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Semple
1
Geógrafa pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade do Porto, Portugal. Contato:
camilacd@ufmg.br
2
“Nos EUA, o interesse acadêmico pela geografia estava mais difundido do que as cifras acima citadas podem
sugerir. O primeiro professor de Geografia foi nomeado em Princeton, em 1854. Foi ele Arnold Guyot, discípulo de
Ritter e amigo de Humboldt, que deixara sua terra natal, a Suíça, em 1848, e, por sugestão de Louis Agassiz,
estabeleceu-se na América. Por ocasião da data da sua nomeação até 1900, doze universidades haviam inaugurado
cursos de Geografia, embora nem todas fizessem desta disciplina parte permanente do currículo. Além disso, a
Geografia Física era frequentemente ministrada em departamentos de geologia por professores que talvez não
tivessem figurado na minerva como geógrafos, de onde o Prof. Dryer havia tirado os dados” (TATHAM, 1959, p.
226).
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August Comte, filófoso francês conhecido por ter fundado as ideias positivistas, também denominadas de comtismo,
contidas em seis longos volumes escritos e publicados entre 1830 e 1842 sob o nome Curso de Filosofia Positiva.
Em Manfred Büttner (1977), é posível encontrar pressupostos teóricos para se
desenvolver um projeto de pesquisa que se debruça sobre a história do pensamento
geográfico. Para esse autor é tarefa do pesquisador da historiografia da Geografia
averiguar a dinâmica da ciência no período que se pesquisa, e, do mesmo modo, como a
Geografia é produzida e pensada nesse recorte temporal. Nesse sentido, é necessário
refletir sobre como se organizavam os fatos conhecidos de uma determinada época, as
ideias centrais que norteavam esses fatos – seu ponto de partida, a concepção filosófica
que procurava referenciá-los, as perguntas que eram feitas e que mudanças elas
suscitavam tanto na apreensão dos fenônemos quanto no campo disciplinar que os
tomava como objeto. A metodologia que empregamos para alcançar os propósitos desta
investigação inspira-se nessa proposição de Büttner (1977).
Em primeiro lugar, buscamos realizar uma investigação bibliográfica geral para
amparar a pesquisa, bem como encontrar subsídios de análise teórica e situá-la no
âmbito da produção acadêmica da geografia brasileira. Em seguida, procedemos à
leitura e análise da obra fonte de nossa investigação, Influences of Gegraphic
Environment, aproveitando a dupla disposição do texto – em brochura e em formato
digital – disponibilizada pelo Projeto Gutenberg, fator favorável à leitura se
considerarmos o fôlego da obra, de aproximadamente 700 páginas em brochura e quase
450 páginas em formato digital, sem a reprodução dos mapas. A possibilidade de
trabalhar na análise da obra utilizando recursos do editor de texto digital foi importante,
principalmente para mapear usos de categorias e conceitos, recorrência de citações e
autores, o rápido acesso a marcações durante a leitura, facilidade para realizar anotações
e comentários ao lado do texto, entre outros procedimentos. Outra tarefa realizada foi a
verificação do acolhimento da obra de Semple, a partir da leitura e análise de geógrafos
que comentaram a respeito de sua trajetória de estudos, mesmo que em citações laterais.
Posicionar a obra de Semple nesse contexto da Geografia que se fazia presente
no início do século XX requer, no mínimo, duas frentes de análise. A primeira deve
considerar o movimento instituinte da Geografia nos EUA. Faz parte desse momento a
elaboração de uma geografia histórica própria que corroborasse uma linhagem bem
delineada e capaz de indicar os caminhos a serem praticados pela geografia (SAUER,
1941). Semple, como Carl O. Sauer4 percebeu, foi a responsável por essa tarefa5. A
segunda frente de análise diz respeito à importância de Semple na consolidação do
estudo antropogeográfico, seus problemas, metas, poder explicativo, relevância
científica e críticas. Ao longo do livro ela segue relatando as posturas dos geógrafos e
suas (in)adequações frente ao desafio e esforço requeridos para a nova ciência, a
antropogeografia, que possuiria uma interface com as próprias investigações da
antropologia, etnologia, sociologia e história, mas teria o trunfo de ir além das ciências
citadas por deter-se na “operação dos fatores geográficos na história” (SEMPLE, 2007,
p.26), título do primeiro capítulo de Influences of Geographic Environment. Nele a
autora reforça: “(...) todas essas ciências [supracitadas] malograram no alcance de
soluções satisfatórias para os problemas porque o fator geográfico que penetra em todas
elas não tem sido minuciosamente analisado” (SEMPLE, 2010, p.26). O ponto de vista
das ciências que Semple faz referência parece indicar que o desenvolvimento social e
cultural de um povo ocorre no ar e não de modo concreto no espaço geográfico, crítica
também feita por Ratzel no primeiro capítulo de seu livro Anthropo-Geographie. Assim,
Delgado de Carvalho6 fala de Ellen C. Semple como que sendo a própria encarnação da
paráfrase ratzeliana na América, baseada no conceito de influências geográficas e
propagadora de muitas ideias posteriormente mitigadas por outras contribuições
científicas de William Morris Davis7.
