termos de psicologia de C. G. Jung.
52. Cf. Luigi Valli, Il linguaggio segreto di Dante e der Fede/i d'Amore (Roma, 1 928); R.
Ricolfi, Studi sui «Fedeli d'Amore», vol. I (Milão, 1 933)
192
�
na França e na Bélgica. Os Fedeli d'Amore constituíam uma milícia
secreta e espiritual que tinha por objectivo o culto da «Mulher única>>
e a iniciação no mistério do «amOD> . Todos utilizavam uma «lin
guagem escondida» (parlar cruz) de modo a que a sua doutrina não
fosse acessível à «la gente grossa» como se exprime um dos mais
ilustres dos Fedeli, Francesco da Barberino (1264-1 348). Outro
fedele d'amore Jacques de Baisieux, determina no seu poema, C'est
des fiez d 'Amours, «que não se devem revelar os conselhos do Amor,
mas que os escondamos cuidadosamente»<53>. Pois a iniciação pelo
Amor era de ordem espiritual. O próprio Jacques de Baisieux o afir
ma, interpretando o significado da palavra «Amor»:
«A senefie en sa partie
Sans, et mort senefie mort;
Or, l' assemblons, s'aurons sans mort. »<54>
53. «D' Amur ne doivent reveler I Les consiaus mais três bien celer ... »
(C'est des fiez d'Amours, v. 499-500, citado por Ricolfi, op. cit. p. 68-69).
54. [a significa por sua parte I sem, e mor significa morte; I se os reunirmos, teremos sem
morte.] Citado por Ricolfi, p. 63.
193
�
tura, como o meio exemplar de comunicar uma teologia, uma meta
física e até mesmo uma soteriologia.
Estas poucas notas ajudam-nos a compreender em que é que se
tomaram os elementos constitutivos da iniciação no mundo moderno,
designando o termo «mundo moderno» as diversas categorias de indi
víduos que já não têm uma experiência religiosa propriamente dita,
que vivem uma existência dessacralizada num mundo dessacralizado.
Uma análise atenta dos seus comportamentos, crenças e ideais, pode
ria destacar toda uma mitologia camuflada e fragmentos de uma
religião esquecida ou degradada. Facto que não é surpreendente, pois
o homem tomou consciência do seu próprio modo de ser enquanto
homo religiosus. Quer queira ou não, o homem ateu dos tempos mo
demos prolonga os comportamentos, as crenças e a linguagem do ho
mo religiosus embora os dessacralize esvaziando-os dos seus sig
nificados originais. Poderíamos mostrar que, por exemplo, as festivi
dades e os regozijos de uma sociedade ateia, ou que pretende sê-lo, as
cerimónias públicas, os espectáculos, as competições desportivas, a
organização da juventude, a propaganda por imagens e slogans, a lite
ratura de grande consumo popular - tudo isto guarda ainda a estrutu
ra dos símbolos, dos ritos e dos mitos embora desprovidos de conteú
55. Ver o nosso artigo «Les mythes du monde modeme» em Mythes, rêves et mysteres, pp. 1 7-36. [Mitos,
Sonhos e Mistérios, Edições 70]
56. Poder-se-ia mesmo considerar a psicanálise como uma forma degradada de iniciação, isto é, uma ini
ciação acessível a um mundo dessacralizado. O cenário ainda se reconhece: a «descida» às profun
dezas da psique, povoada de «monstros» corresponde a um descensus ad inferos; o perigo real que
implica uma «descida» poderia ser homologado às provas típicas das sociedades tradicionais, etc. o
resultado de uma análise conseguida é a integração da personalidade, processo psíquico que tem
algumas semelhanças com a rransformação espiritual operada pelas iniciações autênticas.
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onírica do homem moderno. Mas também os reconhecemos em cer
tos tipos de provas reais que enfrenta nas crises espirituais, na solidão
e no desespero que qualquer ser humano atravessa para aceder a uma
existência responsável, autêntica e criadora. Mas se o carácter iniciáti
co das provas não é entendido como tal, não é menos verdade que o
homem apenas se toma autêntico após ter resolvido uma série de situa
ções desesperadamente difíceis, perigosas mesmo; ou seja após ter
sofrido «as torturas» e a «morte>>, seguidas do despertar para uma ou
tra vida, qualitativamente diferente porque «regenerada». Analisando
bem, qualquer vida humana é constituída por uma série de provas, de
«mortes» e de «ressurreições». É verdade que, no caso do homem mo
demo, a «iniciação» deixou de exercer uma função ontológica pois já
não se trata de uma experiência religiosa plenamente e consciente
mente assumida; j á não compromete para uma mudança radical do
modo de ser do candidato, nem a sua salvação. Os cenários iniciáticos
já não funcionam senão nos planos vital e psicológico. Não deixam de
continuar a funcionar e é por isso que dissemos que o processo da ini
ciação parece coexistir com qualquer condição humana.
