Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
www.portalanda.org.br
A LINHAGEM DE SALOMÉ:
CAMINHOS DA PERFORMANCE FEMININA NA DANÇA ORIENTAL
RESUMO: Este artigo apresenta figuras femininas que integram o imaginário dos
gêneros contemporâneos da dança oriental, como o Tribal e o American Tribal Style
(ATS). As mulheres foram protagonistas nas mudanças estéticas na dança oriental e
por isso a simbologia relacionada ao feminino pode nos contar histórias na dimensão
do sensível, dos aspectos subjetivos que emergem neste campo imaginal. Com
base em uma bibliografia que reúne depoimentos e pesquisas de dançarinas,
discute-se a relação entre imaginário e escolhas estéticas em uma modalidade de
dança cada vez mais híbrida, desde que sua prática chegou ao Ocidente e
popularizou-se como Dança do Ventre.
PALAVRAS-CHAVE: Imaginário, dança oriental, dança do ventre, hibridismo.
ABSTRACT: This article presents some of the feminine figures that integrate the
imaginary from the contemporary genres of oriental dance, like Tribal and American
Tribal Style (ATS). Women have been pioneers on the oriental dance aesthetic
changes and therefore the symbolism related to them can tell stories from the
sensitive dimension, the subjective aspects that emerge in the imaginary field.
Based on a bibliography that includes statements and academic research, a
discussion is made to understand the relation between imaginary and aesthetics
choices, in a dance modality that gets more and more hybrid, since its practice
arrived at the West, known by belly dance.
KEY-WORDS: Imaginary, oriental dance, belly dance, hybridism.
Introdução
Este artigo tem como foco a Dança Oriental contemporânea em seus diferentes
gêneros, entre eles o mais popular no ocidente, onde é conhecido como Dança do
Ventre,
707
O conceito de hibridismo, a “fusão entre diferentes tradições culturais”, (HALL,
2006, p 91) é fundamental para atender esta modalidade cujo nome vem da
tradução do árabe raqs (dança) sharqi (oriental) (MCDONALD, 2010; XAVIER,
2003). Neste contexto, “oriental” não é um lugar geográfico, pois ganha
especificidade ao ser usado para identificar a linguagem corporal que mistura
elementos de danças étnicas da região mediterrânea do Oriente Médio e do Norte
da África. Sua fusão cultural se expande a Oeste até a península ibérica, de onde
traz influência do flamenco, e a Leste, de onde incorpora referências da Índia.
Ondulação
(Belly wave)
708
Combinada a giros, passos sincronizados e movimentos de braço, a matriz
pélvica ganha personalidade de acordo com o gênero que predomina em uma
performance. Na Dança do Ventre, a movimentação dos braços é menos enfatizada,
enquanto o torso é trabalhado com ondulações e a centralidade pélvica é
proeminente. Já no Tribal 1 e seus subgêneros, os braços e ombros ganham
destaque nas coreografias e improvisos, graças à influência do flamenco e das
danças indianas. O uso do torso é extremamente elaborado e a matriz pélvica ganha
sofisticação e complexidade.
1 Gênero criado por Jamila Salimpour no final dos anos de 1960, na Califórnia.
709
palco e repertório. Este território imaginal nos conduz pelos caminhos performáticos
da dança sem buscar classificá-los ou reduzi-los.
Poéticas do ventre
Entendo a dança oriental como uma arte performática, sendo que “a relação
entre estudar e fazer performance é integral” (SCHECHNER 2003, p2). Por isso,
lancei mão de reflexões sobre meus processos criativos, combinados ao de outras
2
Tradução livre desta autora, assim como todos os demais trechos traduzidos neste artigo.
710
dançarinas, para identificar três figuras femininas presentes no universo criativo da
dança. Cada uma delas evoca sua própria estética, como veremos a seguir.
A Sacerdotisa
3
Nos anos de 1970 Jamila Salimpour desenvolveu nos Estados Unidos um gênero de dança oriental
que ficou conhecido como Tribal.
711
As deusas antigas, como a egípcia Ísis, inspiram apresentações com alto grau
de teatralidade, muitas referências simbólicas e coreografias ritualizadas. Em geral,
o uso de cores e acessórios está associado à simbologia de divindades pagãs e do
sincretismo religioso, como a Lua Crescente para evocar a Grande Mãe, derivada do
arquétipo materno, sendo “arquétipo” uma noção elementar “disseminada não
somente pela tradição, idioma e migração, mas que também pode surgir
espontaneamente, em qualquer lugar ou tempo” (JUNG, 1982, p107). Esta relação
com a figura materna nos leva para a segunda manifestação feminina muito comum
na dança oriental.
