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Introdução

moderna faz ressaltar duas concepções, as quais


A CRÍTICA
eleva, propriamente, a cânones da ciência historiográfica.
Sob influência da teoria da evolução, pressupõe que existe uma
continuidade em toda a história; que o presente tem raízes pro-
fundas no passado; que "mudam-se os tempos, mudam-se as von-
tades", mas sempre devagar e gradualmente; que não se contam
mais cataclismas na história da humanidade do que no curso da
formação e do desenvolvimento do planeta Terra. Em segundo
lugar, sustenta que a única maneira razoável de julgar o passado
é à luz do espírito contemporâneo, da mesma época tomada em
particular, e não desde a perspectiva do presente. Hoje, de fato, é
malvisto o historiador que não confere a devida importância ao
Zeitgeist dos dias passados.
Ramo de investigação não há que, sob o efeito desses câno-
nes, tenha passado por mudanças tão notáveis quanto as operadas
nos estudos medievais. Boa parte do que se tomava por verdade
histórica em determinadas áreas, e isso num recuo de cinqüenta
anos, foi simplesmente aniquilada. Nossas idéias sobre esse perí-
odo fascinante se alteraram a tal ponto que, às noções tradicionais,
na sua quase totalidade, o estudioso moderno ora responde com
desconfiança. "As coisas", adverte, "podem não ter sido como nos
levaram a crer".
É desse ponto de vista que o autor se propõe a investigar uma
fase da cultura da Idade Média. O objetivo desta monografia é
apresentar um estudo intensivo, submetendo à prova dos dois
cânones supracitados o material colhido e arrolado. Em poucas

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AS SETE ARTES LIBERAIS INTRODUÇÃO

palavras, o problema foi descobrir como o espírito irresistível da a sua crítica; o Prof Thorndike, gentilmente, apreciou o texto con-
mudança e do ajuste interagiu com o espírito da tradição na esfera forme saiu do prelo. Ao meu colega, Sr. Robert I. Raiman, agra-
singular da vida medieval. Tal empresa, claro, só se poderia arti- deço as valorosas sugestões sobre redação e estilo. Acima de tudo,
cular de uma maneira: mediante um amplo estudo das variadas porém, sou especialmente grato ao Prof. James Harvey Robinson,
sortes de instrumentos de que dispôs a educação do período, isto da Columbia University, a quem devo o meu próprio interesse por
é, as influências que moldaram o homem letrado comum. essa fase da cultura medieval. Todo o mérito que se possa atribuir
A investigação, portanto, restringiu-se a definir os limites do a este ~rabalho, deve-se, integralmente, ao seu estimulante magis-
currículo das sete artes liberais; a determinar o escopo de cada tério, à sua crítica aguda e ao seu conselho fraterno.
uma das disciplinas; a revelar qualquer traço característico da
quantidade e qualidade da instrução oferecida pelas escolas me-
dievais; e, finalmente, a compreender a relação entre a educação
liberal, toda a riqueza de conhecimento possuída pelo mundo PAUL ABELSON
nesse período e o esquema da Weftanschuung* medieval. Bryn Mawr Park, Yonkers, NY
Naturalmente, o material necessário a uma pesquisa dessas, 31 de março de 1906
bem como a tudo quanto os alemães chamam, convenientemente,
Kulturstudien, não se encontra na superfície de um filão histórico
qualquer. Com efeito, foi preciso procurar todo o campo da his-
tória medieval, entre resíduos e despojos, os dados que lançassem
luz sobre questões implicadas. As conclusões que se apresentam
'aqui têm fundamento num exame detalhado das obras didáticas
em uso nas escolas que, ao longo dos períodos abordados, ofere-
ceram educação superior nas sete artes liberais. Possibilitaram-na
os resultados de investigações recentes no campo da literatura la-
tina, de pesquisas sobre a história das ciências matemáticas e, em
alguma medida, sobre a história da filosofia. A grande massa de
periódicos especializados, franceses, mas em especial alemães, tem
exibido resultados positivos e negativos. Contamos ainda com es-
tudos intensivos sobre as condições gerais da cultura em porções
limitadas da Europa Ocidental.
Gostaria de expressar minha gratidão aos professores D. E.
Smith, Paul Monroe e E. L. Thorndike, do Teachers' College,
Columbia University, pelo auxílio que me prestaram na prepa-
ração desta monografia. O Prof Smith leu os capítulos sobre o
quadrivium, e brindou-me com diversas e boas sugestões; o Prof
Monroe passou por todo o texto, e fez, com todo o escrúpulo,

* Cosmovisão - NT.

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CAPÍTULO I

o desenvolvimento do currículo
das sete artes liberais

O DESENVOLVIMENTO histórico do currículo que integra as


sete artes liberais tem recebido pouquíssima atenção dos
estudiosos. 1 É bem verdade que, no atinente a várias questões de
grande interesse, as fontes à mão são escassas, e as opiniões das
autoridades, conflitantes. Todos, entretanto, concordam no fun-
damental: que o ciclo das artes liberais na Idade Média foi, his-
toricamente, um desdobramento dos sistemas grego e romano de
educação; que desse programa de estudos, uma vez alterado pela
Introdução dos ideais cris~, desenvolve~e, e.0uco a POuCQ.....9
currículo medieval. No presente capítulo, percorreremos breve-
"inente a rota de~s; evolução.
A educação grega, nos primeiros tempos, consistia no estudo
da música e em ginástica.2 À medida que evoluíram tanto a vida
como o pensamento grego, a disciplina da música ampliou-se, a
ponto de abarcar a poesia e as letras. No esquema ideal de Platão,
a educação dos "guardiões" mirava a integralização do que cha-
maremos ensino primário, secundário e superior. O primário -
ginástica, música, letras (i.e. gramática) - seguiria até os vinte
anos de idade. O secundário, entre os vinte e os trinta, contempla-
ria a ciência - aritmética, geometria, astronomia e teoria musical
- e o superior, dos trinta aos trinta e cinco, o estudo da filosofia,
preparação final para vida prática do cidadão ideal. Temos aí, nas
duas primeiras etapas do programa, um possível prenúncio da
~eparação entre o trivium e o quadrivium1..
O currículo de Aristóreles, destinado a servir de base para os estudos
superiores, consistia em (1) leitura e escrita, (2) ginástica e (3) música,

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AS SETE ARTES LIBERAIS o DESENVOLVIMENTO DO CURRÍCULO DAS SETE ARTES LIBERAIS

por vezes desenho. Ele também considerava a ginástica e a música ter- Na primeira metade do século III, deparamos um escritor que
renos fundarnenraís," Suas idéias sobre educação nos chegaram de ma- alude a gramática, retórica, geometria, aritmética, astronomia e
neira assaz fragmentária: a despeito de certas teorias, não há evidência música, e o faz de tal modo que não restem dúvidas de que ele
• alguma de que ele tenha instituído a integração de gramática, retórica, as tomasse como artes liberais.'? A dialética, segundo ele mesmo,
dialética, aritmética, geometria e astronomia ao currículo preparatório ainda era considerada uma disciplina superior.
da educação grega, e tampouco o livro VIII da Política, fonte única do Afigura-se, portanto, que o currículo grego teve, até depois de
seu pensamento educacional, dá-nos a entender que essas disciplinas Alexandre Magno, apenas três ou quatro disciplinas preparatórias:
do currículo avançado de Platão constituíssem igualmente o que já se letras, música, ginástica e desenho; que outras disciplinas, como a
chamou de "programa aristotélico de ensino secundário"> Na falta de íalética e a matemática, foram-lhe acrescentadas à medida que o
uma exposição definitiva das suas idéias sobre o tema, é razoável supor conhecimento se expandia; e que desse modo veio a consolidar-se
que convergissem com as de Plarão, exceto, talvez, em que o seu plano na Hélade livre um ciclo de estudos que era tido como o mínimo
para o adestramento científico do homem requeria mais de ciência TnJispensável ao cidadão médio. Conquanto não houvesse à época
natural do que de matemãrica." Mas mesmo esses "estudos científi- 7m número definitivo de disciplinas, pelo menos seis ou sete das
cos", quer matemáticos, quer biológicos, foram jamais tomados como que mais tarde formaram o currículo medieval eram já estudadas
parte do currículo que ao menino grego coubesse estudar sem antes ~ primeiro século da nossa era."
ter-se tornado "efebo".J -Passando a Roma, observamos que as idéias gregas sobre educa-
De encontro aos "estudos científicos" vieram os sofistas e os "es- çã~ começaram a adotar-se só depois da Segunda Guerra púnic;.-
tudos práticos": a sua ascendência fez da retórica, e não da ciência """"FIi1Clado o primeiro período de inovação, quando a educação do
natural, a disciplina essencial do ensino superior. Um dos efeitos jovem romano era conduzida por mestres gregos e em língua
dessa mudança foi a necessidade de introduzir-se alguma carga de grega, houve grandes esforços para a fundação de uma literatura e
matemática no currículo preparatório, dado o grande valor que de uma educação nacionais. Esse período marca o surgimento das
lhe atribuíam os gregos. Assim, constatamos que, no século III, a primeiras obras didáticas em latim. Varrão (116-27 a.Ci), contem-
preparação do jovem grego consistia no estudo das seguintes dis- orâneo de Cícero e de César, tentou, como eles, criar um sistema
ciplinas: ginástica, gramática (rudimentos da linguagem), música, de educação baseado nas idéias gregas, mas cuja matéria-prima
desenho, aritmética e geometria - as duas últimas distintamente }osse a literatura romana. Para tal, Varrão escreveu sobre todas as
mencionadas como as mais avançadas. Temos, outra vez, um pre- disciplinas ensinadas na Grécia do seu tempo, apenas omitindo o
núncio da separação entre o trivium e o quadrivium, divisão con- desenho e inserindo a astronomia. A sua obra, hoje perdida, reu-
sagrada apenas em tempos posteriores." No mais, não se registram nia sob o título Disciplinarum libri novem tratados de gramática,
alterações no currículo grego até o final do século I da Era Cristã. retórica, dialétICa, geometria, aritmética, astrologia, música, me-
Nos escritos de Fílon de Alexandria (ca. 30 a.Ci) há referências dicina e arquitetura.'? Não há dúvida de que os livros se destinas-
freqüentes às artes liberais. A não ser pela ginástica e pelo desenho, sem às escolas secundárias, as quais então já distinguiam-se das
constam da sua lista todas aquelas que se praticavam três séculos escolas retóricas, mais avançadas. O currículo secundário dessa
antes do seu tempo - entre elas, porém, Fílon inclui a retórica época trazia a gramática no seu sentido estreito, e assim também
e a dialética. Todas essas disciplinas são tratadas como estudos a literatura, a geometria e a música, numa repetição do currículo
preparatórios, nitidamente diferenciados da educação superior, a grego do século III a.C."
filosofia. A astronomia, na classificação de Fílon, não tem lugar Sêneca (2 a.C.-65 d.C.), uma autoridade do seu tempo no
entre as disciplinas preparatórias.? respeitante ao que nos interessa, não limitou a sete as disciplinas

