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Título O Homem e a Natureza no Renascimento

Autor Allen G. Debus


Tradução Fernando Magalhães
Coordenação da Colecção Ana Simões e Henrique Leitão
Revisores Científicos Ana Simões e Henrique Leitão
Capa Eduardo Aires
Editora Porto Editora
Título original Man and Nature in the Renaissance
Edição original ISBN 0-521-21972-8
Editado pela primeira vez por
The Press Syndicate of the University of Cambridge
Copyright© Cambridge Univers,ty Press, 1978

© PORTO EDITORA, LDA - 2002


R. da Restauração, 365
4099-023 PORTO - PORTUGAL

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IV I O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

Prefácio

Nenhum período na História da Ciência tem sido tão profunda-


mente estudado como o da Revolução Científica; não obstante, até os
seus próprios limites temporais permanecem incertos. Para alguns,
abrange um período de trezentos anos que se estende de 1500 a 1800,
enquanto que outros consideram somente os dramáticos desenvolvi-
mentos do século XVII. A relação do Renascimento com a Revolução
Científica é um factor crucial para qualquer datação, mas neste volume
falaremos apenas de um Renascimento Científico aproximadamente
compreendido entre meados do século XV e meados do século XVII.
Durante este período de tempo, acompanharemos os diversos e dura-
douros efeitos do Humanismo na medicina e nas restantes ciências, e
assistiremos ao debate ininterrupto acerca de uma visão mística da natu-
reza, esgrimido com igual entusiasmo por alquimistas e h ermetistas.

Um trabalho sobre a ciência renascentista pode ser produzido a par-


tir de muitas fontes e, como é óbvio, reflectir muitos pontos de vista. Por
norma este tema é abordado em termos do progresso das ciências exac-
tas que são a matemática e a astronomia. No passado, tais estudos não
costumavam dar muita atenção ao contexto social e intelectual mais lato
do período. Os autores que enfatizaram este último aspecto menospre-
zaram com frequência a importância dos desenvolvimentos técnicos e
científicos. A abordagem adoptada neste volume é a tradicional, dado
que enfatiza a ciência do período, mas haverá frequentes referências à
religião e a conceitos filosóficos que desempenham um pequeno papel
na ciência do século XX. Assim, é nossa intenção discutir com alguma
profundidade o impacto da alquimia e da química no desenvolvimento
da ciência e da medicina modernas, dado que estes assuntos ainda não
foram devidamente integrados nas descrições da Revolução Científica.
De facto, os debates sobre a química dos primórdios do período
moderno geraram mais literatura polémica do que os relacionados com
a astronomia e a física do movimento. Devido a este facto, prestaremos
a devida atenção a estes debates, tal como aos que conduzem mais direc-
tamente a Galileu - e, consequentemente, aos Principia mathematica de
Isaac Newton.
PREFÁCIO IV

É provável que ainda não tenha sido feita nenhuma tentativa para
apresentar um estudo exaustivo do período entre 1450 e 1650. Este
volume integra uma série destinada ao estudante da civilização ociden-
tal e o nosso objectivo é apresentar uma panorâmica geral, examinando
diversos problemas e temas-chave. A nossa atenção será dirigida com
mais frequência ao impacto do Humanismo nas ciências, à procura de
uma nova metodologia para a ciência e ao diálogo continuado entre os
proponentes de uma visão místico-oculta do mundo e àqueles que pro-
curavam uma nova forma de aproximação matemático-observacional à
natureza.

O autor está particularmente grato à Newberry Library e ao National


Endowment for the Humanities por terem possibilitado a conclusão
deste trabalho, em Chicago durante o ano 1975-1976, como o primeiro
passo para um tratamento mais detalhado do assunto. O acervo da
Newberry Library é particularmente valioso para o estudante de todos
os aspectos da história intelectual do Renascimento e William Towner,
Richard H. Brown e John Tedeschi foram sempre prestáveis na minha
busca de livros e informação, dando-me uma tão grande variedade de
assistência que seria inútil tentar ser mais específico. A Universidade de
Chicago concedeu-me uma licença sabática para aquele ano - e, como
sempre, recebi o generoso apoio do Morris Fishbein Center for the Study
of the History of Science and Medicine. Os dois editores desta série,
George Basalla, da Universidade de Delaware, e William Coleman, da
Universidade de Wisconsin, contribuíram com proveitosas sugestões,
desejando o autor manifestar ainda um agradecimento especial a
William R. Shea, da Universidade McGill, pelos valiosos comentários
acerca da primeira versão deste manuscrito. Na recta final do trabalho,
John Cornell e Russell H. Hvolbek elaboraram o índice remissivo e revi-
ram o texto com grande atenção.

Allen G. Debus
Deerfield, Illinois, Maio de 1978
TRADIÇÃO E REFORMA jI

1. Tradição e reforma

Poucos acontecimentos na história mundial foram mais importantes do que


a Revolução Científica. O período compreendido entre meados do século XV e
o final do século XVIII testemunhou o aumento da influência cultural e polí-
tica da Europa Ocidental sobre as restantes regiões do globo. As novas ciência
e tecnologia ocidentais constituíram um factor crucial neste desenvolvimento,
o que foi reconhecido pela maioria dos estudiosos da altura. Assim, Francis
Bacon (1561-1626) observou no Novum organum (1620) que:
"é bom que se observem a força, a virtude, e as consequências das des-
cobertas; e em nenhum lado estes três factores são mais evidentes do
que nas descobertas que ficaram ignoradas pelos Antigos...; nomeada-
mente, a imprensa, a pólvora e o íman. Pois estas três descobertas
mudaram a face e o estado das coisas no mundo; a primeira na litera-
tura, a segunda na guerra, a terceira na navegação; donde se seguiram
inúmeras alterações; tanto que nenhum império, nenhuma escola filo-
sófica, nenhuma estrela parece ter exercido maior poder e influência
nos assuntos humanos do que estas descobertas mecânicas."

