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Linguagem da dança – conceitos,

características e mixagens
Por Estéfani Martins
"A dança é uma expressão perpendicular de um desejo horizontal."
(George Bernard Shaw)

"Quando eu nasci eu já dançava.”


(Mario de Andrade)

“A dança, por sua vez, também possui vinculações étnicas, culturais e históricas, bem como
relações de gênero a serem discutidas na escola.”
(Orientações curriculares do Ensino Médio - MEC)

A dança foi uma forma de arte muito valorizada na Antiguidade Clássica, já em


outras sociedades teve uma função muito pragmática associada a tradições de
fertilidade, cultos religiosos, etc. Caracteriza-se por movimentos corporais
coreografados ou espontâneos e improvisados, quase sempre acompanhados de
uma trilha musical que sugere a cadência, a intensidade e a expressividade dos
movimentos em questão. Essa manifestação artística pode ainda ser vista como
uma das muitas formas de organização da linguagem corporal.
A dança, como muitas artes, pode ser vista de formas muitos diferentes
por distintas comunidades, de forma de entretenimento e socialização
estritamente, como é o caso dos passos de dança em carnavais de rua como o de
Olinda, a uma forma de transe coletivo motivado pelo movimento circular e
ritmado de fiéis de algumas religiões, como é o caso do ritual associado a
comunidades religiosas como o Santo Daime. Como expressão artística, a partir
de uma ótica não pragmática, a dança admite escolas específicas que produzem
formas diferentes de pensar os movimentos do corpo como forma de arte.

Uma breve história da dança

Há registros confiáveis de que o homem dança há milhares de anos.


Possivelmente, como forma de afastar ou pedir a chuva, de conseguir resultados
melhores para uma caçada ou mesmo de adorar algum deus. Nas cavernas de
Lascaux, na França, há pinturas rupestres que mostram nitidamente grupos de
humanos em situações que remetem a uma forma primitiva de dança. Como
para esses povos, aparentemente o que se pintava nas paredes das cavernas era
de crucial importância como situações de caça, pode-se inferir que a dança
ocupava posição importante na vida dessas comunidades.
Isso ocorre provavelmente desde as primeiras organizações sociais
humanas razoavelmente complexas, quando já era possível pensar na
possibilidade de que o homem era capaz de produzir simbologias abstratas, que
fariam com que ele pudesse associar uma forma de dança primitiva a maior
possibilidade de que o inverno fosse menos rigoroso, por exemplo.
A dança, por milhares de anos e em muitas locais do planeta, foi uma
possibilidade corporal exclusiva de homens. Só nos séculos XIX e XX, que as
mulheres emanciparam-se o bastante para poderem participar ativamente de
danças teatrais mais frequentemente. Em danças folclóricas, nos séculos
anteriores, já havia presença perceptível de mulheres nessas expressões
artísticas. Ainda hoje, em certas regiões da União Soviética, existem danças
matrimoniais em que as mulheres não tomam parte dos movimentos corporais,
a não ser como referencial para os homens dançarem em torno delas,
principalmente da noiva.
A história da dança como forma artística, inscrita numa ideia mais
formalista de arte, demonstra as inúmeras mudanças pelas quais passou o
entendimento da dança não só por parte de seus criadores e dançarinos, mas
também de seu público, que, metaforicamente, passou a exigir cada vez mais em
diferentes níveis dos espetáculos de dança.
As danças populares e folclóricas são um marco importante na história
dessa arte, pois foi certamente a partir de variantes rudimentares e antigas
delas, repassadas pelo exemplo e pela oralidade por milhares de anos, que a
dança desenvolveu-se como forma artística e como técnica corporal.
O Balé Clássico, bem mais tarde, baseado no preciosismo técnico, nas
narrativas surreais e nos espaços idílicos que norteavam a coreografia, foi um
contraponto a espontaneidade inicial.
Ao longo do século XIX, mas especialmente na aurora do XX,
desenvolveram-se entre bailarinos e bailarinas de formação clássica uma visão
mais autônoma esteticamente em relação às possibilidades de movimentação do
corpo, muito influenciada pelas muitas vanguardas estéticas, pelo
questionamento dos rigores teóricos e técnicos do balé clássico e pela ebulição
nas artes que as ideias modernistas propiciaram. São expoentes desse momento
Isadora Duncan e Vaslav Nijinski.
Como uma consequência das ideias modernistas no universo da dança,
nasceu a Dança Contemporânea que por vezes se concilia de alguma forma com
modos mais tradicionais de dançar, sem, contudo, interromper as propostas de
inovação estética da Dança Moderna. Nesse sentido, as formas contemporâneas
de dança passam a fazer uso de adventos tecnológicos como o vídeo, o cinema,
os aparatos modernos de iluminação, os movimentos do esporte, a referência de
culturas marginais, etc., além de se deixar influenciar pelos ritmos e
movimentos da sociedade da qual faz parte, tais como: a urbanização ampla e
acelerada, a importância crescente dos meios de comunicação e informação, a
crise moral, as questões ecológicas, etc. Além disso, inauguram um tempo de
intensas mixagens que ajudaram a tornar nebulosas as fronteiras entre teatro,
música, dança e artes visuais. São exemplos desse tipo de experiência com a
dança, grupos como Corpo, Quasar, Deborah Colker Cia de Dança, etc.