Geógrafa pouco lida e comentada no meio acadêmico brasileiro, Semple se
valeu do mesmo leit motiv de Ratzel em sua trajetória acadêmica, no entanto, com
distinções. Averiguar em que medida essa afirmação procede se confrontada com o
texto de Semple constitui uma tarefa ampla e dificultada pela impossibilidade de se
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Carl Ortwin Sauer (1889 - 1975), geógrafo e líder da “geografia cultural”, desenvolvida na Berkeley School na
Universidade da Califórnia.
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Seu livro American History and Its Geographic Conditions, publicado em 1903, ganhou bastante notoriedade e mais
tarde se tornou um clássico literário em seu país.
6
Em texto lido por ocasião do IX Congresso Brasileiro de Geografia, ocorrido em setembro de 1940, intitulado: A
Evolução da Geografia Humana. Carlos Delgado de Carvalho (1884-1990), geógrafo e professor francês radicado no
Brasil, foi uma importante referência na geografia brasileira do início do século XX. Participou do Instituto Histórico
e Geográfico, da Sociedade Geográfica do Rio de Janeiro e do Conselho Nacional de Geografia.
7
Geógrafo norte-americano (1850 - 1935), considerado “pai” da geografia americana. Fundou a Associação dos
Geógrafos Americanos (AAG) em 1904, desenvolveu o campo da geomorfologia.
traçar fronteiras precisas, linhas divisórias claras entre o pensamento ratzeliano e o de
Semple. Sabe-se, por suas próprias palavras no prefácio, que a geógrafa buscou as
necessidades da mente anglo-céltica e abandonou a teoria organicista do estado de
Herbert Spencer8. É visível que ela se vale das volumosas proposições de Ratzel, pois
elas se mostravam instigantes e sugeriam amplas pesquisas, para não dizer exaustivas,
que poderiam consolidar progressivamente a antropogeografia como um fértil campo
científico.
Semple procurou sustentar uma inteligência formalizadora dos conhecimentos
do mundo. Além disso, seu juízo crítico possui um fulcro na genealogia da geografia a
começar por Estrabão9. Ela, por exemplo, buscou interpretações dos efeitos do clima
nas sociedades humanas em autores da antiguidade, procurando verificá-las sempre. As
influências de Darwin sobre o pensamento de Ratzel também sustentaram a base teórica
de Semple. A utilização do conceito de evolução, por exemplo, é uma influência
darwiniana especialmente importante.
A alcunha determinismo geográfico concedida ao amplo grupo de trabalhos
liderados por Ratzel e Semple merece ser alvo de atenção tendo em vista o fato de que
Lucien Febvre10, um historiador olhando “de fora” a geografia, tê-la cunhado dessa
maneira. Devemos buscar compreender como o qualificativo afeta a recepção geral do
conjunto dos trabalhos de Semple, voltados ao esquadrinhamento das realidades físicas
e suas influências exercidas ora diretas ora indiretamente na configuração espacial da
civilização no globo.
8
Hebert Spencer (1820 –1903) foi um filósofo inglês e um teórico político liberal da era Vitoriana, muito envolvido
com a obra de Charles Darwin, tendo extraído a partir da noção de seleção natural e das leis da evolução ideias
sociológicas que fundaram o que se cunhou posteriormente como “darwinismo social”.
9
Estrabão (63 A.C – 36 D.C), geógrafo grego que sintetizou a ciência geográfica de seu tempo em dezessete
volumes. Pensava que a geografia tinha uma importância para além do auxílio às tarefas governamentais.
10
Lucien Paul Victor Febvre (1878 -1956), historiador francês, idealizador da Revue des Annales.
Antropogeografia de Ratzel, entretanto, não exerceu efeito
imediato sobre os intelectuais brasileiros, ao contrário das
teorias deterministas do filósofo francês Hippolyte Taine
(MAIA, 2008, p. 22).
O título da obra – Influences of Geographic Environment – on the basis of
Ratzel’s Anthropo-Geography – indica logo de entrada, uma possível identificação,
comprovável durante a leitura, do adjetivo “geográfico” que acompanha a palavra
inglesa environment (traduzida nesse contexto como meio), sinônimo de “físico” ou
“natural”. Assim, o estudo diz respeito às interpretações das influências do meio físico
ou natural na démarche da civilização, da integração/diferenciação do desenvolvimento
das raças, termo muito em voga na época, cada qual lidando com os desafios, vantagens,
desvantagens e a persistência de fatores geográficos locais ou remotos, em seu
respectivo habitat. O encaminhamento metodológico de Semple, como ela mesma
assinala, é:
11
Henry Thomas Buckle (1821 – 1862), historiador inglês de tendência enciclopedista e positivista, autor de História
da Civilização na Inglaterra (primeiro volume publicado em 1857).
