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Prefácio
É provável que ainda não tenha sido feita nenhuma tentativa para
apresentar um estudo exaustivo do período entre 1450 e 1650. Este
volume integra uma série destinada ao estudante da civilização ociden-
tal e o nosso objectivo é apresentar uma panorâmica geral, examinando
diversos problemas e temas-chave. A nossa atenção será dirigida com
mais frequência ao impacto do Humanismo nas ciências, à procura de
uma nova metodologia para a ciência e ao diálogo continuado entre os
proponentes de uma visão místico-oculta do mundo e àqueles que pro-
curavam uma nova forma de aproximação matemático-observacional à
natureza.
Allen G. Debus
Deerfield, Illinois, Maio de 1978
TRADIÇÃO E REFORMA jI
1. Tradição e reforma
Estes valores em mutação iriam resultar num novo interesse pelos proble-
mas educacionais. Os programas da reforma dos séculos XIV e XV estavam
direccionados para a educação elementar e não para as universidades. O edu-
cador humanista Vitorino de Feltre (1378-1446) fundou uma nova escola na
qual os estudantes eram compelidos a ser excelentes em desportos e a apren-
der exercícios militares. Nas salas de aula, os estudantes aprendiam retórica,
música, geografia e história - e, seguindo o exemplo dos Antigos, eram ensi-
nados a valorizar mais os princípios morais e a acção política do que os prin-
cípios básicos do trívio (gramática, retórica e lógica) ou o estudo dos assuntos
filosóficos e científicos tradicionais.
Muitos dos eruditos humanistas mais célebres foram afectados por este
movimento na reforma educativa. O resultado pode ser claramente observado
no trabalho de Erasmo (1466-1536). Erasmo defendia que para um aluno se
informar acerca dos assuntos da natureza bastar-lhe-ia, durante o curso normal
de estudos, ler os antigos autores literários. A matemática não tinha, segundo
ele, muita importância para um homem culto. Juan Luís Vives (1492-1540),
seguramente o mais conhecido de todos os educadores do Renascimento,
concordou com esta posição, quando argumentava contra o estudo da mate-
mática que tendia a "afastar a mente dos assuntos práticos da vida", o que a
tornava "menos adequada para fundir realidades concretas e mundanas".
Será que podemos então dizer que as universidades continuavam a ser os
centros da educação científica? Na sua maioria, sim, mas havia um número
cada vez mais crescente de estudiosos em medicina e em ciências que rejeitava
o conservadorismo opressivo de muitas - talvez da maioria - das instituições
de ensino superior. Pedro Ramus (1515-1572) recordou a sua própria educa-
ção académica com desespero:
do meu destino, a pobreza de uma mente que, após tanto labor, não
conseguiu adquirir ou mesmo compreender os frutos da sabedoria
que alegadamente se encontrariam, em abundância, na dialéctica de
Aristóteles!"
Ramus não era o único a sentir esta frustração - e as suas queixas não
eram desprovidas de fundamento. Paris, por exemplo, era reconhecida como
um reduto da medicina galénica nos séculos XVI e XVII, enquanto que, na
Inglaterra, os Estatutos Isabelinos de Cambridge (1570) e o Código Laudiano
de Oxford (1636) mantinham a autoridade oficial dos Antigos. As sociedades
profissi o nais não eram necessariamente melhores. O London College of
Physicians encarava a inovação com desconfiança. Assim, quando, em 1559,
o Dr. John Geynes se atreveu a sugerir que Galeno (129/130-199/200 d. C.)
poderia não ser infalível, a reacção foi imediata e severa. Foi obrigado a assi-
nar uma retractação antes de ser readmitido na companhia dos colegas.
O conservadorismo de muitas das principais universidades pode ser par-
cialmente equilibrado por uma tradição crítica que tem sido aplicada aos tex-
tos científicos antigos de Oxford e de Paris do século XIV. Este trabalho, asso-
ciado à escolástica, revelar-se-ia particularmente benéfico para o estudo das
leis do movimento. Encontrava-se ainda em evidência em Pádua e noutras
universidades do Norte da Itália com uma tradição erudita, no século XVI.
Para muitos, contudo, a crítica científica era um curioso género de jogo
humanístico no qual o estudante era elogiado por ter eliminado as anotações
e as emendas comuns de origem medieval que desfiguravam os textos antigos.
