VASCONCELOS, Pedro de Almeida. O universo conceitual de Milton Santos.
Curitiba: Editora CRV. 2020. 216 p.
É um prazer e ao mesmo tempo O livro de Vasconcelos está equi-
uma responsabilidade enorme rese- libradamente dividido em duas partes nhar mais um livro de autoria de Pedro e cinco capítulos. Elenca nas referên- Vasconcelos, que já tem uma larga cias ao final 174 obras, com destaque trajetória de sólidas contribuições para a própria produção do professor para a geografia humana brasileira e Milton Santos: ao todo são detidamente para o debate dos problemas urbanos analisadas 72 obras autorais (princi- nacionais. Nesta obra, Vasconcelos palmente livros e artigos acadêmicos), elabora um excelente roteiro analítico nove livros coorganizados e uma série sobre a trajetória intelectual – bio-bi- de outros livros e textos de autores bliográfica – do ilustre geógrafo que de alguma forma se debruçaram Milton Santos. Não é uma empreitada sobre este riquíssimo patrimônio da fácil, dada a densidade e comple- inteligência brasileira e latino-ameri- xidade do pensamento de Santos, cana. Para o estabelecimento de suas e também de sua inalcançável proli- balizas temporais e contextualizações, ficidade acadêmica, derivada de seu foram especialmente importantes os trabalho de vida em prol da cons- livros organizados por Maria Adélia trução de uma geografia humana de Souza e Maria Auxiliadora Silva, altiva e de sua combativa posição assim como a tese de doutorado de intelectual de base latino-americana Flavia Grimm. Para algumas de suas e terceiro-mundista. chaves de interpretação da obra de
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Milton Santos, o autor se valeu de outro quem constituiu seus principais debates importante livro, escrito por Antonio e propostas para a geografia. Carlos Robert Moraes.1 Vasconcelos Fica patente a importância central utilizou com precisão também as da geografia francesa tradicional na entrevistas concedidas por Santos em formação inicial de Milton Santos, com vida, nas quais muitos aspectos de seu destaque especial para a influência de percurso podem ser melhor esclare- Jean Tricart, geógrafo marxista que cidos ao leitor. orientou seu doutorado na Universidade O livro é em grande parte descritivo de Strasbourg (França), entre os anos e preciso com datas, obras, dados fatuais, de 1958 e 1959. Os temas de pesquisa mas também com as impressões que de Santos à época (até o ano de 1964) Vasconcelos faz de caráter mais “quali- eram muito ligados aos problemas tativo” da obra de Santos. Como registra “regionais” de seu estado de nascimento o autor nas conclusões, sua intenção – a Bahia –, sendo a Geografia Urbana e foi redigir um “livro de consulta”, que o planejamento questões que se sobres- procura trazer “uma visão de conjunto saíam nesta fase. Vasconcelos mostra dos principais textos” de Milton Santos. que não há nessa etapa da trajetória de Trata-se de mais do que isso. Santos uma preocupação explícita em O livro pode ser entendido a partir relação ao debate “teórico” na Geografia de uma analogia aos três principais tipos (preocupação que vai paulatinamente se de tempo da ação humana: passado, tornando sua principal busca nas univer- presente e futuro. Na parte I, intitulada sidades em que trabalhou); porém, ao “Vida e Obra”, Vasconcelos remonta mesmo tempo, é quando Santos adquire com detalhes o rico passado biobiblio- uma formação extremamente sólida, gráfico de Milton Santos, indicando com um conhecimento profundo e rigo- informações importantes sobre seus roso das principais obras clássicas da contextos de vida (as cidades onde Geografia, principalmente francesas, residiu, as instituições em que traba- mas não só. lhou) e interlocutores e acadêmicos com Após sua prisão pela ditadura militar em 1964, teve um princípio de 1 Antonio Carlos Robert Moraes, Território na Geografia de Milton Santos, São Paulo: infarte no cárcere, o que o levou à prisão Annablume, 2013. domiciliar. Nesse contexto, Santos se
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exila na França, por onde se inicia onde elabora uma teoria original para um riquíssimo período internacional de se explicar a urbanização dos países seu itinerário como professor e pesqui- periféricos (a “teoria dos dois circuitos sador, quando leciona em diversas insti- da economia urbana”); esta obra, por tuições de ensino superior na Europa, sua vez, viria a ser traduzida e publi- África e Américas, mas principalmente cada no Brasil, também em 1978, sob três das mais prestigiadas universi- o título O espaço dividido: os dois dades francesas: Toulouse, Bordeaux circuitos da economia urbana dos e, finalmente, Sorbonne (atual Paris I). países subdesenvolvidos. No exterior, reforça sua preocupação Outro ponto alto da obra de com os problemas estruturais do Brasil, Vasconcelos é o registro da incrível e amplia seus conhecimentos para além prolificidade de Santos em sua volta da geografia, tendo como preocupa- ao Brasil após seu exílio: são quatro ções centrais a questão do Terceiro livros lançados em 1978, dentre os Mundo, da