A dança como linguagem

A dança é uma das linguagens artísticas mais antigas até pela sua pouca
exigência quanto a aparatos tecnológicos e mesmo formação acadêmica para ser
realizada ainda que em um nível muitas vezes rudimentar. Entretanto, desde as
formas de dança mais eruditas como o Balé Clássico até as danças populares
como o Frevo e a Quadrilha, em todas há elementos que as constroem como
manifestações artísticas e corporais. Segundo a pesquisadora Judith Lynne
Hanna, os elementos da linguagem da dança, que combinados permitiriam a
compreensão da dança de acordo com o estilo, a escola ou mesmo a função, são:
• Espaço: direção, nível, amplitude, foco, ordem e forma.
• Ritmo: tempo, duração, ênfase e compasso.
• Dinâmica: força, energia, tensão, relaxamento e fluxo.
• Forma: relação estabelecida entre quem dança com o outro, com o espaço e
com objetos.
• Locomoção: caminhar, pular, correr, saltar, rolar, estirar-se, rodopiar, etc.
• Gesto: movimentos como rotação, flexão, extensão e vibração.
• Frase corporal: movimentos em sequência capazes de denotar uma afirmação
específica.
• Motivo: parte do movimento apresentada de maneiras distintas: rápido ou
lento, forte ou suave, etc.

Dentre as muitas possibilidades de se abordar a classificação dessa forma


de arte tão dinâmica, quanto multifacetada, faz sentido pensá-la sob várias
perspectivas que alcancem vários elementos constituintes e conceituadores, eis
alguns deles:

Quanto aos envolvidos no processo da dança

- dança solo (ex.: solista no balé, algumas coreografias do sapateado, break, o


passista do frevo e o da escola de samba, etc.).
- dança em dupla (ex.: tango, salsa, valsa, maxixe, lambada, o mestre-sala e a
porta-bandeira de escolas de samba, etc.).
- dança em grupo (ex.: danças de roda, maracatu, maculelê, etc.).

Quanto à razão

- dança folclórica (ex.: catira, carimbó, reisado, etc).


- dança cerimonial ou religiosa (ex.: danças indianas, dança sufi, etc.).
- dança étnica (ex.: dança árabe, danças indígenas, etc.).
- dança terapêutica (ex.: auxílio no tratamento de doentes psiquiátricos, etc.)
- dança erótica (ex.: can can, striptease, etc.).
- dança cênica ou performática (ex.: balé, Danças Contemporânea e Moderna,
etc.).
- dança social (ex.: dança de salão, axé, samba, etc.).

