Você está na página 1de 14

Histórias Afro-atlânticas, afro-poéticas

e corporeidades afro-atlânticas
MATEUS RAYNNER ANDRÉ DE SOUZA*

Resumo: Partindo da exposição realizada no ano de 2018 no Museu de Arte de


São Paulo, Histórias Afro-atlânticas, o artigo pretende apontar caminhos iniciais
de uma pesquisa, ainda em andamento, para se propor categorias
epistemológicas capazes de pensar a corporeidade afro-atlântica. O artigo se
define ao intencionar essas categorias através das imagens e das narrativas
criadas pela curadoria. Articulando-se ao conceito de afro-poéticas (SANTOS,
2016), encontram-se múltiplas possibilidades para a corporeidade, tendo a
ancestralidade como ponto de partida e de destino.
Palavras-chave: Ancestralidade; Corporeidades afro-atlânticas; Histórias Afro-
Atlânticas.
Histórias Afro-atlânticas, afro-poetics and Afro-Atlantic corporealities
Abstract: Starting from the exhibition in 2018 at the Museu de Arte de São
Paulo, Histories Afro-Atlantic. This article intends to propose initial parameters
of a research still in progress about epistemological categories for the concept of
Afro-Atlantic corporeality. The proposal is articulated by thinking through the
images and narratives created by the curators of the exhibition. Articulating with
the concept of afro-poéticas (SANTOS, 2016), finds multiple possibilities for
corporeality, with ancestry as a starting point and destination.
Key words: Ancestrality; Afro-Atlantic corporealities; Histórias Afro-
Atlânticas.

*
MATEUS RAYNNER ANDRÉ DE SOUZA é Bacharel em Teoria, Crítica e História da Arte
pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente, cursa nessa mesma instituição: Licenciatura em Artes
Visuais e Mestrado no Programa de Pós-graduação em Metafísica (PPG-M).

106
Apontamentos iniciais

Ó paz infinita, poder fazer elos de ligação numa história fragmentada. África
e América e novamente Europa e África. Angola. Jagas. E os povos do Benin
de onde veio minha mãe.
Eu sou atlântica.
(Beatriz Nascimento)

No dia 28 de junho de 2018, abria uma escolhas curatoriais. Resultou ainda em


exposição realizada pela parceria de duas um catálogo2 e um livro com os
das maiores instituições museais da principais textos motivadores e
cidade de São Paulo, o Museu de Arte de referências teóricas que justificam a
São Paulo (MASP) e o Instituto Tomie exposição3.
Ohtake. Intitulada Histórias Afro-
Explorando as possibilidades da palavra
Atlânticas (2018), contou com a
“história”, a curadoria reflete tanto sobre
curadoria de Adriano Pedrosa, Ayrson
a documentação de histórias reais
Heráclito, Hélio Menezes, Lilia Moritz
ocorridas ao longo do Atlântico, como
Schwarcz e Tomás Toledo. A exposição
também se debruça sobre aquelas
reuniu 450 trabalhos de 216 artistas de
histórias inventadas, criadas, mas não
artistas africanos, americanos e
menos reais. Não há hierarquias entre
caribenhos. As obras foram realizadas ambas, assim como se pretende diluir ao
entre os séculos XVI e XXI. E buscou longo da exposição as limitações
mostrar como o Atlântico foi lugar geográficas e temporais, colocando lado-
central de transformações e de recriações a-lado obras de tempos, artistas e origens
de histórias e da riqueza cultural dos diversas4.
povos oriundos da diáspora africana.1 A
exposição do MASP e do Tomie Ohtake Na tentativa de abarcar diferentes
contou, além da mostra de arte, com possibilidades dessas histórias, a
diversos eventos, palestras e seminários exposição foi dividida em oito núcleos
com o propósito de debater temas temáticos. No Museu de Arte de São
inerentes às obras dos artistas e às Paulo, ficaram: Mapas e Margens,