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AS SETE ARTES LIBERAIS
o DESENVOLVIMENTO DO CURRÍCULO DAS SETE ARTES LIBERAIS

secundárias. Com efeito, suas idéias sobre o que constituísse o Desse modo, enquanto se via um declínio no âmbito do ensino
círculo da educação liberal parecem ter sido bastante indefinidas: superior, a escola secundária enriquecia-se com elementos da retó-
ora gramática, música, geometria, aritmética e astronomia; ora a rica e da dialética. O currículo da escola romana do período con-
•• medicina também se habilita; ora a retórica e a dialética são estu- sistia, portanto, no estudo superficial de elementos de gramática,
dos avançados, logo pertencentes à filosofia."
retórica, dialética, aritmética, geometria, música e astronomia.
Tampouco Quintiliano (25-95) parece ter sustentad.,? ~lguma Era esse, com toda a certeza, o padrão vigente nas escolas pagãs
cõ~ção das sete artes liberais. Diz de que o treinamento ofu:.e-
em [níciqs do século IV.
cido pelo grammaticus de fato cobria a Éy~KÀLa T«~.!.Ôeía[enky.k1iB.. As evidências a esse respeito se nos mostram bastante convin-
paideia], mas o ciclo preparatório reservado ao seu aluno-modelo centes à luz dos últimos estudos sobre De nuptiis Philologiae et
de oratória consistia apenas em gramática, um pouco de música,
Mercurii, de Marciano Capela." Considerando-se o pouco que
geometria e astronomia - e mesmo essas disciplinas, à exceção se sabe da sua vida, é muito improvável que Capela tenha sido o
da gramática, trata<hs' de um modo superficial. Até os dezes§~is formulador de algum currículo, de maneira que a sua obra, a qual
anos de idade, essa era toda instrução que os meninos recebiam." descreve o conteúdo das sete artes liberais - gramática, dialé-
Vemo-nos agora ainda mais longe das sete artes liberais. Ao que tica, retórica, geometria, aritmética, astronomia e música, nessa
tudo indica, a influência de Varrão em nada contribuiu para a per- mesma ordem - parece mais refletir os padrões da sua época.
manência do currículo que ele modelara à semelhança do grego. A fim de retratar as artes liberais em poesia, Capela voltou-se,
O malogro da sua tentativa de estabelecer em Roma um currí- naturalmente, à obra de Varrão. Este, "vir Romanorum eruditissi-
culo grego modificado deveu-se ao fato de que, passado pouco mus", era decerto, para um provincial africano como Capela, uma
tempo, vieram a tomar-se como estudos avançados a retórica e a autoridade digna de se seguir em termos de estilo e conteúdo."
dialética. Assim, se comparado ao modelo grego, que os romanos A obra de Capela, como a de Varrão, divide-se em nove livros,
claramente intentaram seguir, o programa secundário de Roma ainda que as artes retratadas sejam apenas sete; os dois primeiros
era um tanto menor. Em primeiro lugar, o período próprio à edu- livros compõem a introdução alegórica. Corrobora-se, então, na
cação secundária era mais curto, estendendo-se até os dezesseis similaridade entre as formas de apresentação, a hipótese de que
anos de idade, e não até os vinte e um, como na Grécia. Ademais, ele acompanhasse Varrão no entendimento das matérias: segundo
a índole romana fez rejeitar do currículo tudo quanto não fosse o próprio Capela, a omissão da medicina e da arquitetura, ambas
de natureza prática, donde o estudo da matemática, em que os abordadas na obra de Varrão, deu-se a título de preservação do
regos, contemplativos, deleitavam-se, ter-se reduzido ao mínimo. cenário mitológico da sua alegoria.'?
Quintiliano recomendava estudos em geometria, aritmética e as- ~Pode-se olhar para o século IV somo_ o período em que o currí-
ronomia, mas tão-somente enquanto estudos práticos.
culo das escolas pagãs de todo o império assumiu o caráter estável
As escolas romanas, parcialmente helenizadas, conservaram e um programa de artes liberais. Esses anos de transformações
sua eficiência e praticidade por algumas gerações, até que o século
wciais e políticas marcaram as fases finais da evolução de um pro-
III assistisse ao começo de um declínio. Instalava-se o espírito da
grama de estudos que, por intermédio da escola pública - ins-
superficialidade, e tudo era sacrificado em nome das necessidades
tituição característica do império tardio -, revelou-se talvez o
práticas do dia. Exceto na Gália e na Hispânia, onde traços regio- meio mais eficaz de preservar a cultura da Antigüidade clássica.
nais encorajavam o estudo da retórica e o mais elevado cultivo da Não obstante, ao longo dos três séculos da sua cristalização, esse
eloqüência, o currículo, em geral, contraiu-se, e o grammaticus, tal currículo foi visto com profunda desconfiança pelos líderes cris-
como previsto por Quintiliano, apossou-se do trabalho do rhetor" tãos. Homens como Orígenes, Tertuliano e Jerônimo consideraram

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AS SETE ARTES LIBERAIS o DESENVOLVIMENTO DO CURRÍCULO DAS SETE ARTES LIBERAIS

essas mesmas escolas as mais formidáveis oponentes da nova re- cristão a empregar o termo "se'::. artc:.s liberais:'. Em De artibus
ligião - e à luz do que estava em jogo na disputa, suas denún- ;tdiscipliniis liberalium literarium, obra complementar ao seu De
cias veementes contra a educação pagã tornam-se no mínimo institutis literarum sacrarum, Cassiodoro acompanha Agostinho
I.' compreensíveis. em afirmar a necessidade dos estudos liberais como preparação
O final do século IV assistiu, porém, a uma mudança decisiva: para os estudos sacros, e vale-se das Escrituras para mostrar que
o triunfo dos ideais cristãos foi total, e a decadência da antiga sete devem ser as disciplinas: "A sabedoria edificou para si uma
educação em quase todo o império foi tão notável quanto o ocaso casa, levantou sete colunas" (Pr 9, 1). Essa passagem dá susten-
do paganismo. Agora que as escolas pagãs já não mais ameaçavam tação conclusiva aos seus argumentos, e que ele a tenha citado é,
a supremacia da Igreja, os líderes cristãos podiam debruçar-se de- com efeito, significativo. Isso quer dizer que os próceres cristãos
sapaixonadamente sobre os méritos do antigo currículo. Não foi daquele tempo admitiram a necessidade de incorporar ao seu cur-
preciso grande esforço da razão para notar que as escolas retóricas rículo os estudos seculares; e como esses estudos, já por um século
da Gália, no seu declínio entre os séculos IV e V, eram menos do e meio, tinham sido sempre sete, era também necessário explicar,
que inúteis do ponto de vista cristão, ao passo que a matéria da de um ponto de vista cristão, que esse número fora divinamente
instrução que elas ofereciam - literatura, retórica e dialética - sancionado .. Com Cassiodoro, fixaram-se tanto o número como
era de real valor para o estudo da teologia. Foi essa, na verdade, as próprias disciplinas do currículo medieval; Sua aUlorid,ade, so-
a opinião predominante entre os fiéis do novo credo desde o pri- ~ada à de Agostinho, foi o bastante para imprimir a esse pro-
meiro momento de tensão com o paganismo. Mesmo as respecti- grama a rigidez que se conservaria por quase nove séculos. O tr~-
vas gerações de Orígenes, Tertuliano e Jerônimo freqüentaram as balho de ambos marca a transição final do currículo pagão par,a
escolas em certa medida, e se um bom cristão, consciencioso, não ~ndo das letras.,
se podia tornar professor de retórica, por outro lado não lhe cabia ~artir de Ç.assiodoro, o )ermo "sete artes liberais" p-ªssa.i1
censura por estudar em instituições pagãs.ltarece razoável que, no expressar comumente o ciclo preparatório de estudos seculares.
correr do século V, os cristãos não objetassem à introdução das sete lsIdoro de Sevilha emprega-o tanto quanto fala de trivium-e qua-
artes liberais de Marciano Capela num currículo que se intentava ~rivium,24 da mesma forma que Alcuíno, Rábano Mauro e os es-
preliminar ao estudo da teologia. colásticos. O termo estabeleceu-se de tal forma que não raro' as
'A incorporação de elementos do currículo pagão foi incenti- ãrtes liberais foram tema de poemas e pinturas." '
vada pelo próprio Agostinho (354-430), autor de tratados sobre
gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria e música -
seis das sete disciplinas do currículo medieval." Sua influência, @
sob a invocação da justificativa bíblica ao "despojo dos egípcios",
foi decisiva para que a Igreja reconhecesse as artes liberais como
disciplinas adequadas à educação cristã. Embora não tenha con- Resumindo-se os dados desta primeira investigação, podemos
cebido o currfculo das sete artes liberais, Agostinho, mais do que fazer as seguintes generalizações:
qualquer outro, possibilitou sua adoção generalizada pela cristan-
dade ocidental. 22) 1. Em aproximadamente cinco séculos de desenvolvimento
Com o apoi;cte autoridade tão ilustre, foi natural que as artes educacional, os gregos chegaram a um currículo de sete ar-
liberais, seculares, tivessem garantida a sua posição no currículo tes liberais. Todo o conteúdo desse currículo foi conservado
medieval." Cassiodoro (480-575), ao que se sabe, foi o erimeiro para Roma, e em latim, por Varrão .
. ~