Para Bacon, estas descobertas tinham tido origem no Ocidente e eram


relativamente recentes. Bacon não foi o primeiro nem o último a proferir tal
afirmação, mas poucos eram aqueles cujos trabalhos eram lidos mais avida-
mente e em quem se depositava a esperança de erigirem uma nova ciência no
século XVII.
A importância da Revolução Científica é prontamente admitida, contudo,
quanto mais estudamos as suas origens, mais inseguros ficamos acerca das
suas causas. Neste livro trataremos, sobretudo, dos dois séculos que medeiam
entre 1450 e 1650, coincidindo a primeira data aproximadamente com o iní-
cio do novo interesse humanista pelos textos científicos e médicos clássicos e
a segunda com os anos imediatamente anteriores à aceitação geral da ciência
mecanicista de Descartes (1596-1650), Galileu (1564-1642), Borelli (1608-1679),
Boyle (1627-1691) e Newton (1642-1727).
Estes dois séculos apresentam uma desconcertante confusão de interesses
e é pouco provável que se encontre alguém cuja metodologia científica seja
inteiramente aceitável para um cientista moderno. Para alguns dos estudiosos
de então, cujos trabalhos contribuíram para a nossa moderna idade científica,
a magia, a alquimia e a astrologia não eram menos estimulantes do que o
2 I O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

novo interesse pela abstracção matemática, observação e experimentação.


Hoje em dia é fácil - e necessário - separar "ciência" e interesses ocultos, mas
na altura muitos não o conseguiam fazer. Este interesse por uma visão mística
do mundo não era só partilhado por figuras menores hoje recordadas apenas
pelos amantes de antiguidades. Os escritos de Isaac Newton e Johannes
Kepler (1571-1630) revelam um genuíno interesse pela transmutação e pela
procura de harmonias universais que não é inferior ao de Paracelso (1493-1541),
Robert Fludd (1574-1637) e John Dee (1527-1608). Tem sido habitual entre
os historiadores de ciência olhar retrospectivamente para os seus objectos de
estudo, isto é, ignorando aqueles aspectos da filosofia natural de outrora que
já não têm cabimento no nosso mundo científico. Contudo, procedendo deste
modo, não podemos pretender atingir uma compreensão contextual do
período. O nosso objectivo será, então, tratar este período nos seus próprios
termos e não nos nossos. À medida que avançarmos, perceberemos que as con-
trovérsias acerca da magia natural e a verdade da analogia macrocosmo-micro-
cosmo eram então tão importantes como os mais recordados debates acerca da
aceitação do sistema heliocêntrico ou da circulação sanguínea.

A ciência e a educação renascentistas

Os próprios termos "Renascimento" e "Humanismo" têm sido emprega-


dos com conotações tão diversas que é pouco provável que uma única defini-
ção satisfaça simultaneamente dois estudiosos. Não é necessário tentá-lo aqui.
O Renascimento implicou, sem dúvida, uma espécie de "renascer" do conhe-
cimento - tanto da arte como da literatura. Correspondeu também, segura-
mente, ao período de desenvolvimento de uma nova ciência. Tendo admitido
isto, é necessário ser cuidadoso para evitar simplificações. O novo amor pela
natureza expresso por Petrarca (falecido cerca de 1374) e por outros huma-
nistas do século XIV produziu mais do que um efeito. Aceitamos sem dificul-
dade que foi um instrumento no desenvolvimento de um novo estudo dos
fenómenos n aturais baseado na observação, mas sabemos também que
Petrarca e os humanistas posteriores nutriam uma profunda desconfiança
pela tradicional ênfase escolástica na filosofia e nas ciências. A retórica e a his-
tória preferidas por eles correspondiam a uma resposta consciente aos estu-
dos "aristotélicos" mais técnicos, que constituíam há muito o suporte da uni-
versidade medieval. Os humanistas buscavam o aperfeiçoamento moral do
homem e não tanto as discussões lógicas e escolásticas, características do
ensino superior tradicional.
TRADIÇÃO E REFORMA / 3

Estes valores em mutação iriam resultar num novo interesse pelos proble-
mas educacionais. Os programas da reforma dos séculos XIV e XV estavam
direccionados para a educação elementar e não para as universidades. O edu-
cador humanista Vitorino de Feltre (1378-1446) fundou uma nova escola na
qual os estudantes eram compelidos a ser excelentes em desportos e a apren-
der exercícios militares. Nas salas de aula, os estudantes aprendiam retórica,
música, geografia e história - e, seguindo o exemplo dos Antigos, eram ensi-
nados a valorizar mais os princípios morais e a acção política do que os prin-
cípios básicos do trívio (gramática, retórica e lógica) ou o estudo dos assuntos
filosóficos e científicos tradicionais.
Muitos dos eruditos humanistas mais célebres foram afectados por este
movimento na reforma educativa. O resultado pode ser claramente observado
no trabalho de Erasmo (1466-1536). Erasmo defendia que para um aluno se
informar acerca dos assuntos da natureza bastar-lhe-ia, durante o curso normal
de estudos, ler os antigos autores literários. A matemática não tinha, segundo
ele, muita importância para um homem culto. Juan Luís Vives (1492-1540),
seguramente o mais conhecido de todos os educadores do Renascimento,
concordou com esta posição, quando argumentava contra o estudo da mate-
mática que tendia a "afastar a mente dos assuntos práticos da vida", o que a
tornava "menos adequada para fundir realidades concretas e mundanas".
Será que podemos então dizer que as universidades continuavam a ser os
centros da educação científica? Na sua maioria, sim, mas havia um número
cada vez mais crescente de estudiosos em medicina e em ciências que rejeitava
o conservadorismo opressivo de muitas - talvez da maioria - das instituições
de ensino superior. Pedro Ramus (1515-1572) recordou a sua própria educa-
ção académica com desespero:

"Após ter dedicado três anos e seis meses à filosofia escolástica, de


acordo com as regras da nossa universidade; após ter lido, discutido e
meditado sobre os vários tratados do Organon (pois, de todos os livros
de Aristóteles, aqueles que, em especial, versavam sobre dialéctica
eram lidos e relidos durante três anos); mesmo após, repito, ter pas-
sado esse tempo todo completamente ocupado pelo estudo das artes
escolásticas, procurei indagar onde poderia, em consequência, aplicar
o conhecimento que tinha adquirido com tanto trabalho e fadiga.
Depressa percebi que toda esta dialéctica não me tinha tornado mais
instruído na história e no conhecimento da Antiguidade, nem mais
habilidoso em eloquência, nem melhor poeta, nem mais sábio em
nada. E que estupefacção, que pesar! Como eu deplorei o infortúnio
4 j O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

do meu destino, a pobreza de uma mente que, após tanto labor, não
conseguiu adquirir ou mesmo compreender os frutos da sabedoria
que alegadamente se encontrariam, em abundância, na dialéctica de
Aristóteles!"
Ramus não era o único a sentir esta frustração - e as suas queixas não
eram desprovidas de fundamento. Paris, por exemplo, era reconhecida como
um reduto da medicina galénica nos séculos XVI e XVII, enquanto que, na
Inglaterra, os Estatutos Isabelinos de Cambridge (1570) e o Código Laudiano
de Oxford (1636) mantinham a autoridade oficial dos Antigos. As sociedades
profissi o nais não eram necessariamente melhores. O London College of
Physicians encarava a inovação com desconfiança. Assim, quando, em 1559,
o Dr. John Geynes se atreveu a sugerir que Galeno (129/130-199/200 d. C.)
poderia não ser infalível, a reacção foi imediata e severa. Foi obrigado a assi-
nar uma retractação antes de ser readmitido na companhia dos colegas.
O conservadorismo de muitas das principais universidades pode ser par-
cialmente equilibrado por uma tradição crítica que tem sido aplicada aos tex-
tos científicos antigos de Oxford e de Paris do século XIV. Este trabalho, asso-
ciado à escolástica, revelar-se-ia particularmente benéfico para o estudo das
leis do movimento. Encontrava-se ainda em evidência em Pádua e noutras
universidades do Norte da Itália com uma tradição erudita, no século XVI.
Para muitos, contudo, a crítica científica era um curioso género de jogo
humanístico no qual o estudante era elogiado por ter eliminado as anotações
e as emendas comuns de origem medieval que desfiguravam os textos antigos.
O objectivo da crítica científica era a pureza textual e não a verdade científica.
Em resumo, o ambiente educativo no início do Renascimento apresentava
um valor questionável para o desenvolvimento das ciências. O ensino univer-
sitário deste período pode, na sua maior parte, ser caracterizado como conserva-
dor. Quanto à reforma da educação primária, levada a cabo nos séculos XIV e XV,
era francamente anticientífica.

Humanismo e literatura clássica

A dedicação aos Antigos é uma característica familiar do Humanismo do


Renascimento. A procura de novos textos clássicos era intensa no século XV e
cada descoberta era saudada como uma grande proeza. Nenhum relato é mais
conhecido do que o de Jacob Angelo (fl. c:
1406). O seu navio naufragou no

· N. do E.: Devido à falta de um termo equivalente na língua portuguesa, optou-se por manter a
abreviatura fl. (do inglês flourished) para identificar os anos de actividade mais significativa.
TRADIÇÃO E REFORMA j5