1
“Diáspora é uma palavra de origem grega que significa ‘dispersão’. Designando de início, principalmente
o movimento espontâneo dos judeus pelo mundo, hoje aplica-se também à desagregação que,
compulsoriamente, por força do tráfico de escravos, espalhou negros africanos por todos os continentes. A
Diáspora Africana compreende dois momentos principais. O primeiro, gerado pelo comércio escravo,
ocasionou a dispersão de povos africanos tanto através do Atlântico quanto através do oceano Índico e do
mar Vermelho, caracterizando um verdadeiro genocídio, a partir do século XV – quando talvez mais de 10
milhões de indivíduos foram levados, por traficantes europeus, principalmente para as Américas. O segundo
momento ocorre a partir do século XX, com a imigração, sobretudo para a Europa, em direção às antigas
metrópoles coloniais. O termo ‘Diáspora’ serve também para designar, por extensão de sentido, os
descendentes de africanos nas Américas e na Europa e o rico patrimônio cultural que construíram.”
(LOPES, 2004, p.236)
2
PEDROSA, HERÁCLITO, et al. (2008).
3
PEDROSA, CARNEIRO, et al. (2008).
4
Tentativa parecida, de diluição das fronteiras geográficas e temporais, encontra-se na exposição Histórias
Mestiças (2014) realizada também no Instituto Tomie Ohtake, com a curadoria de Adriano Pedrosa e Lilia
Schwarcz. A exposição que versava sobre a noção de mestiçagem na arte brasileira, serviu como uma
espécie de ponto de partida da exposição citada, uma vez que as experiências de Pedrosa e Schwarcz se
acumularam para formar o espoco curatorial.

107
Cotidianos, Ritos e Ritmos, Retratos, subjetiva, essa diversidade ganharia
Modernismos Afro-Atlânticos, Rotas e unicidade no conceito definido, pois se
Transe: África, Jamaica e Bahia. No encontra amparada pela ancestralidade
Instituto Tomie Ohtake: Emancipações e que reúne e identifica esses seres.
Resistência e Ativismos. Eduardo David Oliveira (2012) fala da
Enxergo desde já confluências entre a ancestralidade enquanto categoria
tese da exposição e a de Renata dos filosófica, ligada às experiências
Santos (2016). Para ela, a arte afro- múltiplas do ser negro. Essas
brasileira está intimamente ligada a uma experiências pautadas na ancestralidade,
produção afrodescendente que se não encontram determinações, tão pouco
encontra em consonância com a separações temporais e de território. A
produção internacional, ainda que estes ancestralidade não diferencia, mas reúne.
sujeitos não tenham tido contato físico, Ela acompanharia o indivíduo desde
suas produções apresentam confluências antes o nascimento, enquanto ainda se
claras. A autora denomina “afro- encontra no “útero cósmico” e não o
poéticas” as formas de expressão nas abandona mesmo depois do fim desse
artes visuais que se convergem devido às ciclo.
experiências advindas da colonização e É importante frisar que na ancestralidade
da diáspora africana. negra afro-atlântica não estão reunidos
Percebe-se a possibilidade de elencar apenas os antepassados diretos do ser,
uma unidade entre as experiências mas todos aqueles que vieram antes dele,
diversas da população afrodescendente sejam humanos, animais, vegetais,
desde o período colonial até os dias de minerais, elementos e divindades. Dessa
hoje. Para Gilroy (2007), há uma maneira não há uma única cultura negra
multiplicidade de identidades recriadas associada ao corpos afro-atlânticos, mas
na diáspora, uma vez que noções de o plural. Para Sodré (2005), essa
pertencimento territorial se tornaram diversidade se expressa através do que
difusas. O corpo é, portanto, o local de ele denomina cultura de arkhé, ligada à
manutenção e de convergência dessas origem e pautada na ancestralidade. Essas
experiências. culturas são construídas coletivamente e
de forma anacrônica. Elas não são
A corporeidade negra é entendida como
imutáveis, mas estão em constante
a expressão do corpo no mundo, o
construção e desconstrução, diariamente
conceito de corpo e indivíduo se
experienciadas pelos mais diversos
confundem aqui. Pois a corporeidade é a
povos. Oyewùmí fala de uma cosmo-
responsável pelas potências criativas, de
sensação (OYEWÙMÍ, 1997) que
conexão, de partilha e de conhecimento.
atravessa essa noção de corporeidade
É nela que o corpo se faz presente
africana e afrodiaspórica, são sentimentos
enquanto ser autônomo. Não há,
que conectam esses seres tanto no plano
portanto, uma distinção dicotômica de
físico como no cosmo, reúne tanto
corpo e mente, o corpo é esse indivíduo
sentimentos físicos como espirituais que
completo dotado de autonomia. A
são sentidos em sua totalidade. Há aqui
corporeidade afro-atlântica transmutaria
um claro contraponto à supremacia do
o corpo em um local de conhecimento,
olhar presente na ideia de cosmovisão.
resistência, memória, história e da
pluralidade de experiências dos Pretende-se identificar noções de
indivíduos negros ao longo das margens corporeidade, através de uma breve
do Atlântico. Ainda que plural e análise do discurso curatorial e de obras