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AS SETE ARTES LIBERAIS

2. Roma adotou parcialmente esse currículo somente en-

.
'

3.
tre o período final da república e os primeiros tempos do
império .

Já no declínio do império, deu-se um notável retorno ao cur-


rículo grego na sua integral idade. Sua forma e conteúdo fixa-
ram-se de uma vez por todas ao final século III da nossa era. CAPÍTULO 11
4. O cristianismo, triunfante, julgou necessário apropriar-se
do conteúdo desse currículo, a fim torná-lo disciplina pre- Gramática: o estudo prático do latim
liminar ao estudo superior da teologia.
5. Admitido o valor dos estudos seculares, as autoridades cris- arte liberal, a gramática teve na Idade Média um al-
C
OMO
tãs seguiram a linha do menor esforço: adotaram in toto o cance muito maior do que o termo hoje implica. A palavra
currículo pagão que existia, consagrando a sua escolha com "gramática" foi introdu~a e_m Roma no período helenístico, e
a sanção das Escrituras.
~ ter lá o mesmo, sentido que então assumira no mundo grego:
6. O espírito da tradição, tão próprio ao período, foi forte {;""estudo da literatura.' Naturalmente, foi essa a perspectiva to-
o bastante para manter a estabilidade desse currículo no ~da pelos autores de obras didáticas naldade Médía? -
curso de toda a Idade Média. Essa disciplina fundamental mirava, portanto, o domínio da lin-
g~gem universal daquele tempo, a língua da Igreja e do Estado,
laço de união entre as classes letradas de toda a Europa Ocidental.
Mas não será da amplitude conferida pelos próprios gramáticos
à definição da disciplina que dependerá a nossa avaliação sobre o
peso da gramática no currículo medieval; o nosso norte, em úl-
tima instância, serão os verdadeiros objetivos e resultados da ins-
trução. Quai~eram, afina1..2s seus objetivos? Em ~meiro lugar,
o domínio prático da língua latina, rota segura para o alto conhe-
cimento; em segundo, a apreciação das suas formas literárias. .
Este capítulo dedica-se a examinar o real escopo, cont~do e
método do ensino da gramática. Em outras palavras, tentaremos
descobrir como o jovem aluno de uma escola medieval era ins-
l:,uído em latim~ u~ãIíngua que não lhe era a materna, de iD'a~
~eira que, dentro de três ou_~atro anos, ele a tivesse como meio
~expressão cotidiana n~m ambiente de estudos. O próximo
capítulo reserva-nos tarefa mais complicada, isto é, encontrar
uma resposta satisfatória à controversa pergunta: ''Até que ponto
~ino da gramática previsto no currículo d~senvolvia a caPa-
cidade de apreciação literária?". ---

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AS SETE ARTES LIBERAIS GRAMÁTICA: O ESTUDO PRÁTICO DO LATIM

Não há dúvidas de que o objetivo prático, a aquisição do idioma ele introduzia oportunamente algum colloquium, uma espécie de
para fins de comunicação, fosse sempre alcançado ..l Nesse traba- manual de conversação. Não havendo um à mão, ajudava-lhe o
lho, porém, o professor medieval estava à própria sorte, pois o mé- engenho'a compilar o seu próprio."
todo em voga na Roma Antiga, qualquer que tenha sido, não ti nha O trabalho do professor só aumentava depois de os seus alunos
a menor utilidade para o ensino do latim como língua estrangeira terem dominado esses rudimentos, pois aí se fazia necessário um
- fato esse que torna o problema ainda mais interessante. livro adequado para uma criança de onze anos de idade. Provê-Ia
Se carecemos de um registro autêntico e integral do método de tal livro é, sem dúvida, mera questão de pedagogia. Nos nos-
empregado na instrução em latim, ainda é possível, em certa me- sos dias, quando o professor, constantemente achacado por uma
dida, reconstituir a vida escolar nesse período." Com base em vá- pletora de livros, tem-se pasmo ante a variedade de opções ao seu
rias fontes, estabeleceu-se que o menino medieval já soubesse pro- dispor, a gravidade que o problema tinha para o professor medie-
nunciar e escrever palavras latinas, bem como dizer as orações em val mal pode ser estimada. E, todavia, a solução encontrada põe
latim, quando iniciava o estudo da gramática. Três anos de canto e à prova a nossa admiração. Embora as circunstâncias obrigassem
de recitação dos salmos tinham já fortalecidoã sua memória ~e cada mestre-escola a compilar o seu próprio livro, todos utiliza-
'ensinado as quantidades latinas, ainda que, àquela altura, ele não ram-se de material similar. Parecem ter partilhado o mesmo en-
soubesse o Significado das palavras.t tendimento sobre uma situação pedagógica enfrentada por todos,
Assim o grammaticus dava início ao trabalho de apresentar o mais ou menos da mesma forma.
menino à gramática latina. O seu ponto de partida, claro, eram Nas suas incursões pela filologia, pelos antiquários e pela
as partes do discurso. Era preciso um texto básico, em que as re- Kufturgeschichte,* os historiadores modernos têm lançado luz sobre
gras elementares viessem ilustradas com palavras simples. Nos um sem-número dessas obras. Algumas, conquanto representem o
dias de hoje, os problemas com que o professor se deparava se- trabalho de uma vida, jamais atingiram a popularidade para além
riam considerados invencíveis; os livros eram escassos, e por vezes da escola onde atuava o seu autor; outras, mais célebres, foram usa-
nem um único aluno em toda a sala possuía uma cópia do texto. das com certa freqüência aqui e ali; mas poucas foram conhecidas
Que progresso faria um professor moderno ao ensinar uma língua em toda a cristandade, de maneira que escola alguma pudesse rei-
estrangeira sem o amparo de copiosos manuais? O mestre-escola, vindicar distinção enquanto não se as houvessem estudado intra-
porém, sem se deixar intimidar, tirava o máximo da sua própria muros. Esses pequenos livros são verdadeiros monumentos de ha-
cópia, sempre surrada, não raro imperfeita. pia após dia, lia em bilidade pedagógica. Vindos de tantas partes da Europa Ocidental,
voz alta uma determinada seção, a qual explicava cuidadosamente, o que reduz ao mínimo as possibilidades de plágio, trazem notáveis
traduzindo par; o-vernáculo as palavras mais difíceis; os meninos, evidências de similitude no que diz respeito à escolha e à aborda-
nas suas tábuas de cera, copiavam frases simples e ilustrativas, e na gem do material. Lendas e narrativas, provérbios e ditos popula-
aula seguinte, tendo recitado a lição anterior, tinham de avançar ~, fatos do cotidiano particularmente interessantes: disso tudo
do mesmo modo sobre outra porção do texto. O processo conti- compunha-se o universo dos pequenos leitores.
nuava, somente variado por freqüentes revisões, até que os alunos Mas não é esse o único fato impressionante sobre os livros didá-
tivessem memorizado um certo número de regras e aprendido o ticos. Ainda mais significativas são as mudanças e adaptações, tanto
significado de várias palavras do uso diário. Entretanto, ao perce- no material como no método, que os autores fizeram para adequar-
ber que os meninos aprendiam depressa as palavras novas, o pro- -se ao espírito e ao temperamento das suas respectivas gerações.
fessor, nas suas explicações, passava gradualmente do vernáculo
para o latim. A fim de facilitar a aquisição de palavras cotidianas,
• História cultural - NT.

