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Contextualizar o processo de formação da ciência cartográfica não é uma tarefa fácil. Boa
parte dos livros que tratam do tema, o faz valorizando o desenvolvimento de instrumentos e
técnicas cartográficas mais apuradas. Outros atrelam o desenvolvimento da cartografia a
dominação europeia, pois os estudos cartográficos provêm desta parte do mundo.
São raros os estudos que enfocam de forma crítica e detalhada a história da cartografia (ou
dos mapas), e que dão suporte ao entendimento do processo de apropriação dos conhecimentos
cartográficos por determinados povos e sociedades, no entanto, ainda hoje é bem comum encontrar
livros que descrevam em poucas palavras fatos considerados na história da cartografia, enfocando
somente os mais importantes na consolidação desta ciência.
A cartografia é uma das mais antigas atividades humanas, até mesmo antes da escrita. Por
surgir em distintos momentos e territórios se verte para diferentes aplicações e funções; desde
proteger os territórios, para o controle da máquina administrativa (estatal), ou para o uso individual,
como realizar explorações, expedições e funções turísticas.
Por ter diferentes funções e servir para os povos de maneira bem especifica “... Os mapas
são produções culturais sobre o território, que auxiliam na leitura da sociedade” (COSTA, 2008,
p. 49), facilitando a procura por alimentos e a proteção do território.
A transformação do homem coletor e nômade em um sedentário agricultor e criador
favoreceu o desenvolvimento de uma sociedade cada vez mais complexa. De início, em uma
sociedade comunista, as tarefas, as obrigações, e os alimentos eram compartilhados, as riquezas
pertenciam a todos. Nessa sociedade, os mapas já eram usados com frequência, não para combater
os inimigos ou expropriar riquezas, mas como pontos de referência (incipientes), pois não existia
escala2, e eram deixados como prova viva em paredes de cavernas.
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Parte integrante do primeiro capítulo da tese de doutorado, intitulada de O uso da cartografia como instrumento
metodológico de análise da questão agrária na bacia do São Francisco, defendida em 2014.
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Os desenhos rupestres eram feitos com o intuito de localizar comidas, perigo ou batalhas com os animais, sem o rigor
técnico de proporcionalidade com desenhos de animais maiores do que realmente são. Tamanho de rios, florestas e
outros servindo como representatividades não prestando para realizar medições de distância entre os elementos e sem a
preocupação exata da localização dos fenômenos.
As pinturas são consideradas os primeiros mapas, mesmo não tendo as disposições técnicas
que hoje servem como parâmetros internacionais, a exemplo de escala, sistema de coordenadas,
indicador e legenda, estes eram simples desenhos encravados em rochedos e outras formas
rupestres, com uma linguagem de fácil acesso para todos, desde as crianças até os idosos. As
pinturas serviam como referência para se locomover em um mundo tão inóspito. Essas pinturas por
serem de difícil acesso nos dias atuais foram preservadas e hoje os mapas arqueológicos servem
como matéria-prima para os estudos das sociedades antigas, como bem demonstra a citação a
seguir.
Os livros de II a VII contêm uma relação de uns 8.000 nomes de lugares com
latitudes e longitudes para determinar sua posição. Muito poucos destas situações
foram calculadas, por observações, ou deduzidas cientificamente; as coordenadas
obviamente haviam sido tomadas de velhos mapas ou itinerários. O volume mais
importante é o VIII, que contém o estudo sobre os princípios da Cartografia, da
Geografia, da Matemática, das Projeções e dos métodos de observação
Astronômica (p. 15).
Os nobres, representantes da Igreja, tornavam-se cada vez mais poderosos, com somas
incalculáveis de terras, riquezas e poder. Para manter esse poder, era estratégico impor o ideário da
submissão dos servos, com o apoio da Igreja, beneficiária de pomposos donativos dessa classe. A
igreja era incumbida de estabelecer a ordem nos feudos promovendo a aceitação pacífica das ideais
da classe dominante à época, implantadas sobre a grande massa de camponeses e servos.
O medo de não ir para o céu, de ser punido, de queimar na fogueira fez a classe subalterna
refém da igreja, que ao acumular mais poder, ia imprimindo suas ideias com maior veemência, o
que vai repercutir de forma decisiva nas ciências, com destaque na cartografia, voltada para a
busca de explicações bíblicas para toda e qualquer situação, desde uma simples contenda à
qualquer teoria científica.