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tivas histórias, contentemo-nos em rever algumas conclusões que re
sultam da nossa pesquisa:
1) Embora os ritos de puberdade dos primitivos estejam geral
mente associados ao matraca (bull-roarer) e à circuncisão, nem sem
pre o estão. Podemos então concluir que a iniciação constitui um fe
nómeno autónomo e sui generis, que pode existir - e de facto existe
- sem as mutilações corporais e os ritos dramáticos aos quais a inicia
ção está habitualmente associada.
2) As iniciações de puberdade têm uma enorme difusão e são
atestadas nas populações mais arcaicas: australianos, habitantes da
Terra do Fogo, californianos, boshimanos, hottentots, etc. Existem
contudo sociedades primitivas onde os ritos de puberdade são, ao que
parece, inexistentes ou muito rudimentares; é, por exemplo, o caso de
certas populações do árctico e do norte da Ásia. Mas a vida religiosa
destas populações é dominada pelo xamanismo e, como vimos, che
ga-se a xamã pela via de uma longa, e por vezes dramática, iniciação.
Igualmente, embora nos nossos dias os ritos de puberdade tenham
quase desaparecido na Polinésia, as sociedades secretas abundam e
estas continuam a utilizar cenários iniciáticos. Segue-se que, de uma
maneira ou de outra, os ritos iniciáticos são universalmente divulga
dos no mundo primitivo, sob a forma de cerimónias de puberdade, de
ritos de entrada nos Miinnerbünde ou, por fim, de provas iniciáticas
indispensáveis à realização de uma vocação mística.
3) Aos olhos de quem as pratica, as iniciações são consideradas
como reveladas pelos Seres divinos ou sobrenaturais. A cerimónia
iniciática é portanto uma imitatio dei; ao celebrá-la, revive-se o Tem
po sagrado primordial e os neófitos partilham com a massa dos inicia
dos a presença dos Deuses ou Antepassados míticos. Com efeito, a
iniciação é uma recapitulação da história sagrada do Mundo e da
tribo. Nestas ocasiões, toda a sociedade mergulha nos Tempos míti
cos da origem e sai regenerada.
4) Os cenários iniciáticos diferem sensivelmente: basta comparar
a simplicidade da iniciação dos Kumai com as cerimónias similares
australianas ou melanésias. Certos tipos de iniciação de puberdade
estão em relação orgânica com determinadas culturas; tivemos oca
sião de evidenciar a interdependência estrutural entre um ou outro
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tema iniciático e as sociedades de caçadores ou de agricultores. Como
qualquer outro facto de cultura, o fenómeno da iniciação é, também
ele, um facto histórico. Por outras palavras, as expressões concretas
de iniciação relacionam-se tanto com a estrutura da respectiva socie
dade como com a sua história. Mas a iniciação implica por outro lado
uma experiência existencial: a experiência da morte ritual e a reve
lação do sagrado, isto é, apresenta uma dimensão metacultural e
trans-histórica. É a razão pela qual os mesmos temas iniciáticos conti
nuam a operar em sociedades culturalmente heterogéneas. Certos ce
nários dos Mistérios greco-orientais já se atestam tanto nas culturas
primitivas como nas dos australianos e dos africanos.
