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HISTÓRIA E GEOGRAFIA: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO

Fernando Perlatto*

Resumo: O artigo procura evidenciar a relação existente entre História e Geografia no interior do
movimento dos Annales e como que a Geografia vem ocupando um papel secundário nos estudos
contemporâneos. Discute também a questão do determinismo (Ratzel) e possibilismo (Vidal de la Blache) e
suas influências nas análises históricas. Por fim, evidencia-se a importância dos historiadores repensarem a
Geografia, procurando articulá-la com as novas abordagens historiográficas.
Palavras-chave: História; Geografia; Interdisciplinaridade.

Abstract: This article endeavors to describe the relation between History and Geography in the Annales`s
movement and as Geography has been occupying less space in the contemporany studies. It also discusses the
question of the environmental determinism (Ratzel) and possibilism (Vidal de la Blache) and their influence
in the historical analyses. Finally, this text intends to point the importance out of historians rethinking the
Geography, connecting it with the new historical aproach.
Keywords: History; Geography; Interdisciplinarty.

INTRODUÇÃO

Em artigo famoso escrito em 1958, o grande historiador Fernand Braudel já


anunciava uma crise geral das ciências humanas. Para ele, os principais problemas adviriam
do fato de todas elas encontrarem-se esmagadas por seu próprio progresso, estando
perdidas a respeito do lugar que deveriam ocupar. Além disso, Braudel destacava que a
solução para esta crise estaria sobretudo na aproximação entre elas e, portanto, em uma
maior interdisciplinaridade.1 O movimento dos Annales, surgido em 1929 a partir da
publicação da revista Annales d´histoire économique et sociale e que teve Braudel como
um dos seus principais representantes foi exemplar no sentido de buscar a ampliação do
diálogo entre a história e as outras ciências humanas.

*
Aluno do sexto período do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora e bolsista PROBIC-
FAPEMIG.
1
BRAUDEL, Fernand. História e Ciências Sociais. 2ª edição. Lisboa: Presença, 1976.
Os Annales tiveram como principais características a busca de uma história total, a
substituição da tradicional narrativa dos acontecimentos políticos por uma história-
problema preocupada em interrogar o passado a partir do presente, a ampliação das fontes,
a percepção da pluralidade dos níveis de temporalidade e a interdisciplinaridade. Esse
movimento pode ser divido em três fases. A primeira delas (1920-45), liderada por Marc
Bloch e Lucien Febvre caracterizou-se pela maior preocupação com a história econômica e
social, procurando se distanciar ao máximo da história política. A segunda fase (1946-68),
marcada pela figura de Braudel distinguiu-se pela ampliação de conceitos (estrutura e
conjuntura) e novos métodos, como a história serial. Já a terceira, liderada por historiadores
como Jacques Le Goff e Peter Burke, é marcada pela fragmentação e uma maior
aproximação com a história cultural.2
Não pretendo neste artigo fazer uma análise do movimento dos Annales, mas
procurarei observar como ele influiu de maneira determinante para que a história
procurasse a ampliação do diálogo com outras ciências humanas, sobretudo com a
geografia. Espero demonstrar como que esta ciência – de grande importância para a
primeira e a segunda geração dos Annales – perde espaço no decorrer dos anos, ocupando
um lugar discreto na terceira geração. Além disso, pretendo evidenciar a discussão entre o
“determinismo” de Ratzel e o possibilismo de Vidal de La Blache, bem como a visão de
Lucien Febvre e Fernand Braudel frente a essas questões. Por fim, analisarei a pertinência
da retomada do diálogo com a geografia, procurando articulá-lo com as novas abordagens
historiográficas.

