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A América e o nascimento da Geografia Moderna

De certa maneira se pode afirmar que a Geografia Moderna nasceu na América


duran- te o século XVI, no esforço de conhecer, descrever, estudar e organizar as
novas terras descobertas. Humboldt escreveu num texto conhecido e significativo:

“Em nenhuma outra época desde a fundação das sociedades o círculo das idéias se
ampliou de forma repentina e maravilhosa, no que se refere ao mundo exterior e às
relações de espaço. Jamais se sentiu com tanta veemência a necessidade de
observar a Natureza em latitudes diferentes e em diversos graus de altitude do
nível do mar, nem de multiplicar os meios cuja virtude pode obrigá-la a revelar
seus segredos”.2

O impacto da América sobre a ciência européia pode mostrar como a geografia,


assim como outros ramos científicos, se viu afetada pelo conhecimento do Novo
Mundo num processo de fluxo e refluxo no qual as idéias renascentistas, de raízes
clássicas e medievais, serviram como ponto de partida para a observação e
interpretação da realidade, mas resultaram profundamente transformadas pelo
contato com a mesma.

Neste sentido, três linhas podem ser seguidas:

1) a transformação do gênero historiográfico das crônicas medievais como


resultado da utilização da obra de Plínio e o impacto produzido pelo contato com a
natureza e os povos americanos;

2) o desenvolvimento da linha de reflexão científica que conduz a integrar e


relacionar os fatos físicos e humanos e, com eles, a gênese das histórias naturais e
morais;

3) o desenvolvimento de uma nova teoria ambientalista da obra do padre Las


Casas.

Não cabe nenhuma dúvida sobre a profunda novidade que implicou o esforço de
integração de fenômenos diversos de caráter humano e natural nessas obras que
contribuíram decisivamente para sistematizar e difundir as notícias do Novo Mundo
e que, ao mesmo tempo, puderam converter-se também em modelos de uma nova
forma de descrever o mundo. Sem dúvida, é surpreendente que esses autores
puderam converter um gênero historiográfico tão tipicamente medieval como as
crônicas num instrumento moderno de organização de conhecimentos e de reflexão
científica do mundo geográfico.

Como em tantos outros aspectos do Descobrimento, é na tradição clássica medieval


donde se encontra as origens do gênero. Também nele, os fatos são mais bem
entendidos se é considerada não apenas como o início da Idade Moderna, mas
também como a continuação e culminação do desenvolvimento medieval.

Os historiadores antigos haviam incluído frequentemente as considerações sobre o


meio geográfico nas suas narrativas, e a História de Heródoto é um dos maiores
exemplos dessa tradição, encontrada em outros como Políbio ou Justino, autores
mais conhecidos na Idade Média. Mas a associação entre história e geografia podia
chegar ao ponto de dirigir a esta última ciência os especialistas da primeira, como
parece ter sido o caso de Estrabão, que redigiu sua obra Geografia depois de ter
escrito Memórias Históricas em 47 livros.3

Situadas nessa tradição, as crônicas, essas “histórias nas quais se observa a ordem
dos tempos” incluíam frequentemente na Idade Média preâmbulos geográficos e
podiam também se referir a aspectos tais como o caráter dos povos, os
monumentos, as letras ou os homens ilustres, a explicação do mundo natural
através dos seis dias da criação, a descrição de todo orbe terrestre ou de territórios
particulares. A crônica trazia uma tradição, cujas raízes eram antigas, e que
conduzia facilmente à integração entre a Geografia e a História. Não somente a
História Geral, mas também os sucessos particulares como as conquistas de
territórios. Os cronistas de um rei ou reino, historiadores tinham a obrigação de
relatar os sucessos do reinado, a preocupação de mostrar as origens desses fatos,
o que os levava a compilar em materiais diversos, desde anais históricos até
poemas e lendas populares, passando por notícias de escritores sagrados e
clássicos. Desde a Idade Média existia tanto o cargo de cronista como a capacidade
deles para observar lucidamente os acontecimentos contemporâneos, e por sua
vez, sistematizar, com maior ou menor crítica, os materiais provenientes de
diferentes fontes.