O objectivo da crítica científica era a pureza textual e não a verdade científica.
Em resumo, o ambiente educativo no início do Renascimento apresentava
um valor questionável para o desenvolvimento das ciências. O ensino univer-
sitário deste período pode, na sua maior parte, ser caracterizado como conserva-
dor. Quanto à reforma da educação primária, levada a cabo nos séculos XIV e XV,
era francamente anticientífica.
· N. do E.: Devido à falta de um termo equivalente na língua portuguesa, optou-se por manter a
abreviatura fl. (do inglês flourished) para identificar os anos de actividade mais significativa.
TRADIÇÃO E REFORMA j5
As línguas vernáculas
Observação e experimentação
inteiramente novas, mas muitos aderiam à antiga filosofia - desde que lhes
assegurassem que os seus textos eram puros e não adulterados. Alguns, como
William Harvey (1578-1657), elogiavam abertamente a herança aristotélica.
Outros, dos quais Robert Fludd é um bom exemplo, atacavam traiçoeira-
mente os Antigos, enquanto integravam muitos dos antigos conceitos nos
seus próprios trabalhos.
Uma outra característica deste período é a confiança crescente na observa-
ção e a aproximação gradual ao conceito actual de experimentação como um
teste cuidadosamente planeado e repetível da teoria. Os anteriores clássicos da
ciência e do método observacionais eram reconhecidos e elogiados pelos eru-
ditos renascentistas, que viam neles um modelo a ser seguido. Assim, muitos
dos que rejeitavam a física de Aristóteles apontavam o seu trabalho sobre ani-
mais como um texto bastante importante. Devido à utilização da evidência
observacional, Arquimedes (278-212 a. C.) tinha grande influência, enquanto
que, entre os autores medievais, Roger Bacon, Petrus Peregrinus (de Mari-
court) (fl. c. 1270) e Vitelo (Teodorico de Friburgo) (século XIII) eram cita-
dos pelos seus estudos "experimentais".
Contudo, apesar de Roger Bacon e de outros estudiosos defenderem uma
nova utilização da observação como base para a compreensão do Universo,
era muito mais habitual confiar nos relatos fabulosos de Plínio o Velho (23-79) e
de outros antigos enciclopedistas. Mesmo a brilhante crítica da antiga física
do movimento, levada a cabo em Oxford e em Paris no século XIV, baseou-se
mais no raciocínio dedutivo e nas regras da lógica do que nos resultados da
nova evidência observacional.
Os cientistas do século XVI não desenvolveram de imediato uma moderna
compreensão do uso da experimentação, mas é evidente nos seus trabalhos
um maior recurso à evidência observacional do que anteriormente. Assim,
Bernardino Telésio (1509-1588) fundou a sua própria academia em Cosenza,
destinada ao estudo da filosofia natural. Rejeitando Aristóteles, cujos traba-
lhos pareciam discordar da Escritura e da experiência, virou-se para os senti-
dos como chave para o estudo da natureza. Igualmente interessante é John
Dee que, entre as suas ciências matemáticas, contava com Archemastrie, a qual
"ensina a trazer para a experiência sensível todas as conclusões aceitáveis de
todas as artes matemáticas utilizadas ... E porque procede por experiência e
investiga as causas das próprias conclusões na experiência, alguns denomi-
nam-na Scientia Experimenta/is. A ciência experimental". A designação "expe-
rimental" pode ser mais bem entendida como "observacional". O conceito da
moderna experiência controlada não fazia parte da metodologia de Dee.
TRADIÇÃO E REFORMA l9
Tecnologia
Misticismo e ciência
esta visão do mundo. O homem era agora encarado como um elo favorecido na
grande cadeia do ser. Tomando parte na Graça Divina, era algo mais do que o
recipiente passivo de influências astrais. E, visto que havia uma simpatia geral
entre todas as partes do Universo, o homem podia afectar o mundo supralunar
do mesmo modo que este o podia afectar. Este conceito teve uma utilidade
imediata em medicina através da doutrina das assinaturas. Esta doutrina postu-
lava que o verdadeiro clínico tinha o poder de procurar, com êxito, nos reinos
vegetal e mineral, as substâncias que se harmonizavam com os corpos celestiais
e, consequentemente, com o Criador.