Como complemento, seguem citações de partes das Orientações


Educacionais do Ensino Médio, produzidas pelo MEC:

“3.4 Dança

3.4.1 Código
Elementos morfológicos
O corpo humano, entendido como totalidade (mente e físico), ativado e
capacitado para explorar suas possibilidades de movimento e assim
desenvolver-se como inteligência múltipla.
Tempo coreográfico, espaço coreográfico e qualidade do movimento – seus
componentes espaciais (direções, planos, dimensão, caminho realizado), seus
componentes temporais (velocidade, duração, acentuação e periodicidade de
incidência desses fatores) e os componentes de sua intensidade (peso, esforço,
fluxo e impulso).
Estruturas sintáticas
Organização do movimento a partir da priorização de um dos seus
elementos, como desenho simétrico/assimétrico; velocidade
rápida/moderada/lenta; fluxo solto/conduzido, contínuo/descontínuo; assim
como impulso central/periférico. Organização do movimento a partir da
combinação desses elementos, resultando em ações básicas como empurrar,
socar, torcer, deslizar, etc. Organização em grupos funcionais de movimento:
gestos, formas de andar, corridas, saltos, giros, quedas e recuperação.
Composição a partir de células, repetições, variações, blocos, cânones, simetrias,
assimetrias, polirritmia. Criação a partir de diversos estímulos: materiais,
imaginários, emocionais, factuais, individualmente ou em grupo.
Tradicionalmente o tempo, o espaço, a forma e o movimento sempre
foram considerados elementos da dança. É importante lembrar que a forma é,
de fato, o resultado da composição dos aspectos espaciais, temporais e de
intensidade do movimento, não constituindo, portanto, propriamente um
elemento. Isso não significa dizer que não se possa, ou mesmo se deva pensar,
organizar, criar o movimento em função de sua forma.
Essa seria mais uma possibilidade de organização e estudo do
movimento, incluída nas possibilidades citadas anteriormente. A organização
dos elementos da dança compõe a estética da obra, e essa organização variou ao
longo da história, por vezes caracterizando escolas, por vezes desconstruindo
essas caracterizações. Dessa forma, o estudo de seus elementos é um
instrumento eficaz tanto para a experimentação do fazer criativo na dança
quanto para a análise dos estilos e das manifestações culturais dessa linguagem.
Na organização espaço-temporal da dança, o ser humano revela sua relação com
o mundo: a dança constitui, então, além de um instrumento para o
autoconhecimento, um instrumento para o conhecimento do outro em seu
espaço, para a compreensão vivencial da natureza (aqui incluída a natureza
cultural humana) e, conseqüentemente, para a compreensão da própria
sociedade.
A abordagem artística dos movimentos corporais propiciada pela dança,
baseada na expressão da experiência vivencial do mundo pelo indivíduo, é uma
faceta específica do conhecimento do próprio mundo. Não basta “saber” o
mundo e viver nele para conhecê-lo; é preciso sentir e perceber como se
relacionar com ele, como imaginar essa relação, traduzindo tudo isso em uma
criação expressiva.
O conhecimento do mundo passa, pois, pela vivência corporal dos seus
elementos, nos aspectos físico-objetivos, sensoriais, pré-simbólicos e
simbólicos. Daí a importância do estudo corporal-criativo do tempo, de espaço,
da intensidade do movimento e da forma deles resultante na educação escolar.
Exemplificando: não basta saber sobre o espaço (estudado em Geografia, Física,
História, ainda que de forma interdisciplinar); é preciso vivenciá-lo
corporalmente, sentir como nos relacionamos com ele, como podemos organizá-
lo, reorganizá-lo, transformá-lo por meio do sensível, por meio de uma
consciência estética.

