Historiografia no século XX Da Objectividade Científica ao Desafio Pós-Moderno COM UMA NOVA EP I LOGUE DO AUTOR
Georg G. Iggers
Imprensa da Universidade de Wesleyan
Middletown, Connecticut Publicado pela Wesleyan University Press, Middletown, CT o64s9 www.wesleyan.edu/wespress
1997 ser Ge -g G. Igge rs
Epílogo C Zoo5 de Georg G. Iggers Todos os direitos reservados
Uma versão inglesa alargada do livro Geschichtswissenschaft im eo.
JahrhunJert. Ein kritischer Überblick im internationalen Vergleich (GÖttingen, 993). Publicado com autorização da editora alemã Vandenhoeck & Ruprecht em Göttingen.
Originalmente produzido em 1997 pela Wesleyan/University Press
of New England, Hanôver, NH 03755-
Edição da Wesleyan University Press incluindo um novo epílogo do autor
A Biblioteca do Congresso tem o catálogo eJition original como se segue.
Biblioteca do Congresso CataIoging-in-Publication Oata Iggers, Georg G. Geschichtswissenschaft im 2o. Jahrhundert [Geschichtswissenschaft im 2o. Jahrhundert. inglês] Historiografia no vigésimo centurião : da objectividade científica ao desafio pós-moderno / por Georg G. Iggers. p.cm Uma versão inglesa expandida de: Geschichtswissenschaft im zo. Jahrhundert. O 1993 Inclui referências bibliográficas e índice. isax o-i-89553 *-6 (cl : alk. paper). ISBN O- 8195- 63o6- (4pa : alk. papel) i. Historiografia-História-Século Roth. 2. História - Filosofia. 3. História-Metodologia. I. Título. D 23.I 34*3*997 9 7" 2-dc2o Introdução
Há mais de vinte anos, publiquei um pequeno livro sobre o
estado dos estudos históricos na Europa nessa altura, no qual mostrei como as formas tradicionais de bolsas de estudo foram substituídas por novas formas de investigação histórica nas ciências sociais.* Os historiadores de todos os países estavam em grande parte de acordo em que a investigação, tal como tinha sido praticada internacionalmente desde o início dos estudos históricos como disciplina profissional no início do século XIX, não correspondia nem às con- dições sociais nem políticas da segunda metade do século XX nem às exigências de Jhe de uma ciência moderna. Entretanto, as ideias sobre história e historiografia sofreram de novo uma profunda mudança. Este volume não deve, portanto, ser visto como uma continuação que, por assim dizer, traria a minha publicação de 197a Up tO date. Em vez disso, preocupa-se principalmente com um número seleccionado de mudanças básicas no pensamento e na prática dos historiadores de hoje. Embora existam muitas continuidades com formas mais antigas de investigação histórica e escrita histórica, uma reorientação básica tem tido lugar. Cada vez mais, nos últimos vinte anos, os pressupostos sobre os quais a investigação e a escrita históricas se têm baseado desde a emergência da história como disciplina profissional no século nove da adolescência têm sido questionados. Muitas destas suposições remontam ao início de uma tradição contínua da historiografia ocidental na antiguidade clássica. O que era novo no século XIX era a profissionalização dos estudos históricos e a sua concentração nas universidades e na investigação cen... 2°Historiografia no século XX
ters. No centro do processo de profissionalização estava a firme
crença no estatuto científico da história. O conceito ciência foi, sem dúvida, entendido de forma diferente pelos historiadores do que pelos cientistas naturais, que procuravam o conhecimento sob a forma de generalizações e leis abstractas. Para os historiadores a história diferia da natureza porque tratava de significados tal como eles se expressavam nas intenções dos homens e mulheres que fizeram história e nos valores e costumes que deram coesão às sociedades. A história tratava de pessoas concretas e culturas concretas no tempo. Mas os historiadores partilharam o optimismo das ciências profissionalizadas em geral de que a investigação metodologicamente controlada torna possível o conhecimento ob-jectivo. Para eles como para outros cientistas, a verdade consistia na correspondência do conhecimento a uma realidade objectiva que, para o historiador, constituía o passado "tal como tinha realmente ocorrido". "2 A autodefinição da história como disciplina científica implicou para o trabalho do historiador uma divisão acentuada entre o discurso científico e literário, entre historiadores profissionais e amadores. Os historiadores ignoraram a medida em que a sua investigação assentava em suposições sobre o curso da história e a estrutura da sociedade que predeterminavam os resultados da sua investigação. A transformação da história em discípulo institucionalizado não deve, contudo, levar-nos a ignorar as continuidades com formas mais antigas de escrita histórica. A historiografia do século XIX permaneceu numa tradição que remonta aos grandes historiadores da antiguidade grega clássica. Partilharam com Tucídides a distinção entre mito e verdade, e ao mesmo tempo, apesar da sua ênfase no carácter científico e, portanto, não retórico da escrita histórica, prosseguiram na tradição clássica da escrita histórica no pressuposto de que a sua - história é sempre escrita como uma narrativa. O problema da narrativa histórica, contudo, como Hayden White' e outros teóricos recentes da história salientaram, é que, embora proceda de factos ou acontecimentos validados por pirataria, requer necessariamente passos imaginários nativos para os colocar numa história coerente. Por conseguinte, um elemento ficcional entra em todo o discurso histórico. Assim, a ruptura entre a história "científica" do século nove da adolescência e as tradições literárias mais antigas da história não foi de modo algum tão grande como muitos historiadores do século dezanove tinham Introduçã o-3
assumido. O discurso histó rico "científico" envolveu a