108
escolhidas nos oito núcleos da São evocados nesse núcleo dois
exposição. Propõem-se que ao final do conceitos: o atlântico negro (Gilroy,
artigo se possa inquirir caminhos para a 2001) e os fluxos e refluxos de Verger
construção de uma categoria afro- (2002). O conceito de atlântico negro
atlântica de corporeidade. surge com intuito de manifestar a
possibilidade de criação de um território
O artigo aponta resultados prévios de
do corpo negro que se encontra disperso
uma pesquisa ainda em andamento,
pelo globo terrestre, em que parte de sua
assim seus pressupostos precisam ser
história está perdida nos subsolos do
revisitados e analisados. A fim de não
Oceano Atlântico. O atlântico negro, é
fazer uma descrição longa da exposição,
essa geografia sem fronteiras históricas,
enseja-se encontrar ao longo das
continentais, territoriais e temporais, em
imagens e das narrativas curatoriais
que as expressões diversas das
possibilidades iniciais de categorias de
corporeidades podem se manifestar.
discussão da corporeidade afro-atlântica.
Portanto, não se quer aqui pensar as Essas pluralidades de expressões
imagens ou o texto curatorial da identitárias e culturais são possíveis
exposição, mas pensar com e através das graças aos fluxos e refluxos trocados
imagens. Inquirir através delas e suas entre os continentes. Compreende-se,
histórias possibilidades metodológicas e dessa forma, que não há uma mera
epistemológicas. transposição de corpos nos navios
negreiros. Os movimentos de idas e
Mapas, margens e modernismos Afro-
vindas de povos entre os dois territórios,
Atlânticos: o corpo-mapa
separados pelo Atlântico, acionou trocas
O núcleo Mapas e Margens se estrutura e intercâmbios culturais. A música, a
com base nas geografias e religiosidade, as expressões visuais e
deslocamentos da população negra pelas cênicas são formas de expressão desses
américas. A proposta de contar histórias intercâmbios. Manifestações que
a partir desse movimento forçado da apontam direções de continuidade e
diáspora negra tem como ponto de permanência.
partida as navegações do século XVI,
Numerosas foram as formas de
responsáveis por trazer para as recém resistência que o negro manteve ou
tomadas terras, denominadas américas, incorporou na luta árdua pela
povos de diferentes tribos e etnias do manutenção da sua identidade
continente africano. Parte, portanto, de pessoal e histórica. No Brasil [e ao
um acontecimento violento. Segundo longo de todo o atlântico negro],
Nascimento (1985) é este o movimento poderemos criar uma lista destes
sempre evocado na narrativa europeia movimentos que no âmbito
para definir o povo de origem africana, “doméstico” ou social, tornam-se
como se sua identidade se reduzisse ao mais fascinantes quanto mais se
fato de ter sido escravizado, e sua apresentam a variedade de
manifestações: de caráter
vivência em sua própria terra fosse
linguístico, religioso, artístico,
anulada. Um dos riscos de tomarmos social, político, e de hábitos, gestos,
uma história única, nos alerta etc. (NASCIMENTO, 1985, p. 45).
Nascimento, é a anulação e perda de
identidade dos povos. A perda de seu Um dos trabalhos de destaque na
passado. exposição é o da artista paulista Rosana
Paulino. Em sua obra A permanência das
estruturas (2017), mapeia, por um