regresso de uma viagem a Constantinopla destinada à procura de manuscritos,


mas Jacob Angelo conseguiu salvar a sua maior descoberta, uma cópia da
Geografia de Ptolomeu, até então desconhecida no Ocidente. Algum tempo
depois, em 1417, Poggio Bracciolini (1380-1459) descobriu o que mais tarde
foi reconhecido como a única cópia da obra De rerum natura de Lucrécio
(c. 99-55 a. C.) que perdurou desde a Antiguidade. Este facto constituiu um
grande estímulo para o renovado interesse pelo atomismo, dois séculos mais
tarde. E apenas nove anos após a recuperação da obra de Lucrécio, Guarino
de Verona (1370-1460) descobriu um manuscrito do tratado enciclopédico
de medicina de Celso, um autor do século II. Este trabalho, De medicina, veio
a exercer uma grande influência, não tanto pelo conteúdo médico mas pela
linguagem e pelo estilo. Este foi o único trabalho médico relevante do melhor
período da prosa latina a ter sobrevivido e viria a ser utilizado por humanistas
médicos em busca de terminologia e fraseologia latinas correctas.
A procura de novos textos- e de novas traduções - resultou no reconheci-
mento da importância do grego. É um facto que Roger Bacon (e. 1214-1294)
tinha já sublinhado esta necessidade no século XIII, mas a situação não
melhorou materialmente um século depois. Nessa altura, Petrarca lamentou o
seu inadequado conhecimento da língua, no que não estava sozinho. Poucos
eram os eruditos ocidentais capazes de utilizar o grego até à chegada do pro-
fessor Manuel Chrysolorus (falecido em 1415) a Itália, com o imperador
bizantino Manuel Paleologus, em 1396. Contudo, apesar da ajuda prestada
por Chrysolorus, um entusiasmo muito maior foi provocado por outro
bizantino, Gemisto Pléton, à sua chegada ao Conselho de Florença, em 1439.
Este revivalismo veio a afectar os meios eruditos no decorrer do século XV.
Na medicina, o humanista Tomás Linacre (c. 1460-1524) preparou traduções
d e Proclo (410-485) e de trabalhos individuais de Galeno para latim. Apesar
de este facto ser significativo, os seus planos - apenas parcialmente cumpridos
- eram bastante mais grandiosos. Planeava traduzir para latim as obras com-
pletas de Galeno - e, juntamente com um grupo de estudiosos, a totalidade
das obras de Aristóteles. Quase tão industrioso foi Johannes Guinter de
Andernach (1505-1574), cujas traduções de Galeno o colocaram na primeira
linha dos humanistas médicos. Como professor de medicina em Paris, Ander-
nach foi um dos mais proeminentes mestres de André Vesálio (514-564).
Esta busca da verdade na procura de manuscritos precisos não se confinava
apenas ao estudo dos médicos antigos. Georg von Peuerbach (1423-1461 )
reconheceu a necessidade de um manuscrito fiel do Almagesto de Ptolomeu,
quando escrevia o compêndio Theoricae novae planetarum. Porém, morreu
quando planeava uma viagem a Itália para levar a cabo este objectivo. O seu
pupilo Johann Müller (Regiomontano) (1436-1476) completou a viagem do
mestre e publicou um Epítome do Almagesto.
6I O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

O Humanismo renascentista não pode ser reduzido à recuperação da


pureza de Aristóteles, Ptolomeu ou Galeno. Não menos influente no desenvol-
vimento da ciência moderna - e, certamente, em parte do mesmo movimento
humanista - foi o reviver dos textos neoplatónicos, cabalísticos e herméticos da
Antiguidade Tardia. Estes textos adquiriram uma importância tão grande que
Cosme de Médicis insistiu com Marsílio Ficino (1433-1499) para que este tra-
duzisse o recentemente descoberto Corpus hermeticum (c. 1460) antes de se
dedicar a Platão ou Plotino. Estes trabalhos místicos e religiosos - que serão
posteriormente discutidos com maior cuidado - pareciam justificar a prática da
magia natural, um assunto bastante popular entre os sábios dos séculos XVI
e XVII. Nesta tradição incluía-se o apelo a uma nova investigação da natureza
através de uma nova evidência observacional.
Por coincidência, esta procura dos textos puros e originais da Antiguidade
ocorreu quando existia um novo meio para disseminar este conhecimento, a
imprensa. É interessante que o mais antigo livro impresso na Europa Ociden-
tal date de 1447, no início do período que nos propomos estudar. Pela pri-
meira vez foi possível produzir textos clássicos para estudiosos a preço mode-
rado. Nos campos científico e médico, estes incunábulos eram maioritaria-
mente impressões dos antigos textos escolásticos medievais desprezados pelos
humanistas. Assim, a primeira versão do Almagesto de Ptolomeu a ser
impressa foi a antiga tradução medieval (1515). Uma nova tradução em latim
apareceu depois (1528 ) - e finalmente o texto grego (1538), apenas cinco
anos antes do De revolutionibus orbium celestium de Copérnico. Galeno e
Aristóteles haveriam de passar pelas mesmas etapas.

As línguas vernáculas

O latim e o grego eram, seguramente, as principais chaves para entrar no


reino erudito, mas o mundo do Renascimento caracterizou-se também por
um uso mais alargado das línguas vernáculas nos meios eruditos. Este facto
pode ser constatado, mais notavelmente, nos panfletos religiosos da Reforma,
onde o autor tinha uma necessidade imediata de atingir a assistência. Con-
tudo, a utilização do vernáculo tornou-se cada vez mais importante no
decursp do século XVI, o que pode ser, em parte, devido ao orgulho naciona-
lista convicto deste período. Nesta época, os autores escreviam abertamente
acerca do seu amor pela terra natal e pela própria língua. Um outro factor era
a necessidade que muitos sentiam de uma ruptura decisiva com o passado,
que parece ser mais evidente após o segundo quartel do século XVI.
TRADIÇÃO E REFORMA l7

Alguns estudos demonstram que houve um rápido aumento do uso do


vernáculo nos textos médicos do final da Idade Média. Esta tendência intensi-
ficou-se no século XVI, quando uma guerra de panfletos médicos dividiu os
galenistas dos químicos médicos paracelsistas. Este debate foi trazido para o
meio universitário quando Paracelso leccionou medicina em Basileia, na sua
Suíça natal, em 1527. A instituição médica atacou-o duramente, não apenas
pelo conteúdo das lições, mas também pela escolha do idioma. Esta escolha
permaneceria um ponto fraco para os seus seguidores durante gerações.
Assim, o paracelsista inglês Thomas Moffett (1553-1604) admitiu - em latim
(1584) - que:

"é verdade que Paracelso falava frequentemente em alemão e não em


latim; mas não falava Hipócrates em grego? Porque não haveriam
ambos de utilizar as suas línguas maternas? Será que isto merece ser
repreendido em Paracelso e relevado em Hipócrates, Galeno e outros
gregos que utilizaram a sua língua materna?"