imaginação literá ria enquanto a tradição literária mais antiga também procurou a verdade na reconstrução de um passado real. A orientaçã o "científica" desde Leopold von Ranke partilhou três suposiçõ es básicas com a tradição literá ria desde Tucídides até Gibbon: (i) Eles ac- ceparam uma teoria de correspondência da verdade que sustenta que a histó ria retrata pessoas que realmente existiram e acçõ es que realmente tiveram lugar. (2) Pressupunham que as acçõ es humanas espelhavam as tençõ es dos actores e que era tarefa do historiador compreender estas intençõ es, a fim de construir uma histó ria histó rica coerente. (3) Operaram com uma concepção unidimensional e diacró nica do tempo, em que os acontecimentos posteriores seguem os anteriores numa sequência coerente. Estas suposiçõ es de realidade, intencionalidade, e sequência temporal determinaram a estrutura da escrita histó rica de Heró doto e Tucídides a Ranke, e de Ranke até ao século XX. Estas suposiçõ es têm sido gradualmente questionadas no pensamento histó rico recente. Creio que podemos distinguir duas orientaçõ es muito diferentes no pensamento histó rico do século XX. A primeira tratava da transformaçã o do tipo de narrativa, histó ria orientada para eventos característica da historiografia profissional no século IX em formas de investigaçã o e escrita histó rica orientada para as ciências sociais no século XX. As suposiçõ es fundamentais da historiografia tradicional foram desafiadas, mas as suposiçõ es bá sicas acima delineadas permaneceram intactas. Os vá rios tipos de histó ria orientada para as ciências sociais abrangeram o espectro metodoló gico e ideoló gico desde abordagens quantitativas tã o cioló gicas e econó micas e o estruturalismo da escola de Urinates-School até à aná lise da classe marxista. De diferentes formas, todas estas abordagens procuraram modelar a investigação histó rica mais de perto, depois das ciências naturais. Enquanto que a historiografia tradicional se tinha concentrado na agência dos indivíduos e em elementos de intencionalidade que desafiavam a reduçã o à generalização abstracta, as novas formas de histó ria orientada para as ciências sociais enfatizavam as estruturas e processos de mudança social. No entanto, partilhavam duas noçõ es chave com a historiografia mais antiga. Uma era a afirmaçã o de que a histó ria tratava de um assunto real ao qual os relatos formulados pelos historiadores deviam corresponder. 4 - Historiografia no século XX
É certo que esta realidade nã o pô de ser apreendida
directamente mas, como toda a ciência, deve ser mediada pelos conceitos e estruturas mentais dos historiadores que, no entanto, ainda visam o conhecimento objectivo. As novas abordagens da ciência social criticaram a historiografia mais antiga em vá rios aspectos: Argumentaram que se centrava demasiado nos indivíduos, especialmente nos "grandes homens", e nos acontecimentos como constituindo o tema da histó ria, e que negligenciava o contexto mais amplo em que estes operavam. Neste sentido, as abordagens das ciências sociais, quer marxistas, parsonistas ou analistas, representavam uma democratizaçã o da histó ria, uma inclusã o de segmentos mais vastos da populaçã o, e uma extensã o da perspectiva histó rica da política à sociedade. Opõ em-se à s abordagens mais antigas, não por serem científicas, mas porque nã o o eram suficientemente. Desafiaram um dos pressupostos básicos desta abordagem mais antiga, nomeadamente que a histó ria trata de pormenores, nã o de generalizaçõ es, que o seu objectivo é "nã o compreender", não "explicar", e sustentaram, em vez disso, que todas as ciências, incluindo a histó ria, devem incluir explicaçõ es causais. Num segundo ponto, houve também acordo entre a tradição mais antiga e as abordagens das ciências sociais. Ambas funcionavam com uma noção de tempo unilinear, com a concepçã o de que havia con- tinuidade e direcção na histó ria, que de facto existia algo como a história em contraste com uma multiplicidade de histó rias. Esta concepção de histó ria assumiu uma forma diferente na histó ria convencional mais antiga - a ografia - do que nas abordagens posteriores das ciências sociais. Ranke tinha rejeitado a noção de uma filosofia da histó ria que pressupunha um esquema de histó ria universal, mas que, no entanto, pressupunha que a histó ria possuía uma coerência interior e um desenvolvimento, e4 assinou uma posiçã o privilegiada para a histó ria do Ocidente. Os historiadores das ciências sociais tenderam a acreditar que pelo menos a histó ria da era moderna evoluiu numa direcçã o clara. Embora poucos aceitassem uma ideia de progresso que conferisse a esta direcçã o um cará cter benéfico, a maioria operava com uma noçã o de "civilizaçã o moderna" ou "racionalizaçã o" progressiva que conferia coerência ao desenvolvimento histó rico. Também aqui a histó ria do mundo ocidental moderno tinha um estatuto privilegiado. A histó ria do mundo coincidiu com a ocidentalizaçã o. Estes pressupostos têm sido cada vez mais contestados no pensamento filo-só fico desde o final do século XIX. É , no entanto, Introdução-S
apenas no último quarto de século que as dúvidas que este
