Você está na página 1de 31

CAPÍTULO 2

EVOLUÇÃO HISTÓRICA
DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO
2.1 A GEOGRAFIA NA ANTIGÜIDADE

Sem um corpo de questões e um método que


permita obter respostas concretas às mesmas não é
possível existir ciência.
Hoje podemos dizer que a questão específica da
geografia é: «Porque é que as distribuições espaciais
estão estruturadas da maneira como estão?» (Abler,
Adams e Gould.) Mas, se hoje estamos conscientes
da importância da estrutura de determinada distri-
buição, suas causas e conseqüências, e mesmo das
relações que se estabelecem entre conjuntos de dis-
tribuições espaciais, acabando por constituir siste-
mas de organização espacial à superfície da Terra,
não foi fácil alcançar esta consciência. E isto porque
a maior parte das questões geográficas sempre tive-
ram que ver com irregularidades das distribuições,
tanto físicas como humanas, nas quais é difícil defi-
nir pontos comuns e, logo, difícil definir métodos
que permitam determinar padrões.
No entanto, os primeiros indícios de uma preocu-
pação com a distribuição dos fenômenos surgiram
desde os primórdios da humanidade.

29
Desde os tempos mais remotos que o homem,
vivendo em grupos que se deslocavam continua-
mente, à procura de meios de subsistência ou em ac-
tividades guerreiras, sentiu necessidade de conser-
var informações sobre os caminhos percorridos e as
suas direcções e de as transmitir a outros. Desta ne-
cessidade surgiram os primeiros esboços represen-
tando a superfície da Terra, isto é, os primeiros
mapas.
Ainda hoje, qualquer pessoa que não saiba ler,
mas a quem se pergunta qual o melhor caminho
para ir a um lugar, é capaz de fazer um esboço,
mostrando o caminho a seguir, os factos importantes
que existam ao longo do percurso e os principais
obstáculos. Pelo que há autores que consideram que
«fazer mapas é uma aptidão inata da humanidade»
(E. Raisz).

Fig. 2 - Mapa esquimó das ilhas Belcher,


baía de Hudson

30
Fig. 3 - Mapa asteca

O mapa mais antigo de que se tem conhecimento


foi encontrado nas escavações da cidade de Ga Sur,
300 km a norte da Babilônia, e data de 2500 a. C.
(fig. 4). É uma pequena placa de argila, represen-
tando o vale de um rio, provavelmente o Eufrates,
com uma montanha de cada lado e desaguando por
um delta de três braços. O Norte, o Leste e o Oeste
estão assinalados com círculos com inscrições.
Além desta, foram encontradas outras placas, re-
presentando povoações ou mesmo toda a Babilônia,
o que mostra a importância que a cartografia tinha
na antigüidade. Os Egípcios devem também ter
construído mapas resultantes das medições feitas no
vale do Nilo no reinado de Ramsés II (1333-1300
a. C ) . Mas, destes, poucos se conservaram até à ac-
tualidade.
Segundo a concepção que então existia, a Terra
era plana, com a forma de um disco e constituída por

31
Fig. 4 - Mapa de Ga Sur, Mesopotâmia
(2500 a. C.)
uma massa continental que flutuava na água, com a
abóbada celeste por cima (fig. 5).
A expansão política, comercial e marítima dos
povos do mediterrâneo (Mesopotâmia, Fenícia,
Egipto) levou à elaboração de mapas marítimos e,
sobretudo, à descrição de lugares e de povos. Estas
descrições, denominadas périplos (nepinAiw = «na-
vegar em redor»), são sobretudo conhecidas pelas
referências feitas pelos escritores da antigüidade,
tendo chegado até nós muito poucas. Homero (850
a. C.) inspirou-se certamente nelas para escrever as
suas obras.

32
Fig. 5 - Mapa do tempo de Homero (700 a. C.)

O périplo mais antigo referido pelos escritores


gregos foi realizado por marinheiros fenícios ao ser-
viço do faraó egípcio (século VII a. C ) . Partiram do
mar Vermelho, dirigindo-se para sul e navegando
sempre ao longo da costa africana. Contornaram
África e só se aperceberam de que tinham dobrado a
extremidade sul deste continente quando viram o
Sol levantar-se à sua direita. Três anos depois regres-
saram ao Mediterrâneo. No século vi a. C, Cartago
organizou duas expedições em busca das regiões
produtoras de estanho. Um dos périplos contornou
África até aos Camarões pelo ocidente (onde foi
avistada uma montanha em chamas - o vulcão dos
Camarões) e outro contornou a costa européia até à
Bretanha. No século iv a. C, o marselhês Píteas con-
tornou novamente a costa européia, chegou às Ilhas

33
Britânicas e à Escócia e ouviu falar dos dias de
24 horas e das terras nebulosas de Tule (provavel-
mente a Islândia ou a Noruega).