1. A PRIMEIRA GERAÇÃO: SIMBIOSE ENTRE HISTÓRIA E GEOGRAFIA

Procurando responder às críticas que o sociólogo François Simiand realizou à


geografia, Lucien Febvre, em sua magistral obra A Terra e a Evolução Humana, estabelece
as bases de uma colaboração orgânica entre geógrafos e historiadores.3 Ironizando os
geógrafos, Simiand ataca as grandes monografias regionais da escola vidaliana e denuncia a

2
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989). São Paulo: UNESP, 1990 e CARDOSO, Ciro
Flamarion. “Uma nova história?”. Em: Ensaios racionalistas. Rio de Janeiro: Campus, 1988, pp. 93-117.
3
FEBVRE, Lucien. A terra e a evolução humana: introdução geográfica à história. Lisboa: Cosmos, 1991.
incapacidade dessa disciplina em delimitar o seu objeto.4 Febvre responde a Simiand
demonstrando a distância que separa os objetos e os métodos da sociologia e da geografia e
aponta a pertinência de se realizar o recorte regional dos objetos de estudo, valorizando a
herança da geografia de Vidal de la Blache, tão criticada pelo sociólogo.5
Lucien Febvre chega a proclamar que foi a geografia vidaliana que gerou a história
dos Annales. Embora possamos perceber o tom exagerado de tal afirmativa é válido
observar que três preocupações centrais dos Annales serão, de certa forma, retiradas da
geografia. Em primeiro lugar, a busca de uma história-problema, preocupada com as
questões do presente, vão de encontro às inquietações de geógrafos – como Vidal de la
Blache – interessados em esclarecer problemas da contemporaneidade.6 Em segundo lugar,
podemos perceber o sucesso das pesquisas monográficas regionais, na medida em que o
estudo demográfico, econômico e das relações – eixos básicos dos estudos dos membros
dos Annales – ajustarem-se melhor a um espaço restrito. Por fim, um elemento que estará
mais claro na segunda geração dos Annales, mas que aproximará a geografia da história
será a preocupação de ambas ciências com as permanências e com a longa duração.
Além das influências intelectuais – como a exercida, sobretudo por Vidal de la
Blache e Ratzel, embora este em menor peso –, alguns geógrafos terão atuação decisiva
para a construção e consolidação do projeto dos Annales. Albert Damangeon, por exemplo,
atuará junto à editora Armand Colin para que esta acolha a idéia da revista Annales,
dirigindo, paralelamente a Revista Annales de Géographie. Ele, que escreverá em 1931 um
trabalho sobre o Reno com Lucien Febvre, entrará para o comitê de direção da revista dos
Annales. Jules Sion, André Allix e Henri Bauling, geógrafos de grande importância,
também terão participação importante na revista, colaborando com artigos e aguçando a
preocupação cartográfica dos historiadores.7
Além da obra A Terra e a Evolução Humana, Lucien Febvre escreveu um belo
estudo relacionando história e geografia chamado O Reno: História, mitos e realidades.
Nesta obra, o autor procura demonstrar que o Reno não era apenas um dado natural, mas

4
SIMIAND, François. Géographie humanine et sociologie. “L’Année Sociologique”, t. XI, p. 729, 1906-
1909. Citado em: DOSSE, François. História e Ciências Sociais. Bauru, SP: EDUSC, 2004, pp. 116-119.
5
FEBVRE, Lucien. Op. cit, pp. 284-393.
6
Vidal de la Blache inicia sua carreira como historiador, porém decide pela mudança para a geografia, pois
acreditava que esta ciência seria mais competente em responder às inquietações e problemas contemporâneos.
7
DOSSE, François. Op. Cit., pp. 125-126.
um produto da ação humana ao longo da história.8 Embora seu compromisso com a
geografia fosse menor do que o de Febvre, Marc Bloch, outro grande representante da
primeira geração dos Annales, em sua obra Caractères originaux de l’histoire rurale
française de 1931, procura integrar a história da paisagem rural francesa, valendo-se dos
mapas cartográficos das propriedades. Para François Dosse, “a simbiose entre história e
geografia encontra aí sua realização magistral”.9