desafio produziu afectaram seriamente o trabalho dos historiadores. Esta reorientação do pensamento histórico reflectiu mudanças fundamentais na sociedade e na cultura. De certo modo, o paradigma da historiografia profissional iniciado por Ranke já tinha estado fora de sintonia com as realidades sociais e políticas da época em que se tornou universalmente o padrão para os estudos históricos. Ranke era muito uma criança da era da restauração que se seguiu à Revolução Francesa e à Era Napoleónica. O seu conceito de Estado descansou sobre as realidades políticas do pré-i8 4 8 Prússia, antes do estabelecimento de instituições representativas e antes da alização industrial com os seus concomitantes sociais. Daí a ênfase na primazia da política relativamente isolada das realidades económicas ou sociais. forças e a dependência quase exclusiva de documentos oficiais do Estado. No final do século XIX, quando esta para- digm tornou-se o modelo para a historiografia profissional em França 5 os Estados Unidos,° e noutros lugares, as condições sociais e políticas que pressupunha já tinham sido fundamentalmente transformado. Na viragem do século, historiadores em França, Bélgica, Estados Unidos, Escandinávia, e mesmo na Alemanha começaram a criticar o paradigma Rankean e a apelar a uma história que tivesse em conta os factores sociais e económicos,7 tal história teve necessariamente de se afastar de uma concentração em acontecimentos e personalidades individuais de liderança para se concentrar nas condições sociais em que estes existiam. A democratização e a emergência de uma sociedade de massas exigiu também uma historiografia que tivesse em conta o papel de segmentos mais vastos da população e as condições em que estes viviam. Assim, de diferentes perspectivas os Novos Historiadores nos Estados Unidos, o círculo em torno de Henri Berr em França e Henri Pirenne na Bélgica, e os marxistas em geral na Europa Continental voltaram-se para as suas concepções particulares da ciência social como parte integrante do trabalho dos historiadores. Enquanto que as formas convencionais de história política e diplomática dominam... na profissão até muito depois de -945, atenção crescente foi dada à história social. Particularmente após -945, as ciências sociais sistemáticas começaram a desempenhar um papel cada vez mais importante no trabalho dos historiadores. É esta transformação que o meu livro de há vinte anos atrás retratada. 6Historiografiano século XX
No entanto, o optimismo em relação à natureza e direcção do
mundo moderno em que descansava a história das ciências sociais foi profundamente abalado por mudanças fundamentais na estrutura da existência social num mundo industrial tardio. As ciências sociais orientadas histo-rianos tinham concebido o mundo moderno de forma mais dinâmica do que a escola de Rankean. Previam o crescimento económico contínuo e a aplicação da racionalidade científica à ordem da sociedade como valores positivos que definiam a existência moderna. Já na segunda metade do século XIX, estes pressupostos relativos ao curso da história tinham sido sujeitos a críticas devastadoras por Jacob Burckhardt9 e Friedrich Nietzsche". Estas notas pessimistas repetiram-se em dis- cussões filosóficas e reflexões sobre o estado da cultura moderna através de... na primeira metade do século XX, mas não afectaram seriamente o pensamento de historiadores praticantes até aos I6os 9. Em muitos aspectos, os I6os9 foram um ponto de viragem em que a consciência de uma crise da sociedade e cultura modernas, há muito tempo em preparação, chegou a um ponto de viragem. Só então as condições criadas pela Segunda Guerra Mundial se tornaram óbvias, entre elas o fim dos impérios coloniais e uma maior consciência de que os povos não-ocidentais também tinham uma história.** Dentro das sociedades ocidentais, o concepções mais antigas de um consenso nacional, reiteradas em escritos do 1950 5.'2S rt la Ct d seria uma Arte a t t r a art' l eSS C f' t ht di V t r - sities dentro dos estados nacionais estabelecidos. The Other America (-96i)'° de Michael Harrington retratou uma imagem muito diferente da sociedade americana do que as opiniões optimistas dos historiadores SUCh a S Da fli' 1Boor Stifl a 14fl d SoC io logi StS SUCh U S Da n ie l B' 11.** Mas as concepções marxistas de classe pareciam inadequadas num ambiente cada vez mais consciente de outras divisões tais como género, raça, etnia, e estilo de vida. A mudança de uma indus- trial para uma sociedade da informação afectou ainda mais a consciência. Pela primeira vez, houve uma intensa consciência dos lados negativos do crescimento económico com a sua ameaça a um ambiente estável. O impacto total do Holocausto afundou-se na consciência pública, não imediatamente no final da Segunda Guerra Mundial, mas apenas à distância, quando uma nova geração adquiriu uma postura crítica. As qualidades destrutivas do processo civilizador passaram cada vez mais para o centro da consciencialização. Para o historiador, esta transformação de consciência tinha Introdução-7
várias consequências. Marcou para muitos o fim de uma "grande
narrativa "16 O Ocidente apareceu cada vez mais como apenas um entre várias civilizações, nenhuma das quais podia reivindicar a primazia. Do mesmo modo, a modernidade perdeu a sua qualidade única. Oswald Spengler tinha falado relativamente cedo de uma pluralidade de civilizações, cada uma das quais para ele, no entanto, seguiu um caminho de desenvolvimento. andorinha-do-mar. 17 Marc Bloch e Fernand Braudel já no IOS93 e Ios94 passaram de uma história narrativa que se seguiu a uma se-quência de acontecimentos para uma que examinou as condições numa período de tempo". De uma perspectiva muito diferente, Burckhardt já tinha tentado algo semelhante.* E mesmo uma ep- och específica não constituía uma unidade integrada, como Braudel salientou quando examinou o século XVI a partir de três perspectivas temporais diferentes. 20 O tempo no sentido newtoniano como entidade objectiva ou no sentido kantiano de uma categoria universal de pensamento já não existia. O tempo histórico variou para Braudel com o tema do seu estudo, cada um com uma velocidade e ritmo diferentes, quer o historiador tenha lidado com as grandes estruturas abrangentes dentro das quais a história natural ou social, económica e cultural sofreu mudanças graduais, quer com o pulso rápido da história política. Além disso, mesmo dentro de um quadro social definido, coexistiam ou competiam concepções diferentes do tempo, como na distinção de Jacques Le Goff entre o tempo do clero e do comerciante na Idade Média$ 2l ou na visão de Edward P. Thompson sobre o confronto do tempo pré-industrial e industrial numa era de capitalismo industrial emergente. 