pobreza e a necessidade quais Por uma Geografia nova, base de crítica dos cânones teóricos produ- para a gênese da geografia crítica zidos e difundidos a partir dos países do brasileira no Encontro Nacional de centro do sistema capitalista. É justa- Geógrafos, realizado em Fortaleza no mente a partir dessa crítica a autores mesmo ano, três livros em 1979 e mais do establishment das universidades quatro entre os anos de 1980 e 1982. europeias e norte-americanas que são A partir da instalação de Santos no produzidas duas de suas mais impor- Departamento de Geografia da USP, em tantes obras: 1. Le Métier du Géographe 1983, Vasconcelos destaca que o autor (1971), onde estabelece uma cora- encontra boas condições de trabalho e josa crítica à geografia francesa que o divulgação de sua produção acadêmica, formou, obra que o consolida também o que lhe permitiu aprofundar a busca como um dos principais geógrafos pela renovação da ciência geográfica, engajados nos estudos das causas do através da criação de uma teoria crítica subdesenvolvimento, livro traduzido e, a partir dela, de uma metadisciplina no Brasil em 1978, com o título original e atualizada. Também por este O trabalho do geógrafo no Terceiro motivo, Vasconcelos faz jus ao livro que Mundo; 2. L’Espace Partagé (1975), pode ser considerado como o principal
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legado de Santos para a Geografia e geógrafo baiano: partir da releitura de as Ciências Sociais contemporâneas: categorias e conceitos “tradicionais” A natureza do espaço. Técnica e tempo, da Geografia, com dois intuitos prin- razão e emoção, de 1996. Ali está cipais: 1) atualizá-los criticamente, sistematicamente desenvolvida sua ressignificando as categorias com teoria crítica da Geografia, fundada os conteúdos e problemas do tempo principalmente numa sólida e inova- presente; ou 2) deixá-los de lado, dimi- dora definição da categoria “espaço nuindo seu protagonismo em suas geográfico”, e que serve de base para propostas explicativas. a reflexão sobre problemas civiliza- Possivelmente, o principal caso cionais contemporâneos tão impor- de atualização crítica de categorias tantes, como a globalização, o poder tradicionais empreendida por Santos é das grandes corporações, as redes, a seu conceito “meio técnico-científico informação, a pobreza, e os instru- informacional”, pois aqui ele reconfi- mentos que temos à nossa disposição gura uma categoria antediluviana da para não só pensar o mundo atual, Geografia (a categoria “meio”) com mas também transformá-lo.2 os conteúdos que julgava centrais Destacamos ainda que, no capí- para o entendimento deste mundo tulo 4, Vasconcelos estabelece uma em que estamos imersos atualmente análise ampla dos principais conceitos (a ciência, a técnica e a informação). e categorias que fazem parte da O capítulo 4 permite também aos produção teórica de Milton Santos: leitores identificar como foram sendo é nesta parte do livro que nos parece incorporadas novas expressões ao seu serem encontrados os elementos do vocabulário explicativo, algumas das presente e do futuro do legado de quais o próprio autor criara (como é o Milton Santos. É possível identificar caso de “verticalidades” e “horizonta- neste capítulo uma das caracterís- lidades”, “tecnosfera” e “psicosfera”, ticas centrais do processo criativo do e o já mencionado “meio técnico-cien- tífico informacional”). 2 Fabio Betioli Contel, “Milton Santos” in Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco No capítulo final, onde o autor trata (orgs.), Intérpretes do Brasil: clássicos, da “difusão das ideias” de Santos, o rebeldes e renegados (São Paulo: Boitempo, 2014), pp. 393-409. texto não perde sua solidez, e apresenta
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uma minuciosa recuperação de vários Estes são alguns dos atributos eventos que atestam o enorme pres- centrais desta obra que faz uma cuida- tígio intelectual de que Milton Santos dosa análise da trajetória intelectual de desfrutou ao final de sua vida. São incon- Milton Santos. Para além de preciso táveis as distinções acadêmicas (doutor e exaustivo em sua pesquisa de base, honoris causa, professor emérito, semi- Vasconcelos é também elegante em nários e livros em sua homenagem) e suas críticas ao grande geógrafo, o que os reconhecimentos não acadêmicos torna o livro também um tributo ainda (concedidos principalmente por órgãos maior a Milton Santos, a um legado de imprensa e associações da sociedade que nos permite entender o presente e civil dos mais diversos tipos) recebidos enfrentar o futuro. Trata-se, portanto, por Milton Santos, galardões que se inten- de um livro inescapável para aqueles/as sificaram depois daquela que provavel- que procuram uma introdução circuns- mente foi sua maior honraria, o Prêmio tanciada a este patrimônio atualíssimo Vautrin Lud, em 1994. do pensamento social brasileiro.
A ESCOLA METÓDICA E O MOVIMENTO DOS ANNALES: CONTRIBUIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS À HISTÓRIA Marcilene Nascimento de Farias André Dioney Fonseca Diogo Da Silva Roiz