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A Geografia na Era das Revoluções*

Escrever sobre os saberes geográficos no período entendido como Era (ou Idade) Moderna apresenta
alguns desafios. Comecemos pelo mais elementar. O que chamamos de “moderno” não tem nada a ver
com o momento em que vivemos atualmente, e sim o período da história ocidental compreendido entre
1453, ano da tomada de Constantinopla pelo Império Otomano, e 1789, início da Revolução Francesa.
Essa periodização foi feita por historiadores há bastante tempo, mas até hoje funciona como referência
para a identificação de “rupturas” com épocas anteriores (no caso, a Idade Média) e, por outro lado,
demarcar certas características gerais que se manterão por séculos dando o “tom” dos acontecimentos
históricos, até o momento em que novas rupturas acontecem, como as que marcam o início da Idade
Contemporânea. Assim, “era moderna” ou “modernidade” é um termo que indica uma transformação do
que existia ou era visto como antigo ou tradicional. Se isso é verdade, temos de imediato um problema:
os saberes geográficos que queremos estudar no período em questão não se revelam tão diferentes
assim daqueles que existiam anteriormente. Em outras palavras: as geografias matemáticas e
descritivas que iremos encontrar na Era Moderna apresentam mais continuidades do que rupturas com
relação à tradição clássica.
Vamos conferir? Vejam como dois estudiosos importantes definiram “geografia” na segunda metade do
século XVII – em plena Era Moderna, portanto.
Em 1650, Bernhard Varen ou Bernhardus Varenius (na versão latinizada do nome), dizia que a
geografia é uma “ciência matemática mista” que estuda a forma, as dimensões e os movimentos da
Terra, relacionados aos fenômenos celestes. Essa ideia aparece num livro que ficaria famoso,
Geographia Generalis, que era composto por uma “parte geral” essencialmente matemática e
astronômica, mas também por uma “parte especial”, dedicada a lugares específicos (como o Reino do
Japão, que tinha virado um livro do autor no ano anterior, baseado em crônicas de viajantes árabes e
holandeses). Mesmo possuindo uma parte especial, a geografia de Varenius era, predominantemente,
um saber orientado para as ciências físico-matemáticas e fazia parte da cosmografia (astronomia
+ geografia matemática, lembram?). Revejam a parte de um ppt anterior que fala de Ptolomeu e notem
que é bem parecido.
Nicolas Sanson (ou Sanson de Abbeville), em 1690, não dizia exatamente a mesma coisa. Em parte
sim, pois ele reconhecia a existência de uma “geografia astronômica” muito semelhante à parte geral
da geografia de Varenius, além de uma “geografia natural’ (isto é, física), com todas aquelas
implicações climáticas associadas às zonas da esfera terrestre. Mas Sanson também reconhecia uma
“geografia histórica”, chamada por outros de “política” ou “civil”. Essa segunda modalidade, seja qual
fosse seu nome, considerava a Terra “por Estados Soberanos, pela dimensão das Religiões, pela
extensão das principais Línguas, pelas diferentes Espécies e Raças de Homens”. Era um saber
descritivo resultante da observação e inquérito. Vejam que há certa semelhança com a geografia
especial de Varenius e com a proposta de Estrabão, muito anterior.
Segundo a fonte que nos serviu de base até agora (Capel & Urteaga), as transformações que darão
origem à ciência moderna a partir do século XVII – a chamada Revolução Científica – atuaram de modo
desigual sobre os saberes geográficos existentes. A geografia matemática se favoreceu com o episódio
e passou a ser muito valorizada. Para se ter uma ideia, Isaac Newton a considerava importante para o
entendimento da física, razão pela qual editou a obra de Varenius diversas vezes em Cambridge
(Inglaterra). Já a geografia descritiva passou a receber menos atenção, pois supostamente não se
pautava na “razão” e sim na “memória”. Capel e Urteaga extraem conclusões ousadas dessa trajetória