3.4.2 Canal
O corpo humano, em sua aparição fenomenológica.
O corpo humano virtualizado, digitalizado pelas diversas mídias
contemporâneas: televisão, vídeo, cinema, computador.
A aparição presencial do dançarino é, ainda hoje, em tempos de
virtualização intensa – e talvez por isso mesmo –, um aspecto importante dessa
linguagem artística, além de fundamental na função educativa da dança tanto
do ponto de vista do aluno-espectador quanto do aluno-criador. É no instante
do “aqui e agora” que trocas sensoriais, estéticas e éticas se dão entre espectador
e dançarino. O corpo humano virtualizado, no entanto, é um importante canal
de experimentação e pesquisa da dança atual e deve estar presente na educação
escolar, principalmente no ensino médio, quando os alunos deparam mais
intensamente com as mídias citadas anteriormente. Esse “dançar mediado” traz
especificidades resultantes do diálogo da dança com as demais linguagens,
entendendo aqui, como linguagem, também as novas tecnologias.

3.4.3 Contexto

• Do texto, da obra
Identificar o contexto em que as obras coreográficas são criadas é
fundamental para ampliar a compreensão das relações existentes entre esse
contexto e a organização dos movimentos na obra. Toda composição traz
marcas do seu criador, do seu tempo, dos seus condicionantes. O exercício dessa
contextualização, além de dar acesso ao conhecimento da história da dança, sua
origem, seus determinantes socioculturais e sua evolução, instrumentaliza o
aluno para a compreensão do seu próprio fazer na dança.

• Do aluno, do professor, da escola, da comunidade


Dançar não é só uma forma de expressão particularmente importante
para os jovens, mas também para os adultos, que têm nela uma oportunidade de
se reconhecerem culturalmente e socialmente. É preciso então trazer para o
aprendizado da Dança a diversidade que hoje marca esse dançar, fazendo
dialogar o legado das danças populares tradicionais e os festejos, as práticas
contemporâneas, o pagode, o funk e outras danças da “moda”, com a expressão
artística erudita, e esse diálogo deve ser pautado pelas características
contextuais da escola e da comunidade onde esta está inserida, considerando-se
todos os seus agentes: alunos, família, professores, funcionários, artistas locais e
outros, abrindo espaço na escola para a experiência da oralidade, do saber não
formal, das tradições e dos movimentos que dão identidade a essa mesma
comunidade.

• Do ensino médio
Dar acesso ao conhecimento da diversidade da produção coreográfica,
das diferentes formas de organização do código estético-motor praticado por
diferentes culturas e estratos sociais é objetivo fundamental do estudo da
Dança. No entanto, não se deve privar o aluno adolescente ou adulto das
importantes descobertas que o processo criativo em dança propicia para aquele
que o pratica, descobertas essas que não se extinguem com as primeiras
experiências, mas constituem novos desafios e desejos expressivos a cada nova
fase da vida humana. Processo e produto estão em permanente transformação,
pois assim está o ser humano, modificando-se a partir de si, do outro, das
influências sociais, culturais, científicas
e, principalmente, a partir do próprio processo criativo.”
“Duas sistematizações no ensino da Dança merecem atenção. Em uma
perspectiva, tem-se o desenvolvimento da consciência corporal, utilizando os
conceitos oriundos da educação somática, entendida como atividade em que o
corpo é trabalhado de modo que integre todos os aspectos que o compõem:
social, espiritual, psíquico, físico, etc. Desenvolvem-se práticas baseadas nas
técnicas de Alexander e Feldenkrais, tais como a Body-Mind-Centering,
Eutonia, entre outras.No Brasil, Klauss Vianna e José Antonio Lima
representam essa vertente.
Outra influência marcante é a da criação coreográfica que utiliza a
exploração espacial baseada nos preceitos de Rudolf von Laban (1879-1958).
Este coreógrafo austro-húngaro criou um movimento que revolucionou a
maneira de se pensar o corpo em movimento. Ele desenvolveu um método de
análise do movimento definindo os elementos que o compõem. Elaborou
igualmente um método de escrita em dança, a Labanotiation. Seu trabalho tem
diferentes aplicações, que vão da educação e da criação coreográfica ao trabalho
terapêutico, sendo introduzido no Brasil por Maria Duschenes.”

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