A situação não era muito diferente na matemática e nas ciências físicas.


As publicações de Galileu em italiano permanecem hoje clássicos da literatura
italiana e na Inglaterra numerosos autores apresentaram assuntos populares e
técnicos em inglês tudoriano. John Dee, que empreendeu a elaboração de um
prefácio para a primeira tradução inglesa dos Elementos de Geometria de
Euclides, considerou necessário explicar que a referida tradução não consti-
tuiria nenhuma ameaça para as universidades. Muito pelo contrário, Dee
argumentava que a tradução iria permitir que muitas pessoas comuns pudes-
sem pela primeira vez ser capazes "de descobrir, e imaginar, novos trabalhos,
estranhas máquinas e instrumentos; para diversos propósitos da riqueza
pública ou para satisfação pessoal e para manter melhor os próprios bens".
Pretextos similares para a publicação de textos científicos e médicos em ver-
náculo podem ser encontrados noutros dos principais idiomas modernos
deste período.

Observação e experimentação

Qualquer avaliação geral sobre a ciência do Renascimento deve incluir


uma discussão de diversos paradoxos aparentes. Um tema recorrente na lite-
ratura do século XVI é a rejeição da Antiguidade. Porém, como já vimos, essa
rejeição era frequentemente dirigida às traduções e aos comentários escolásti-
cos. Alguns escolásticos clamavam por uma filosofia e uma medicina naturais
s I o HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

inteiramente novas, mas muitos aderiam à antiga filosofia - desde que lhes
assegurassem que os seus textos eram puros e não adulterados. Alguns, como
William Harvey (1578-1657), elogiavam abertamente a herança aristotélica.
Outros, dos quais Robert Fludd é um bom exemplo, atacavam traiçoeira-
mente os Antigos, enquanto integravam muitos dos antigos conceitos nos
seus próprios trabalhos.
Uma outra característica deste período é a confiança crescente na observa-
ção e a aproximação gradual ao conceito actual de experimentação como um
teste cuidadosamente planeado e repetível da teoria. Os anteriores clássicos da
ciência e do método observacionais eram reconhecidos e elogiados pelos eru-
ditos renascentistas, que viam neles um modelo a ser seguido. Assim, muitos
dos que rejeitavam a física de Aristóteles apontavam o seu trabalho sobre ani-
mais como um texto bastante importante. Devido à utilização da evidência
observacional, Arquimedes (278-212 a. C.) tinha grande influência, enquanto
que, entre os autores medievais, Roger Bacon, Petrus Peregrinus (de Mari-
court) (fl. c. 1270) e Vitelo (Teodorico de Friburgo) (século XIII) eram cita-
dos pelos seus estudos "experimentais".
Contudo, apesar de Roger Bacon e de outros estudiosos defenderem uma
nova utilização da observação como base para a compreensão do Universo,
era muito mais habitual confiar nos relatos fabulosos de Plínio o Velho (23-79) e
de outros antigos enciclopedistas. Mesmo a brilhante crítica da antiga física
do movimento, levada a cabo em Oxford e em Paris no século XIV, baseou-se
mais no raciocínio dedutivo e nas regras da lógica do que nos resultados da
nova evidência observacional.
Os cientistas do século XVI não desenvolveram de imediato uma moderna
compreensão do uso da experimentação, mas é evidente nos seus trabalhos
um maior recurso à evidência observacional do que anteriormente. Assim,
Bernardino Telésio (1509-1588) fundou a sua própria academia em Cosenza,
destinada ao estudo da filosofia natural. Rejeitando Aristóteles, cujos traba-
lhos pareciam discordar da Escritura e da experiência, virou-se para os senti-
dos como chave para o estudo da natureza. Igualmente interessante é John
Dee que, entre as suas ciências matemáticas, contava com Archemastrie, a qual
"ensina a trazer para a experiência sensível todas as conclusões aceitáveis de
todas as artes matemáticas utilizadas ... E porque procede por experiência e
investiga as causas das próprias conclusões na experiência, alguns denomi-
nam-na Scientia Experimenta/is. A ciência experimental". A designação "expe-
rimental" pode ser mais bem entendida como "observacional". O conceito da
moderna experiência controlada não fazia parte da metodologia de Dee.
TRADIÇÃO E REFORMA l9

A matemática e os fenómenos naturais

Seguramente não menos importante do que o novo apreço pela evidência


observacional foi o desenvolvimento da quantificação e a crescente confiança
na matemática como uma ferramenta. Platão tinha enfatizado a importância da
matemática e o renovar do interesse no seu trabalho influenciou as ciências
nesta área. No período que nos propomos estudar, Gahleu avulta como uma
figura-chave neste desenvolvimento. Encarando a matemática como guia essen-
cial para a interpretação da natureza, Galileu procurou uma nova descrição do
movimento através da utilização da abstracção matemática. Ao fazê-lo, estava
ciente de divergir da tradicional procura aristotélica das causas.
Em combinação com a nova utilização da matemática na filosofia natural,
houve novos desenvolvimentos importantes na própria matemática. Os trabalhos
de álgebra de Tartaglia (1500-1557), Cardan (1501-1576) e Viete (1540-1603)
contribuíram muito para o seu avanço no século XVl - e entediantes cálculos
aritméticos foram bastante simplificados pela descoberta dos logaritmos por
Napier (1550-1617). E apenas um pouco depois do período em análise, regista-se
a invenção do cálculo através dos esforços independentes de Leibniz (1646-1716)
e Newton. Todas estas ferramentas foram rapidamente aproveitadas por cientis-
tas contemporâneos como auxiliares dos seus trabalhos.
Se perguntássemos o motivo desta utilização da matemática no século XVI,
poderíamos chegar a várias respostas. Uma delas seria a recente disponibiliza-
ção do trabalho de Arquimedes, o autor grego que mais se aproximava da
nova ciência. Os seus textos nunca se perderam completamente, mas existe
uma clara evidência de uma nova influência arquimediana em meados do
século XVI, com uma série de novas edições do seu trabalho. Outro factor
importante é a subsistência do interesse no estudo do movimento iniciado
pelos estudantes do século XIV em Oxford e em Paris. Poucas dúvidas exis-
tem de que Galileu, enquanto estudante, beneficiou desta tradição. Um ter-
ceiro factor era certamente o reviver platónico, neoplatónico e pitagórico.
Esta influência tinha frequentemente um sabor místico, mas, qualquer que
fosse a sua forma, era um importante estímulo para muitos cientistas da
época. Finalmente, poder-se-ia apontar a necessidade da matemática prática
associada às artes práticas e à tecnologia.