109
esquema, como as narrativas históricas que são apontadas as direções de
de depreciação do corpo negro são reconstrução e emancipação, as
notavelmente formas de sobrevivência possibilidades de um território sem
das narrativas estruturantes da fronteiras. E de fazer girar
dominação desses corpos e seu temporalidades diversas, em que o
rebaixamento. Assim como nos alerta passado, presente e futuro não sejam
Nascimento (1985), resiste aí os perigos categorias marcadoras e definidoras, mas
da história única. A artista costura essas sim de possibilidades de fluxos e
narrativas presentes na arte, nos refluxos.
discursos científicos e na dominação
Sob a mesma ótica, no núcleo
cultural através de suturas. As suturas de
Modernismos Afro-Atlânticos me
feridas em aberto, no contexto da
acomete as mesmas percepções, ao trazer
medicina, deixam cicatrizes que
para o debate experiências modernistas
mostram uma cura incompleta e marcas
nos países do Atlântico-negro. Através
em aberto. As suturas da obra também
de um recorte temporal específico, de
não se fecham, sobram-se espaços, é um
1942 a 1975, as obras desse núcleo
corpo que não completa por inteiro e que
denotam os mesmo fluxos e refluxos
deixa transparecer essas marcas do
entre os artistas, sejam do continente
trauma colonial.
africanos, sejam das américas. O que
No entanto, é no corpo como território enfatiza e corrobora a visão de que as
(CUNHA PAZ, 2019) que podemos trocas entre pessoas dos dois continentes
apreender o mundo através do corpo. E é não cessaram nunca. Através das obras,
na memória dessas feridas, que podemos é possível apreender também a
reconstruir, ainda que parcialmente, o capacidade sobredita de propor
território e a cultura do passado, caminhos, os artistas subvertem os
encontrando novas formas de códigos preexistem e os tomam para si,
pertencimento. O corpo como mapa – como em um movimento antropofágico,
corpo-mapa – é uma ambivalência desse dando a eles uma nova roupagem, não
conceito. Pois, é na corporeidade que mais sobre o outro, mas sobre si mesmos
está a chave para lembrar e entender os e sua ancestralidade. Denota por fim,
traumas coloniais e as rotas do navio ainda que pelo meio das artes visuais, a
negreiro, ela é um mapa que decifra esse possibilidade de existência desse
processo. Mas, é também nesse mapa território negro sem fronteiras.

110
Figura 1: Vista do núcleo Mapas e margens na exposição Histórias afro-atlânticas. Fonte: MASP
<https://masp.org.br/exposicoes/historias-afro-atlanticas>. Acesso em: 13 mai. 2020.

Figura 2 - Rosana Paulino, A permanência das estruturas, 2017. Impressão digital sobre tecido, recorte e
costura. 96 x 100 cm. Fonte: MASP <https://masp.org.br/acervo/obra/a-permanencia-das-estruturas>.
Acesso em: 13 mai. 2020.

111
Figura 3: Vista do núcleo Modernismos Afro-Atlânticos na exposição Histórias afro-atlânticas, 2018,
MASP. Fonte: MASP <https://masp.org.br/exposicoes/historias-afro-atlanticas>. Acesso em: 13 mai. 2020.