22 As reivindicações de segmentos da população anteriormente excluídos das narrativas históricas, sobretudo as mulheres e as minorias étnicas, levaram à criação de novas histórias por vezes integradas numa narrativa maior, mas muitas vezes à parte dela. Esta fragmentação do tema da história não constitui, por si só, um repúdio de interesse histórico. Em muitos aspectos, o âmbito da escrita histórica expandiu-se enormemente nos últimos trinta anos. As histórias mais recentes desafiaram de facto a historiografia tradicional, que se tinha concentrado nas elites políticas e sociais, e exigiam a inclusão dos segmentos da população que durante muito tempo tinham sido negligenciados. Ofereceram "uma história a partir de baixo", que não só incluía as mulheres, mas também introduziu uma perspectiva feminista. Desafiaram também a 8-Historiografia no século XX
abordagens das ciências sociais, que tinham colocado grandes
estruturas impessoais no centro da história e, ao fazê-lo, não tinham mais questionado as relações de poder existentes do que tinham a história política mais antiga. Se a história das ciências sociais tinha procurado substituir o estudo da política pelo da sociedade, a nova história voltou-se para o estudo da cultura entendida como as condições da vida quotidiana e da experiência quotidiana. Desta per-específica, a ênfase marxista no papel central da política e da economia como o local do poder e da exploração permaneceu demasiado impermeável aos interesses e preocupações reais dos seres humanos vivos. Em vez de um declínio no interesse histórico, as últimas três décadas assistiram a uma verdadeira explosão nos escritos históricos, uma vez que vários segmentos da população procuraram estabelecer as suas identidades para além do maior, tradicional, grossista nacional. O questionamento da possibilidade de condução objectiva A investigação histórica constituiu de todo um desafio mais sério. Cada vez mais, a desilusão com a qualidade da civilização ocidental moderna provocou uma reacção profunda contra a perspectiva científica do mod- ern. Antropólogos como Claude Levi- Strauss negaram que a racionalidade científica moderna oferecesse qualquer vantagem sobre o pensamento mítico "selvagem" na tentativa de chegar a um acordo com a vida.°3 A partir da sistematização de Ranke da crítica de fonte no IOS de 1820, as tentativas de Robert Fogel no IOS97 de transformar a história numa ciência que trabalha com o modo teo-retical quantificável1s,° os 4historiadores assumiram que existem objectos de investigação histórica acessíveis a métodos claramente definidos de em quiry. Esta confiança correspondia à estrita linha divisória entre o discurso histórico e literário e à separação entre a forma como um historiador que se via como cientista trabalhava e a do escritor popular de história mais consciente das qualidades literárias da sua obra. Nietzsche já tinha na sua primeiros escritos, The Birth of Traged y (i87 2) e O fthe Usefulness and Disadvantage of History for Li fe) (1874), negaram a possibilidade e a utilidade da investigação histórica e académica historiografia. Ele acreditava não só que o objecto da investigação era determinado pelos interesses e preconceitos do historiador, mas também que a convicção em que o pensamento ocidental desde Sócrates e Platão se tinha baseado, nomeadamente que existe uma verdade objectiva não ligada à subjectividade do pensador, era insustentável. Introdução-9
Para Nietzsche, como para Marx antes dele, o conhecimento era
um meio de exercer o poder.25 Mas Nietzsche nã o partilhava a confiança de Marx de que a desmascaração dos factores ideoló gicos que entraram no conhecimento poderia levar a um conhecimento objectivo. A histó ria da razã o filosó fica desde Só crates pareceu-lhe ser uma forma de despropositado, um meio eficaz de afirmar autoridade e poder. Assim, negou a prioridade do ló gico, por exemplo Socrático, sobre o preló gico, ou seja, mítico ou poético, do pensamento. A partir deste ponto de partida, um nú mero crescente de historiadores nas ú ltimas décadas chegou à convicçã o de que a histó ria está mais ligada à literatura do que à ciência. Esta noção desafiou os pró prios pressupostos sobre os quais assentou a moderna bolsa de estudo histó rica. A ideia de que a objectividade na investigação histó rica não é possível porque nã o existe nenhum objecto da histó ria tem ganho cada vez mais actualidade. Consequentemente, o historiador é sempre o prisioneiro do mundo em que pensa, e os seus pensamentos e percepçõ es são condicionados pelas categorias da língua em que opera. Assim, a linguagem molda a realidade mas não se refere a ela. 26 Esta ideia surgiu particularmente na teoria linguística e literária desde o I 96os 27, embora a concepção básica da língua com a qual trabalhou tivesse sido prefigurada no Curso de Linguística Geral de Ferdinand de Saussure, publicado em que 191628via a linguagem como um sistema auto-contido. Roland Barthes no I 96os29 e Hayden White no IOS 97'0 sublinhou o carácter literário dos textos histó ricos e os elementos ficcionais continham inevitavelmente. Desenvolvendo mais a con- cepçã o de Saussure da linguagem como um sistema auto-contido de sinais, teó ricos literá rios em França e nos Estados Unidos, como Jacques Der- rida e Paul de Man, argumentaram que a linguagem constró i a realidade em vez de se referir a ela. O historiador trabalha com textos, mas estes textos nã o se referem a um mundo exterior. No aforismo bem conhecido de Derrida, "nã o há nada fora do texto "** O texto nã o tem de ter uma forma escrita ou verbal. Culturas, como os antropó logos como Clifford Geertz manteriam, são também textos.°2 Mas nã o são apenas textos nã o referenciais, também nã o têm um significado inequívoco. Cada texto pode ser lido de inú meras maneiras. A intenção do autor já não importa, não só porque é multifacetada e contraditó ria, mas também porque o texto existe independentemente do autor. Aplicado à histó ria, isto significa 10 - Historiografia no século XX