O pensamento geográfico sistematizado surgiu


com os Gregos e a palavra geografia (yeiorypadia) foi
naturalmente criada por eles e significa exactamente
«escrever sobre a Terra».
O primeiro mapa grego de que se tem notícia
foi elaborado por Anaximandro de Mileto (650-615
a. C ) . Anaximandro, discípulo de Tales de Mileto,
era filósofo, engenheiro e geógrafo. Viajou e escre-
veu relatos das suas viagens. Pensa-se ainda que in-
ventou o gnómon, aparelho constituído por uma
vara vertical e que serve para medir a altura do Sol.
Ainda no século vi, foi estabelecido, por Anaxí-
menes, o princípio do geocentrismo, que devia du-
rar até Galileu.
O segundo mapa da antigüidade foi elaborado
por Hecateu de Mileto (560-480 a. C ) , que viajou
por parte do mundo conhecido, escreveu uma Des-
crição da Terra, a qual era ilustrada por um mapa em
que a Terra estava representada por um disco com
água à volta.
O m u n d o conhecido então pelos Gregos era
constituído por uma faixa que se estendia do Atlân-
tico ao rio Indo. As regiões a norte e a sul eram
pouco conhecidas. Considerava-se que a ecúmena
(mundo habitado) tinha uma forma oblonga, cujo
eixo este-oeste possuía o dobro do comprimento do
eixo norte-sul. Os nossos termos actuais longitude e
latitude vêm deste conceito.
A esfericidade da Terra foi apenas concebida de-
pois do século v a. C. e surgiu como resultado da re-
flexão filosófica sobre a forma ideal dos corpos, e

34
não da observação: a esfera é a mais perfeita de to-
das as formas; portanto, a Terra, obra-mestra dos
deuses, deve ser uma esfera. A idéia (de Parméni-
des, 510-450 a. C.) foi apoiada por Platão, que lhe
deu a credibilidade necessária. As provas da esferici-
dade da Terra só surgiram depois, com Aristóteles
(século iv a. C ) , que baseou os seus argumentos em
duas observações:

1) A sombra da Terra na Lua, na ocasião dos


eclipses, era redonda;
2) A altura dos astros em relação ao horizonte
variava quando um viajante se deslocava de
norte para sul.

Ainda no século v, Heródoto (485-425 a. C.) per-


correu a maior parte do mundo habitavel conhecido,
desde o Sudão até à Ucrânia e desde a índia até ao
estreito de Gibraltar. Colheu informações sobre os
oásis do Sara e a rota das caravanas que ligavam o
Norte de África às regiões mais a sul, que produziam
o ouro e o estanho. Escreveu uma obra vasta sobre
as regiões que conheceu, a História.
Heródoto pretendia conhecer os locais onde ti-
nham ocorrido os factos históricos sobre os quais ia
escrever, pelo que os estudou em pormenor, assim
como as suas populações e características, o con-
texto espacial e a organização política. Estas infor-
mações eram úteis ao poder grego, que pretendia
dominar politicamente os Bárbaros dos territórios
vizinhos.
Com a expedição de Alexandre Magno (334-323
a. C ) , os Gregos alargaram muito o seu conheci-
mento do mundo.

35
Alexandre fez-se acompanhar de vários sábios,
entre os quais dois discípulos de Aristóteles. Man-
dou fazer um cadastro do Império, traçar caminhos e
verificar as comunicações entre o mar Negro e o mar
Vermelho. Toda a documentação elaborada foi reu-
nida na Biblioteca de Alexandria.
Ainda no século iv, Dicearco construiu um mapa
utilizando dois eixos perpendiculares: um alongado
no sentido este-oeste, o diafragma, passando pelas
Colunas de Hércules e por Rodes, e o outro, a per-
pendicular, passando por Rodes.
Mais tarde, Eratóstenes (276-196 a. C ) , que pas-
sou a ter a seu cargo a direcção da Biblioteca de Ale-
xandria e é o primeiro filósofo grego a autodeter-
minar-se geógrafo, aperfeiçoou o mapa de Dicearco,
introduzindo-lhe vários meridianos e paralelos, for-
mando uma rede rectangular.
Nas suas leituras e observações teve conheci-
mento de que existia em Siena (Assuão) um poço
em que o Sol incidia verticalmente n u m único dia
do ano: no dia do solstício de Verão. Verificou que,
no mesmo dia do ano, em Alexandria, os objectos ti-
nham sombras. Desde a invenção do gnómon que
era possível medir a altura do Sol. Assim, medindo,
no dia do solstício de Verão, o ângulo que ao meio-
-dia os raios solares faziam com o horizonte em Ale-
xandria, calculou a medida do arco de circunferên-
cia que separa Alexandria de Siena (fig. 6).
A medida calculada foi de 1/50 da circunferência
(cujo valor de 360° ainda não era utilizado pelos
Gregos). O comprimento do arco era de 5000 está-
dios, a distância que separava Alexandria de Siena.
A partir desta medida foi calculado o perímetro da
Terra: 50 X 5000 = 250 000 estádios. Este valor é
aproximadamente igual a 46 250 km (1 estádio