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AS SETE ARTES LIBERAIS GRAMÁTICA: O ESTUDO PRÁTICO DO LATIM

A nós nos parece natural que o New England Primer* do século sugeriria com nitidez. O texto pode ser considerado representativo
XVIII perdesse o lugar para um livro mais interessante aos olhos de um período de transição: a primeira Idade Média, quando era
do menino do século xx. Raramente procuramos tais mudanças de uso corrente. Sua popularidade em nada foi comprometida pelo
na Idade Média, e contudo não só as houve, mas foram tão acen- fato de abundar em traços de estoicismo; a Europa Ocidental ainda
tuadas quanto as de hoje. Desse modo, nos tempos que se segui- precisava da herança clássica, o bastante para não se desfazer de
ram à dissolução do império, os livros utilizados em sala acusavam obra tão útil. Assim, essa era de fé pôs nas mãos dos seus meninos,
grande dependência dos métodos romanos; foram-se ajustando de os botões da Igreja, um livro tão meticuloso em evitar questões de
geração em geração, e já na alta Idade Média as peculiaridades ortod;xia, que os zelosos suspeitaram ser-lhe o autor um pagão.
clássicas haviam praticamente desaparecido. Diríamos, em pa- O Liber proverborum de Orla foi composto no século x, em
lavras modernas, que o mestre-escola entendeu o "princípio da ~e para suplantar os Discticha Catonis. À sua geração, natural-
apercepção",?
, ~e soaria mais interessante um livro baseado em fontes bíblicas
Como é de supor, o espírito da época ditava que jamais a dis- e parrÍsticas do que outro qualquer baseado em autores profanes."

-.
ciplina em si mesma ofuscasse o objetivo geral da educação, isto Com Deliciae cleri, de Arnulfo, marca-se mais um passo de
é, o bem viver segundo o cristianismo. Na verdade, todas essas afastamento dos romanos e aproximação de uma perspectiva pura-
obras didáticas baseiam-se, uniformemente, --
em duas idéias: ins- lTIei1temedieval; a obra assenta quase que por inteiro nas Escritu~as
. truir em latim e inculcar, por tabela, princípios éticos e religiosos. emgeral, e em particular nos Provérbios." Os Proverbia Wiponis,
Afigura-se, no entanto, que os autores variavam nos seus métodos, os chamados Scheftlarer Prooerbia e os Proverbia Henrici repre-
Uns empregavam material de caráter abstrato, outros preferiam o sentam ainda outro estágio na evolução das obras desse gênero.
concreto, e por vezes num só livro combinavam-se as duas coisas. Nelas o material deriva-se de fontes caracteristicamente nacionais
O modelo da primeira tendência foram os Disticha Catonis. - nem de autores clássicos, nem de autores cristãos. 11
A amplitude da utilização desse livrinho, datado aproximada- _Não obstante, a cartilha que mais despertava o interesse de alu-
mente do século IV, empresta particular interesse à análise do seu nos e professores era a qual se entremeasse de fábulas e narrativas.
conteúdo. De partida, os 143 dísticos da versão analisada podem 1.joutrina do mestre-escola moderno, segundo a qual, para as
ser classificados da seguinte maneira: crianças, melhor o concreto do que o abstrato, parece ter sido a
palavra de ordem do seu protótipo medieval. Nenhuma outra
l. O espírito da religião liipótese dá conta da impressionante quantidade dessas coleções.
17
..5:mbora passassem por obra de autores diversos, todas elas ba-
2. Autocontrole 35 _seavam-se firmemente nos cinco livros de Fedro, contemporâneo
3. Deveres para com os outros 35 de Tibérío, e na obra de Aviano, autor do século n. No século x,
4. Máximas prudenciais as fábulas de Fedro foram trabalhadas por um dito Rômulo, e
35 como tais fundamentaram todas as subseqüentes compilações
5. Informações variadas 218 medievais, tanto em latim como em vernáculo.'? Dentre as cole-
!ões em uso no final da Idade Média, podem-se destaca; o-Novus
Vê-se logo que esse livro não é de origem pagã, como geral- l!esopus e o Novus Avianus de Alexandre N eckham; nada menos
mente se supõe - algo que uma leitura atenta dos dísticos iniciais que sete manuscritos da sua obra, e em verso, foram encontrados
por Hervieux.13 O Phaedrus foi parafraseado e posto em prosa por
• A primeira carrilha publicada nos Estados Unidos _ NT.
monges que o quiseram empregar no magistério, e nada menos

24 25
AS SETE ARTES LIBERAIS GRAMÁTICA: O ESTUDO PRÁTICO DO LATIM

que 47 desses manuscritos foram já encontrados na França, no sul necessidades de cada tempo e da motivação da classe, demonstra
da Alemanha, na Inglaterra, na Bélgica e na Itália, ao passo que a grande habilidade do professor medieval, que em muitos casos
dos manuscritos em verso já se descobriram 112 na França, na ;; impelido a ser o autor da cartilha que os seus alunos haveriam
". Espanha, na Holanda, na Alemanha, na Inglaterra, na Áustria,
na Bélgica, na Itália e na Suíça. O corpus diretamente derivado de
de estudar.

Fedro bate a marca de 216 rnanuscriros.!'


Os tipos de obras didáticas descritos até aqui assinalam a ten-
dência geral em termos de método e abordagem no ensino pri-
mário do latim .. Mas, do século XI em diante, houve professores
que almejassem combinar o abstrato e o concreto e adaptar o ma-
terial aos gostos da sua própria geração ou nacionalidade." Esses
esforços encontraram a sua melhor expressão nos 2.473 versos que
compõem o primoroso Fecundia ratis, livro escrito por Egberto,
padre e submagister scholae em Liege, entre 1022 e 1024.16
Na sua exaustiva investigação, Yoigt demonstra que o objetivo
do autor era a criação de uma cartilha ideal, que apresentasse o
melhor da literatura sem no entanto extrapolar os limites da com-
preensão de uma criança. Para tanto, valeu-se do que era sacro e
profano, concreto e abstrato; fábulas e provérbios lado a lado com
os melhores escritos dos Padres da Igreja. Que Egberto dedicou a
essa tarefa um grande zelo vê-se pela quantidade de autores cita-
dos, direta ou indiretamente.
O livro contém uma imensidão de informações a respeito da
vida de estudos e assuntos congêneres. Quanto à forma, segue
uma linha de dificuldade progressiva, começando por sentenças
de uma só linha, até chegar, no final, a parágrafos com mais de
vinte. ~uanto ao conteúdo, semelhantemente, os 2.473 versos de
Fecundia ratis apresentam-se em graus de dificuldade cada vez
maiores: os primeiros 595 são provérbios e epigramas de uma li-
nha; os próximos 400 (596-1008), dísticos um pouco mais sofisti-
cados; os 760 seguintes 0008-1768) incluem fábulas de extensão
variada; e os últimos 600, tópicos teológicos e bíblicos~
Não restam dúvidas de que o mestre-escola medieVal apreciava
inteligentemente as dificuldades pedagógicas em torno do ensino
de uma língua estrangeira que se deveria tornar, para o aluno,
o meio de expressão mais cotidiano. Do mesmo modo, a gra-
dual modificação e adaptação dos materiais, sempre em vista das

26 27
CAPÍTULO I I I

Gramática: o estudo da literatura latina

ESCOPO

seus estudos introdutórios, como visto, o aluno adqui-


N
OS
ria os rudimentos do latim por meio das compilações de
provérbios e fábulas, em prosa e verso~ Também dominava, em
certa medida, as regras da composição e da prosódia, donde estar
pronto para a leitura de autores mais sérios.
Tal como na Grécia e em Roma, liam-se primeiro os poetas;

-
isso porque a poesia, além de ser ~is facilment~ ~izável,
propiciava meios mais adequados para o domínio das sutilezas da
língua. A escolha dos autores dependia sempre do gosto do profes-
sor e da acessibilidade das cópias - o viés religioso tinha, a esse
respeito, muito menos influência do que já se supôs.'
Porém, mesmo admitindo-se que os alunos freqüentassem os
autores latinos, persistem irresolutas algumas questões de grande
interesse. Em que medida se estudavam os clássicos? E com qu~
espírito? Quaiserãffi os autores preferidos~ Acaso o estudo dos
ClIssicos, conforme os-usos e os métodos da época, cultivava real-
mente uma apreciação da literatura em geral, e em particular da
literatura romana?
Essas perguntas são fonte de controvérsia desde a época dos hu-
manistas, de tal forma que dar-lhes uma resposta definitiva não
figura entre as possibilidades ao nosso alcance. No fundo, elas
implicam o problema imensamente variado que nos oferece o
uso dos clássicos durante Idade Média - um tema cuja história
ainda está por ser escrita.' Esse ponto sobre a educação medieval