2. A SEGUNDA GERAÇÃO: A GEOGRAFIA DESACELERANDO A HISTÓRIA

Representante maior da segunda geração dos Annales, o historiador Fernand


Braudel escolhe a Geografia como parceira primordial para seus estudos, sobretudo na sua
monumental obra Mediterrâneo. Segundo ele, a obra mais fecunda de todas para a história
foi a do geógrafo Vidal de la Blache, por este despertar a atenção dos historiadores para
uma série de assuntos até então negligenciados.10 O espaço, para Braudel, explica diversos
aspectos das civilizações e a geografia torna-se instrumento fundamental para a
compreensão de uma sociedade. A geo-história de Braudel – mais espacial do que temporal
– diminui a importância do homem, colocando o Mediterrâneo o principal sujeito e ator de
sua história.11
Em sua obra História e Ciências Sociais, Fernand Braudel estabelece a clássica
tripartição dos níveis de temporalidade. O primeiro nível seria o de uma história dos
acontecimentos, episódica, marcada pelo tempo breve ou curto. A história política, por suas
características peculiares, seria exemplar desse tipo de história. O segundo nível seria o
conjuntural – exemplificado pela história econômica – estudado nos ciclos e interciclos
econômicos. Por fim, apareceria uma história estrutural, caracterizada pela longa duração,

8
FEBVRE, Lucien. O Reno: história, mitos e realidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
9
Sobre Caractères originaux de l’histoire rurale française ver: BURKE, Peter. Op. cit, pp. 35-36 e DOSSE,
François. Op. Cit., p. 125.
10
BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 31.
11
Quando teve a idéia de escrever como tese uma história diplomática, Braudel procurou Lucien Febvre para
orientá-lo, visto que este havia escrito uma tese sobre Felipe II. Febvre sugere, então, para que Braudel
substitua o tema Felipe II e o Mediterrâneo por o Mediterrâneo e Felipe II, dando maior ênfase ao aspecto
geográfico. A partir dessa virada, Braudel escreve sua grande obra Mediterrâneo..
determinando séculos inteiros. As mentalidades e a geografia seriam exemplares deste
terceiro nível, marcado pelas permanências.12
Fernand Braudel estabelece semelhante separação na obra Mediterrâneo, dividida
em três partes. A geo-história – da relação do homem com seu meio – é o objeto da
primeira parte, que possui cerca de trezentas páginas, nas quais são descritos aspectos
geográficos, tais como montanhas, planícies, clima, rotas terrestres e marítimas. Na
segunda parte do livro – “Destinos coletivos e movimentos de conjunto” – estabelece-se a
relação entre conjuntura e estrutura, sendo demonstrada uma história econômica e social. Já
a terceira parte é dedicada à história dos acontecimentos, ou seja, aos aspectos políticos e
militares. Algumas batalhas são descritas por Braudel e os principais personagens do
período desfilam nessas páginas do Mediterrâneo, como o Duque de Alba e Felipe II.13
Na obra Mediterrâneo, Fernand Braudel procura demonstrar que as características
geográficas são parte da história e que a história não pode ser compreendida sem elas. Ao
estabelecer a divisão do tempo histórico em tempo geográfico, tempo social e econômico e
tempo individual, ele inova ao combinar o estudo da longa duração com uma complexa
interação entre o meio, a economia, a sociedade, a cultura, a política e os acontecimentos.
Na busca por uma história total, Braudel procurará integrar todos estes elementos,
chamando a atenção dos historiadores para a possibilidade de mudança de todas as
estruturas, mesmo que elas ocorram de maneira lenta e gradual.14
A geografia permite a Braudel valorizar a longa duração, desacelerando a história e
permitindo o estudo sistemático dos fenômenos longos e das repetições. O autor aponta
para o fato de que climas, vegetações, populações animais, culturas, constituem um
equilíbrio quase permanente e lentamente construído, do qual o homem é praticamente
prisioneiro durante séculos. Para Braudel, a função do meio geográfico “é manter unidos,
reagrupar, os elementos esparsos do organismo geral segundo uma perspectiva vitalista
animada por múltiplas metáforas organicistas”. Em sua obra, ele faz questão de ressaltar
que os geógrafos deveriam prestar mais atenção no tempo e os historiadores se