36
Fig. 6 - Medição do perímetro da Terra
por Eratóstenes
mede 168 m) e o comprimento real do meridiano
terrestre é de 40 000 km, muito aproximado por-
tanto.
A partir daqui, Eratóstenes construiu uma qua-
drícula com vários meridianos e paralelos, que cons-
titui a base da rede de meridianos e paralelos ainda
hoje por nós utilizada para localizar qualquer lugar.
A ilha de Taprobana (provavelmente Ceilão) apa-
rece representada pela primeira vez (fig. 7).
O problema da localização surge, assim, estreita-
mente ligado à astronomia e à geometria. Este as-
pecto da geografia - ciência da localização dos lu-
gares - vai manter-se durante séculos e chegar até
ao século xviii.
A resposta à pergunta «Onde?», uma das ques-
tões fundamentais da geografia, passa a poder ser
dada com rigor, pois, a partir de agora, é possível lo-

37
Fig. 7 - Mapa de Eratóstenes

calizar com precisão, n u m mapa, qualquer ponto


da superfície da Terra.
A resposta a outra questão fundamental da geo-
grafia - «O que existe nesse lugar?» - é dada pe-
los geógrafos viajantes, que descreveram nas suas
obras os factos observados.
Desenvolvem-se assim, paralelamente, duas ten-
dências da geografia:

A geografia matemática, ligada à astronomia e à


geometria;
A geografia descritiva, resultante da descrição do
m u n d o conhecido.

Mais tarde, Hiparco de Niceia (190-125 a. C ) ,


astrônomo em Rodes, aperfeiçoou o quadriculado
utilizado por Eratóstenes. Segundo ele, a posição ri-
gorosa de um ponto só pode ser determinada astro-
nomicamente e a representação cartográfica deve
ser feita tendo como base a projecção da superfície
esférica da Terra n u m plano.

38
Hiparco utilizou a divisão da circunferência em
360° e construiu também uma rede de paralelos e
meridianos, mas projectados e igualmente distancia-
dos. Para medir a longitude propôs que se fizessem
observações simultâneas dos eclipses da Lua, o que
não chegou a ser posto em prática. Foi ainda Hi-
parco que elaborou a teoria das zonas climáticas,
que considerava como zonas compreendidas entre
paralelos, tendo previsto a existência de zonas de-
masiado quentes e demasiado frias para serem habi-
tadas.
O estudo da dimensão da Terra levantou um
problema: a ecúmena era muito pequena, ocupava
apenas um quarto do globo terrestre. O mundo era,
portanto, desequilibrado, o que não se ajustava ao
conceito grego de simetria. Assim, foi necessário
imaginar três continentes que servissem de con-
trapeso (fig. 8). Surgiu o conceito de antípoda
ou continente do Sul, a Terra Australis, actual An-
tárctida.
Contemporâneo de Hiparco, Posidónio de Apa-
meia efectuou uma nova medição da Terra. Utilizou
a distância linear entre Rodes e Alexandria e calcu-
lou a distância angular com o auxílio da estrela Ca-
nopo. O comprimento calculado para o meridiano
terrestre foi apenas de 29 000 km, o que levou a que
1° eqüivalesse apenas a 500 estádios, enquanto para
o
Eratóstenes I eqüivalia a 700 estádios. O valor de
Posidónio foi retomado mais tarde por Ptolomeu e
pelos cartógrafos do século xv.
As conquistas efectuadas pelos Romanos leva-
ram ao alargamento do conhecimento do mundo, tal
como tinha acontecido anteriormente com Alexan-
dre. O Império estendia-se desde a foz do Danúbio,
no mar Negro (conhecido por Ponto Euxino), até ao

39
Fig. 8 - 0 mundo ideal dos Gregos

Atlântico, desde o Norte de África até às Ilhas Britâ-


nicas. Realizaram-se expedições com o fim de obter
conhecimentos pormenorizados das regiões a con-
quistar, elaboraram-se itinerários, o mundo romano
foi medido e foram inventariados os seus recursos
militares e econômicos.
Os itinerários não tinham valor cartográfico: con-
sistiam em listas de cidades situadas ao longo das
principais vias de comunicação. Possuíam apenas
valor estratégico e administrativo, pois eram utiliza-
dos pelos exércitos e pelos administradores das
províncias.