5) Para comodidade do leitor, recordemos os temas e motivos ini
ciáticos que se distinguem pela sua frequência ou difusão: a) o tema
mais simples, compreendendo a separação do neófito da mãe e a sua
introdução ao sagrado; b) o tema mais dramático, comportando cir
cuncisão, provas, torturas, ou seja, uma morte simbólica seguida de
uma ressurreição; c) o cenário onde a ideia de morte é substituída pela
ideia de uma nova gestação seguida de um novo nascimento e onde a
iniciação se exprime sobretudo em termos embriológicos e gineco
lógicos; d) o esquema cujo elemento essencial é o retiro individual na
selva e a busca de um espírito protector; e) o cenário específico das
iniciações heróicas, onde se acentua a vitória obtida por meios mági
cos (metamorfose em animal selvagem, «furoD>, etc.) f) o modelo
reservado às iniciações dos xamãs e outros especialistas do sagrado
que comporta tanto uma descida aos Infernos como uma ascensão ao
Céu (temas essenciais: o desmembramento do corpo e a renovação das
vísceras; a subida às árvores); g) o motivo que podemos chamar «para
doxal», porque se trata principalmente de provas inconcebíveis ao
nível da experiência humana (provas do tipo symplegade). É verdade
que as provas-symplegades são, em certa medida, parte integrante de
todos os pattems precedentes (excepto, claro, o primeiro); podemos
contudo falar de um motivo «paradoxal» pois este é susceptível de se
destacar do complexo ritual e, enquanto símbolo, preencher uma
função importante nos mitos e nos folclores: nomeadamente a de reve
lar as estruturas da realidade última e do Espírito.
6) Como constatámos, vários cenários iniciáticos podem coexis
tir numa mesma cultura. Uma tal pluralidade de cenários pode expli-
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car-se historicamente pelas sucessivas influências exercidas ao longo
do tempo sobre a cultura respectiva. Mas também é preciso conside
rar o carácter meta-cultural da iniciação: encontramos os mesmos
temas iniciáticos nos sonhos e na vida imaginária tanto do homem
moderno como do homem primitivo. Para repetir, trata-se de uma
experiência existencial constitutiva da condição humana. É por isso
que é sempre possível reanimar os esquemas arcaicos de iniciação nas
sociedades altamente evoluídas.
7) Não se pode dizer que haja «revolução» quando se passa de um
tema iniciático a outro, nem que um tema iniciático derive genetica
mente do precedente, nem, por fim, que tal tema seja superior aos ou
tros. Cada um representa uma criação que se basta a si própria. Con
tudo, importa realçar o seguinte: a intensidade dramática dos cenários
iniciáticos aumenta nas culturas mais complexas; é nessas culturas
que aparecem os cenários elaborados, as máscaras, as provas cruéis e
aterradoras. Ora, todas essas inovações têm como objectivo tomar
mais patética a experiência da morte ritual.
8) Já nas culturas arcaicas a morte iniciática é justificada por um
mito de origem que pode resumir-se da seguinte forma: um Ser sobre
natural tinha tentado «renovar» os homens matando-os para os res
suscitar «mudados»; por uma razão qualquer, os homens mataram
esse Ser sobrenatural mas celebraram depois os ritos secretos rela
cionados com esse drama; mais exactamente a morte violenta do Ser
sobrenatural tomou-se o Mistério central, reactualizado em cada nova
iniciação. A morte iniciática é portanto a repetição da morte do Ser
sobrenatural, fundador do Mistério. Desde que, durante a iniciação, se
repita o drama primordial, reproduz-se também o destino do Ser sobre
natural: a sua morte violenta. Graças à antecipação ritual, a morte é
também santificada, carregada de valor religioso. A morte é valorizada
enquanto momento essencial do Ser sobrenatural. Ao morrer ritual
mente, o iniciado participa na condição sobrenatural do Fundador do
Mistério. Graças a essa valorização, a morte e a iniciação tomam-se
intermutáveis; o que significa que, em suma, a morte concreta acaba
por ser comparada a um rito de passagem a uma condição superior.
A morte iniciática toma-se a condição sine qua non de qualquer
regeneração espiritual e, no fim de contas, da sobrevivência da alma
e mesmo da imortalidade. E uma das consequências mais importantes
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dos ritos e das ideologias iniciáticos na história da humanidade foi
que esta valorização religiosa da morte ritual acaba por levar à vitória
sobre o medo da morte real e à crença na possibilidade de uma sobre
vivência do ser humano puramente espiritual.