12
BRAUDEL, Fernand. “A longa duração”. Em: História e Ciências Sociais. 2ª edição. Lisboa: Presença,
1976, pp. 7-70.
13
BRAUDEL, Fernand. Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Felipe II. Lisboa: Martins
Fontes, 1983.
14
BURKE, Peter. Op. Cit, pp. 49-55.
preocuparem mais com o espaço e com o que ele sustenta, gera, facilita e contraria, ou seja,
atentar para as permanências.15
A abordagem de Fernand Braudel alterou a forma pela qual as regiões eram
definidas, ao introduzir o conceito de história integrada pelo mar. Sua obra influenciou
muitos acadêmicos, sobretudo franceses, que aplicaram seus métodos e abordagens,
transformando os mares e oceanos em objetos relevantes de estudo. Pierre e Hugette
Chaunu realizaram um amplo estudo sobre o Atlântico – tendo por base os arquivos de
Sevilha – publicado em 1955-60.16 Outros trabalhos de grande importância, que tiveram o
Atlântico português como objeto, foram o de Frédéric Mauro, publicado em 196017 e o de
Vitorino Magalhães Godinho, publicado entre 1962 e 1968.18 “Embora nenhum desses
trabalhos tivesse a profundidade ou a ambição do Mediterrâneo de Braudel, eles devem a
ele, (...), os métodos e o enfoque”.19
A segunda geração dos Annales será marcada pela ampla expansão da produção de
monografias regionais. As teses de Geografia sobre as grandes regiões – com as de R.
Blanchard e A. Damangeon – serviram como modelos de uma história regional, analisada
em todos os seus aspectos. A “questão regional” já aparecia em estudos geográficos
clássicos, como os de Humboldt e Ritter, porém este tema só ganhará maior projeção com a
“escola francesa” liderada por Vidal de La Blache, que será considerado o grande teórico
da geografia regional.20 Antes, a história regional era uma divisão da história nacional
política, mas a partir de então ela ganha novos enfoques e abordagens, aumentando
quantitativamente e qualitativamente essa produção.21
Os estudos regionais, até as décadas de 60 e 70, procuravam combinar as análises
geográficas, baseadas nas estruturas braudelianas, a abordagem quantitativa de Ernest
Labrousse e a demografia histórica. Esses estudos são muito semelhantes entre si, quase
sempre divididos em duas partes – estrutura e conjuntura – baseando-se em fontes que
permitem dados bem homogêneos, que possam ser colocados em séries de longa duração,
15
DOSSE, François. Op. cit, pp. 130-131.
16
CHAUNU, Pierre e CHAUNU, Hugette. Séville et l’Atlantique, 1504-1650. Paris, 1955-60, 9 vols.
17
MAURO, Frédéric. Portugal, Brasil e o Atlântico, 1570-1670. Lisboa: Estampa, 1989 e 1997, 2 vols.
18
GODINHO, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. Lisboa, 1963 e 1965, 2 vols.
19
THORTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004, p.42.
20
MOREIRA, Ruy. O que é Geografia. 14ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 64.
21
ARIÈS, Phillippe. “A história das mentalidades”. Em: LE GOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
como por exemplo, tendência de preços e taxas de mortalidade. A maior parte dessas
pesquisas foram orientadas por Braudel e Labrousse e tiveram como foco a época
moderna.22
A década de 60 será, por excelência, aquela que François Dosse chamou de “idade
de ouro” dos estudos regionais, na medida em que a estrutura de produção dessas
monografias dava a impressão de um domínio exaustivo das fontes disponíveis. Em 1953,
George Duby defende sua tese sobre o Mâconnais durante os séculos XI e XII. Pierre Vilar
apresenta seu trabalho sobre a Catalunha na Espanha moderna em 1962. Em 1966 é a vez
de Le Roy Ladurie publicar seu estudo sobre os camponeses de Languedoc. Equipes serão
formadas nas universidades do interior na busca da ampliação da capacidade de
interpretação dos dados quantitativos disponíveis.23 A idéia de história síntese e total
objetivada pelos fundadores dos Annales apresenta-se viável, na possibilidade da
combinação dos elementos demográficos, econômicos e sociais, oferecida pela história
regional.