40
Foram ainda os sábios gregos que preservaram e
desenvolveram o conhecimento geográfico.
Estrabão (64 a. C.-21 d. C.) era um grego que vi-
via em Roma. Tal como Heródoto, foi um grande
viajante, tendo percorrido grande parte do mundo
conhecido. Para ele, a geografia «interessava para
fins de governo» e «os geógrafos não devem preocu-
par-se com o que está fora do mundo habitado». Por
isso, interessava-se por uma geografia humana des-
critiva, opondo-se à geografia matemática. Na sua
obra Geographica descreveu várias partes do mundo
conhecido, baseando-se nos factos observados du-
rante as suas viagens e em informações recolhidas
nas obras gregas. Quer pelas suas idéias, quer pela
obra desenvolvida, Estrabão pode comparar-se a
Heródoto.
No século II d. C. surgiu o último geógrafo da an-
tigüidade - Ptolomeu de Alexandria (90-168 d. C ) .
Ptolomeu retomou as concepções de Hiparco, tendo
criado um processo de projecção cónica da superfí-
cie da Terra n u m plano. Elaborou um mapa muito
mais aperfeiçoado que o de Eratóstenes, tendo re-
presentado uma área maior (fig. 9).
Escreveu uma Geographia em oito volumes: no
primeiro refere os princípios de construção de glo-
bos e projecções de mapas, no último indica os
princípios da geografia matemática e da cartografia e
nos restantes faz a relação de 8000 lugares, com a
sua latitude e longitude. Mas estas coordenadas não
foram medidas directamente: baseavam-se em in-
formações anteriores e estavam indicadas nos ma-
pas já existentes. A Geographia continha ainda um
mapa do mundo e vinte e seis mapas de pormenor,
constituindo o primeiro atlas mundial. O mapa de
Ptolomeu representava uma área com 180° de longi-

41
Fig. 9 - Mapa de Ptolomeu

tude, desde as ilhas Afortunadas (Canárias) até à


China, e nele a África estava unida à Ásia pelo Sul.
A extensão dada à região representada foi exa-
gerada - Ptolomeu baseou-se nas medições de Po-
o
sidónio, para quem I eqüivalia a 500 estádios. Na
realidade, aquela extensão é apenas de 130°. O Me-
diterrâneo, no mapa de Ptolomeu, surge com o com-
primento de 62°, quando, na realidade, tem apenas
42°. Este erro permaneceu até ao século xvn, o que
levou Colombo a pensar que tinha chegado à índia
quando apenas chegara à América.

O facto de os Romanos não terem as mesmas


preocupações filosóficas (e científicas e estéticas)
que os Gregos levou a não ser dada aos trabalhos
gregos a importância devida. Os Romanos necessita-
vam de mapas simples, com caracter prático, e assim
voltaram a utilizar os antigos mapas em forma de
disco. A Itália estava sobrevalorizada (fig. 10) e
Roma e as províncias romanas eram bem visíveis,
com uma escala excessivamente grande, permitindo

42
Fig. 10 - Mapa romano

uma boa representação do Império. As áreas perifé-


ricas - China, índia e Ásia - tinham uma represen-
tação diminuta.

2.2 A GEOGRAFIA NA IDADE MÉDIA

Com a queda do Império Romano e a difusão do


cristianismo iniciou-se um período de regressão no
conhecimento científico e, portanto, no conheci-

43
mento geográfico. As causas para esta regressão po-
dem encontrar-se no contexto social, econômico
e religioso que se viveu durante este período histó-
rico.
As invasões bárbaras vão provocar uma situação
de guerra generalizada a todo o espaço europeu ocu-
pado pelo Império Romano. Esta situação irá provo-
car na Europa conseqüências desastrosas, que le-
vam ao isolacionismo e à instauração de um sistema
feudal. Entre essas conseqüências podem destacar-
-se as seguintes:

A maior parte da população activa masculina é


desviada das suas funções produtivas para
funções militares;
O abandono das actividades agrícolas, básicas
para a subsistência, leva a uma conseqüente
diminuição da produção;
Aumento considerável das taxas de mortalidade,
agravadas consecutivamente quer pela guerra,
quer pela fome, quer pela peste;
Desorganização de todos os sistemas econômi-
cos, sociais e políticos até aí existentes;
Destruição dos sistemas de comunicação;
Sucessão de invasões de povos diferentes, que
passam a dominar áreas distintas, com a con-
seqüente dominação política diversificada.