Tudo isto se encontra estreitamente relacionado com o fundamento da
magia natural do Renascimento. O verdadeiro médico, do género de Para-
celso ou Ficino, era ao mesmo tempo um mágico que concebia a natureza
como uma força vital ou mágica. Um tal estudante da natureza poderia
aprender como adquirir poderes naturais desconhecidos dos outros e assim
espantar o povo, mesmo quando se sabia que estes poderes eram concedidos
por Deus e estavam disponíveis para todos. Para muitos, de facto, este parecia
ser um dos aspectos mais atractivos da magia. Assim, John Dee recordou os
dias de estudante em Cambridge, onde preparou um escaravelho voador
mecânico para uma representação no Trinity College da Paz de Aristófanes,
"na qual houve grande espanto, e muitos relatos sem fundamento se espalha-
ram acerca dos meios com os quais foi feito". O escaravelho de Dee vinha na
tradição das maravilhas mecânicas helénicas, mas ele também estava ciente de
que a verdadeira magia significava o estudo observacional das forças não
explicadas ou ocultas da natureza. Assim, na Magia Natural, Giovanni Bap-
tista Porta (1540-1615) explicou que a magia é essencialmente a busca da
sabedoria e que rião procura mais do que o "levantamento da totalidade do
curso da natureza". Alguns anos antes, Heinrich Comelius Agrippa (c. 1486-1535)
considerou a magia o mais perfeito conhecimento de todos e Paracelso igua-
lou-a à própria natureza, falando dela em termos de uma demanda religiosa
que conduziria o peregrino a um melhor conhecimento do seu Criador.
Para estes homens, a magia natural estava muito distante da mácula da
necromancia. Muito pelo contrário, a magia encontrava-se intimamente asso-
ciada à religião através da busca de verdades divinas na natureza criada. Con-
tudo, o cientista que estava disposto a aceitar o título de "mágico" podia
expor-se a situações perigosas. John Dee serve novamente de exemplo. Encar-
cerado ainda jovem devido ao seu interesse activo pela astrologia, a sua vasta
biblioteca foi posteriormente destruída por uma multidão em fúria. Apelando
aos seus leitores por compreensão, perguntou-lhes se realmente pensavam
14 / O HOMEM EA NATUREZA NO RENASCIMENTO
que ele era louco a ponto de "abandonar a luz da Sabedoria Celeste e ocultar-se na
masmorra do Príncipe das Trevas?" Apesar das acusações que haviam sido
proferidas, considerou-se "inocente, de mão e coração, de infringir quer as
leis de Deus, quer as dos homens, em qualquer dos meus estudos de exercí-
cios filosóficos ou matemáticos".
Na realidade, a magia natural do século XVI era uma nova tentativa para
unificar a ciência e a religião. Segundo os hermetistas e os mágicos naturais, os
trabalhos de Aristóteles estavam maculados por conceitos heréticos, e eles
relembrariam repetidamente que os conselhos eclesiásticos tinham condenado
muitos destes erros aristotélicos. Sendo este o caso, por que razão Aristóteles e
Galena constituíam ainda o fundamento do ensino universitário, quando havia
outra interpretação da natureza por intermédio da magia natural e filosofia do
oculto - assuntos cuja própria existência dependia das Sagradas Escrituras?
Como poderia algum cristão preferir o ateu Aristóteles a esta nova e pia dou-
trina? Na verdade, argumentavam, o conhecimento apenas pode ser obtido pela
Graça Divina; quer por alguma experiência como a iluminação divina de Santo
Agostinho quer, então, por meio de alguma experiência na qual o adepto
pudesse atingir o seu objectivo com o auxílio da revelação divina. O conteúdo
religioso do hermetismo do início do século XVII é evidente no trabalho de
Thomas Tymme (falecido em 1620), que escreveu (1612):
Thomas Tymme escreveu estas palavras para explicar por que razão tinha
preparado um livro dedicado à natureza, à geração dos elementos e a outros
tópicos essencialmente científicos. Para um autor como Tymme, a ciência e a
observação da natureza eram uma forma de serviço divino, uma verdadeira
ligação com o divino. Num certo sentido, a investigação natural era uma
demanda de Deus.
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