3. TERCEIRA GERAÇÃO: O AFASTAMENTO DA GEOGRAFIA E A


APROXIMAÇÃO DA ANTROPOLOGIA

A terceira geração dos Annales será marcada pela fragmentação e pela ampliação de
objetos e abordagens historiográficas. As análises econômicas e sociais foram perdendo
espaço para as mentalidades, através de um diálogo cada vez maior com a antropologia,
sobretudo a cultural ou “simbólica”. Essa aproximação ocorreu devido à reação contra
aquele tipo de história praticada por Braudel e seus seguidores, bem como pelo afastamento
de qualquer tentativa de explicação holística e total da sociedade. A geografia não será
abandonada por completo nos primeiros anos pós-Braudel, atuando como suporte para
diversos estudos das mentalidades. Porém, com o passar dos anos, essa disciplina vai
perdendo cada vez mais espaço, praticamente desaparecendo de estudos mais recentes.
Ciro Cardoso chama a atenção para o fato de que a terceira geração dos Annales
tenha abandonado as totalidades sociais significativas e a análise dos processos sociais

22
BURKE, Peter. Op. Cit., pp. 71-74.
23
DOSSE, François. Op. Cit., pp. 136 e 137.
integrados em busca da valorização do periférico e em detrimento do que é central. Para
ele, a realidade social e as condições reais de existência foram deixadas de lado,
valorizando-se o discurso verbal e não verbal e divorciando a evolução ideológica em
relação à econômica e social.24 O descaso pela história síntese e total, tão desejada pelos
fundadores dos Annales, levou ao relativo abandono da geografia que, até então, era uma
aliada de peso na busca por uma explicação holística da sociedade.
Embora a história das mentalidades já estivesse presente na primeira geração dos
Annales, 25 será a partir dos anos 70 que ela procurará afirmar-se como campo ou disciplina
específica do conhecimento histórico.26 O texto mais famoso dos primeiros tempos das
mentalidades na era pós-braudeliana foi o artigo de Le Goff, chamado “As mentalidades –
uma história ambígua”, publicada na famosa trilogia Faire de l’histoire, em 1974, no
apogeu da nova história, através do qual o autor aponta os campos privilegiados de análise
da história das mentalidades e seus objetos de estudo.27
É interessante observar que nessa coleção, a geografia praticamente desaparece,
estando presente somente no texto sobre o clima de Le Roy Ladurie no terceiro volume,
que trata sobre novos objetos.28 Este historiador, sucessor de Fernand Braudel no Collège
de France em 1973, é um dos principais representantes da terceira geração dos Annales. Em
sua tese de doutoramento sobre os camponeses de Languedoc, Ladurie retomará o uso da
geografia como operadora da longa duração, colocando o ciclo agrário multissecular como
personagem central de sua obra.29 Em seu estudo sobre o clima desde o ano 1000, Ladurie
abre a possibilidade de escrever uma história sem homens, ou seja, uma história geográfica
dedicada às condições naturais.30
Em suas obras de caráter mais geográfico e em sua aula inaugural no Collège de
France, intitulada Histoire imobile (História Imóvel), Ladurie vale-se da geo-história para a