A Matriarca
A figura da mulher que exerce forte influência em um grupo, família ou clã está
presente no imaginário da dança oriental ligada aos ritos sociais da cultura árabe. A
matriarca está mergulhada em cenário paradoxal em países do Oriente Médio onde
“a dança do ventre é largamente percebida como uma forma de entretenimento de
periferia e de má reputação, ao mesmo tempo em que é reconhecida como um
elemento necessário em casamentos e celebrações” (SHAY 2008, p 145) apud
(SCHEELAR, 2012, p 39).
712
A sobreposição de diferentes dimensões culturais e sociais nesta prática
trasnacional pode explicar as visões contraditórias sobre a dança oriental. Por isso,
optei por identificar as forças criativas atuantes da dança, como vetores de
emanação estética, em constante adaptação às transformações culturais. No caso
da matriarca, ela se manifesta nas tradições culturais. A etnóloga e dançarina
egípcia Fawsia Al-Rawi (1999) conheceu a dança como um rito de passagem
feminino e aprendeu a dançar no contexto familiar. Ao saber de sua menarca, sua
avó egípcia preparou um evento no qual ela recebeu um lenço para amarrar ao
redor da cintura e dançar pela primeira vez para as convidadas, ocasião na qual Al-
Rawi afirma ter mergulhado em uma experiência sensorial: “senti meu corpo se
dissolver em movimentos muito mais antigos do que eu” (1999, p 24).
713
A Odalisca
714
Este retrato estereotipado pode servir de fonte de inspiração para coreografias
que exploram o domínio da matriz pélvica e evocam sensualidade, mas por outro
lado reproduz uma visão artificial, baseada em “chavões orientais: haréns,
princesas, príncipes, escravos, véus, rapazes e moças que dançam, sorvetes,
unguentos e coisas do gênero.” (SAID, 1990, p. 197).
Conclusão
Que estórias nos contam estas três figuras femininas? Ritos de passagem,
cerimônias devocionais e oásis fantasioso com mulheres voluptuosas. Cada uma
delas traz consigo uma bagagem estética que se reflete na prática da dança oriental,
nas mudanças no uso da matriz pélvica e em cada performance inspirada em seu
arcabouço simbólico. O processo de construção na ação dramática da dança é
alimentado por esta relação com os elementos do imaginário.
715
Quando me lanço na experiência corporal com movimentos de ondulação da
barriga e balanço rigoroso dos quadris, faço emergir um corpo que pertence a um
lugar criado pelo fluxo globalizante que articula o “global” e o “local”, no qual o local
“atua no interior da lógica da globalização” e esta atuação produz “simultaneamente,
novas identificações ‘globais’ e novas identificações ‘locais’ (Hall, 2006, p. 78, grifo
do autor). Para além da divisão entre global e local, a dança oriental contemporânea
é um espaço no qual essas dimensões se diluem. É um espaço de construção
coletiva, compartilhada por uma linguagem corporal fluida e híbrida.
REFERÊNCIAS
BOURCIER, Paul. História da Dança no Ocidente. 2ª. edição. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
DEAGON, Andrea. The Image of the Eastern Dancer: Flaubert’s Salome. Em The
best of Habibi online <http://thebestofhabibi.com/vol-19-no-1-feb-2002/salome/>.
Acesso em 20 de abril e 2016.
DIB, Márcia. Mulheres Árabes como Odaliscas: uma imagem construída pelo
Orientalismo através da pintura. Revista da Universidade Federal de Goiás,
Goiânia. CEGRAF/UFG, ano 13, no. 11, p 145-150. Em: <
http://www.proec.ufg.br/revista_ufg/dezembro2011/>
716
MAFFESOLI, Michel. Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas
sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
MILLES, Helen. Years of Grace and Glamour: the Story of Egyptian Dance. Em
The best of Habibi online. http://thebestofhabibi.com/no-1-winter-1994/egyptian-
dance/. Acesso em março de 2016.
SALIMPOUR, Jamila. From Many Tribes: the origins of Bal Anat. 1997.Em
http://www.salimpourschool.com/resources/ Acesso em maio de 2016.
XAVIER, Cínthia Nepomuceno. …5,6,7,8 Do oito ao infinito: por uma dança sem
ventre, hídrida, impertinente. Brasília, 2006. Dissertação (Mestrado em Artes).
Universidade de Brasília, Brasília, 2006.
717