Tecnologia

É importante abrirmos aqui um parênteses para examinar este novo inte-


resse pela tecnologia. Embora se possa debater a extensão da relação, é claro
101 O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

que, pelo menos, os interessados na guerra necessitavam de estudos matemá-


ticos para a utilização do canhão e o navegador tinha de efectuar cálculos para
determinar a sua posição no mar. Este período testemunhou grandes avanços
na instrumentação, desde astrolábios práticos para o marinheiro a instrumen-
tos astronómicos volumosos construídos por Tycho Brahe. O telescópio, o
microscópio, os primeiros termómetros eficazes e diversas outras ferramentas
foram desenvolvidos por operários e cientistas. De facto, os cientistas encon-
travam-se pela primeira vez muito interessados no trabalho dos negociantes.
Tal pode ser parcialmente interpretado como uma revolta contra a autoridade
dos Antigos, visto que a maioria dos estudos antigos e medievais acerca da
natureza se encontrava totalmente divorciada dos processos empregues pelos
operários. O estudante da universidade medieval concordava com os Antigos
e raramente abandonava as bibliotecas e as salas de estudo. No Renascimento,
contudo, verifica-se uma grande mudança. Pode haver poucas descrições das
artes práticas nos livros do século XV, mas compêndios acerca de operações
mineiras começaram a sair das tipografias em 1510 e trabalhos similares nou-
tros campos apareceram pouco depois.
Contrastando com períodos anteriores, os cientistas e os médicos reco-
nheciam agora, abertamente, que o estudante deveria aprender com o homem
comum. Paracelso avisava os leitores de que:

"nem todas as coisas que o médico precisa de conhecer são ensinadas


nas academias. De vez em quando deve recorrer a idosas, a tártaros
que se chamam ciganos, a mágicos itinerantes, a aldeões mais velhos e
a muitos outros que são frequentemente desprezados. Deles obterá o
conhecimento, já que estas pessoas compreendem melhor estas coisas
do que todos os colégios universitários."

E Galileu começou candidamente os seus Discursos e Demonstrações


sobre Duas N ovas Ciências (1638 ), que marcaram uma época, com a
seguinte afirmação:
"A constante actividade que vós, venezianos, exibis no vosso famoso
arsenal sugere ao espírito estudioso um largo campo para investigação,
especialmente aquela parte do trabalho que envolve mecânica; porque,
neste campo, estão constantemente a ser construídos todos os géneros
de instrumentos e máquinas por muitos operários, alguns dos quais,
em parte por experiência herdada e em parte pelas suas próprias obser-
vações, se tornaram especialistas e peritos em diversas explicações."

Esta lista poderia ser muito aumentada se tivéssemos em consideração os


tratados de Agricola (1494-1555) e Biringuccio (fl. c. 1540) acerca da indústria
TRADIÇÃO E REFORMA j 11

mineira, a visão de Francis Bacon sobre o propósito prático da ciência e os


objectivos práticos enunciados pelas primeiras sociedades científicas. Restam
poucas dúvidas de que algumas áreas científicas progrediram porque a contri-
buição de operários e cientistas estimulou o estudo dos processos práticos.
Johann Rudolph Glauber (1604-1670) ficou tão encorajado pelos desenvolvi-
mentos que havia presenciado que previu a supremacia da Alemanha sobre
toda a Europa Ocidental, se os seus governantes seguissem o plano por ele
delineado em Prosperidade da Alemanha. Não obstante, mesmo que admitís-
semos este reconhecimento tardio da tecnologia pelo cientista, não houve res-
posta apreciável à tecnologia por parte da pequena comunidade científica até
ao século XVIII.