24
CARDOSO, Ciro. Op. Cit., pp. 95-102.
25
A obra de Marc Bloch Os Reis Taumaturgos é exemplar nesse sentido. BLOCH, Marc. Os reis
taumaturgos. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
26
VAINFAS, Ronaldo. “História das mentalidades e história cultural”. In: CARDOSO, Ciro e VAINFAS,
Ronaldo (orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p.
127.
27
LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (orgs.). História nova: novos problemas, novas abordagens, novos
objetos. 3 vols. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
28
LADURIE, Emmanuel Le Roy. “O clima: a história da chuva e do bom tempo”. In: LE GOFF, Jacques e
NORA, Pierre. Op. Cit.
29
LADURIE, Emmanuel Le Roy. Camponeses de Languedoc. Lisboa: Estampa, 1997.
30
LADURIE, Emmanuel Le Roy. Histoire du climat depuis l’an 1000. Paris: Flammarion, 1967.
proposição de uma história estática, que imobiliza as flutuações das temporalidades. A
França rural de Ladurie, de 1300 a 1720, evidencia a busca do autor por uma história
imóvel, que se apresenta em ciclos de longuíssima duração. Porém, a ênfase nas
permanências geográficas acaba por levar o autor a desconsiderar as descontinuidades
sociais reais, construindo uma história, na qual a mudança está ausente ou a evolução
ocorre de maneira tão lenta, sem a especificação de cortes qualificativos precisos. Na ânsia
de se buscar uma aproximação entre história e geografia, Ladurie acaba por confundi-las.
Com exceção de alguns trabalhos, a geografia vai perdendo espaço nas produções
dos acadêmicos franceses com o passar dos anos. Como a França – ao lado da Inglaterra –
atua como uma espécie de espelho para as produções historiográficas de todo o mundo, por
todas as partes a reflexão sobre elementos tais como o espaço e o clima vão gradativamente
cedendo lugar para a análise de temas relacionados à história das mentalidades. A chamada
“nova história cultural” – que surge no final dos anos 70 em decorrência das críticas sobre
as mentalidades – aumenta a marginalização da geografia, com sua aproximação cada vez
maior de outras ciências, com destaque para a antropologia.
A obra de Bernard Lepetit, um dos expoentes da micro-história, será uma das raras
exceções nesse sentido, na medida em que retoma a reflexão do espaço, sobretudo o
urbano, como horizonte do historiador em meio ao abandono da geografia. Ele traça os
contornos de uma abordagem conjunta de historiadores e geógrafos em torno da questão
das escalas de observação e análise.31 Lepetit aponta para a necessidade de se pensar na
relação intrínseca e na articulação obrigatória entre espaço e tempo, ao invés de justapor
um ao outro. As modificações de estruturas espaciais, para o autor, implicam,
necessariamente um cruzamento espaço-tempo.32 Para François Dosse, a escrita histórica,
tal qual formulada por Lepetit, torna-se “um meio essencial para fazer surgir um novo
regime de historicidade voltado decididamente para modelos pragmáticos e
hermenêuticos”.33

31
LEPETIT, Bernard. “Sobre a escala na história”. In: REVEL, Jacques. Jogos de escala: a experiência da
micro-análise. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, pp. 77-102.
32
BOURDELAIS, P. e LEPETIT, B. “Histoire et temps”. Em: Espaces, Jeux e Enjeux. Paris. Fayard-
Foundation Diderot, 1986. Extraído de: SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia A. de e SILVEIRA, Maria
Laura (orgs.). Território: Globalização e Fragmentação. São Paulo: Editora Huctec, 1994, pp. 21-22.
33
DOSSE, François. Op. Cit., p.148.
4. DETERMINISMO GEOGRÁFICO OU POSSIBILISMO?

Nos anos 50 e 60, muitos historiadores foram atraídos por modelos gerais e
deterministas de explicação histórica, como o marxismo, o estruturalismo, o
malthusianismo e outras análises que apontavam elementos, tais como o meio e a raça,
como determinantes no processo de formação histórica de uma sociedade. Nos anos 70
esses modelos passaram a ser criticados e em reação surgiram várias outras vertentes
explicativas da história. O determinismo – seja ele de que tipo for – deixou de ser central
para a explicação histórica e passou a se observar qual o grau de liberdade do homem frente
às imposições do meio, aos sistemas normativos e opressivos.
Giovani Levi aponta para o fato de que toda a ação social deva ser vista como
resultado de “uma constante negociação, manipulação, escolhas e decisões dos indivíduos”.
Para o autor, o grande problema é a definição das margens de liberdade de uma pessoa
frente às diversas instâncias que o cercam.34 Embora a questão do determinismo tenha sido
relegada a segundo plano pelos estudiosos, ela pautou durante anos as discussões
historiográficas e, até hoje, paira como uma sombra sobre as análises. As barreiras ou
vantagens que o meio pode oferecer ao desenvolvimento ou ao atraso de uma sociedade
foram objetos de debate e, embora tenham saído de foco, ainda são pertinentes para o
estudo historiográfico.
As abordagens geográficas de Ratzel e Vidal de La Blache influíram de maneira
determinante para os historiadores refletirem sobre a influência do meio na formação das
sociedades, embora muitas vezes eles tenham sido interpretados de maneira simplista e
equivocada. Friedrich Ratzel – que publicou suas obras no final do século XIX – foi um dos
primeiros formuladores de um estudo geográfico dedicado às discussões de problemas
humanos, sendo fundamental no processo de sistematização da Geografia moderna. O
principal livro de Ratzel, Antropogeografia – fundamentos da aplicação da Geografia à
História funda a Geografia Humana e tem como base um projeto teórico interdisciplinar,
preocupado em entender a difusão dos povos na superfície terrestre e a influência que as
condições naturais exercem sobre a humanidade.