29
AS SETE ARTES LIBERAIS
GRAMÁTICA: O ESTUDO DA LITERATURA LATINA

tornou-se, aliás, e não sem motivo, um campo de batalha para


1. Houve um interesse geral pela cultura literária nas escolas ~
protestantes e católicos. Um lado quer nos convencer de que
da Idade Média;
esse foi um tempo de ignorância generalizada; não poderia
ser diferente - é o que nos dizem -, dada a funesta ascen- 2. Os clássicos latinos foram mais estudados do que o mais
" dência da Igreja sobre a educação. Citam-se casos isolados de solidário estudante da cultura medieval poderia esperar.
barbarismo e frases mutiladas de umas poucas personalidades,
pressupondo-se, inocentemente, ser isso o bastante para levar a Que houvesse cultura literária nas escolas da Idade Média po-
3
discussão. O outro lado, zeloso para com a fé antiga, não so- de-se inferir dos seguintes fatos:
mente reafirma a assiduidade aos clássicos, mas também alega,
no auge do seu entusiasmo, ter-se aproximado a Idade Média Houve grande produção de bons escritos em latim, tanto
da educação básica universal. 4 •
em prosa com em verso, ao mesmo tempo em que se pro-
A atitude de autores recentes no que diz respeito a essa po- duziam os habituais calhamaços do período.?
lêmica indica uma reação a tais extremos. Esse novo ponto
de vista tem levado os pesquisadores a compilar, com toda • Parte das evidências de ignorância ou indiferença aos clás-
a diligência, listas e mais listas de alusões a autores clássicos sicos pertence à era das universidades, quando a escolástica
presentes nos escritos de autores medievais. Dessas compila- já transformara o espírito do tempo a influência da Igreja
ções, tiramos seguramente que os autores medievais, em maior sobre a educação diminuíra muito em relação ao período
ou menor grau, tinham familiaridade com os seguintes clás- anterior.
sicos: Plauto, Terêncio, Catulo, Lucrécio, Virgílio, Horácio,
Ovídio, Lucano, Marcial, Pérsio, Cícero, Sêneca, os Plínios, As queixas de João de Salisbury sobre o abandono dos clássi-
Quintiliano, Cornélio Nepos, César, Salústio, Lívio, Suetônio cos não podem passar por características desse tempo. Lidas na
5
e Tácito. Contudo, ao passo que essa generalização está de- íntegra, suas observações apontam que o estudo da gramática em
certo mais de acordo com o espírito da histografia moderna, as sentido amplo, isto é, como a leitura dos clássicos, era, na verdade,
evidências em que ela se apóia passam longe de ser conclusivas uma idéia ultrapassada, datada do período anterior ao advento da
- ainda não se provou que ao menos uma parte considerável escolástica."
dessas referências sejam de primeira mão. Os fatos, com efeito, Se olharmos com atenção para as condições educacionais da
indicam uma conclusão oposta. É bem sabido que o estudioso Idade Média, e não somente em um país, mas em toda a Europa
medieval, graças ao elaborado manual de Prisciano, COntava Ocidental, constataremos logo que em momento algum os clássi-
com uma extensa coleção de citações de todos os autores enu- cos sofreram de uma negligência comparável à que se tem suposto.
merados logo acima." Mas quanras dessas citações realmente Mesmo no chamado "período das trevas", entre os séculos VI e
representavam algo mais do que a mera familiaridade com a VIII, encontramos evidências inquestionáveis de que a Itália estava
obra de Prisciano? repleta de escolas - monásticas, catedrais e seculares, públicas e
Os parágrafos anteriores deixam claro que é impossível dar privadas.9
às questões levantadas uma resposta completa e definitiva. Há indícios suficientes para afirmar que a dita reforma caro-
Ainda assim, restam prováveis os seguintes pontos: língia não implicou um renascimento na literatura, mas apenas
uma transferência do letramento, por meio de Alcuíno e de Paulo
Diácono, da Britânia e da Itália para a França - mudança que

30
31
AS SETE ARTES LIBERAIS GRAMÁTICA: O ESTUDO DA LITERATURA LATINA

não foi temporária, senão permanente. Essa cultura, que se man- artes liberais é insuspeito, revela ter lecionado os seguintes auto-
teve no império reformado, é também encontrada nas cortes oto- s clássicos e cristãos, no século VIII: Virgílio, Ovídio, Pompeu,
re , .
nianas, pelas muitas escolas que, direta ou indiretamente, foram Sedúlio, Rutílio, Arátor, Fortunato, Juvenco e Prudêncio."
influenciadas pelos seguidores de Alcuíno. O interesse pelos clás- Walter de Speyer, educado em Speyer no final do século x,
" sicos não teve ruptura ao longo de todo o perfodo.'? debruçou-se sobre Virgílio, o Homero latino, Horácio, Pérsio,
Pesquisas verticais sobre regiões em particular, sejam quais fo- Juvenal, Estácio, Terêncio, Lactâncio, Boécio e Constantino du-
18
rem, demonstram a existência de um interesse constante, tanto rante osseus anos de instrução em gramática.
nas escolas monásticas como nas catedrais e ainda outras, pelo No mesmo século deparamos Gerberto, mais tarde Papa
estudo da gramática e da literatura. I I Silvestre II, a tratar, entre as outras disciplinas que ensinava em
A posição da Igreja medieval em relação aos estudos secula- Rheims, de Virgílio, Estácio, Terêncio, Juvenal, Pérsio, Horácio
res já foi bastante distorcida. Alguns afirmam que ela se opunha e Lucano. Tudo isso ele considerava preliminar ao estudo da re-
por completo ao estudo literário, uma vez que a palavra oficial tórica. Ora, os interesses de Gerberto, como sabemos, eram mais
objetava à educação enquanto fim de si mesma. O erro, aqui, é matemáticos do que literários; daí que ele julgar necessário o es-
evidente. Em primeiro lugar, a regra que em tantas ordens religio- tudo desses autores, como parte da disciplina da gramática, pareça
sas manteve a prática de copiar manuscritos como parte da rotina indicar e mesmo refletir o consenso mais básico entre os professo-
simplesmente ia ao encontro do estudo dos clássicos. Casos isola- res do seu tempo.'"
dos, em que monges apagassem os pergaminhos com a finalidade Um século adiante, Otlo menciona expressamente os nomes de
de escrever vitae dos santos, certamente reduzem-se à insignificân- 20
Horácio, Terêncio e Juvena1.
cia quando pensamos nas mais de mil cópias ainda hoje existentes Hugo de Trimberg, o erudito mestre-escola de Bamberg, dá, em
desse importante manual: a gramática de Prisciano.P 1280, os nomes dos livros e dos autores de que tratava: Virgílio,
Da forma como chegaram até nós, os catálogos das bibliotecas Ovídio, Juvenal, Pérsio, Estácio, o Homero latino, Sedúlio,
monásticas da Idade Média mostram que quase a metade de todo [uvenco, Arátor, Próspero e Prudêncio."
e cada acervo era composta, invariavelmente, de gramáticas e au- Em inícios do século XIII, Everaldo de Béthune, gramático e
tores clássicos, pagãos." retórico, eleva a modelos de estilo - na terceira parte da sua obra
Ademais, as próprias biografias dos supostos oponentes da edu- principal, o Laborinthus - os mesmos autores mencionados por
cação clássica mostram que eles todos receberam uma boa instru- Hugo de Trirnberg.P
ção nos clássicos." João de Garlandia, explicitamente, oferece uma lista dos autores
Aumenta constantemente o número de centros de educação obrigatórios para cada disciplina, mencionando, no tocante à gra-
secular cuja existência é definitivamente comprovável. Há evidên- mática, os nomes de Estácio, Virgílio, Juvenal, Horácio, Ovídio,
cias de que cada pedaço da cristandade ocidental não somente Salústio, Lívio, Sêneca e Marcíal."
abundasse em escolas menores, senão que ainda abrigasse muitos No século XII, deparamos um mestre-escola que menciona
centros de cultura em que se freqüentava assiduamente a literatura Lucano, Pérsio, Terêncio e Horácio entre os livros gerais para o
do universo clássico.'? Fato é que se identificaram aproximações estudo da gramática."
do brilhante magistério de Bernardo de Chartres aos padrões mo- Um poema satírico do século XIII indica que se estudavam
dernos de educação.IG os seguintes autores: Ovídio, Juvenal, Terêncio, Horácio, Pérsio,
Teodulfo, bispo de Orleans, sucessor de Alcuíno na posição de Plauto, Virgílio, Lucano, Boécio e Maximiano."
conselheiro educacional de Carlos Magno, e cujo interesse pelas

32 33
AS SETE ARTES LIBERAIS GRAMÁTICA: O ESTUDO DA LITERATURA LATINA

Virgílio foi estudado ao longo de toda a Idade Média; conside- conhecido como Prudêncio (fl. 400). Suas obras, especialmente
ravam-no autoridade em gramática, além de um mestre do estilo psychomachia e Cathemerinon, representam a mais elevada ex-
- por isso o atencioso estudo da Eneida. A imensidão de glosas pressão do' cristianismo em forma clássica. Sua influência foi

.' a Virgílio e a outros autores, que, a não ser a título de ilustração,


dificilmente seriam trazidos à sala de aula, parece demonstrar o
amplo emprego que eles tiveram. 26
profunda, mais que naturalmente, e admiração por ele foi enorme
_ chamaram-no "dissertissimus atque christianissimus poeta".
A presença de Prudêncio nas salas de aula pode-se medir pelos
É significativo que Henri d'Andeli, autor do humorístico vinte e um manuscritos diferentes que ainda restam de glossários
A batalha das sete artes, tenha colocado sob a insígnia de Orleans, germâ~icos das suas obras.ê?
isto é, no partido pelo estudo da gramática, os seguintes auto-
res: Donato, Prisciano, Pérsio, Virgílio, Horácio, Juvenal, Estácio,
Lucano, Sedúlio, Prudêncio, Arátor e Terêncio;" MÉTODOS
O exposto até aqui exemplifica a contento o escopo e o espírito
da instrução em literatura enquanto parte do estudo da gramática Passando aos métodos de instrução, terno-los tão bem elaborados
latina. É evidente que os clássicos não eram tudo que o profes- no estudo avançado dos clássicos quanto na instrução elementar
sor empregava no adestramento dos alunos em termos de forma do latim. Agora que o objetivo central é o domínio das formas
e apreciação literária; o espírito da época também pedia autores literárias, o método empregado consistia em revelar a etimologia
cristãos. Esse mesmo fato, entretanto, sustenta a hipótese, pois à das palavras, Os dicionários, por conseguinte, eram muito usados,
medida que examinamos cuidadosamente as evidências, descobri- -e ao aluno se ofereciam, à guisa de explicação, exposições mitoló-
mos que apenas se liam os autores cristãos cuja excelência literá- gicas e históricas." - -
ria estava acima de qualquer suspeita. Assim, entre literatura de _ Estudar gramática, a essa altura, significava estudar Virgílio ..
conteúdo cristão e literatura de conteúdo pagão, o mestre-escola, Fez-se necessário escrever comentários sobre a sua obra, e de fato
como é de esperar, optava pela primeira, porém jamais para a ex- muitos houve que os escrevesse. Esses comentários podem dividir-se
"\
clusão da segunda. Nem o mais célebre dos autores cristãos sequer em quatro grupos: r _ ",
rivalizou com Virgílio em popularidade. . ,f.~
_ "1 .~~!J'<
~& j1 \.J••.~ e ••• .) ••• :)