que, em última análise, cada obra histórica é uma obra literária
que tem de ser julgada por categorias de crítica literária. Esta é uma linha de argumentação que tem sido constantemente prosseguida na teoria literária francesa e americana desde a sua formação de Barthes - a sua tradução no I 96os. Barthes negou a distinção entre história e literatura e, com ela, a distinção entre facto e ficção que tem sido geralmente aceite no pensamento ocidental desde que Aristóteles a formulou no seu PoetiCS. Esta crítica do realismo histórico tem estado ligada a uma crítica da sociedade e da cultura modernas. Assim, Barthes queixou-se que "o realismo do discurso histórico faz parte de um padrão cultural geral ... [que] aponta para um fetichismo alienante do 'real,' pelo qual os homens procuram escapar à sua liberdade e ao seu papel como criadores de mean- ing". Numa linha semelhante, Hayden White observou "a relutância em considerar as narrativas históricas como aquilo que mais manifestamente são: ficções verbais, cujo conteúdo é mais inventado do que encontrado e cujas formas têm mais em comum com os seus homólogos da literatura do que com os da ciência... ences".34 Levando a cabo a crítica da suposta autoridade em A sociedade moderna ainda mais, Hans Kellner acusou que a "verdade" e a "realidade" são, evidentemente, as principais armas autoritárias da sociedade moderna". 5 O que isto significa é a negação da forma como os historiadores têm feito investigação histórica desde a Antiguidade Clássica e, mais especificamente, desde a profissionalização dos estudos históricos. Como Robert Berkhofer observou: "Porque os historiadores normais tentam reconciliar interpretações variantes através de re ferenCe a factos e não através de argumentos sobre a natureza das narrativas como tal, devem presumir na prática que a factualidade possui algum tipo de realidade coerciva". Uma vez que nega a factualidade, "a con- teoria literária temporária desafia o próprio fundamento intelectual da prática histórica actual".6 No entanto, os críticos do realismo histórico que insistiram na autônoma omissão de textos raramente foram para além de afirmações teóricas, para enfrentar um assunto histórico concreto, que para eles só poderia ser uma construção linguística. Os defensores do movimento que se definiu como "Novo Historicismo" trataram 7mais directamente da literatura e da cultura num contexto histórico, especificamente o da "8Inglaterra tChe d t hr o ug h a s suas condutas Elizabetana", a ppr o iluminadas, e também o encontro europeu com o original Introdução-11
habitantes do Novo Mundo. 39 Estes dois grupos partilhavam
pressupostos básicos da teoria literária pós-modernista sobre a cen- tralidade da linguagem e a sua opacidade, bem como concepções antropológicas das culturas como redes simbólicas de significado. Não obstante, os Novos Historicistas rejeitaram a noção de autonómio dos textos e viram os textos como parte de complexas negociações simbólicas que reflectiam relações de poder compreendidas em parte em Foucaultiano, mas em parte também em termos marxistas. Os textos que formaram as bases das suas análises foram informados pela mesma dialéctica cultural que a sociedade em geral, na qual desde o início do período moderno as forças do mercado capitalista tinham operado. Para elas, como para o sociólogo Pierre Bourdieu, estas forças assumiram a forma, não de um conto simbólico material, mas de um conto simbólico culturalmente negociável. Sublinhando os múltiplos significados de todos os textos literários e culturais, permaneceram tão críticos das práticas do "seu tory normal" como os praticantes da teoria literária pós- modernista. Visavam aquilo a que Stephen Greenblatt, o iniciador do Novo Historicismo, chamou uma "Poética da Cultura". 40 As críticas radicais aos métodos de investigação histórica aceites que dominaram as discussões teóricas da história a partir do *97OS até ao presente tiveram um impacto importante, mas ainda assim limitado, na escrita da história. Se se aceitasse as premissas desta crítica, seria impossível uma escrita histórica significativa. É evidente que a história tem qualidades literárias. O historiador, como F. A. Ankersmit argumentou,4* utiliza sempre metáforas para crear imagens históricas. A diferença entre o que ele chama de historiografia moderna, tanto da orientação Rankeana como da ciência social e a posição pós- moderna, reside na insistência deste último no carácter metafórico e não-referencial de cada texto histórico e na ilusória convicção do primeiro de que existe uma substância histórica separada da prosa ou da po-extensão do historiador. Hans Kellner, numa linha semelhante, viu toda a tradição da erudição histórica moderna como uma aberração da concepção antiga e pré-moderna da história como uma forma de retórica.42 Mas a questão não é obviamente assim tão simples. Pois até os historiadores anteriores ao período de profissionalização se viam a si próprios como retóricos para quem a história devia conter exemplos, lições para a vida, e ao mesmo tempo estavam empenhados em contar uma história verídica. O teor das recentes discussões, tais 12°Historiografia no século XX
como o painel sobre "Ficcionalidade, Narratividade,