A Igreja, nesse período, passa a desconsiderar a Teoria da Esfericidade, que desde os
gregos já era divulgada. Essa teoria apresenta a terra em forma de esfera, para ir de encontro com
esta teoria a Igreja suscita uma nova compreensão da forma da terra e passa a impor a Teoria do
Prato, que apresenta a terra de forma plana e uniforme. Para a religião era inaceitável uma
explicação que não fosse uma referência bíblica. Por exemplo, para a igreja afugentar a população
do litoral, ela apregoava que os mares eram povoados por monstros, além do abismo onde os
navegadores iriam cair, caso se afastassem para o oceano.
Esta era uma forma de manter a população de servos, vassalos e agregados, permanecendo
no feudo e submissos às vontades dos detentores do poder, pois no litoral eles poderiam encontrar
outra fonte de renda, a pesca, e não mais se manterem como força de trabalho para o feudo.
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Lembrar que os bárbaros não são somente os Germânicos, mais para os romanos todo e qualquer povo fora do seu
reino, é denominado de bárbaro, uma forma de menosprezar os inimigos, como ainda hoje é comum, ao denominar os
outros de vândalos e outras denominações para não “civilizados”.
A possibilidade de o homem procurar outras alternativas passava a ser cada vez maior, e o
medo de tais conhecimentos e descobertas fez com que a Igreja adotasse diferentes formas de
controlar a população com força no discurso à base dos estudos e ensinamentos da bíblia. Eram
inventadas estórias que acabavam amedrontando a população que ficava à mercê do poder
constituído, a Igreja e os donos dos feudos.
Este poder de dominação é visível ao se perceber a contribuição cartográfica. A Igreja tinha
representantes com conhecimentos necessários para se produzir mapas que pudessem justificar tais
assertivas com relação aos perigos que o mar oferecia aos que tentassem ultrapassar os limites do
litoral; isso facilitou que a Igreja com seu poder pudesse impor suas ideias, seus pensamentos e
também seus mapas.
Para impor a sua força, a Igreja aboliu todos os mapas confeccionados anteriormente e
passou a estudar profundamente, sempre à luz das suas interpretações em relação aos escritos
bíblicos passando a determinar o que deve ser estudado e interpretado, influenciando também na
elaboração de mapas. Daí surgem os denominados mapas T no O, como se observa na figura a
seguir:
São mapas de cunho religioso, em que suas explicações se dão pela bíblia. A divisão dos
continentes (Europa, Ásia e África, o mundo até então conhecido) é representada em forma de uma
cruz, símbolo maior da religião católica. No centro do mapa (para a época, centro do universo)
ficava a cidade de Jerusalém, mesmo se considerando que Jesus nasceu em Belém, que na época
era um pequeno vilarejo nas proximidades desta cidade, que passou a ser o maior centro religioso
do mundo cristão até então.
Esses mapas perduraram por longo tempo, durante a denominada Idade Média, e só vão
perder seu poder com os mapas Portulanos, que são cartas náuticas confeccionadas durante o
século XIII, principalmente nas cidades de Gênova e Pisa, dois grandes centros comerciais não só
da Itália, mas de toda a Europa. Os Portulanos deram origem aos mapas mais complexos que
vieram a ser utilizados, principalmente, por Portugal e Espanha e serviam para a conquista do
Novo Mundo e para a ascensão da burguesia, que com a necessidade de novos mercados vai
investir elevada soma de recursos na elaboração de mapas, a exemplo das novas técnicas que foram
empregadas nas Grandes Navegações.
Os Portulanos tinham como objetivo a localização das áreas portuárias, “A toponímia está
reduzida aos portos, aos cabos e a outros detalhes das costas” Raisz (1969, p. 21). Nestes mapas
os objetivos identificados eram localizados no litoral, e a parte interior do continente aparecia sem
nenhum elemento. O que chama atenção nesses mapas é o uso da rosa-dos-ventos, instrumento
aprimorado e difundido largamente com o desenvolvimento da bússola, como bem atesta Raisz
(Ibidt).
Diferentemente do que se propaga, hoje se acredita que a Igreja já tinha noções importantes
sobre a existência de terras além-mar. No entanto, segue com esses conhecimentos guardados para
serem utilizados a posteriori.