A Europa que surge após este período de in-


vasões é, pois, uma Europa dividida numa série
imensa de pequenas áreas politicamente diferencia-
das, deixando de existir uma política uniforme so-
bre todo o território.
Para além disto, a desarticulação dos sistemas de
comunicação e o facto de a Europa se encontrar rela-

44
tivamente despovoada dificultam a troca de pessoas,
bens e idéias entre as diferentes áreas européias.
O sistema feudal que se vai instaurar é essencial-
mente um sistema isolacionista, que tenta resolver
os problemas a partir da auto-subsistência do pró-
prio feudo. Assim, deixa de existir a mobilidade que
se verificava na antigüidade e o desconhecimento de
outras áreas, que não o feudo, torna-se cada vez
maior.
Neste ambiente, a Igreja torna-se o maior poder,
já que é o único poder central europeu. As respostas
às questões colocadas passam a ser dadas a partir de
interpretações bíblicas.
Não se pode pensar, no entanto, que o h o m e m
deixou de se questionar sobre o «Onde?». Só que a
ordem religiosa possuía respostas a estas questões,
pois a Bíblia continha referências cosmológicas e
geográficas que as satisfaziam. O facto de ser a Igreja
a dar as respostas que antes eram encontradas atra-
vés da ciência deve-se não só ao poder que a religião
detinha, mas também ao facto de o imobilismo po-
pulacional ter provocado o desaparecimento das
viagens e, com isto, o desconhecimento do mundo
real.
O desenvolvimento da ciência ou da religião de-
pende das preocupações do h o m e m e do tipo de res-
postas que ele procura. Assim, a ciência progride
quando o homem se preocupa com o mundo que o
rodeia e ela pode responder de forma satisfatória às
perguntas formuladas sobre o m u n d o físico. Com a
difusão do cristianismo foram problemas de ordem
religiosa, ou problemas que obtinham resposta na
religião, que passaram a interessar ao homem.
A adopção dos conhecimentos geográficos bíbli-
cos tornou-se evidente na cartografia. Utilizam-se

45
mapas circulares romanos, nos quais se introduzi-
ram caracteres teológicos, e não geográficos. Assim,
Jerusalém, a Cidade Santa, ocupava o centro do
mapa; o Paraíso, localizado a leste, ocupava a parte
superior do mapa; o Mediterrâneo tinha uma posi-
ção meridiana (fig. 11). Foi esquecido que a Terra era
esférica e reapareceu o conceito de Terra plana: um
disco circundado de água.
Podemos, portanto, considerar que Ptolomeu foi
o último geógrafo com consciência disso até ao sé-
culo xv.

Fig. 11 - Mapa da Idade Média (Orbis Terrarum)

46
Fig. 11-a - Mapa da Idade Média (S. Beato, 787
d. C.)

Se o pensamento geográfico continuou a existir


durante a Idade Média (ele é praticamente inerente
à existência do próprio homem), ao não ser formali-
zado em termos científicos, mas sim ao procurar
respostas na ordem religiosa, provocou o desapare-
cimento da geografia como ciência durante este
enorme período da história.
Enquanto a ciência decaía no mundo ocidental,
no mundo árabe, com o estabelecimento do Império
Muçulmano, depois do ano 800 d. C, passou a veri-
ficar-se um desenvolvimento científico.
O Império Muçulmano dominava uma área
muito vasta, desde o Afeganistão até ao Atlântico,
com excepção da Itália, França, Turquia e Bálcãs.
Devido a problemas de ordem militar e administra-

47
tiva (tal como nos Impérios Grego e Romano), sur-
giu a necessidade de conhecer o mundo. Ao mesmo
tempo surgia também a necessidade religiosa de via-
jar, na medida em que todo o muçulmano tem de ir
a Meca pelo menos uma vez na vida. Assim, as via-
gens e o comércio sofreram um novo impulso.
A geografia verificou um novo avanço. Entre os via-
jantes árabes destacam-se Al-Biruni, Al-Idrisi (1099-
1164) e Ibn Battuta, que escreveram extensos e va-
liosos relatos sobre as regiões por onde viajaram.
Idrisi, ao serviço do rei da Sicília, desenvolveu a es-
cola de Palermo e pôde elaborar o mapa árabe mais
completo que se conhece.
Por outro lado, os monarcas muçulmanos promo-
veram as ciências e as artes. Foi traduzida para árabe
a obra de Ptolomeu e desenvolveu-se a geografia, a
astronomia, a astrologia, a matemática e a geome-
tria.