O modelo de Plínio, o Velho


Gonzalo Fernández de Oviedo, autor de História Geral e Natural das Índias, tratou
dos aspectos de modo simultâneo e com idêntica atenção, tendo dado um passo
decisivo para a integração dos fatos naturais e humanos. Não há dúvida de que foi
precisamente a América que lhe fez dar esse passo. Foi a surpresa diante das
características da natureza americana que o levou a prestar uma atenção decisiva
ao meio natural e para ordenar esses dados usou como modelo (Quadro 1) a obra
enciclopédica de Plínio,4 e lançou mão de autores clássicos como Columela,
Teofastro, Virgílio, Crescentino (ou Gabriel Alonso de Herrera). Mas a natureza das
Índias era tão afastada e diferente em relação ao mundo conhecido dos antigos
que, apesar de sua predileção por Plínio, foram feitas as primeiras reformulações
explícitas da crítica e superação do saber clássico. Reunindo o modelo de Plínio e o
conhecimento direto das terras americanas, podemos dizer que o historiador
Fernández de Oviedo também se converteu no geógrafo moderno. (Confira Quadro
1).

A partir da tradição historiográfica medieval e renascentista, e com a ajuda da


enciclopédia de Plínio e de outras obras clássicas,5 os cronisas das Índias se
converteram também em geógrafos modernos no contato com a natureza e os
povos americanos, diante da necessidade de transmitir aos leitores europeus a
novidade do mundo descoberto.

As Crônicas das Índias diante da realidade do Novo Mundo


Fernández Oviedo, o cronista das Índias, merece um destaque especial pela atitude
geográfica que se reflete em alguns traços que vale a pena listar:

1) A organização geográfica de sua crônica sucessivamente descrevendo a ilha de


Espanhola de San Juan (ou Porto Rico), de Cuba e de Terra Firme;

2) A cuidadosa atenção ao marco geográfico dos acontecimentos. Sua história é


sempre rigorosamente localizada com atenção às circunstâncias topográficas,
hidrográficas e climáticas que servem para interpretar certos fenômenos. Em
muitas ocasiões intercala a narração histórica com a apresentação do território e
dos povos dele habitantes. Em outras, antes da história do território fez uma
exposição ampla e detalhada de sua geografia e de notícias cosmográficas
indispensáveis, mas sempre atento ao teatro da crônica e suas conseqüências
sobre os acontecimentos;

3) A sua preocupação em fixar cuidadosamente a posição das terras, especificando


a latitude e distâncias usando o astrolábio e corrigindo informações, se necessário;
4) A sua capacidade para realizar uma geografia e uma história natural
comparadas tanto a partir da perspectiva de semelhança com o mundo conhecido
como a da diversidade. Em outras palavras, tanto a partir da preocupação em
incorporar as novas terras ao próprio horizonte mental como a que conduz ao
reconhecimento do novo e de suas diferenças a respeito do conhecido.

De fato e simplificando muito, depois de Fernández de Oviedo podemos diferenciar


claramente dois tipos de crônicas históricas, ambas derivadas da tradição
medieval. De um lado, os historiadores que elaboraram suas recopilações na
Espanha, recopilando e sistematizando de forma erudita materiais de segunda mão.
Semelhante a muitas crônicas medievais, há um preâmbulo geográfico que precede
as narrações no qual são apresentadas algumas noções cosmográficas gerais para
situar o Novo Mundo no conjunto da esfera terrestre, discutindo para confirmar ou
rechaçar as idéias procedentes da Antigüidade clássica ou medieval. Um exemplo é
Hispania Victrix, História Geral das Índias (1552) de Francisco López de Gómara.
No outro lado estão os historiadores que tiveram um contato direto com a realidade
americana. Entre eles o essencial é a transmissão do que é diretamente percebido,
a emoção que se nota no descobrimento pessoal e nos esforços para comunicar ao
leitor europeu uma imagem viva e verdadeira da imponente natureza “indiana” e
dos estranhos povos que nela habitam. A descrição geográfica envolve agora toda a
obra não apenas como apresentação geral dos territórios, mas permanece a
vontade de mostrar o marco dos fatos, o teatro da história. Ainda que em alguns,
mais eruditos ou preparados, possa vir acompanhada de debates sobre as idéias
clássicas ou de notícias cosmográficas sobre a latitude e a posição dos lugares
descritos. Entre eles se inscreve Cieza de Leon, autor da Cronica del Peru (1553),
um verdadeiro tratado descritivo da geografia regional, física e humana, de uma
modernidade verdadeiramente assombrosa e de uma influência – como a de Oviedo
– que se deve supor grande diante da sua ampla difusão européia. De maneira
semelhante e quase simultânea, embora de forma independente, o funcionário da
Fazenda Real Agustín de Zárate redigiu sua obra Historia del Descubrimiento y
Conquista de la Provincia del Perú (1555) iniciando a narração com o primeiro livro
dedicado em boa parte à apresentação do meio geográfico. Ou, ainda, o padre Las
Casas, ao combinar o conhecimento do meio americano com a teoria ambientalista
que lhe permitiu defender a nobreza e a dignidade dos indígenas na obra
Apologética (Historia Sumaria Cuanto a las Qualidades ...). O franciscano Frei
Toribio de Benavente Motolinia, autor de Historia de los índios de la Nueva España,
apesar de seu objetivo principal ser o trabalho missionário e o projeto
evangelizador, também incorporou o meio geográfico somado à transmissão de sua
emoção ao leitor diante da visão direta da natureza americana. Montes, rios
gelados, florestas e descrições das comarcas se sucedem, se repetem as exaltações
da beleza e fertilidade do solo e não faltam as comparações com a geografia
européia.