Misticismo e ciência

Um quarto factor na formação da nova ciência - e bastante improvável do


ponto de vista pós-newtoniano - foi o novo interesse renascentista numa
aproximação mística à natureza. Grande parte pode ser atribuído ao forte
reviver do interesse nos textos platónicos, neoplatónicos e herméticos. É ins-
trutivo notar esta influência inicialmente na matemática e depois no interesse
generalizado pela magia natural.
Do nosso ponto de vista, a matemática renascentista tinha o efeito de uma
espada de dois gumes. Por um lado, o novo interesse pela matemática favore-
ceu o desenvolvimento de uma aproximação matemática à natureza e o
desenvolvimento interno da geometria e da álgebra; por outro lado, redun-
dou em todo o género de investigações ocultistas relacionadas com o misti-
cismo dos números. Os estudos cabalísticos renascentistas encorajaram a
investigação numerológica mística das Escrituras, na esperança de que verda-
des de grande alcance fossem encontradas. De igual modo, quadrados mági-
cos e relações harmónicas pareciam fornecer alguma compreensão acerca da
natureza e da divindade. Mesmo na Antiguidade, esta tendência encontrava-se
incorporada na tradição pitagórica anterior à época de Platão. As especula-
ções numerológicas no Timeu continuariam a influenciar o mundo intelec-
tual durante a Idade Média, e com o reviver dos textos da Antiguidade Tardia,
no século XV, os mesmos temas foram novamente escutados.
É importante não tentar separar o "místico" e o "científico" quando se
encontram ambos presentes no trabalho de um único autor. Fazê-lo seria dis-
torcer o clima intelectual da época. Certamente não é difícil apontar as leis
matemáticas que governam os movimentos dos planetas formuladas por
I
12 O HOMEM E A NATUREZA NO RENASCIMENTO

Kepler ou a descrição matemática do movimento apresentada por Galileu.


Estas constituíram marcos importantes no desenvolvimento da ciência
moderna. Porém, não deve ser esquecido que Kepler procurou ajustar as
órbitas dos planetas a um diagrama baseado nos sólidos regulares, e a adesão
de Galileu aos movimentos circulares dos planetas nunca enfraqueceu. Tanto
Kepler como Galileu obtiveram conclusões fortemente influenciadas pela
crença na perfeição celeste. Hoje chamaríamos "científicos" aos primeiros
exemplos, não aos segundos. Mas impor a nossa distinção ao século XVI não
é correcto.
Robert Fludd fornece um óptimo exemplo de aproximação hermético-quí-
mica à matemática. Poucos teriam insistido mais do que ele em como a mate-
mática é essencial para qualquer estudo do Universo. Mas Fludd teria acres-
centado que o verdadeiro matemático deveria alargar a sua perspectiva. O seu
objectivo deveria ser mostrar as harmonias divinas da natureza através da
inter-relação de círculos, triângulos, quadrados e outras figuras, as quais indi-
cariam claramente as ligações entre o universo e o homem. Fludd procurava
uma nova aproximação à natureza e, tal como Kepler e Galileu, pretendia uti-
lizar a matemática como chave, mas a quantificação era para ele algo bastante
diferente do que era para os outros. Fludd acreditava que a matemática deve-
ria utilizar esta ferramenta para estudar a arquitectura geral do Universo. Não
deveria - como Galileu - estar preocupado com fenómenos menores, tais
como o movimento de um objecto em queda.
O caso da matemática é especialmente importante devido ao significado da
quantificação na ascensão da ciência moderna, mas a influência do oculto ou
do místico da filosofia helénica tardia teve um impacto mais profundo no pen-
samento do século XVI. Implícita no neoplatonismo e nas tradições cristãs
encontrava-se a crença na unidade da natureza, uma unidade que compreendia
Deus e os anjos num extremo e o homem e o mundo terrestre no outro. Havia,
também, a crença continuada na verdade da relação macrocosmo-microcosmo,
a crença de que o homem foi criado à imagem do Universo, e que existem cor-
respondências reais entre o homem e o macrocosmo.
A aceitação geral do macrocrosmo e do microcrosmo, juntamente com a
grande cadeia do ser, deu crédito à aceitação das correspondências existentes
em toda a parte entre os mundos celeste e sublunar. No mundo antigo, tais
crenças pareciam fornecer uma base sólida para a astrologia. Parecia razoável
admitir que as estrelas influenciariam a humanidade na Terra. No Renasci-
mento muitos concordavam que, de facto, as influências astrais afectavam a
Terra e o homem. Os textos herméticos acrescentaram um novo ingrediente a
TRADIÇÃO E REFORMA l 13

esta visão do mundo. O homem era agora encarado como um elo favorecido na
grande cadeia do ser. Tomando parte na Graça Divina, era algo mais do que o
recipiente passivo de influências astrais. E, visto que havia uma simpatia geral
entre todas as partes do Universo, o homem podia afectar o mundo supralunar
do mesmo modo que este o podia afectar. Este conceito teve uma utilidade
imediata em medicina através da doutrina das assinaturas. Esta doutrina postu-
lava que o verdadeiro clínico tinha o poder de procurar, com êxito, nos reinos
vegetal e mineral, as substâncias que se harmonizavam com os corpos celestiais
e, consequentemente, com o Criador.
Tudo isto se encontra estreitamente relacionado com o fundamento da
magia natural do Renascimento. O verdadeiro médico, do género de Para-
celso ou Ficino, era ao mesmo tempo um mágico que concebia a natureza
como uma força vital ou mágica. Um tal estudante da natureza poderia
aprender como adquirir poderes naturais desconhecidos dos outros e assim
espantar o povo, mesmo quando se sabia que estes poderes eram concedidos
por Deus e estavam disponíveis para todos. Para muitos, de facto, este parecia
ser um dos aspectos mais atractivos da magia. Assim, John Dee recordou os
dias de estudante em Cambridge, onde preparou um escaravelho voador
mecânico para uma representação no Trinity College da Paz de Aristófanes,
"na qual houve grande espanto, e muitos relatos sem fundamento se espalha-
ram acerca dos meios com os quais foi feito". O escaravelho de Dee vinha na
tradição das maravilhas mecânicas helénicas, mas ele também estava ciente de
que a verdadeira magia significava o estudo observacional das forças não
explicadas ou ocultas da natureza. Assim, na Magia Natural, Giovanni Bap-
tista Porta (1540-1615) explicou que a magia é essencialmente a busca da
sabedoria e que rião procura mais do que o "levantamento da totalidade do
curso da natureza". Alguns anos antes, Heinrich Comelius Agrippa (c. 1486-1535)
considerou a magia o mais perfeito conhecimento de todos e Paracelso igua-
lou-a à própria natureza, falando dela em termos de uma demanda religiosa
que conduziria o peregrino a um melhor conhecimento do seu Criador.
Para estes homens, a magia natural estava muito distante da mácula da
necromancia. Muito pelo contrário, a magia encontrava-se intimamente asso-
ciada à religião através da busca de verdades divinas na natureza criada. Con-
tudo, o cientista que estava disposto a aceitar o título de "mágico" podia
expor-se a situações perigosas. John Dee serve novamente de exemplo. Encar-
cerado ainda jovem devido ao seu interesse activo pela astrologia, a sua vasta
biblioteca foi posteriormente destruída por uma multidão em fúria. Apelando
aos seus leitores por compreensão, perguntou-lhes se realmente pensavam
14 / O HOMEM EA NATUREZA NO RENASCIMENTO