Fig. 12 - Mapa árabe, século x

48
Apesar disso, o conhecimento e as descrições
geográficas produzidas são muito imprecisas e as
localizações pouco rigorosas. Os Árabes não se ser-
viam da latitude e da longitude para localizar os lu-
gares à superfície da Terra e elaborar mapas. A lati-
tude e a longitude são utilizadas pelos astrônomos
(considerados, aliás, como os melhores do mundo)
nas suas observações, mas quem faz os mapas são os
geógrafos, que não se servem dos dados dos astrôno-
mos. Surge, assim, no mundo árabe uma separação
entre geógrafos e astrônomos que não existia na an-
tigüidade.

Fig. 12-a - Mapa árabe, século XIII

49
Fig. 13 - Mapa da China (1, China; 2, montanha da origem do
homem; 3, país dos homens superiores; 4, país das mulheres;
5, país da vida difícil; 6, montanha do espírito do fogo; 7,
grande montanha periférica; 8, montanha branca; 9, Pusang
[América?]; 10, país do povo branco; 11, índia)

Simultaneamente, a cartografia desenvolvia-se


na China, mas sem qualquer contacto com o mundo
árabe ou o Ocidente (fig. 13). Desde sempre que os
governantes chineses se preocupavam com fazer
descrições geográficas das áreas que administravam,
acompanhadas de mapas.
Depois da invenção do papel (100 d. C ) , do pro-
cesso de impressão e da bússola, fizeram-se numero-

so
sos mapas locais por todo o Império Chinês. A carto-
grafia chinesa sofreu um impulso importante com o
cartografo Pei Hsiu (224-273), que coordenou mui-
tos mapas locais e lançou as bases da cartografia
científica chinesa, com a utilização de um reticu-
lado. Foi representado todo o território desde a Pér-
sia ao Japão, mas os Chineses pareciam desconhecer
o Ocidente.
A execução e utilização de mapas progrediram
sempre e, quando os Jesuítas chegaram à China, no
século xvi, encontraram numerosos mapas, de boa
qualidade, que lhes permitiram fazer um atlas do
Império.

Nos finais da Idade Média, as cruzadas, as pere-


grinações aos lugares santos e o renascimento do co-
mércio entre a Europa e o Oriente levaram a um
ressurgir da curiosidade pelo mundo desconhecido
e, portanto, a uma nova etapa no desenvolvimento
da geografia. Reapareceram os itinerários de via-
gens, as obras que descreviam as terras visitadas.
É costume salientar-se o papel de Marco Polo, de
uma família de comerciantes venezianos, que efec-
tuou uma longa viagem pelo interior da Ásia até à
China, tendo escrito um relato, O Livro das Maravi-
lhas. Não pode considerar-se a sua obra como de ca-
racter geográfico, pois nela são descritos muitos por-
menores colhidos sobre as regiões visitadas (lendas,
por exemplo) que não têm esse caracter. No en-
tanto, no seu livro existem descrições de interesse
geográfico.
Com o desenvolvimento da navegação houve
necessidade de voltar a uma cartografia realista, útil,
os portulanos, onde eram assinalados com notável

51
exactidão os acidentes costeiros, e a cartografia reli-
giosa foi abandonada.
Os Árabes trouxeram para o Ocidente a bússola,
que era utilizada pelos Chineses na navegação. No
século xiv, a sua utilização veio revolucionar o pro-
cesso de construção dos mapas para a navegação.
Através da utilização da agulha da bússola, que
indica o norte magnético, foi possível desenhar os
vários rumos dos ventos, constituindo uma rede de
rumos, seguidos quando se navega, a partir de um
ponto conhecido: uma rosa-dos-ventos central é li-
gada, em todas as direcções, a outras rosas-dos-ven-
tos, dispostas à sua volta segundo um polígono de
oito, dezasseis ou trinta e dois lados (fíg. 14). Foram
os Italianos e os Catalães que desenvolveram este
tipo de cartografia. O nome de portulano vem prova-
velmente da designação «mapas de piloto» (do ita-
liano portolanó).

Fig. 14 - Princípio de construção dos portulanos

52
2.3 A GEOGRAFIA DO SÉCULO XV
AO SÉCULO XIX

No princípio do século xv foi traduzida do árabe


para latim a obra de Ptolomeu (1406) e difundida
por toda a Europa.
As idéias dos Europeus sobre a forma da Terra
e a sua cartografia sofreram uma profunda altera-
ção, pois foi retomada a idéia da esfericidade da
Terra.
São também traduzidas outras obras da antigüi-
dade (Aristóteles, Estrabão, etc.) e a geografia re-
toma os dois rumos que vinha seguindo na antigüi-
dade:

A geografia matemática, ligada à cartografia e às


observações astronômicas;
A geografia descritiva.