Emancipações, resistências e de luta, há aqui reinterpretações de cenas


ativismos: o corpo-potência clássicas e subversões de imagens,
O núcleo Emancipações parte da noção lugares e memórias.
de liberdade. O processo escravocrata Na Figura 3, vemos do lado direito uma
tem seu fim na narrativa histórica, com a reprodução da gargantilha, instrumento
Lei da Abolição no Brasil, em 1888, de tortura utilizado pelo senhor de
último país a manter esse regime. Os engenho. Ao lado dessa imagem, a sua
processos abolicionistas ao mesmo direita temos duas reinterpretações dessa
tempo que são conquistas do povo negro, gargantilha feitas por artistas
não garantiram de fato sua inserção e contemporâneos – Kara Walker e
emancipação na sociedade, criando Sydney Amaral. A potência de olhar para
fissuras e problemas ainda hoje o passado permite transmutá-lo e tomar
presentes. As lutas por liberdade, ainda para si essa história, permite discutir
que evoquem um protagonismo negro, através do seu próprio passado questões
são celebradas como uma concessão do de si, do outro e de seus tempos.
colonizador, basta observamos as
Na mesma linha, temos na ponta do lado
comemorações anuais ao 13 de maio no
esquerdo, a figura amplamente
Brasil, e a santificação da figura da
reproduzida em livros de história, da
Princesa Isabel como patrona da
escrava Anastácia (Figura 4). Sua
liberdade.
imagem, que a priori, guardaria apenas
É a partir dessa dupla narrativa que esse uma reprodução da Máscara de Flandres
núcleo se constrói. Por um lado, vemos – instrumento de tortura do século
imagens que remontam a perda de XVIII, que impedia a pessoa de comer e
liberdade e o sofrimento da população, falar, permitindo somente a respiração –
vemos também como através da arte, a ganhou no Brasil uma nova roupagem. A
ideia de subserviência do negro ao figura da Escrava Anastácia possui
branco foi sendo retratada e propagada. grande apelo na devoção do povo negro,
Do outro lado, temos imagens que é associada a milagres. Admite-se que
evocam e não deixam esquecer o era uma curandeira que auxiliou diversos
protagonismo negro, contando a história corpos rumo à emancipação, e que

112
negava a se submeter sexualmente aos Configuram também esse núcleo
seus senhores. Seu culto ainda é experiências artísticas de resistência e
encontrado no Brasil e em algumas enfretamento, assim como obras que
regiões do continente Africano. Acima versam sobre práticas históricas de
de sua imagem e na extrema esquerda subversão colonial.
vemos reinterpretações da máscara de
O corpo-potência evoca a potência da
Flandres pelos artistas Rosana Paulino e
escrava Anastácia. Ainda que
Paulo Nazareth, respectivamente. Ao
impossibilitada de falar, comunicou-se
lado de sua imagem, vemos uma obra do
através da sua corporeidade, seja
artista Jean Baptiste Debret, em que é
auxiliando e curando aqueles que
possível visualizar uma outra
precisavam, como lutando por sua
representação do instrumento de tortura.
liberdade e negando a entregar-se. Essa
Em paralelo, também no Instituto Tomie potência da corporeidade de subverter a
Ohtake, temos o núcleo Resistências e lógica vigente, assim como culto à
Ativismos, com o maior número de Anastácia está eternizado pelas obras, e
artistas contemporâneos da exposição. é ela que permite o corpo falar. Oto
São pensados movimentos de resistência (2006), aponta e ressalta que é o corpo
ao longo da história, passando pelas negro, entendido frequentemente como
revoltas populares, a revolução haitiana, vítima do processo colonial, o único
movimentos contemporâneos e por capaz de reverter a colonização, e é nessa
figuras históricas como o ativista norte- descolonização que ele expressa suas
americano Malcolm X e a ex-vereadora potências e garante visibilidade.
do Rio de Janeiro, Marielle Franco.

Figura 4: Vista do núcleo Emancipações na exposição Histórias Afro-Atlânticas, Instituto Tomie Ohtake,
2018. Fonte: Prêmio Pipa <https://www.premiopipa.com/2018/07/historias-afro-atlanticas-ocupa-duas-
das-maiores-instituicoes-de-arte-de-sao-paulo/> Acesso em: 13 mai. 2020.

113
Figura 5: Jacques Etienne Arago, Castigo de Escravos, 1839. Fonte: Wikipédia

<https://pt.wikipedia.org/wiki/Escrava_Anast%C3%A1cia#/media/Ficheiro:Jacques_Etienne_Arago_-
_Castigo_de_Escravos,_1839.jpg>. Acesso em: 12 mai. 2020.