Nunca se deve perder de vista que a morte iniciática significa
simultaneamente o fim do homem «natural», não cultural - e a pas
sagem a uma nova modalidade de existência: a de um ser «nascido pa
ra o espírito», ou seja, que não vive unicamente numa realidade «ime
diata» . A morte iniciática faz assim parte integrante de um processo
místico pelo qual nos tomamos um outro, modelado segundo o mo
delo revelado pelos deuses ou antepassados míticos. O que significa
que se chega a ser homem verdadeiro na medida em que se cessa de
ser um homem «natural» e se assemelha a um Ser sobrenatural. O in
teresse da iniciação para a inteligência da mentalidade arcaica reside
sobretudo nisto: ela mostra-nos que o verdadeiro homem - homem
espiritual - não é dado, não é o resultado de um processo natural . É
«feito» pelos velhos mestres, segundo modelos revelados pelos Seres
divinos e conservados nos mitos. Estes velhos mestres constituem as
elites espirituais das sociedades arcaicas. Eles sabem, eles conhecem
o mundo do espírito, o mundo verdadeiramente humano. A sua fun
ção é a de revelar às novas gerações o sentido profundo da existência
e de as ajudar a assumir a responsabilidade de serem um «homem ver
dadeiro» e, por conseguinte, de participarem na cultura. Mas já que
para as sociedades arcaicas a «cultura» é a soma dos valores rece
bidos dos Seres sobrenaturais, a função da iniciação pode ser aproxi
mada ao seguinte: ela revela, em cada nova geração, um mundo aber
to para o trans-humano, um mundo, diríamos, transcendental.
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EPÍLOGO
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vimentos hermetistas, neo-espiritualistas, etc. A Sociedade Teosófica,
a antroposofia, o neo-vedantismo e o neo-budismo não são mais do
que as expressões mais conhecidas de um fenómeno cultural verifica
do um pouco por todo o mundo ocidental. Este fenómeno não é novo.
O interesse pelo ocultismo, acompanhado pela tendência de agrupa
mento em sociedades secretas mais ou menos iniciáticas, nasce na
Europa já no século XIV, para atingir o seu ponto culminante no sécu
lo XVIII . O único movimento secreto que apresenta uma certa coerên
cia ideológica, que já possui uma história e que usufrui de um prestígio
social e político é a franco-maçonaria. As restantes organizações com
pretensões iniciáticas são, na maioria, improvisações recentes e lnbri
das. O seu interesse é sobretudo de ordem sociológica e psicológica:
ilustram a desorientação de uma parte do mundo moderno, o desejo de
encontrar um substituto para a fé religiosa. llustram igualmente a irre
dutível atracção pelos «mistérios», pelo oculto e pelo além que faz
parte integrante do ser humano, e que está bem patente em todas as
épocas e em todos os níveis de cultura, sobretudo em tempos de crise.
Todas as organizações secretas e esotéricas do mundo moderno
não comportam rituais de entrada ou cerimónias iniciáticas. A «ini
ciação» reduz-se na maioria das vezes a uma instrução livresca. (O
número de livros e revistas «iniciáticas» que se publicam no mundo é
impressionante.) Quanto aos grupos ocultos que praticam uma inicia
ção, o pouco que sabemos, é que se tratam de «ritos» inventados ou
inspirados em revelações preciosas sobre as iniciações antigas. Os ri
tuais ditos «iniciáticos» denotam frequentemente uma deplorável po
breza espiritual. O facto de os adeptos poderem ver nisso meios infa
líveis para acederem a uma gnose suprema prova até que ponto o ho
mem moderno perdeu o sentido da iniciação tradicional. Mas o suces
so de tais iniciativas também prova a profunda necessidade de se ser
«iniciado», ou seja, de se ser regenerado, de participar na vida do es
pírito. De um certo ponto de vista, as seitas e os grupos pseudo-ini
ciáticos preenchem uma função positiva, pois ajudam o homem mo
demo a encontrar um sentido espiritual para a sua existência drastica
mente dessacralizada. Um psicólogo diria mesmo que a extravagante
inautenticidade dos ritos ditos iniciáticos pouco importa; o importante
seria que a psique profunda daqueles que neles participam encontre,
graças a tais «ritos», um certo equilíbrio.
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A maioria desses grupos pseudo-ocultos são de uma esterilidade
irremediável. Nenhuma criação cultural importante pode ser incluída
no seu activo. Ao contrário, as poucas obras modernas onde se podem
decifrar os temas iniciáticos - por exemplo: Ulysses de James Joyce,
The Waste Land de T. S. Elliot - foram criadas por escritores e artistas
que não se dizem «iniciados» e não pertencem a um círculo oculto.