Entre os autores cristãos, vale a pena mencionar juvenco ~


a. Comentários literários sobre o autor. O mais famoso foi o de
(ca. 330), o autor de Historia evangelica, um evangelho em verso. Marius Servius Honoratus, que serviu de fonte e modelo para
O livro foi muito utilizado; seu estilo puro e dicção fluente devem ter obras subseqüentes. Nele o desenvolvimento limita-se ao mí-
impressionado positivamente os professores. Além disso, o seu con- nimo necessário para esclarecer o texto em nlvel literal.V
teúdo era mais que satisfatório de um ponto de vista cristão. Os seus
vários glossários, bem como o vasto número de manuscritos que nos b. Virgílio enquanto retórico. A obra de Tiberius Claudius
restaram, indicam que esse autor foi muito empregado nas escolas." Donatus (fl. 400) é a mais conhecida desse grupo. Nela a
Muito conhecido é também Carmen Paschale, de Sedúlio Eneida é apreciada como uma obra-prima de comp;sição
(fl. 430). O livro, baseado no Velho e no Novo Testamento, tor- retórica.
nou-se padrão para o ensino da gramática, do rnetro e da história c. Panegíricos. Este grupo trata Virgílio como a mente uni-
bíblica. De um modo geral, foi muito benquisto na Idade Média. 29 versal. O clogio da pena de Macróbio, autor do século v,
Mas o autor cristão mais empregado, cuja popularidade quase pode ser considerado o mais típico.
igualou a de Virgílio, foi Aurelius Prudenrius Clemens, mais

34 35
AS SETE ARTES LIBERAIS GRAMÁTICA: o ESTUDO DA LITERATURA LATINA

d. Comentários místicos e alegóricos. Esses comenta dores to- um tratamento lógico para todas as sete artes liberais. Em vez de
mam Virgílio como o livro do qual se revela o que está textoS originais e de comentários sobre os autores, encontraremos
oculto. As obras de Fulgêncio - De convenientia virgiliana breves anto'logias; o Floretus e o Facetus - este erroneamente atri-
e Mythologicon - podem der consideradas modelares." buído ao João de Garlandia - são exatamente o tipo de material
que começava a suplantar os clássicos no terreno do estudo da
No estudo dos autores clássicos, relatos das suas vidas e das ,. 39
gramatlca.
suas épocas eram muitas vezes disponibilizados aos alunos. Esse É p~ecisamente nessa(mu~nça de métodolq~e reside a explica-
material encontrava-se em livrinhos conhecidos como "accessus çfu para o declínio do gosto clássico e do estilo latino nos sécu-
ad poetas"." Embora a explicação literal fosse o objetivo elementar - los xIII e XIV. A situação contrasta de forma aberrante, e mesmo
da instrução, o fato é que, no mais das vezes, alcançava-se muito - Hallam o admite, com a prevalência do clássico no século x, e
mais do que isso. As formas e expressões idiomáticas eram enfati- especialmente no XI,40 a qual se deveu, inconfundivelmente, à
zadas; seções inteiras, memorizadas; e o aluno via-se testado com imensa carga de instrução oferecida nas escolas do período.
freqüência, tendo de reformular a idéia do autor em prosa correta, A disciplina da gramática encolheu nos tempos da escolástica. J
'-:.. .
sem barbarismos ou solecismos, para provar que compreendera o Depois de passar apressado pelos fundamentos do latim, o aluno
que leu." \ - era empurrado até a universidade, e de lá para Arístóteles. O aban-
'qualidade desse trabalho dependia principalmente do caráter dono da literatura latina fez sofrer lado a lado autores pagãos e
(10 professor. Bernardo de Chartres, por exemplo, que educou João cristãos; com o tempo, entretanto, o declínio do interesse pelos
de Salisbury no século XII, não somente lia os autores junto com clássicos causou a própria reação, abrindo espaço para os humanis-
os alunos, mas também explicava construções, apontava equívo- tas. Não obstante, o propósito central desta investigação é avaliar
cos, e1ucidava questões, pedia aos alunos que julgassem e criti- a típica instrução medieval, de maneira que um exame detalhado
cassem, fazia-os decorar passagens e escrever exercícios originais. dessa fase de declínio, além de estranho à nossa investigação, teria
Por mais que esse trabalho represente o que havia de melhor no mais a ver com um estudo qualquer sobre o humanismo.
ensino da gramática, a prática da composição em prosa e verso era
muito comum nas escolas em geral; o último dos três anos dedica-
dos ao estudo da gramática era reservado a atividades desse gênero. 36
Essa instrução tinha um nome técnico, dictare, e a habilidade de
fazer um dictamen metricum era uma espécie de testamentum ma-
turitatis em gramática.37 O exercício baseava-se, naturalmente,
numa passagem qualquer de um autor clássico ou das Escrituras;
raras vezes algum jovem bem-dotado entregava como dictamen
uma produção poética mais sofisticada.38
Tudo o que se disse acerca dos clássicos e da sua presença no
programa de gramática só vale para o período antecedente à era
das universidades. O caráter da instrução modificou-se, assu-
mindo então feições mais dialéticas - e disso os livros do período
virão dar o próprio testemunho. Era o tempo da disputa entre "as
artes" e "os autores", sendo "as artes", como vimos, nada mais que

36 37
CAPÍTULO IV

Gramática: os manuais

queremos formar uma idéia a respeito do caráter da ins-


S
E

trução numa instituição educacional, voltamo-nos para o


seu currículo e para os manuais utilizados nas várias discipli-
nas. Mas se hoje em dia esses livros dão-nos pouco, não mais
do que um vislumbre, os manuais da Idade Média eram pra-
ticamente a somatória de todo o conhecimento à disposição.
Um exame atento dos manuais medievais, por árido que possa
parecer, abre-nos uma perspectiva privilegiada sobre o caráter
da educação medieval.
O manual representava não somente o que o aluno estudava,
mas também, em muitos casos, o que professor sabia; na maio-
ria das vezes, o seu trabalho consistia em tirar ditados do livro.
Esse método era tão difundido, que as palavras legere e docere
tornaram-se sinônimos.
Dois eram os tipos de texto: enciclopédico (tratados sobre todas ou
quase todas as disciplinas do currículo) e individual (textos dedica-
.~dos a matérias específicas). Via de regra, os textos individuais consis-
tiam em adaptações, abreviadas ou expandidas, de partes das obras
enciclopédicas mais usadas. Tais adaptações, quase sempre obra de
algum professor, não raro serviam de base para textos subseqüentes.
E"ntre as enciclopédias-padrão constaram as de Capela,
Cassiodoro, Agostinho, Boécio, Isidoro de Sevilha, Beda, Alcuíno,
Rábano Mauro e Remígio de Auxer~As obras de Boécio e de
Beda tratam somente das disciplinas do quadrivium; Capela ba-
seou-se em Varrão, e a sua obra serviu de modelo para Cassiodoro
e Isidoro de Sevilha. I