Figura 6: Vista do núcleo Emancipações na exposição Histórias Afro-Atlânticas, Instituto Tomie Ohtake,
2018. Fonte: <https://terremoto.mx/historias-afro-atlanticas/> Acesso em: 13 mai. 2020.

Cotidianos e retratos: o corpo-plural

Figura 7: Vista do núcleo Cotidianos na exposição Histórias afro-atlânticas, 2018, Masp. Fonte: MASP
<https://masp.org.br/exposicoes/historias-afro-atlanticas>. Acesso em: 13 mai. 2020.

114
O núcleo Cotidianos se estrutura a partir deixam de ser trabalhadores, escravos,
de uma pluralidade de imagens baianas, vendedoras e passam a ser
envolvendo a população africana e indivíduos que possuem histórias e
afrodiaspórica, em cenas relativas aos subjetividades.
seus cotidianos, ficcionais ou não. São Sobre o retrato do negro, o mesmo pode
imagens desde o século XVI aos dias ser dito, muitas representações tendem a
atuais. É importante ressaltar que por ser redutoras: o negro escravo, a negra
muito tempo o cotidiano desses povos quitandeira, o negro empregado, o negro
ficou reduzido às representações dos do campo, a baiana. Encontramos nas
chamados artistas viajantes, artistas obras e nas possibilidades de
europeus que tinham como missão representarem a si mesmos, retratos de
retratar a vida e a população dos “novos uma corporeidade negra plural, de
mundos”. Essas narrativas tendem a ser exaltação de múltiplas narrativas e de
reducionistas, na maioria das vezes investigações de micro-histórias antes
ligadas ao trabalho e ao campo. negadas na historiografia oficial.
Insiro aqui também o núcleo Retratos por Podemos pensar diferentes papéis para o
suas aproximações com as experiências ser negro, assim como infinitas
levantadas. O retrato é na pintura, e por possibilidades de configurações futuras.
consequência na arte, uma das formas A pluralidade da corporeidade negra –
mais antigas de representação. Ele possui corpo-plural – evoca a necessidade de
a pretensão de reunir, através da imagem, revisionismo da história e a construção
partes e unidades do ser que o de verdades complexas e diversas, em
representariam como um todo. Através que a narrativa do negro não seja
do retrato, – que posteriormente se redutora, vítima de uma inverdade
encontrará em múltiplas linguagens além constantemente reproduzida sem
da pintura, como na fotografia, escultura, critérios analíticos e sob a ótica do
imagem em movimento e nas imagens colonizador. O corpo-plural mais do que
tecnológicas – podemos apreender até demandar a diversidade cotidiana do
mesmo particularidades da identidade do negro, enseja encontrar respostas para
ser. No que tange o recorte histórico e suas necessidades e aspirações. Mais do
temático, os retratos da exposição que reproduzir o passado, é necessário
perpassam o sobredito sobre o cotidiano. reescrevê-lo imaginando futuros
Ou seja, encontramos nesse núcleo as possíveis.
mesmas questões propostas sobre
representação do outro/representação de [...] quase tudo o que foi dito sobre o
si. negro, tudo que lhe é atribuído, o
que até agora é considerado ser
Vendo em muitas obras possibilidades negro, inclusive a cultura do negro,
de auto representação, podemos afirmar deve ser reexaminado não sob o
que as histórias cotidianas são diversas. ponto de vista da teologia
Encontramos cenas ligadas ao dia-a-dia dominante, mas sob o ponto de vista
familiar, ao cotidiano na cidade, aos das nossas aspirações e
cultos e rituais. Os artistas ao se necessidades. Isto só pode ser
representarem, e tomarem para si suas possível à luz de uma fidelidade à
História. Só o levantamento
histórias, tendem a dar um novo
histórico da vivência do negro no
contorno às construções redutoras dos Brasil levada a efeito pelos seus
artistas viajantes, com mais descendentes, isto é, os que
possibilidades. Os corpos representados atualmente vivenciam na prática a