Voltamos assim ao problema que já abordámos mais acima: os
temas iniciáticos vivem sobretudo no inconsciente do homem moder
no. Isto é confirmado pelo simbolismo iniciático de certas criações
artísticas - poesias, romances, obras plásticas, filmes - mas também
pela sua ressonância no público. Parece-nos que essa adesão maciça
e espontânea prova que nas profundezas do seu ser o homem moder
no ainda é sensível a cenários ou mensagens «iniciáticas». Mesmo no
vocabulário que se utiliza para interpretar essas obras se reconhecem
motivos iniciáticos. Diz-se que tal livro ou tal filme redescobre os mi
tos e as provas do Herói em busca da imortalidade, que toca nos mis
tério da redenção do Mundo, que revela os segredos da regeneração
pela Mulher ou pelo Amor, etc.
Não surpreende que a crítica seja cada vez mais atraída pelas
implicações religiosas, e muito particularmente pelo simbolismo «ini
ciático» das obras literárias modernas. A literatura tem um papel con
siderável nas civilizações ocidentais contemporâneas. A leitura só por
si, como «distracção» e meio de evasão da actualidade histórica, cons
titui uma das características do homem moderno. É por isso natural
que este procure satisfazer as suas necessidades religiosas, recalcadas
ou insuficientemente insatisfeitas pela leitura de certos livros em
aparência «seculares» - mas que, de facto, contêm Figuras mitológi
cas camufladas em personagens contemporâneas e apresentam cená
rios iniciáticos sob a forma de aventuras banais.
A autenticidade desse desejo semi-consciente ou inconsciente de
partilhar as «provas» que regeneram um Herói, e por fim o «salvam»,
está provada, entre outras coisas, pela presença dos temas iniciáticos
nos sonhos e na actividade imaginária do homem moderno. C. G.
Jung insistiu no facto de o processo a que ele chama individuação e
que, segundo ele, constitui o objectivo último da existência humana,
se realizar através de uma série de «provas» de tipo iniciático.
Como dissemos, a «iniciação» é coexistente com toda a existên-
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cia humana autêntica. Por duas razões: por um lado, porque qualquer
vida humana autêntica implica crises de fundo, provas, angústias,
perda e reconquista de si próprio, «morte e ressurreição»; por outro
lado, porque, seja qual for a sua plenitude, toda a existência se revela,
num dado momento, como uma existência falhada. Não se trata de
um julgamento moral transposto para o passado, mas de um senti
mento confuso de ter falhado a sua vocação, de ter traído o melhor de
si próprio. Nesses momentos de crise total, uma única esperança pa
rece salutar: a de poder recomeçar a sua vida. Isso significa dizer, em
suma, que se sonha com uma nova existência regenerada, plena e sig
nificativa. Não se trata do desejo obscuro, escondido no fundo de
qualquer alma humana, de se renovar periodicamente, segundo o mo
delo da renovação cósmica. O que sonhamos e esperamos nesses mo
mentos de crise total é obter uma renovação definitiva e total, uma re
novatio que possa transmutar a existência. É a uma tal renovatio que
qualquer conversão religiosa autêntica tem como fim.
Mas as conversões autênticas e definitivas são bastante raras nas
sociedades modernas. Ainda mais significativo parece-nos então o
facto de até os homens ateus sentirem por vezes, no mais profundo do
seu ser, o desej o dessa transmutação espiritual que, noutras culturas,
constitui o próprio objectivo das iniciações. Não nos incumbe decidir
em que medida as iniciações tradicionais cumpriam as suas promes
sas. O importante era que proclamavam a intenção e reivindicavam o
poder de transmutar a existência humana. A nostalgia de uma renova
tio iniciática, que surge esporadicamente do mais recôndito do homem
moderno ateu, parece-nos então altamente significativa: ela seria, em
suma, a expressão modema da eterna nostalgia do homem em encon
trar um sentido positivo para a morte, de aceitar a morte como um rito
de passagem para um modo de ser superior. Se podemos dizer que a
iniciação constitui uma dimensão específica da existência humana, é
sobretudo porque apenas a iniciação confere à morte uma função posi
tiva: a de preparar o «novo nascimento», puramente espiritual, o aces
so a um modo de ser subtraído da acção devastadora do Tempo.
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