O século xv é o século das grande viagens maríti-


mas e da descoberta de novos mundos. Ao mesmo
tempo que se vão trazendo as descrições das novas
regiões descobertas, que maravilharam os Europeus
pelos seus climas, vegetação, animais, gentes e hábi-
tos, vão-se aperfeiçoando os mapas utilizados nas
grandes viagens, em que se navega em pleno alto
mar, através da construção de mapas cada vez mais
exactos. A concepção geográfica do mundo mudou
mais rapidamente no primeiro quartel do século xvi
do que em qualquer outra época.
Surgem dois problemas: não é possível medir a
latitude e a longitude com precisão, pois apenas é
utilizado o astrolábio, e é necessário construir mapas
que abranjam o mundo inteiro.

53
Para medir a latitude recorre-se ao astrolábio.
Mas para os cálculos da longitude continuam a per-
manecer os erros de Ptolomeu.
Para construir mapas onde caiba o m u n d o re-
corre-se aos sistemas de projecção matemática. As
mais importantes foram construídas por'Mercator
(1569), considerado o pai da cartografia holandesa, e
por Ortelius (1570), em Antuérpia (fig. 15).
Mercator foi o primeiro cartografo a corrigir o
mapa de Ptolomeu, dando ao Mediterrâneo uma ex-
tensão de apenas 53°. A projecção de Ortelius, de
1570, é constituída por um mapa-mundo, o Thea-
trum Orbis Terrarum, em que o Velho e o Novo
Mundo figuram cada um n u m círculo, com meridia-
nos curvos. Ortelius executou ainda o primeiro atlas
moderno, com 53 folhas acompanhadas de um
texto.
O primeiro globo terrestre, que ainda existe, foi
construído em 1492, por Martin Behaim, de Nurem-
berga.
No século xvii, e como resultado das observações
de Copérnico, Kepler e Galileu, modifica-se a idéia
da posição da Terra no universo, a qual deixa de ser
geocêntrica e passa a ser heliocêntrica.
A invenção do cronômetro, a do relógio, em
1658, e a do sextante, em 1672, permitiram o cálculo
exacto da latitude e da longitude. Esta é medida a
partir da diferença horária entre dois lugares e só a
partir de uma medição precisa do tempo se pôde cal-
cular a longitude com exactidão. Foi possível, desde
então, corrigir os erros dos mapas construídos ante-
riormente.
Simultaneamente, começou a desenvolver-se em
França uma cartografia de grande escala, que permi-
tisse uma boa representação do território e que ser-

54
visse como base às necessidades da administração
política, da guerra, dos trabalhos de engenharia
(construção de estradas, canais, ou outras). A Aca-
demia das Ciências foi encarregada de elaborar os
mapas. O primeiro mapa, elaborado por Cassini,
surgiu em 1744. No mesmo ano começaram os tra-
balhos para um novo mapa, que foi concluído já du-
rante a Revolução Francesa: a Carte Géométrique de
la France, com 182 folhas, na escala de 1:86 400.
A partir de 1750, todos os países europeus começa-
ram o seu levantamento topográfico, a cargo dos ser-
viços geográficos dos exércitos.
Ainda no século xvu, é publicada na Alemanha
uma obra intitulada Geographia Generalis, da auto-
ria de Bernhard Varenius (1622-50), que teve grande
importância no desenvolvimento do pensamento
geográfico nos séculos xvn e XVIII.
Com base nas reflexões gregas, que distinguiam,
nas suas descrições, aquelas que eram regionais ou
corográficas daquelas que eram gerais e se referiam
ao m u n d o todo ou a áreas muito vastas, Varenius
distinguiu:

U m a geografia geral ou universal, que dizia res-


peito às características físicas da Terra, na
qual, utilizando os métodos da física e da ma-
temática, se podem fazer generalizações ou
leis, independentemente das unidades políti-
cas (isto é, ultrapassando as fronteiras dos di-
versos países);
U m a geografia especial ou particular, regional,
onde se faz a descrição dos países de dois
pontos de vista: 1) corográfico, abrangendo
grandes áreas, e 2) topográfico, abrangendo
pequenas áreas e no qual não é possível ela-

56
borar leis, pois as características das regiões re-
sultam essencialmente da interacção entre oho-
m e m e o ambiente, e o homem é imprevisível.