Objectividade" no Congresso Internacional de Ciências Históricas em Montreal em I Was995.4' to occupy a middle position, para reconhecer, como Roger Chartier o formulou, que embora "uma entre muitas formas de narração, a história é no entanto singular na medida em que mantém uma relação especial com a verdade. Mais precisamente, as suas estruturas narrativas visam reconstituir um passado que realmente foi. Esta re- erência a uma realidade pré-existente do texto histórico e situada fora dele, da qual o texto tem a função de produzir um relato inteligível ... é o que constitui a história e a mantém diferente da fábula ou da falsificação" ^ Esta distinção entre verdade e falsidade continua a ser fundamental - mental para o trabalho do historiador. O conceito de verdade tornou-se imensamente mais complexo no decurso do recente pensamento crítico. Para ter a certeza de que o postulado de "um objectivo absoluto - a objectividade e a cientificidade do conhecimento histórico já não é ac- Ce pt e d Wit hotlt re Ser Va t iofl ".45 No entanto, o conceito de verdade e com ele o dever do historiador de evitar e de descobrir a falsificação não foi de modo algum abandonado. Como profissional formado, continua a trabalhar criticamente com as fontes que tornam possível o acesso à realidade do passado. A distinção entre racionalidade e irracionalidade na investigação histórica não assenta num conceito abstracto de verdade ou objectividade, mas sim "na ideia da história como uma comunidade interpretativa, uma disciplina praticante com padrões profissionais". 46 A fuga da realidade do passado no pensamento literário, guístico e histórico recente reflecte um profundo descontentamento com os aspectos alienantes da civilização moderna. Na medida em que a ciência oc- cupied um papel central nesta civilização, as abordagens científicas, incluindo a tradição moderna da história académica, foram alvo de ataques. Esta crítica, é claro, também teve implicações políticas. O que tinha começado no século XIX e na primeira metade do século XX com Burckhardt, Nietzsche, e mais tarde Heidegger como uma rejeição da herança humanista do En- lightenment de uma perspectiva elitista e antidemocrática foi retomado depois do 194a por pensadores como Jean-Paul Sartre e a Escola de Frankfurt-Theodor Adorno e Max Horkheimer- que ocupavam posições geralmente mais identificadas com a esquerda, mas que já não viam na fé do Iluminismo em Introdução-13
Se47 o Iluminismo tinha procurado libertar os homens dos mitos e
ilusões, os seus críticos procuraram libertar os seres humanos da falta de sentido ético que, na sua opinião, a abordagem racional - ou, na sua opinião, racionalista - da vida e da realidade implicava. A razão ciência-ficção tornou-se subitamente um monstro. Foucault e Derrida concordaram que, ao colocar a razão abstracta no centro, a tradição ocidental da filosofia desde Sócrates tinha legitimado padrões de dominação 48 e, para Joan Scott escrever a partir de uma perspectiva feminista, tinha estabelecido a autoridade patriarcal na própria linguagem do discurso comum,49 Esta crítica pós-moderna continha pontos válidos importantes. Demonstrava que a noção de uma história unitária não era dez- capaz, que a história era marcada não só pela continuidade mas também por rupturas. Os críticos apontam correctamente para os pressupostos ideológicos que foram incorporados no discurso dominante da erudição histórica profes- sional. Também desafiam com razão as suas pretensões exageradas de falar com a autoridade de peritos. No entanto, tendem a deitar fora o bebé com a água do banho quando negam a possibilidade de qualquer tipo de discurso racional de história - cal cal e questionam a noção de verdade histórica e com ela a de falsidade histórica. Eliminam assim não só a fronteira reconhecidamente fluida que existe entre o discurso histórico, que envolve sempre elementos ficcionais, e a ficção, que procura sobretudo interpretar a realidade, mas também a que se situa entre a erudição honesta e a propaganda. Esta confusão de aborrecimentos tornou-se particularmente problemática nas recentes discussões sobre o Holocausto como um acontecimento histórico.* As contradições da resolução da história em literatura puramente imaginativa tornam-se ap- tos na confissão de Hayden White de que a partir de uma perspectiva moral - é inaceitável negar a realidade do Holocausto, mas é impossível numa narrativa histórica estabelecer objectivamente que aconteceu". O desafio pós-modernista teve um impacto significativo no pensamento e na escrita histórica sem, contudo, destruir as continuidades com concepções e práticas mais antigas. O pós- modernismo reflecte uma sociedade e cultura em transformação, na qual velhas certezas sobre o crescimento industrial, o crescimento económico ex 14 -Historiografia no século XX
expectativas, e as normas tradicionais da classe média têm sido
abaladas. Isto tem-se reflectido na historiografia dos últimos vinte anos. O tema da história passou das estruturas e processos sociais para a cultura, no sentido lato da vida quotidiana. A história voltou a assumir um rosto humano, uma vez que foi dada uma nova atenção aos indivíduos, desta vez não às pessoas altas e poderosas, mas às pessoas comuns. Uma escola dos seus - torianos procurou substituir o estudo dos processos macro- históricos e macrossociais por aquilo a que chamaram micro- história, concentrando-se em pequenas unidades sociais constituídas por viduais-indígenas concretos. A nova ênfase na cultura da vida quotidiana colocou a história em estreito contacto com a antropologia de Clif- ford Geertz. "Acreditando, com Max Weber, que o homem é um animal suspenso em teias de significado que ele próprio teceu", Geertz "toma[s] a cultura como essas teias e a sua análise, portanto, não uma ciência experimental em busca do direito, mas uma ciência interpretativa em busca de significado. É a explicação ... construindo expressões tão ciais [que] na sua superfície [são] enigmáticas" que o estudante de cultura está atrás. Assim, a nova história cultural, tal como a "hermenêutica" do historicismo