O mesmo acontece na Crónica de la Nueva España do humanista catedrático e


posteriormente reitor da Universidade do México Francisco Cervantes de Salazar;
com a Historia de Chile (1575) do capitão Alonso de Góngora Marmolejo; com a
Crónica del reino de Chile de Pedro Mariño de Lobera, para citar algumas outras
obras.

A teoria ambientalista de Las Casas


A argumentação ambientalista do dominicano Las Casas estava muito influenciada
pela concepção aristotélica transmitida e reelaborada por grandes figuras de sua
ordem, Alberto Magno e Tomás de Aquino: o influxo do céu e das estrelas sobre os
lugares, as propriedades particulares em relação com o círculo do horizonte e a
existência ou a proximidade de montanhas, mares ou outros acidentes geográficos.
A insistência na suavidade do tempo atmosférico dos lugares, sem turbulências ou
calores excessivos, e a alusão à matéria seminal e à geração se relacionam, sem
dúvida, com a tese aristotélica de que os povos expostos às temperaturas extremas
são bárbaros, e a conexão entre os alimentos, os humores e as características
intelectuais, que tinham igualmente uma larga tradição médica e filosófica.

O interessante é ver tudo isso aplicado à elaboração de um determinismo


geográfico que, por um lado, percebe sempre de maneira favorável o ambiente
americano e, por outro, trata de explicar com ele a racionalidade, nobreza e
dignidade dos povos indígenas. Tradicionalmente, as teses ambientalistas tinham
sido empregadas, e seriam empregadas até o século XX, para justificar a
superioridade dos povos situados na zona temperada, isto é, a Europa. É o
eurocentrismo que aparece nitidamente em Bodin, quando afirma que os povos da
região central (das latitudes médias entre 30o e 60o) estão melhor preparados
para governar as repúblicas por serem naturalmente mais prudentes. Frente a eles,
os indígenas americanos, aos quais se refere Las Casas, os das Antilhas e Terra
Firme, todos localizados abaixo dos 30o de latitude, se apresentam com notáveis
virtudes intelectuais e morais: inteligentes, engenhosos, de vivo entendimento, de
coração esforçado, mansos, morigerados, modestos, sóbrios e de boa razão. Tudo
isso influenciado por uma geografia física americana descrita como submetida às
influências favoráveis do céu, temperada, sem turbulências nem frios ou calores
excessivos, e produzindo alimentos sãos e de fácil digestão.

No que diz respeito à percepção favorável do meio natural, o padre Las Casas foi
um continuador da visão otimista transmitida pelos primeiros descobridores, visão
iniciada por Colombo, que apresentou uma imagem paradisíaca das terras por ele
descobertas. Em Las Casas, isso se converteu numa afirmação dos efeitos
favoráveis da natureza americana sobre os habitantes, apoiando a sua tese
político-antropológica em defesa da dignidade dos indígenas. Por seus objetivos e
conclusões sua obra é verdadeiramente excepcional.

Quadro 1

Livro Primeiro Cosmografia e Geografia


Livro Segundo Mundo, os elementos, as estrelas, o
Cosmos, disposição dos climas
astronômicos e das regiões e a influência
sobre os habitantes, meteoros e terremotos.
Livros Terceiro ao Sexto Três partes do mundo (Europa, África e
Ásia), com destaque para a Europa:
orografia, as divisões administrativas, as
cidades, os povos que habitam as diferentes
regiões (latitude, longitude e extensão),
razões geográficas da grandeza de uma
nação.
Livro Sétimo Campo da Moral

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Referências

Benavente (Motolinia), Fray Toribio de. Historia de los Índios de la Nueva España
(1541). Madrid: Alianza Editorial, 1988.