que ele era louco a ponto de "abandonar a luz da Sabedoria Celeste e ocultar-se na
masmorra do Príncipe das Trevas?" Apesar das acusações que haviam sido
proferidas, considerou-se "inocente, de mão e coração, de infringir quer as
leis de Deus, quer as dos homens, em qualquer dos meus estudos de exercí-
cios filosóficos ou matemáticos".
Na realidade, a magia natural do século XVI era uma nova tentativa para
unificar a ciência e a religião. Segundo os hermetistas e os mágicos naturais, os
trabalhos de Aristóteles estavam maculados por conceitos heréticos, e eles
relembrariam repetidamente que os conselhos eclesiásticos tinham condenado
muitos destes erros aristotélicos. Sendo este o caso, por que razão Aristóteles e
Galena constituíam ainda o fundamento do ensino universitário, quando havia
outra interpretação da natureza por intermédio da magia natural e filosofia do
oculto - assuntos cuja própria existência dependia das Sagradas Escrituras?
Como poderia algum cristão preferir o ateu Aristóteles a esta nova e pia dou-
trina? Na verdade, argumentavam, o conhecimento apenas pode ser obtido pela
Graça Divina; quer por alguma experiência como a iluminação divina de Santo
Agostinho quer, então, por meio de alguma experiência na qual o adepto
pudesse atingir o seu objectivo com o auxílio da revelação divina. O conteúdo
religioso do hermetismo do início do século XVII é evidente no trabalho de
Thomas Tymme (falecido em 1620), que escreveu (1612):

"o Criador Todo Poderoso dos céus e da terra... colocou diante de


nós do is livros fundamentais: o d a natureza e o da Sua palavra
escrita ... À sabedoria do livro da natureza, os homens chamam vul-
garmente filosofia natural, que serve para atrair para a contemplação
do grande Deus incompreensível, para que O possamos glorificar na
grandeza do Seu trabalho. Por causa dos movimentos que regem o
mundo ... da ligação, da con cordância, da força, da virtude, e da
beleza dos elementos ... há tantas naturezas e criaturas diferentes no
mundo, existem tantos intérpretes para nos ensinar que Deus é a sua
causa eficaz e manifesta-Se neles, e por eles, como a sua causa final
para quem também se encaminham."

Thomas Tymme escreveu estas palavras para explicar por que razão tinha
preparado um livro dedicado à natureza, à geração dos elementos e a outros
tópicos essencialmente científicos. Para um autor como Tymme, a ciência e a
observação da natureza eram uma forma de serviço divino, uma verdadeira
ligação com o divino. Num certo sentido, a investigação natural era uma
demanda de Deus.
TRADIÇÃOEREFORMA l 15

O estudante da ciência renascentista deve então assimilar mais do que o


trabalho de Copérnico e as suas consequências ou a investigação anatómica
conducente à descobertà da circulação sanguínea. Quanto ao método cientí-
fico, o historiador deve preocupar-se com o novo interesse na matemática e
na quantificação, tendo o cuidado de não o separar de assuntos tão estranhos
à ciência moderna como a doutrina das assinaturas e a magia natural. De
facto, a nossa ciência actual deve muito a essa busca de um nova síntese do
homem, da natureza e da religião, que caracterizava o trabalho de muitos
cientistas e médicos há quatro séculos atrás.

A ciência e a medicina do Renascimento foram muito influenciadas por


três figuras do século XVI - Nicolau Copérnico (1473-1543), André Vesálio e
Filipe Aurélio Teofrasto Bombasto von Hohenheim, também chamado Para-
celso - e três figuras da Antiguidade - Arquimedes, Galeno e Ptolomeu. Estes
nomes marcaram o mundo erudito aproximadamente na mesma altura. De
facto, De revolutionibus orbium celestium (Copérnico), De humani corporis
fabrica (Vesálio) e as primeiras traduções em latim dos trabalhos de Arquime-
des apareceram todas em 1543.
O trabalho de Paracelso começou a afectar o mundo erudito pouco após a
sua morte em 1541, quando os seus manuscritos dispersos foram reunidos e
publicados pela primeira vez. É o seu trabalho que abordaremos em seguida,
na medida em que, mais do que os outros, Paracelso pode ser visto como o
arauto da Revolução Científica. Todavia, e apesar do seu apelo a uma nova
aproximação à natureza ser acompanhado de um venenoso ataque aos discí-
pulos dos Antigos, Paracelso simbolizava o Renascimento na sua prontidão
em utilizar livremente como seus os próprios textos e autores que rejeitava
nos seus escritos.

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