115
herança existencial, poderá erradicar da pluralidade de práticas sociais,
o complexo existente nele, e assim religiosas, políticas, históricas,
como o preconceito racial por parte territoriais. Elas são passíveis de
do branco. (NASCIMENTO, 1974, mudança, e encontram-se em ampla
p. 68)
transformação. Reduzir as identidades a
Mbembe (2001) vai além ao falar das uma lógica biológica, geográfica ou
identidades africanas. Estendo seus histórica, seria reduzir a própria
pressupostos ao corpo-plural, portando, identidade, ou melhor, as identidades.
às identidades afro-atlânticas. Segundo o Pretende-se que o corpo-plural possa
autor, não é possível identificar uma exprimir essas diversidades, e ao invés
essência na identidade africana, uma de reduzir, expandir a compressão
substância. Essas identidades são uma sobre/da própria corporeidade afro-
construção, dada através do acúmulo e atlântica.

Figura 8: Vista do núcleo Retratos na exposição Histórias afro-atlânticas, 2018, Masp. Fonte: MASP
<https://masp.org.br/exposicoes/historias-afro-atlanticas>. Acesso em: 13 mai. 2020.

Rotas, transes, ritos e ritmos: o corpo- experiências populares como o samba e


ancestral como corpo-documento e o carnaval. Já o núcleo Rotas e Transes,
apontamentos finais vai de encontro com as mesmas
Interessa-me apontar nos dois núcleos possibilidades ritualísticas e de cultura,
mas com um recorte mais
finais uma síntese do que foi dito até
aqui, e por fim, elencar as possibilidades contemporâneo, a partir dos anos 1960.
de pensar uma corporeidade ancestral A reunião dessas formas de expressão
que ligaria as experiências afro- calcadas na corporeidade, denotam
atlânticas, através das afro-poéticas. O potências, caminhos e pluralidades de
núcleo Ritos e Ritmos se propõe a resistências e trocas dos povos
percorrer experiências sobretudo afro- afrodiáporicos. Demonstram também
religiosas que circulavam no Atlântico- que foi possível uma reorganização
negro desde o século XVI, incluindo social e política, mesmo sob o olhar do

116
senhor de engenho, capaz de abarcar “gestos de lembrar-se de si, narrar a si e
seus cultos, sua sonoridade, seu assim, recriar a si mesmo” (PESSANHA
movimento e lazer. E as infindáveis et al., 2019, p.124). Seria esse o corpo-
formas de apropriação e continuidade documento, o corpo como registro dessas
dessas experiências nos dias atuais. memórias e das múltiplas narrativas.
Organizadas sob a ótica da Foram apontados alguns caminhos para
ancestralidade, as continuidades não só se propor uma corporeidade afro-
foram possíveis, mas foram também uma atlântica: o corpo-mapa, o corpo-
forma de comunicação e de um não- potência, o corpo-plural e o corpo-
apagamento das memórias que ancestral que se desemboca no corpo-
constituíram as nações contemporâneas. documento. Todas essas categorias são
Por consequente, encontramos no fazer um despontar das infinitudes de
poético – afro-poéticas (SANTOS, 2016) caminhos possíveis na encruzilhada do
– desses povos um registro de sua corpo afro-atlântico. Demostram aqui o
corporeidade e ancestralidade. Dessa início de uma caminhada de investigação
forma, podemos falar como em Pessanha de possibilidades da corporeidade a
et al. (2019), que uma corporeidade partir da arte, afro-poéticas. Pretende-se
negra pautada na ancestralidade, corpo- que essas categoriais, assim como as
ancestral, constitui-se um documento de análises sejam revisitadas e
registro e de continuidade dessa mesma aprofundadas, um despertar nas
ancestralidade, compreendendo, como pesquisas de ancestralidade e
demonstrado nas obras, diferentes corporeidade no Atlântico-negro.