Capel, Horacio. Ambientalismo e Historia. El Padre Las Casas como Geógrafo,


Homenaje al Profesor Luis Miguel Albentosa, Universidad de Barcelona (en
publicación).

Cervantes de Salazar, Francisco. Crónica de la Nueva España, Biblioteca de Autores


Españoles, tomos CCXLIV e CCXLV. Madrid: Atlas, 1971. 2 vol.

Fernández de Oviedo, Gonzalo. De la Natural Historia de las Índias, Madrid :


Editorial Summa, 1942.

Fernández de Oviedo, Gonzalo. Historia General y Natural de las Índias.Madrid:


Stlas, 1959.
Góngora, (Marmolejo), Alonso de. Historia de Chile Desde su Descobrimiento Hasta
el Año de 1575. Madrid: Atlas, 1960.

Góngora, (Marmolejo), Alonso de. Apologética Historia Sumaria Cuanto a las


Cualidades, Disposición, Discripción, Cielo y Suelo de Estas Tierras, y Condiciones
Naturales, Policias, Repúblicas,Maneras de Vivir e Costumbres de las Gentes de
Estas Índias Occidentales y Meridionales, Cuyo Imperio Soberano Pertence a los
Reyes de Castilla, en Obras Escogidas de Fray Bartolomé de las Casas III
(Biblioteca de Autores Españoles, Tomo CV, Estudio Crítico e edición por J. Pérez de
Tudela, Madrid: Atlas, 1958.

Las Casas, Bartolomé de, Historia de las Índias. Mexico. Fondo de Cultura
Económica, 1951.

López de Gómara, Francisco. Hispania Victrix. Primera e Segunda parte de la


Historia General de las Índias, Historiadores Primitivos de ÍndiasI, 1, Biblioteca de
Autores Españoles, Tomo XII. Madrid: Atlas, 1946.

Mariño De Lobera, Pedro. Cronica delReino de Chile, escrita por el Capitan dirigida
al Excelentisimo Sr. D. García Hurtado de Mendoza, marqués de Cañete ...
Biblioteca de Autores Españoles, Tomo CXXXI, Madrid: Atlas, 1960.

Plinio, Historia Natural de Cayo Plinio Segundo. Traducida por el Licenciado


Gerónimo de Herta Medico y familiar del Santo Oficio de la Inquisición y ampliada
por el mismo con Escolios e Anotaciones. Impressor del rey N. S. Año 1624. 2 Vol.

Zarate, Agustín de, Historia del Descubrimiento y Conquista de la Provincia del Perú
y de las Guerras y Cosas en ella Acaecidas Hasta el Vencimiento de Gonzalo Pizarro
y de sus Secuaces, que en Ella se rebelaron Contra su Majestad, Por... Contador de
Mercedes de la Majestad Cesárea (Amberes, 1555), en Historiadores Primitivos de
Índias, II, (Biblioteca de Autores Españoles, tomo XXVI), Madrid: Atlas, 1947.

Imagens: Padre Las Casas e Alexander von Humboldt.

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Notas

1 O artigo original no qual este se baseia foi publicado sob o título Naturaleza y
Cultura: América y el Nacimiento de la Geografia Moderna, na coletânea História da
Ciência: o mapa do conhecimento, organizada por Ana Maria Alfonso-Goldfarb e
Carlos A. Maia. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura/São Paulo: Edusp, 1995. p. 247-
306.

2 Humboldt. Cosmos, 1874, p. 256.

3 Outros exemplos podem ser citados como São Isidoro (Isidoro de Sevilha) que
escreveu De Natura Rerum que podia ser lida como uma introdução às suas duas
grandes obras históricas – Chronicon e Historia Regibus Gothorum, Wandalorum et
Suevorm

4 Trata-se de Plínio o Velho (23-79 d.C.), e a obra em questão é História Natural.

5 Ver também Solino Polyhistor – Collectanea Rerum Mirabilium, muito usada na


época medieval e repetidamente impressa a partir de 1493, e Etimologias de
Isidoro de Sevilha; por exemplo.

Horacio Capel | Universidade de Barcelona | hcapel@ub.edu

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