34
LEVI, Giovani. “Sobre a micro-história”. In: BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São
Paulo: Unesp, 1992, p. 135.
Para Ratzel, o tema mais fundamental da geografia seria o da questão da influência
que as condições naturais impõem à história. Embora tenha sido identificado com o
determinismo geográfico, expressão cunhada por Lucien Febvre, Ratzel foi um crítico do
determinismo simplista e sua visão acerca do condicionamento dos elementos naturais
sobre o homem e a sociedade é bem mais rica e mediatizada.35 Os discípulos de Ratzel,
como Ellem Sample e Elsworth Huntignton, radicalizaram suas colocações, constituindo o
que se denomina “escola determinista de Geografia” ou doutrina do “determinismo
geográfico”. Na obra de Ratzel, contudo, não existe um determinismo estreito, mas
influências do meio que se colocam de forma mediatizada.
Embora a obra de Ratzel tenha chamado a atenção para muitos aspectos, será a
escola de geografia francesa, sob a liderança de Paul Vidal de La Blache, que exercerá
maior influência sobre os historiadores. Ele formou uma plêiade de discípulos diretos,
articulando, em redor de si e da revista por ele criada, os Annales de Géographie, quase
todas as cátedras e institutos de geografia da França, catalisando uma vasta rede de
pesquisas, orientadas por suas formulações. Em sua obra, La Blache dialoga diretamente
com Ratzel, criticando suas formulações de caráter naturalista, que acabava por minimizar
o elemento humano.36 Buscou valorizar, portanto, o componente criativo (a liberdade)
contido na ação humana, que não seria apenas uma resposta passiva às imposições do meio.
O homem seria um ser ativo, que sofre influência do meio, mas que atua sobre ele.37
Em sua obra A Terra e a Evolução Humana, Lucien Febvre apresenta as idéias de
Vidal de La Blache, confrontando-as com as de Ratzel. Além disso, desenvolve e defende
as noções lablachianas contra as críticas levantadas por E. Durkheim contra a geografia
humana. Nessa obra Febvre cunhará os termos determinismo – identificando-o com Ratzel
– e possibilismo, relacionando-o com La Blache. Febvre opta pela noção vidaliana de
possibilismo, apontando para o fato da natureza não exercer sobre os homens uma ação

35
MORAES, Antônio Carlos Robert. Ratzel. São Paulo: Ática, 1990. Em: FERNANDES, Florestan. Coleção
Grandes Cientistas Sociais, pp. 9-10.
36
BLACHE, Vidal de la. Príncipes de géographie humaine. A. Colin, 1922, entre outros, além de sua obra
Geografia Universal.
37
MORAES, Antonio Carlos Robert. Geografia: pequena história crítica. 18ª ed. São Paulo: Hucitec, 2002,
pp.61-83.
puramente mecânica e marcada pela fatalidade, mas, pelo contrário, ser ela desde o início
humanizada e profundamente modificada pelo homem.38
Ao falar sobre os modelos deterministas de explicação histórica, Peter Burke acaba
por associar Fernand Braudel ao determinismo geográfico.39 Porém, assim como Ratzel, o
grande historiador francês foi muito mal interpretado nesse sentido. Embora apontasse para
o fato dos homens tornarem-se prisioneiros – durante uma longuíssima duração – de climas,
vegetações, populações animais, culturas, das quais não podem se afastar sem arriscar
questionar tudo, Braudel vale-se do possibilismo vidaliano para reintroduzir a mudança no
aparentemente imutável.40 Atribuindo um status privilegiado à geografia, Braudel destaca
que as restrições naturais condicionam inicialmente diversas civilizações, embora valha
ressaltar que sob o efeito da necessidade os homens consigam superar barreiras até então
imutáveis.41