*
Texto para a aula de 19/04. Baseado em Livingstone, D. (1992). The Geographical Tradition: episodes in the
history of a contested entrer [cap. 3]. Oxford: Blackwell.
desigual, trazendo a questão até o século XIX. Em meados desse século teria ocorrido uma profunda
crise na geografia, que, segundo os autores, quase provocou seu desaparecimento (ver caps. 4 e 5 de
Las Nuevas Geografías) e explica sua institucionalização acadêmica tardia. Mais à frente teremos
oportunidade de discutir essa tese. Por ora fiquemos apenas com a Idade Moderna.
Gostaria de apresentar a vocês uma outra explicação da trajetória dos saberes geográficos no período
que agora nos interessa. É muito importante, em qualquer estudo histórico, conhecer a versões que
“competem” entre si para explicar um acontecimento, pois isso torna nossa visão muito mais rica. Em
outras palavras, é preciso conhecer a historiografia, isto é, os diferentes modos de interpretar e
escrever a história sobre um fato ou período. Façamos isso através da introdução de uma nova fonte
para o estudo da história da geografia. Sobre esse tema, há uma historiografia britânica muito
importante, representada por autores como David Livingstone, Charles Withers e outros. Por ora,
fiquemos apenas com o primeiro nome, que escreveu um livraço em 1992, chamado The Geographical
Tradition. Há, aqui, um panorama mais variado da evolução do conhecimento geográfico no mesmo
período estudado por Capel e Urteaga, em vez do esquema dualista (geografia matemática x geografia
descritiva) proposto por esses autores. Para começar, Livingstone destaca que as grandes
transformações ocorridas ns séculos XVI e XVII não se resumiram a aspectos relacionados à produção
e organização do conhecimento, que deram origem ao que denominamos “ciência moderna”. Nisso ele
está de acordo com qualquer manual de história que caracterize a Idade Moderna. As “revoluções”
nesse período, portanto, seriam três:
▪ religiosa (Reforma Protestante e guerras religiosas subsequentes);
▪ científica (surgimento de modelo cosmológico copernicano e revolução mecanicista);
▪ política (Revoluções “Puritana”, 1640-48; e “Gloriosa”, 1688-89, ambas na Inglaterra).*
Todas essas revoluções provocaram impactos profundos no conhecimento geográfico da época, que
tentaremos apontar e discutir com base no cap. 3 do livro citado. Antes de começar, duas breves
considerações são necessárias: 1) “era das revoluções”, para Livingstone, remete ao período e aos
acontecimentos listados acima, que podem não ser os mesmos levados em consideração por outros
autores;** 2) o amplo painel retratado por Livingstone, que amplia os horizontes abertos por Capel e
Urteaga, tem como referência básica o conhecimento geográfico produzido na Inglaterra, incluido, além
disso, apenas elementos da Alemanha (no caso da Reforma Protestante) e dos Países Baixos (no caso
da impressão de Atlas e livros ilustrados). O que aprendemos desse segundo ponto é que uma história
da geografia escrita por um determinado autor sempre apresentará a limitação de centrar sua
argumentação, exemplos e fontes de consulta em um determinado lugar (país, área cultural). Por isso
mesmo devemos conhecer mais de uma versão. Isso não invalida a qualidade do trabalho de
Livingstone (nem o de Capel e Urteaga). Cabe a nós, que estamos estudando os temas sobre os quais
eles escrevem, flexibilizar as explicações que elas oferecem, confrontando sempre com outra leitura.
Munidos dessas precauções sigamos o roteiro de Livingstone. Ele propõe quatro caminhos principais
para a difusão do conhecimento geográfico produzido na “Europa” – como apontamos, Inglaterra,
Alemanha e Países Baixos – nos séculos XVI e XVII: 1) veiculação através da ciência, da magia e
da astrologia; 2) visões de mundo associadas à reforma protestante; 3) decrições de povos e
terras distantes; e 4) representações visuais do mundo através da cartografia e da iconografia
(repertório de imagens dispostas numa obra). Seguiremos esse assunto com o ppt “Livingstone:
geografia na era das revoluções”. Até 5ª-feira. Fiquem bem!
S.

*
Deveríamos incluir aí a Revolução Francesa (1789-99), ignorada pelo foco anglo-germânico de Livingstone.
Em um livro muito conhecido, o historiador inglês Eric Hobsbawm chamou de Era das Revoluções os acontecimentos
**

ocorridos entre 1789 e 1848, referindo-se basicamente à Revolução Francesa e à Revolução Industrial na Inglaterra.

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