39
AS SETE ARTES LIBERAIS
GRAMÁTICA: OS MANUAIS

Quanto aos manuais de gramática, baseavam-se todos, em Essa foi a gramática mais avançada da Idade Média, e ainda
primeiro lugar, nas obras de Donato e Prisciano. Eles podem ser
divididos em duas classes, cada uma pertencente a um período
hoje sobrevivem mil manuscritos. ° texto cobre cerca de 584 pá-
ginas in-octaiJo, das quais 162 são dedicadas à sintaxe. Prisciano
", distinto, sendo o fim do século XII o momento de transição.
As obras gramaticais do primeiro período apresentam as se-
cita nada menos que 255 autores diferentes, entre eles Aristófanes,
Aristóteles, Júlio César, Catâo, Cícero, Demóstenes, Heródoto,
guintes características: 1) aderência estrita aos planos de Donato
Homero (78 vezes), Horácio (158 vezes), Juvenal (121 vezes),
e Prisciano; 2) disposição para refletir sobre os fatos da gramática.
Lucrécio (25 vezes), Ovídio (73 vezes), Salústio (80 vezes), Terêncio
Os traços marcantes do segundo período são: 1) exagero da dis-
(225) e Vlrgílío (a Eneida por 721 vezes, e outras obras por 146).7
posição reflexiva observada anteriormente; 2) escassez de material
Muitos resumos da obra de Prisciano foram elaborados para fins
ilustrativo; 3) abordagem direta e maçante do conteúdo. Esse é o
escolares, entre eles um da pena de Rábano Mauro."
período da gramática escolástica.
Além das gramáticas de Donato e Prisciano, podemos referir,
em ordem cronológica, as seguintes obras:

o PRIMEIRO PERÍODO
1. Instituta artium e Catholica, de Valério Probo, um dos prin-
cipais gramáticos da segunda metade do século I, responsá-
Os manuais do primeiro período vêm quase todos da Itãlia.?
vel pelas linhas gerais da gramática latina tradicional,"
Muitos deles são em forma de diálogo, não ao modo socrático,
mas na fórmula "pergunta e resposta". Quanto ao seu valor funda- 2. Artis grammaticae libri f1I, de Diomedes, gramático do sé-
mental, pode-se dizer que eram bastante rigorosos na abordagem culo IV que muito fez pela preservação do antigo ensino da
da sintaxe, conquanto inúteis no tratamento das derivações.3 gramática. Livro usado em São Galo durante o século IX;
tO'"manual de gramática mais ,conhecido em toda a Idade Média modelo para muitos manuais medievais.'?
foi o Ars grammatica minor, de Elio Don:'i.o.jNão se trata de uma
3. Institutionum grammaticarum libri v, de Flávio Sosípatro
carrilha, como se diz algumas vezes, mas sim de um plano geral
das oito partes do discurso, composto em cerca de oito páginas. A
Carísio, contemporâneo de Diomedes. °
material procede
fundamentalmente de Varrão e do hoje perdido De poetis,
fonte de Donato foi o hoje perdido Ars grammatica de Palêmon,
autor do século 1.5 de Suetônio."

Totalmente diverso, e bem mais compreensivo, era o Institu!io 4. Ars de nomine et verbo, de Focas. Alcuíno inclui este livro
di arte grammatica, de Prisciano.6 O objetivo dessa obra, conforme entre os títulos da famosa biblioteca de York. Foram encon-
exposto pelo autor na sua carta dedicatória, era assentar o estudo do tradas glosas à obra."
latim na mesma base científica do estudo do grego. Prisciano segue
5. Ars grammatica, de Mário Vitorino, gramático e retórico
o método de Apolônio Díscolo, a quem deve, com efeito, boa parte
do seu material. A obra divide-se em dezoito seções: as dezesseis pri-
do século IV. ° seu tratado sobre versificação, em quatro
livros, é mencionado por Ncrker.P
meiras tratam de morfoiogia, e as duas últimas, de sintaxe _ essas
duas, bastantes rigorosas, são por vezes encontradas num volume à 6. De nomine et verbo, de Consêncio, um contemporâneo do
parte. A maioria dos manuscritos ainda existentes contêm apenas as célebre Sidônio Apolinário."
dezesseis primeiras seções, o que mostra que a sintaxe de Prisciano 7. De differentiis et societatibus graeci latinique uerbi, de
não foi tão estudada quanto o resto da sua gramática.
Macróbio. Tratado sobre a diferença entre o verbo latino

40
41
AS SETE ARTES LIBERAIS GRAMÁTICA: OS MANUAIS

e o verbo grego, adaptação da sintaxe grega de Apolinário 17. Tractatus in partibus Donati, de Esmaragdo, abade de Saint-
de Alexandria. O autor foi um reconhecido estudioso, que Michel. Trata-se de um comentário sobre Donato, mas os
viveu entre fins do século IV e o começo do século V.15 exe'mplos procedem da Vulgata, e não de Cícero e Virgílio,
". 8. Commentarius in artem Donati, de Mário Sérvio Honorato. como ocorre com a maioria dos comentadores. O objetivo
O autor foi um famoso cornenrador de Virgílio. A sua gra- declarado dessa inovação era "que o leitor pudesse, a um só
mática, um comentário a Donaro, também constava na bi- tempo, compreender o espírito da gramática e o sentido das
blioteca de York nos dias escolares de Aicuíno." Escrituras".25

9. Commentarius in artem Donati, de Servius Marus, contem- 18. Expositio super Donatum, de Remígio de Auxerre (fi. 908),
porâneo de Sidônio Apolinário. No que toca a esse período, famoso professor de literatura sacra e profana. Além deste
Marus é, sem sombra de dúvida, o grande comentado r de celebrado comentário, que foi lido até o Renascimento,
Donaro.'? Remígio também escreveu um comentário sobre a enciclo-
pédia de Capela."
10. Ars de verbo, de Eutiques, pupilo de Prisciano. Ainda sobre-
vivem muitas glosas a essa obra."

11. Ars (grammatica) breviata, de Santo Agostinho. Breve ex- O SEGUNDO PERÍODO
certo da sua enciclopédia das artes liberais.'?
A posição de destaque ocupada por Prisciano foi mais tarde to-
12. Institutio de arte grammatica, de Cassiodoro. Breve tratado
mada por Alexandre de Villedieu, com o Doctrinale de 1122..;7
sobre a gramática, que integra a sua enciclopédia das sete
artes liberais." Cabe aqui fazer algumas considerações, que expliquem, do ponto
de vista medieval, a popularidade fenomenal desse livro que, por
13. Ars grammatica, de Asper. Breve abordagem das letras, síla- três séculos, dominou a maioria das escolas européias. O número de
bas, partes do discurso etc. Foi encontrado na biblioteca de manuscritos ainda existentes chega a 255 - 33 do século XIII, 64
São Galo no século IX.21
do século XIV, 154 do século xv e 9 do século XVI -, mas o total de
28
14. Ars grammatica, de S. Bonifácio, o apóstolo dos germâni- edições impressas certamente ultrapassa marca de 295.
coso Sua obra é uma adaptação das gramáticas de Donato, O livro foi usado em escolas da Alemanha, França, Inglaterra,
Carísio e Diomedes.22 Espanha, Itália e Polônia, bem como nas universidades. As razões
para tanto são as seguintes:
15. Dialogus de Arte grammatica, de Alcuíno. A obra é baseada
em Donato, a quem Alcuíno segue abertamente. O nome
1. A gramática era toda em verso. Num tempo que a me-
do autor deu à obra grande destaque; Notker de São Galo
morização, graças à escassez de livros, era um recurso tão
considerava-a melhor do que as gramáticas de Donato e
Prisciano." . predominante na instrução, a forma versificada era decerto
uma bênção para o professor. Essa inovação foi o toque de
16. Excerptio de arte grammatici Prisciani, de Rábano Mauro.
originalidade desse livro.
Breve compêndio de rudimentos da gramática. Traz muitas
2. Ao abordar a matéria, o autor leva em conta as mudanças
ilustrações e algumas observações sobre prosódia, aparen-
operadas sobre a língua latina no decorrer dos sete sécu-
temente colhidas em Ars grammatica major, de Donaro."
los desde Prisciano. Ele inclui no seu livro muitas palavras

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AS SETE ARTES LIBERAIS GRAMÁTICA: OS MANUAIS

das Escrituras, bem como expressões de origem reutônica tem a ver com o capítulo sobre as declinações gregas, matéria um
latinizadas, atendendo às necessidades práticas da língua tanto desconhecida do autor. Os principais tópicos do livro são
corrente. etimologia, barbarismos, trOpos e solecismos.
ta· Outra obra popular de Everaldo de Béthune foi o seu
3. A sintaxe de Prisciano já não era adequada para um tempo
Labortinthus, um poema didático sobre gramática e estilo. Muito
em que se enfatizavam os aspectos lógicos da gramática. No
usado no século XIV, foi de grande ajuda para a deposição de
que diz respeito à sintaxe, a obra de Alexandre é minuciosa;
Prisciano; Lutero considerava-o "uma tolice dos monges, um des-
a clareza da sua abordagem foi já objeto do elogio de
filólogos rnodernos.ê? ses livros inúteis e nocivos apresentados pelo diabo"."
Entre os manuais de menor importância, podem-se referir:
4. A sua abordagem da prosódia e das figuras representa,
igualmente, um avanço no caminho aberto por Prisciano.'? 1. A Summa de Perrus Helias, composta às voltas de 1142.
O livro é um comentário a Prisciano, e consta entre os cita-
Apesar de todas essas inovações, a obra de Alexandre, que é só dos por Duns Scott na sua obra sobre gramática. Típico do
uma parte da sua produção sobre a gramática, o cálculo e o direito seu tempo, escrito em verso, explica a gramática latina sem
canônico, é, no final das contas, apenas um comentário às gramá- fazer referência aos autores clássicos.f?
ticas mais antigas - especialmente a de Prisciano, a quem segue
2. Ars rhythmica, de João de Garlandia. Elaborado, trata
de perto no tratamento das questões etimológicas.
da prosódia com a ilustração de poemas completos. O
O tratado apresenta três divisões principais: etimologia (1073
autor, que assina também um comentário aos Doctrinale,
linhas), sintaxe (476 linhas) e quantidade, acento e figura (1095 li-
foi professor de gramática na Universidade de Toulouse en-
nhas). Na sua forma usual, trazia ainda um prólogo e 12 "capiralia".
Gramática avançada, destinada àqueles que já tivessem passado tre 1229 e 1232.36
por Donato, isto é, pela sua Ars grammatica minor, o livro omite, 3. Um comentário sobre os quinze primeiros livros de
na primeira parte, o tratamento de números, verbos regulares, ad- Prisciano escrito por Robert Kilwardy, Arcebispo de
37
vérbios, conjunções e preposições, dando aos pronomes atenção Cantuária entre 1272 e 1279.
apenas superficial. Quanto à sintaxe, naturalmente, omitem-se
4. De modis significandis, comumente conhecido com Modista,
tempos e modos, ao passo que as quantidades, acentos e figuras, de Miguel de Marbais, autor flamengo do século
38
XIII.
tanto retóricas como gramaticais, são tratadas exaustivamente."
A aplicação geral e o rigor dos Doctrinale valeram ao seu autor o 5. Catholicon, composto em 1286 por Johannes Balbus
epíteto de "Aristóreles da gramática". Por isso é que mais tarde tor- Januensis. A obra compõe-se de cinco livros: De orthogra-
nou-se o primeiro alvo dos humanistas e de seus ataques à antiga phia, De accentu, De etymologia, De jiguris e De prosodia.
39
ordem, vindo a cair em desuso após uma campanha implacável Leva ainda, como apêndice, um breve vocabulário.
que durou cerca de 25 anos (1510). Não obstante, como mostra 6. Artis grammaticae institutio. Gramática bem conhecida
Reichling, os mesmos humanistas incorporaram muito da obra de no seu tempo, baseada em exemplos de Salústio, Virgílio,
Alexandre nos seus Íivros.F
Horácio, Ovídio, Lucano e Juvenal. Obra de César
Segundo em importância, somente abaixo dos Doctrinale, foi 40
Lombardo, outro autor do século XIII.
~ o período a obra de Evú;Jdo de -Béthune, Graecismu;-r;;..
1212).33 Assim como o livro de Alexandre, é em verso; o nome