Enquanto na Europa da Idade Média, a religião contribuiu para o retrocesso científico e
econômico, diferentemente dos árabes que passaram a expandir sua influência com as rotas
comerciais e a obrigatoriedade de visitar a cidade de Meca. Os árabes têm no Islamismo sua fonte
religiosa, e em Meca, a Cidade Santa. Todos têm obrigação de irem visitar a cidade pelo menos
uma vez em vida, com isso, as romarias são pontos de encontro comerciais e contribuem para a
interação e a divulgação de novas ideias, novos pensamentos e também novos mapeamentos, rotas
e outros elementos incutidos em mapas. O domínio na Península Ibérica; o contacto com outros
povos, principalmente os gregos, e o acúmulo de conhecimentos adquiridos fizeram dos Árabes
exímios cartógrafos. Mais tarde, já em contacto com os orientais e com a expansão comercial para
as Índias orientais, os europeus passam a adquirir novos conhecimentos que irão dar base para o
desenvolvimento desta ciência na Europa renascentista.
De acordo com Matias (1996), o contacto com os árabes foi de elevada importância para
reacender o espírito de expansão dos europeus, principalmente ao perceber o crescimento do poder
dos muçulmanos, o que levou os cristãos a repensarem as estratégicas políticas, econômicas e
sociais de controle na Europa e o nascente comércio no Oriente Médio, ocorrendo uma
considerável mobilização religiosa e militar contra os povos que habitavam a Terra Santa e que
estavam sob o domínio dos turcos, avançando através das Cruzadas. Esses confrontos traziam
incontáveis perdas para ambos. Essas disputas territoriais fortaleceram o comércio e intercâmbio,
colocando a Europa novamente na rota do desenvolvimento e exploração de novo comércio e
novas terras.
Estes eventos de confronto entre europeus, cristãos, árabes e mulçumanos tinham como
foco não somente a religião, mas principalmente o controle comercial nessas rotas. Com isso,
elevou-se o nível de transações comerciais na Europa, fortalecendo a burguesia local, que não
tardou a patrocinar as mudanças que necessitava para extrair maiores lucros dos outros povos.
Com o Renascimento, a Europa passa por mudanças bruscas, a igreja deixa de ter
unanimidade. A Teoria da Esfericidade passa a ser predominante, o que contribui para novas
pesquisas e a necessidade de uma releitura de mundo; que começa a florescer em toda a Europa. As
nações passam a se estruturar em reinos com o poder central exercido pelos imperadores que detêm
poder absoluto sobre a nação. Os imperadores começam a expandir seu domínio por diferentes
partes, até mesmo fora do continente, não só na Ásia, mas também na procura por novas terras,
Duarte (2002) destaca que:
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A terra passa a ser adquirida através da compra, os grandes capitalistas investem na transformação dos campos de
cultivos em pastos. Foi uma estratégia encontrada na Inglaterra para obrigar os camponeses sem terras a se
mobilizarem para as cidades, atrás de empregos nas fábricas e obterem lã em abundância, produto vital da
industrialização têxtil.
Com relação ao sistema de definição de horas, a revista Aventura na história (edição 113,
de dezembro de 2012) mostra a força impressa pelo sistema de Greenwich, mesmo sendo decidido
na Convenção de 1884, (na qual Brasil e França abstiveram-se e usaram o antigo sistema até 1914,
e a República Dominicana votou contra), os outros países votaram a favor. Greenwich passou a ser
um sistema universal, sendo mais um acordo dos principais países marítimos com aporte inglês
para facilitar e domesticar o comércio internacional.
Agora, os ingleses, além de dominar o comércio, (estimulando o fim da escravatura na
América), e assegurar mercado consumidor para seus produtos, passam a influenciar todo o mundo
com suas indústrias, praticamente, obrigando a comprarem seus produtos, também passam a
dominar o tempo, o tempo do trabalho, não somente nas suas fábricas, mas também no mundo,
com o famoso horário de “Londres” que influencia decisivamente no sistema bancário8.
A procura por novos mercados, a invenção da impressa, a necessidade de exploração de
diferentes fontes energéticas, os problemas urbanos decorrentes da alta exploração da força de
trabalho, o uso de novas técnicas e a sistematização das ciências fazem da cartografia palco
importante para se disseminar a cultura europeia para o resto do mundo, além de servir como ponto
estratégico na procura por riquezas.