Figura 9: Vista do núcleo Rotas e transes: Áfricas, Jamaica e Bahia na exposição Histórias afro-atlânticas,
2018, Masp. Fonte: MASP <https://masp.org.br/exposicoes/historias-afro-atlanticas>. Acesso em: 13 mai.
2020.

117
Figura 10: Vista do núcleo Ritos e Ritmos, 2018, Masp. Fonte: MASP
<https://masp.org.br/exposicoes/historias-afro-atlanticas>. Acesso em: 13 mai. 2020.

Referências OLIVEIRA, E. D. de. Filosofia da ancestralidade


como filosofia africana: Educação e cultura afro-
CUNHA PAZ, F. P. Na casa de Ajalá:
brasileira. In: Revista Sul-Americana de
comunidades negras, patrimônio e memória
Filosofia e Educação. n. 18, p.28-47, maio-
contracolonial no Cais do Valongo – a
outubro de 2012. Disponível em:
“Pequena África”. Dissertação (Mestrado) –
<https://doi.org/10.26512/resafe.v0i18.4456>
Programa de Pós-graduação em
Acesso em: 08 mar. 2020.
Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação
Internacional, Universidade de Brasília, Brasília, OTO, A. de. Apuntes sobre historia y cuerpos
2019. Disponível em: coloniales: algunas razones para seguir leyendo a
<https://repositorio.unb.br/handle/10482/35647 Fanon. Worlds & Knowledges Otherwise,
> Acesso em 13. mai. 2020. Durham, v. 1, n. 3, 2006.
GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade OYĚWÙMÍ, O. The Invention of Women:
e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, making an African sense of western gender
2001. discourse. Minneapolis: University Minnesota
Press, 1997.
GILROY, P. Entre campos: nações, cultura e o
fascínio da raça. São Paulo: Annablume, 2007. PEDROSA, A.; CARNEIRO, A.; MESQUITA,
A. Histórias Afro-Atlânticas. Volume 2.
LOPES, N. Enciclopédia brasileira da
Antologia. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake;
diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.
Masp, 2018.
MBEMBE, A. As formas africanas de auto-
PEDROSA, A.; HERÁCLITO, A.; MENEZES,
inscrição. In: Estudos afro-asiáticos, Rio de
H.; SCHWARCZ, L.; TOLEDO, T. (Curadoria e
Janeiro v. 23, n. 1, p. 171-209, janeiro-junho de
textos). Histórias Afro-Atlânticas. Volume 1.
2001. Disponível em:
Catálogo. São Paulo: Instituto Tomie Ohtake;
<https://doi.org/10.1590/S0101-
Masp, 2018.
546X2001000100007> Acesso em: 13 mai.
2020. PESSANHA, E. A. de M.; PAZ, F. P. C.;
SARAIVA, L. A. F. Na travessia o negro se
NASCIMENTO, M. B. do. Negro e racismo.
desfaz: vida, morte e memória, possíveis leituras
Revista de Cultura Vozes. v. 68, n.7, p. 65-68,
a partir de uma filosofia africana e
1974.
afrodiaspórica. In: Voluntas: Revista
NASCIMENTO, M. B. do. O conceito de Internacional de Filosofia, [S.l.], p. 110-127,
quilombo e a resistência cultural negra. setembro de 2019. Disponível em:
Afrodiáspora, n. 6-7, p. 41-49, 1985.

118
<https://periodicos.ufsm.br/voluntas/article/vie SODRÉ, M. A verdade seduzida. Rio de
w/39949>. Acesso em: 13 maio 2020. Janeiro: DP&A, 2005.
SANTOS, R. A. F. dos. A construção da VERGER, P. Fluxo e refluxo. Salvador, Editora
identidade afrodescendente por meio das Corrupio, 2002.
artes visuais contemporâneas: estudos de
produções e de poéticas. Tese (Doutorado) –
Programa de Pós-Graduação em Arte, Recebido em 2020-05-20
Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2016. Publicado em 2020-11-13-
Disponível em:
<https://repositorio.unesp.br/handle/11449/1509
02> Acesso em: 02 fev. 2020

119

Você também pode gostar