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AS SETE ARTES LIBERAIS GRAMÁTICA: OS MANUAIS

7. Grammatica speculativa de modis significandis, do famoso DICIONÁRIOS ESCOLARES


escolástico Duns Scott. Representativo da abordagem filo-
sófica dada à matéria no final da Idade Média." Os muitos vocabulários em voga na Idade Média, como é de
•• 8. Florista, de Ludolfo de Lüchow (ca. 1236), professor da
esperar, eram edições revisadas de dicionários clássicos. O mais
antigo dentre eles é de Isidoro de Sevilha, parte do seu famoso
prestigiada escola de Hildesheim. O título vem da sua
Etymologiae. Baseado inteiramente em autores do final do im-
primeira linha, ou melhor, verso: "Flores grammaticae
pério. talvez constituía a seção mais proveitosa da sua própria
propono scribere". Muito usado na Alemanha, nos Países
Baixos e na França.v . Iope'd'"
"enclC Ia. 46
A segunda grande obra desse gênero é o famoso dicionário de
Paulo Diácono, que o dedicou a Carlos Magno. Trata-se de uma
síntese de Pompeu Festo, autor do século lI, cuja obra, por sua vez,
VOCABULÁRIOS: CARÁTER GERAL
era uma versão simplificada de De verborum significatu, um dos
primeiros léxicos latinos."
Aos manlla~ropriamente ditos suplementavam os chamados O próximo em ordem cronológica é o chamado Glossarium
"vocabulários' que ocupavam um lugar de destaque no ensino
( de Salomão III, Bispo de Constance (919). Essa obra, compi-
da gramática sob o currículo das artes liberais. Conhecidos como
lada por um monge de São Galo é, na verdade, o que poderí-
vocabularii, dictionarii, glossae e comentarii, eram indispensáveis
amos chamar de enciclopédia: as palavras aparecem em ordem
para domínio do latim, prático e iiterário.t?
alfabética, acompanhadas de excertos dos escritos mais famo-
Os típicos "vocabulários" medievais eram mais que meras fon-
sos. Sobrevivem diversos manuscritos; a primeira edição data de
tes de consulta para a estudo deste ou daquele autor em particu-
1470. O texto foi escrito em latim, originalmente, mas glossá-
lar. Havia tipos diferentes: alguns de palavras latinas, em latim
rios em alemão foram acrescentados com o passar do tempo e,
simplificado, outros em vernáculo (francês, alemão ou inglês); al-
sob essa forma diferenciada, o livro foi muito usado por toda a
guns em ordem alfabética, outros classificados por assunto (corpos
Idade Média."
celestes, animais etc.), Alguns eram dicionários no sentido mais
Elfrico, Arcebispo de Cantuária (1016), é o autor de um famoso
puro da palavra; outros já tinham algo de enciclopédico, numa
Glossarium. Ele agrupou e ordenou engenhosamente todo o mate-
espécie de meio-termo entre as duas coisas. Indícios sugerem que
rial, a fim de explicar os significados de muitas palavras de origem
cada biblioteca em cada escola, no limite dos registros de que dis-
latina. Com esse pequeno livro, a aquisição de vocabulário devia
pomos, guardasse ao menos um desses dicionários.44
ser algo bem fácil para o menino anglo-saxão."
Além desses havia[glossários ~eciai~, voltados para a tradu- Talvez o mais célebre dicionário medieval tenha sido o
ção de palavras difíceis de um manual padrão ou de algum au-
Vocabulista, de Papias, o Lombardo (ca. 1053-1063). Consistia
tor em particular. A amplitude da utilização desses vocabulários em dois tipos de material: primeiro, um glossário; segundo, in-
especiais pode ser constatada, por exemplo, na vasta coleção de
formações relevantes para o estudante das sete artes liberais. No
glossários publicada por Steinmeyer e Sievers. Nela encontramos
glossário propriamente dito, vale notar, o autor parece não fazer
um dicionário alfabético com aproximadamente 5,2 mil palavras distinção de quantidade, gênero e inflexão entre formas clássicas
da Vulgata, compiladas por Rábano Mauro; glossários de pratica-
e formas "bárbaras". A popularidade do livro - e isso julga-
mente todos os livros do Velho e do Novo Testamento; e glossários
-se pela grande quantidade de imitadores - deve-se, em grande
da obra de Capela, Donato, Prisciano e de outros autores freqüen-
tados nas escolas." medida, à segunda parte.i"

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AS SETE ARTES LIBERAIS

Um século depois de Papias, deparamos o famoso Panormia,


de Osbern de Gloucester, uma promissora tentativa de explicar
etimologicamente o significado das palavras."
Hugutio, ou Hugo de Pisa (Bispo de Ferrara, 1210), é o autor
do Liber derivationum. Embora muito popular, a obra nunca foi
impressa na Íntegra. O conteúdo baseia-se em Papias, e o nome
CAPÍTULO V
alude à tentativa de ordenar as palavras conforme a suas deriva-
ções. Os erros contidos nessa obra foram um prato cheio para os
humanistas.V Retórica
De igual importância foram os três Dictionari de João de
Garlandia: um de palavras comuns, Outro de palavras obscuras, e
A
um último de "coisas em geral". A obra ainda era de uso corrente
na infância de Erasmo de Roterdã.>' ESTUDO TÉCNICO
O já mencionado Catholicon foi tão conhecido como gramática
quanto como dicionário. Para o sentido das palavras, sua fonte foi
Papias; quanto à etimologia, Hugutio. Essa obra esteve entre os CONDIÇ6ES GERAIS
primeiros livros publicados em latim. O vocabulário, um tanto
pretensiosamente, tratava de "orthographia, prosodia, signíficario, que qualquer outra disciplina do currículo medie-
M
AIS
origo, etymologia, [...] dictiones quae frequenter inveniunrur in val, a retórica revela os traços características do período.
biblia et in dictis sanctorum et poetarurn'P" Enquanto nas outras áreas, especialmente na gramática, seguiam-se
Alexander Neckham é o autor de nada menos que três vocabu- em grande parte os mesmos métodos e ideais de fins do império,
lário bem sofisticados: Vocabularium biblicum, Repertorium uoca- alterados tão-somente na medida em que o obrigavam as novas
bulorum e De utensilibus. Os dois primeiros jamais foram publi- circunstâncias e o passar do tempo, o estudo da retórica assumiu
cados; o último costura as entradas dos artigos por meio de uma um caráter totalmente diferente. Por um lado, a prática do perí-
narrativa, com glosas interlineares em francês.55 odo romano foi quase que completamente abandonada, quando
Marchesini de Regio (ca, 1300) é o autor do famigerado não reduzida ao mero domínio das regras da ciência. Por outro,
Mamotrecus, que reúne glossários gramaticais, ortográficos e exe- uma fase insignificante da retórica clássica - o estudo das epís-
géticos das Escrituras.ê'' tolas e do dictamen - recebeu tamanha ênfase e desenvolveu-se a
Havia outros tantos glossários de menor importância. Referimos tal ponto que acabou suplantando o estudo retórica propriamente
apenas alguns deles: o vocabulário de Martinus de Arenis (1307), dito no currículo medieval.
uma síntese de Papias; o chamado Vocalubarius lheabonicius; Essa mudança não se deu sem razão. A decadência das escolas
Vacabularius Optimus; Gemma gemmarum; Lucidarius; retóricas em Roma foi causada pelo formalismo esterilizante que
Summarium Heinrici. Todos eles basearam-se nas obras mais resultou da perpetuação de um ideal de orador, e isso num tempo
elaboradas que tratamos acima.V em que o mundo não tinha o que fazer dos oradores. Nos dias de
Cícero, o treinamento em oratória harmonizava-se com o espírito
da época; seu uso mais nobre era a defesa da liberdade, e as obras

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