A invenção da imprensa, impulsionado pelo inventor alemão João Gutemberg (1455),
elevou a ciência cartográfica a um considerável patamar. Com os impressos (mapas e cartas); a
cartografia passa a se popularizar, com a fácil reprodução de cópias de mapas mundi e a divulgação
de impressos em estudos regionais. Esses avanços impulsionaram estudos na Europa, importantes
no estímulo à procura de novas riquezas, contribuindo para o investimento no processo de
exploração, paralelamente às investidas nas Grandes Navegações.
Com o mundo praticamente cartografado, o uso adequado de escalas, a localização e a
orientação, já não são mais problemas a enfrentar. Ganham corpo os estudos em cartas topográficas
elaboradas com alto nível de detalhamento, com enfoque nos estudos dos recursos naturais e as
cartas temáticas, a exemplo dos mapas de clima, relevo, vegetação, geologia e outros. Com o
intuito de melhor aproveitar os recursos, mesmo com o desenvolvimento tecnológico, a cartografia
continua servindo aos poderosos, agora com maior afinco para justificar a expansão capitalista.
Com o desenvolvimento da aerofotogrametria, surgida a partir do emprego de fotografias
aéreas pelo francês Aimé Laussedat, como bem atesta Castro (2012); a cartografia passa a
empregar uma gama de equipamentos cada vez maior no uso da interpretação de diferentes
elementos inseridos na produção do espaço. Com as fotografias aéreas e o uso do estereoscópio9,
ocorre um avanço na observação do relevo com maior possibilidade de compreender os fenômenos
da geomorfologia: vertentes, feições dos rios com vales, entalhamento do relevo e outros,
contribuindo para os estudos dos impactos ambientais.
Após a Revolução Industrial, a Europa passa a exercer maior força perante os outros
continentes. Na América, as colônias servem como ponto estratégico, a princípio como repassadora
de matéria-prima, e em seguida como mercado consumidor dos produtos industriais europeus.
Estímulo garantido com o fim da escravatura.
Com relação à África, o processo difere um pouco, no entanto, com a mesma lógica, extrair
as riquezas e leva-las para as fornalhas dos parques industriais instalados na Europa. As nações
europeias ao se verterem para esse mercado na África passam a colonizá-la, na América o processo
de independência das colônias faz surgir o interesse para o continente africano. A intensificação
dos europeus na África contribuiu para o continente se fragmentar em diferentes colônias, que
culminou com a Partilha da África, originando e ampliando os conflitos civis no continente.
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Com o controle do tempo os bancos passam a realizar suas operações de forma sistematizadas, com influência em
grande parte do mundo, passam a adotar sistemas (regulados via horários estabelecidos), aplicados em todo o mundo,
levando o mercado financeiro e projetando-o como forte setor do comércio mundial.
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Aparelhos desenvolvidos para estudos em pares de fotografias aéreas, com a junção destas fotos e o uso do aparelho é
possível observar o terreno em terceira dimensão, são simples e de fácil manuseio.
Sob o Neocolonialismo, principal expressão do imperialismo capitalista a partir da
Segunda Revolução Industrial (1860 - 1900), o domínio das potências europeias
não foi apenas econômico, mas completo, ou seja, militar, político e social,
impondo à força um novo modelo de organização do trabalho, que pudesse
garantir, principalmente, a extração de minérios, para as indústrias da Europa.
Para estas conquistas foi fundamental a existência de uma cartografia precisa e
detalhada das terras ocupadas militarmente, apoiada pelas novas descobertas
científicas (FREIRE; FERNANDES, 2010, p. 91).
Referências Bibliográficas
CASTRO, José Flávio Morais. História da cartografia e cartografia sistemática. Belo Horizonte,
Editora Pucminas, 2012.
HARLEY, J. B. Deconstructing the map. Cartographica. v.26, n.2. Toronto: University of Toronto
Press, 1989. p.1-20.
MATIAS, Lindon Fonseca. Por uma cartografia geográfica - uma análise da representação
gráfica na geografia. (Dissertação de mestrado) São Paulo: USP, 1996.
RAISZ, Erwin. Cartografia geral. Tradução por Neide M. Schneider e Pericles Augusto Machado
Neves. Rio de Janeiro, editora científica, 1969.