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Resumo
A narrativa sobre a “origem” da “dança do ventre” mais disseminada é a de que seria
uma “dança milenar”, reminiscente de rituais de fertilidade para deusas do mundo antigo. O
presente trabalho, procura desmistificar esse discurso, apontando para as distintas
problemáticas desta explicação: desde a falta de evidências históricas que a corroborem até o
orientalismo intrínseco a ela. Ao atar as origens da dança do ventre a um passado mítico e
místico, lança-se um véu tanto sobre a problemática relação dessa manifestação cultural com
o colonialismo europeu, como sobre o papel histórico primordial de grupos de dançarinas e
dançarinos marginalizados, como as ghawazee e os khawalat.
Palavras-chave: Dança do Ventre; Orientalismo; Decolonialidade.
Introdução
Sensualidade, feminilidade, sedução e sagrado feminino. Esses são só alguns dos
marcadores e construções culturais associados ao que convencionamos chamar de “Dança do
Ventre”. Praticada transnacionalmente, trata-se de uma dança com origens no Norte da
África, Ásia Central e no Oriente Médio, “caracterizada por um repertório central de
movimentos do torso, incluindo movimentos articulados do quadril e dos ombros, como
tremidos, círculos, ‘figuras em oitos’ da pelve e ondulações do abdômen” (Ward, 2018, p. 6).
A versão em português da “Dança do Ventre”, derivou-se a partir do francês danse du ventre,
que, segundo a historiadora Ainsley Hawthorne (2019, p. 2), surgiu pela primeira vez em
fontes impressas francesas, associado ao quadro La danse de l’almée (1863), de Jean-Léon
Gérôme (1824–1904), um dos maiores nomes do Orientalismo nas artes visuais.
Figura 1: La danse de l’almée ou “A Dança da Almeh” de Jean-Léon Gérôme, 1863.
Confrontado com o corpo feminino sob a influência da dança do ventre, o olhar masculino se confunde com um movimento
que não consegue mapear e com uma energia que não consegue compreender. Eu acredito que é em grande parte a
desaprovação dos homens inspirada pelo medo do feminino que privou esta dança da apreciação e até mesmo do
reconhecimento artístico e do status que ela justamente merece. Além disso, foram essas atitudes que geraram o sistema de
crenças da ‘Deusa Mãe' e dos rituais de fertilidade na cultura da dança do ventre. É interessante, porém, observar, que na
Turquia, Egito e outros lugares onde as primeiras manifestações artísticas desta dança existiam antes de começarem a ser
exportadas para a Europa por meio de relatos de viagens e das Feiras Universais, a dança é cercada por uma cultura tão
diferente do Ocidente que a associação da dança com o passado mítico relacionado ao matriarcado da Deusa Mãe causa
surpresa e perplexidade. (Karayanni, 2009 p.458)
As vivências individuais possibilitadas por meio de experiências somáticas e imagens de matriarcados, deusas, sacerdotisas,
partos e rituais femininos também inclui corpos masculinos, lésbicas, transexuais, idosos, presos ou enfermos? Como o
sentido de transcender a cultura material e a identidade material (mesmo que a dança seja definida em relação às suas
raízes no Oriente Médio e sua resistência à cultura ocidental) leva à mudança social ou política? Até que ponto o foco na
autoconsciência como forma de espiritualidade não é um reflexo de outros movimentos espirituais ocidentais, como a
filosofia “New Age”? Existe uma base ética ou intelectual para a dança do ventre espiritual que se enquadre nos objetivos
dos movimentos sociais ou políticos? O esforço para reconciliar o corpo feminino por meio de uma dança descrita pelos
praticantes como "universal" pode incluir mulheres cujas experiências de cultura e sistemas de valores diferem
radicalmente umas das outras? Se sim, como? (Dox, 2005, p. 334).
Considerações Finais
Neste trabalho, foram mobilizadas fontes de diversas searas para extrair dados e
estudos sobre as danças no Oriente Médio e norte da África no período da invasão colonial e
que nos provocam a apre(e)nder como essas representações determinaram a forma como a
“dança do ventre” se constituiu como uma modalidade de dança transnacional, fortemente
marcada pelo imaginário e discurso orientalista.
Ainda hoje, persistem os estereótipos que se originaram nessa época. Imagens
frequentes nos meios de comunicação de massa e no imaginário popular, circunscrevem a
dança oriental como inerentemente erótica, exótica, misteriosa, sensual entre outros
elementos essencializantes, além de ser uma prática com a intenção de provocar, agradar e
seduzir o olhar masculino. Concomitantemente, sobretudo entre praticantes ocidentais,
nutri-se a ideia igualmente orientalista de que a “dança do ventre” é uma prática originária
em tempos remotos, no contexto de rituais femininos para deusas da fertilidade, reiterando a
ideia construída no século XIX, de que o chamado oriente e suas práticas culturais são
essencialmente relacionadas a um passado antigo, místico, atávico, misterioso e à uma
espiritualidade esotérica genérica. Essa manifestação cultural acaba nunca sendo relacionada
a um povo, etnia, cultura ou comunidade singular, mas a um oriente distante, exótico e
homogêneo, marcado pela ideia de estagnação histórica, pela hierarquização racial, a
estrutura dicotômica em comparação com o Ocidente, a exotização geográfica e dos corpos e
a dita incivilidade.
Por fim, deve-se levar em conta que a “dança do ventre”, um estilo altamente
comercial, a partir de aulas, workshops, festivais, competições, feiras, apresentações,
figurinos, adereços, música e instrumentos musicais, está inserida no mercado capitalista
global e as posições periféricas, tanto do Egito quanto do Brasil, nesse mercado global de
“dança do ventre”. Sendo sociedades altamente desiguais, é de extrema importância
considerar as relações de classe, gênero, raça, sexualidade e geracionais que operam em
ambos os contextos e na maneira como a “dança do ventre” acaba sendo comercializada em
cada nação. No Brasil, trata-se de um fenômeno predominantemente feminino, branco e de
classe média. No Egito, há uma estratificação social e racial que cinde dançarinas, locais e
públicos. Um mercado que produz relações racistas, elitistas e sexistas, herdadas do período
da invasão colonial.
Notas
² Discurso é um termo da filosofia foucaultiana que foi apropriado por Edward Said
em sua elaboração conceitual de Orientalismo. Discursos são conjuntos de enunciados
baseados na mesma formação discursiva e que possuem direta ligação com as relações
de poder, dando vazão tanto a este quanto à possibilidade de resistência.
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