CONCLUSÃO

A geografia não deve ser ignorada nos estudo das relações sociais dos homens. As
condições climáticas, a vegetação, as montanhas, entre outros elementos naturais, devem
ser levados em conta na análise historiográfica. Embora eles não atuem de forma a
determinar a história de uma sociedade, eles estão presentes no cotidiano das pessoas,
fazendo-as refletirem e tomar decisões baseadas em experiências prévias. O meio
geográfico pode atuar ora como uma barreira, ora como uma referência para a vida das
pessoas, permitindo-lhes a formulação de soluções no nível micro que têm profundas
alterações do ponto de vista macro-social.
Analisar as margens de liberdade dos indivíduos frente ao meio, à luz das novas
abordagens torna-se, portanto, um exercício fundamental para o historiador. Pensar sobre

38
FEBVRE, Lucien. Op. Cit.
39
BURKE, Peter. “Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro”. In; BURKE, Peter. Op. Cit., p. 31.
40
Na obra citada História e Ciências Sociais, Braudel escreve: “Existe também (...) mais lenta ainda que a
história das civilizações, quase imóvel, uma história dos homens nas suas relações íntimas com a terra que os
suporta e alimenta; é um diálogo que não deixa de se repetir, que se repete para durar, susceptível de mudar
como de fato muda – na superfície, mas que se mantém tenaz, como se se encontrasse fora do alcance das
mazelas do tempo”.
41
DOSSE, François. Op. Cit. pp. 130-133.
essa questão tendo como base teórica o conceito de experiência, formulado por E. P.
Thompson, por exemplo, pode levar à produção de interessantes trabalhos historiográficos.
Para este autor, a experiência é uma categoria que “compreende a resposta mental e
emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-
relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento”.42 A partir da
experiência dos atores sociais frente às imposições do meio geográfico, eles são capazes de
refletir e tomar decisões, que serão fundamentais no curso de suas histórias.
O diálogo entre História e Geografia é muito profícuo e não pode ser abandonado,
com o risco de se perderem possibilidades no âmbito da pesquisa. Embora a geografia
tenha tido papel de destaque nas obras dos principais historiadores das duas primeiras
gerações dos Annales, suas reflexões eram de outra instância e, portanto, procuravam
responder a outras indagações. Porém, a geografia deve ser retomada à luz das novas
abordagens historiográficas. A aproximação com a antropologia não implica em um
abandono da reflexão sobre o espaço, mas, pelo contrário, estimula a pensar aspectos
culturais relacionando-os com ponderações acerca do meio. As pessoas vivem em um
espaço, interagindo constantemente entre elas e entre o meio e essas relações devem ser
objetos de estudo dos historiadores.
A aproximação entre história e geografia deve ser feita com muito cuidado, assim
como com outras disciplinas. Não deve, de forma alguma, tratar-se de uma união ou da
justaposição de uma sobre a outra. É condição sine qua non que ocorra um diálogo, que
será de grande importância para os cientistas sociais das duas áreas. Porém, deve-se
ressaltar que cada ciência possui sua individualidade e seus campos privilegiados de
observação, que devem ser preservados. Além disso, nesse diálogo os historiadores devem
estar atentos, visto que a geografia, preocupada na relação dos homens com o espaço, acaba
por privilegiar a longa duração e a permanência, enquanto que os historiadores devem estar
atentos principalmente para as mudanças e transformações sociais.
Novas pesquisas, buscando a interdisciplinaridade, devem procurar refletir sobre a
relação homem-meio-cultura, a formação dos territórios, a difusão dos homens na Terra
(migrações, colonizações, etc.), a distribuição dos povos, o isolamento e suas

42
THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1981, p. 15.
conseqüências. Contudo, esses novos estudos devem procurar a interação com as novas
abordagens, procurando “humanizar” as relações entre meio e sociedade. Através de
estudos regionais monográficos e da utilização da redução da escala de observação, tornar-
se-á profícua a análise do grau de liberdade dos sujeitos históricos frente aos
condicionamentos que o meio impõe. Relacionar a macro e a micro-história, tendo como
campos de observação privilegiados o espaço e a cultura, eis o desafio imposto àqueles que
decidirem se aventurar nesses estudos.

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