clássico, preocupa-se não com a explicação, mas com a "explicação", a tentativa de reconstruir o significado das expressões sociais que servem como seu texto, ts 52 No entanto, a hermenêutica da nova história difere da hermenêutica a escola de Rankean. Esta última não só tratou de um assunto diferente, o de personalidades dirigentes no âmbito do trabalho de enquadramento de grandes instituições políticas, mas também assumiu que os textos continham um significado claro que poderia ser reconstruído através de uma análise filológica. Ranke e a sua escola ainda acreditavam que a história era uma ciência rigorosa, mesmo que diferente em matéria mat- ter e métodos das ciências explicativas. Para a nova história cultural, as instituições centrais do Estado, da Igreja e do mercado mundial tinham desmoronado, e o significado dos textos já não era transparente, mas era marcado por contradições e rupturas. Tudo isto deu apoio aos ataques pós-modernistas contra noções de objectividade e método científico, que terminaram com a abolição da distinção entre narrativa histórica e ficcional. No entanto, um exame da historiografia do passado Introdução- 1S
vinte anos, que empreendo neste volume, sugere antes que,
embora os historiadores se tenham tornado muito mais guardados na sua crença na autoridade da ciência, trabalharam no entanto com a convicção de que o historiador lidou com um passado real e não com uma imagem e que este passado real, embora acessível apenas através do meio da mente do historiador, exigia métodos e abordagens que seguissem uma lógica de investigação. É impressionante que enquanto o pensamento pós-moderno punha cada vez mais em causa a autoridade do estudioso profissional, o trabalho histórico sentia de facto as pressões de uma profissionalização crescente. Embora houvesse chamadas no final do século XX, pelo movimento Oficina de História para cidadãos 53interessados no exterior as universidades a escavar pelas suas raízes, de facto a nova história cultural foi levada a cabo quase inteiramente nas universidades. Uma boa parte do desafio à ética científica no trabalho histórico veio de fora das disciplinas - de teóricos e críticos literários que desejavam fazer cair a história em imaginação literária- eratura. No entanto, a própria crítica literária, uma vez que o domínio dos intelectuais independentes que escreviam em revistas e resenhas, foi, de forma crescente, aprisionada nos confins da academia. Não com - reorientações filosóficas básicas permanentes, a cultura da academia, incluindo os seus critérios para adquirir as credenciais necessárias para obter uma posição e ter uma carreira de sucesso, permaneceu notavelmente constante desde o lançamento da historiografia profes-ional nas universidades alemãs no início do século XIX até ao presente. Assim, apesar dos apelos ao repúdio de um ethos científico, o ethos científico persistiu na prática. Isto era essencial para que houvesse um trabalho histórico significativo. A história continuou a ser um ofício erudito. Os historiadores dos Ios97 e 19 os aprenderam com os antropólogos o significado da cultura na compreensão do comportamento político e social. Assim, os estudos da Revolução Francesa tomaram uma nova direcção. A ênfase em factores de classe e económicos que tinham informado as análises marxistas de Georges Lefebvre54 fl fl d Alb t r t Soboul55 e a análise anti-marxista de Alfred Cobban56 sel meados do século XX foi substituída por uma maior ênfase na cultura, língua, símbolos e rituais nos escritos de François Furet, 57Lynn Hunt, 5William Sewell, 5a Il d Simofl SCha m a °0 ifl I6 - Historiografia no século XX
os -9 os e os Early -99OS. Mas, em última análise, os novos
histo-rianos culturais, tal como os seus antepassados tradicionais, tiveram de ir também aos arquivos. Embora fossem altamente críticos dos pressupostos das anteriores abordagens das ciências sociais, utilizaram, no entanto, muitas vezes com a ajuda de técnicas informáticas modernas, técnicas empíricas descobertas para criar uma base para a sua recon-estruturação interpretativa da cultura local. Embora o trabalho das i S97 e dos anos 80 enfatizasse frequentemente o significado da cultura em detrimento da política e de processos sociais mais amplos, os acontecimentos desde -9 9tornaram claro que esta última não pode ser ignorada. Embora seja difícil depois do enormities do nosso século para seguir a teoria da modernização ao dotar a civilização do Ocidente de qualquer dignidade especial ou para ver a história como um processo unitário, é no entanto claro que as forças poderosas descritas por essa teoria são de facto opera- tive no mundo moderno. É certo que a teoria da modernização tem sido geralmente demasiado optimista ao ver o mundo moderno como o "fim da história "61 , o resultado de um processo benigno. Além disso , o colapso do império soviético demonstrou a inadequação de uma dependência exclusiva da análise política, económica ou cultural, enquanto que a persistência de velhos hábitos nacionalistas e religiosos e a sua transformação em condições modernas, tal como manifestada nos conflitos étnicos e nos surtos de divertimento religioso dos últimos anos, expuseram ainda mais os limites da teoria da modernização. O que é necessário no seu lugar é uma ampla abordagem histórica que leve em consideração tanto os aspectos culturais como institucionais. A crítica pós-moderna da ciência tradicional e da historiografia tradicional tem oferecido importantes cor- retivos ao pensamento e à prática histórica. Não destruiu o compromisso do historiador de recapturar a realidade ou a sua crença numa lógica de investigação, mas demonstrou a complexidade de ambos. Talvez possamos ver na história da historiografia um diálogo contínuo que, embora nunca chegue à finalidade, contrib- utes a um alargamento de perspectiva.