Varenius pressentiu, pois, que seria difícil consi-


derar a geografia regional uma ciência, na medida
em que ela era uma simples descrição de factos. As-
sim, entendia ele que era necessário à geografia criar
um conjunto de leis que se pudessem aplicar na ge-
neralidade e que explicassem os fenômenos encon-
trados nos estudos regionais.
As questões levantadas por Varenius caíram en-
tretanto no esquecimento e só muito mais tarde se-
rão retomadas com as preocupações epistemológicas
do século xx.
O século XVIII continuou a ser u m século de gran-
des descobertas. Várias áreas da Terra eram ainda
desconhecidas. Organizam-se expedições para reco-
nhecer o Norte da América, as índias Orientais, a
Nova Guiné, a Nova Zelândia, a Austrália. Os Rus-
sos, entretanto, exploram a Sibéria.
Os países europeus escreveram numerosas geo-
grafias em que se descreviam os territórios nacio-
nais, as suas produções, etc.
Surge entretanto, e também no século X V I I I , um
geógrafo, normalmente considerado apenas como fi-
lósofo: Emanuel Kant (1724-1804).
Kant foi professor de Geografia, durante cerca de
quarenta anos, na Universidade de Conisberga, na
Alemanha. A sua importância como geógrafo re-
sulta, não dó facto de ter trazido à geografia conheci-
mentos sobre novos espaços - ele não viajou -,
mas por ter reflectido muito, como filósofo que era,
sobre a natureza do conhecimento e a forma de o
classificar.

57
Segundo Kant, o conhecimento pode ser adqui-
rido por dois processos: 1) através da experiência
(conhecimento empírico); 2) através do raciocínio.
Alguns filósofos (Descartes, Leibniz) entendiam
que a experiência não era necessária à aquisição do
conhecimento, bastava a razão. Para estes filósofos,
as respostas às nossas questões seriam dadas por de-
duções, resultantes de sistemas de explicação. No
início do século xvin desenvolve-se a teoria oposta
(Locke, Newton): o conhecimento é empírico e para
compreender os fenômenos da natureza é necessá-
rio abandonar todas as explicações dadas a priori
pela razão, pois o nosso entendimento só pode com-
preender os fenômenos nas suas correlações directa-
mente observáveis. Kant pretendia conciliar estes
dois pontos de vista. Para Kant, o conhecimento de-
riva das percepções de cada indivíduo, interpretadas
pelos seus esquemas conceptuais, que são produto
do seu raciocínio sobre as experiências anteriores.
Para Kant, a geografia é um conhecimento em-
pírico, na medida em que, como ciência, deriva das
experiências do homem. Mas é mais do que conhe-
cimento comum, porque sistematiza e classifica os
factos e, além disso, está circunscrita à superfície da
Terra.
A seguir põe-se-lhe outro problema: se a geogra-
fia é uma ciência empírica, em que medida difere ela
de outras ciências empíricas, como a história e a
física? Kant encontra resposta em relação à física, na
medida em que esta ciência possui um vasto corpo
teórico, com princípios e leis, muitas vezes expres-
sos matematicamente. Mas em relação à história é
mais difícil fazer a distinção. E, assim, geografia e
história acabam por se distinguir porque, segundo
Kant, a geografia descreve a natureza no presente e

53
no espaço, enquanto a história descreve a evolução
do h o m e m ao longo do tempo - enquanto a geogra-
lia tem uma dimensão espacial, a história tem uma
dimensão temporal.
Na sua teoria da organização do conhecimento,
Kant considera, portanto, as disciplinas organizadas
cm três conjuntos: ciências sistemáticas, que estu-
dam as categorias dos fenômenos (botânica, geolo-
gia, sociologia); ciências históricas, que estudam as
relações entre os fenômenos no tempo; e ciências
geográficas, que estudam os factos nas suas relações
espaciais.
Kant assume, portanto, particular importância na
medida em que levanta questões sobre a natureza
do conhecimento geográfico.

2.4 A G E O G R A F I A MODERNA

A partir de 1800 verifica-se uma alteração pro-


funda nas preocupações dos geógrafos: a Terra já é
toda conhecida, já é possível responder com preci-
são à pergunta «Onde?», base do raciocínio geográ-
fico até então. A geografia deixou de se interessar
pelo estudo da Terra enquanto astro (geografia ma-
temática) e de ser a ciência da localização exacta dos
lugares e da cartografia.
A questão q u e começa a preocupar os geógrafos a
partir de agora é a pergunta «O que existe em tal
lugar?». Assim, passaram a estudar só a superfície
da Terra e a interessar-se apenas por dois proble-
mas: 1) o estudo da diferenciação do espaço, e 2) o
estudo das relações homem-meio.
Esta preocupação não é nova, já existia em Heró-
doto. Estrabão criticava os geógrafos matemáticos e

59

Você também pode gostar