12
Charles Augustin Sainte-Beuve (1804 – 1869), crítico literário francês, propagador do método conhecido como
“biografismo”, no qual o intento artístico de um autor é explicado em grande medida pelo meio em que vivia e suas
qualidades pessoais.
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No capítulo VI, no tópico Area and Literature, Semple afirma que: “Um fator importante na preservação da
consciência nacional e propagação da influência nacional é sempre língua e literatura nacionais. A sobrevivência de
uma língua e sua literatura está intimamente relacionada com a área e a população que uma área pode suportar”
(SEMPLE; 2007, p. 216).
14
COLBY, Charles. Ellen Churchill Semple. Annals of the Association of American Geographers, 1933.
nova subárea, a antropogeografia, em detrimento da História. Mais do que colecionar
exemplificações de passagens em que a autora revela uma conclusão estreita a respeito
de um povo e seu território, o que podemos dizer nesta seção crucial da pesquisa que
ora apresentamos é que o determinismo se apresenta na obra com a perspicácia de uma
doutrina que precisa mostrar sempre a existência de influências, ou seja, é por esta
palavra que se destila toda sorte de ideias que denotam ser o homem, no final das
contas, “um produto do meio”. São elas, as influências da “natureza sobre o homem”,
da “terra sobre a humanidade”, das “condições naturais sobre a história”, do “clima
sobre o reino vegetal e o mundo animal”, que despejam uma infinidade de elaborações
deterministas ora mais ora menos grosseiras de particularismos tão diversos quanto
podemos notar pela própria organização dos subtópicos de cada capítulo da obra. O
clima, deixado propositalmente por último, e isso a própria autora menciona em seu
prefácio, é o assunto que ela afirma “(...) entrar fundamentalmente em todas as
considerações de influências geográficas, tanto por implicação como explicitamente”,
ou ainda, “(...) está sempre presente no intrincado balanço dos fatores geográficos que
produziram um dado resultado histórico” e por último, “(...) é o poderoso fator no
começo e na evolução da civilização, tanto que anda de mãos dadas com o
desenvolvimento econômico” (SEMPLE, 2007, pág. 700).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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“O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar
que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? [...] Se assim é,
existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa.(...) Articular historicamente o passado
não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja
no momento de um perigo. A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas
um tempo saturado de ‘agoras’.” Walter Benjamin na epígrafe de Controvérsias Geográficas: Epistemologia e
Política de José William Vesentini.
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SEMPLE, 2007, prefácio – sem paginação. Grifo nosso.
tipicamente deterministas. No entanto, como já revelamos no capítulo destinado ao
determinismo, o mais avançado ponto na obra que descortina a doutrina determinista em
sua raiz é a própria obsessão da autora com as influências.
Referências
17
Citação retirada do artigo Darwin contra o Determinismo Geográfico, de Paul Sutermeister (S/D), que se refere
diretamente aos economistas do Banco Interamericano de Desenvolvimento no livro GALLUP, John Luke;
GAVIRIA, Alejandro; LORA, Eduardo. Geografia é destino? Lições da América Latina. São Paulo: Editora UNESP,
2005.
BECKER, Bertha K. Manual do candidato: geografia. Brasília: Fundação Alexandre de
Gusmão, 2009.
BERMAN, Milred. Sex Discrimination and Geography: The case of Ellen Churchill
Semple. The Professional Geographer. Vol. XXVI, 1974.
MAIA, João Marcelo Ehlert. A Terra como Invenção – O Espaço no Pensamento Social
Brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
MORAES, A.C.R. Geografia Pequena História Crítica. São Paulo: Hucitec, 1981.
PROUST, Marcel. Contre Sainte-Beuve. Notas sobre Crítica e Literatura de Marcel
Proust, tradução de Haroldo Ramanzini, São Paulo, Iluminuras, 1988.
_____________. Nas Trilhas da Crítica. São Paulo: Edusp / Editora Imaginário, 1994.
SANTOS, M. Por uma geografia nova (da crítica da geografia a uma geografia
crítica). São Paulo: Hucitec / EDUSP, 1978.
SAUER, Carl. The formative years of Ratzel in the United States. Annals of the
Association of American Geographers, 1971.
____________. The Geography of the Mediterranean Region. New York: Henry Holt
And Company, 1931.
VOET, Carlos; et al. (Org.) Discurso e textualidade. Campinas: Pontes Ed., 2010.