A nossa história começa com a profissionalização dos estudos
históricos no século XIX. A historiografia é, evidentemente, muito mais antiga. Os seres humanos lidaram com o seu passado em todas as culturas, mas Introdução-I7
as formas como o fizeram diferiram. Assim, no Ocidente,
incluindo o mundo islâmico, mas também na Ásia Oriental, a história escrita tem ocupado um papel importante, mas também as formas não escritas de história, monumentos, símbolos, e tradições populares. Pelo menos tão cedo como Heródoto e Tucídides no Ocidente e Ssu'ma Chi'en no Oriente, foi feito um esforço consciente para distinguir a história do mito e chegar a uma descrição verdadeira dos acontecimentos passados. No entanto, não houve qualquer tentativa de reivindicar para a história o estatuto de uma ciência semelhante, no seu rigor, às ciências naturais. A busca da história como um género literário que procura recapturar a realidade do passado de forma verdadeira e honesta, mas de uma forma esteticamente elegante, persistiu desde a antiguidade clássica ocidental e oriental asiática até há relativamente pouco tempo. Apenas no século XIX a história foi transformada numa disciplina de tamanho profissional que se via a si própria como uma "ciência" praticada por historiadores profissionalmente formados. Os falantes de inglês não se sentem confortáveis com o termo "histori- cal science" (Geschichtswissenschaft), comummente usado em línguas europeias conti-nentais, mas também em línguas do leste asiático, para distinguir a história como disciplina da história como perseguição literária. O termo não é comum na língua inglesa, onde a ciência geralmente denota as ciências naturais sistemáticas ou uma lógica de investigação e explicação modelada nas ciências naturais, como na abordagem sistemática e propensão para a abstracção a ser encontrada nas "ciências sociais". Nas línguas do continente, Wissenschaft (Ger- man), science (French), scienza (Italian), ciencia (Spanish), ou nauk (Russian) denotam uma abordagem sistemática a qualquer esfera do conhecimento, incluindo as humanidades, guiada por métodos de in vestigation aceites por uma comunidade de estudiosos. Usaremos o termo neste livro para nos referirmos à disciplina moderna da história. A emergência da ciência histórica neste sentido coincidiu com o estabelecimento da história como uma disciplina profes- sional ensinada e estudada nas universidades. O disci- pline nunca teve o rigor conceptual das ciências naturais ou das ciências sociais analíticas devido aos elementos de volição, intenção e significado no comportamento humano que desafiam o grau de abstracção em que o conhecimento reside nas ciências mais duras. No entanto, exige a adesão a uma lógica de investigação científica partilhada por estudiosos em geral, através da qual os resultados de 18 -Historiografia no século XX
A investigação histórica pode ser testada quanto à sua validade,
tal como o são noutras disciplinas. Também espera que o estudioso vá além dos dados em bruto produzidos pelas suas fontes para criar um relato coerente que, como todo o discurso científico, envolva explicação. A natureza da explicação difere obviamente na historiografia da das ciências duras porque tem de ter em conta não só a intenção e a individualidade dos seus objectos de estudo mas também o papel da subjectividade do investigador, claramente maior nos estudos históricos do que nas ciências duras. Thomas Kuhn argumentou que, mesmo na física, as concepções do que constitui o trabalho científico não resultam exclusivamente de desenvolvimentos e discussões internas à disciplina, mas estão intimamente ligadas ao correntes intelectuais mais vastas da cultura em que se desenvolve o trabalho científico. 62 Jf isto aplica-se a uma disciplina como a física, que procura enfaticamente excluir elementos de subjectividade no julgamento científico, aplica-se ainda mais à história, que reconhece o papel da subjectividade como um ele- ment inescapável na investigação académica. O acima exposto não pretende sugerir que o trabalho da lista científica ou do historiador possa ser explicado principalmente em termos de factores sociais ou que tenha principalmente uma função ideológica. Mas significa que a ciência, e especialmente a "ciência histórica", que está tão intimamente ligada aos valores e intenções humanas, deve ser vista no quadro sociocultural e político em que é praticada. Uma história de historiografia que tenha em consideração apenas factores internos à disciplina da história não é possível. É concebível que um conjunto de factos históricos possa ser examinado através de padrões críticos sobre os quais existe um consenso na disciplina; o mesmo consenso dificilmente pode ser alcançado quando estes factos são inseridos num contexto mais amplo de acontecimentos e desenvolvimento. Como já indiquei, a ciência, e isto inclui a ciência histórica, nunca pode ser reduzida a um conjunto de processos de pensamento desencarnado internos à disciplina, mas envolve sempre seres humanos vivos que trabalham no quadro de instituições académicas e científicas e têm pressupostos sobre a natureza da realidade que partilham com um grande número dos seus tesouros. A ciência pressupõe sempre uma comunidade de estudiosos que partilham práticas de investigação e formas de comunicação. Não é, portanto, possível separar uma história de historiografia Introdução-I9
das instituições e do ambiente social e intelectual em que se
desenvolve o trabalho académico. As três partes deste livro abordarão o estabelecimento da história como disciplina académica, o desafio das ciências sociais à bolsa tradicional e, finalmente, a crítica das abordagens das ciências sociais pelo pensamento pós-modernista e o seu efeito sobre o trabalho do historiador.