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D O S S I Ê

HISTÓRIA E MÚSICA: DESCOLONIZANDO


O ENSINO DAS AFRICANIDADES A PARTIR
DAS LEIS 10.639/03 E 11.645/08*

Cleusa Teixeira de Sousa**, Aurélio Nogueira de Sousa***, Cristiano Nicolini****

Resumo: Este artigo visa discutir as leis 10.639/03 e 11.645/08 como parte das políticas afir-
mativas e de combate aos preconceitos instaurados desde o período colonial. Tra-
zemos à tona as possibilidades da proposta interdisciplinar das temáticas africanas
e afro-brasileiras e seus desdobramentos a partir do ensino de história em interfa-
ce com a música/arte. Tais determinações são basilares para a promoção do ensi-
no decolonial no Brasil, possibilitando a dinamização dos estudos e reflexões nos
mais variados espaços, para se pensar os preconceitos, as imagens romantizadas e
folclóricas da “miscigenação” brasileira como um mito, os racismos estruturais e
institucionais que permanecem presentes em espaços públicos como, Escolas, Uni-
versidades, Igrejas e para além deles. Visto que a própria construção histórica bra-

* Recebido em: 29.05.2023. Aceito em: 23.06.2023.


** Pós-Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Goiás (UFG). Doutora em História pela UFG, com Bolsa de Doutorado Sanduíche na Uni-
versidade de Coimbra, Portugal. Mestra em História pela UFG. Especialista em Educação
Profissional Integrada à Educação Básica pelo Instituto Federal de Educação integrado à
Faculdade de Educação da UFG. Graduada e Bacharel em História pela UFG. Professora
de História na Secretaria de Educação do Estado de Goiás. E-mail: cleotsou@gmail.com
*** Doutor em Educação Musical pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Música
pela UFG. Especialista em Gestão Escolar pela UFG. Graduado em Educação Musical e
Ensino Musical Escolar pela UFG. Professor na Secretaria Estadual de Educação do Estado
de Goiás. Realiza estágio pós-doutoral em História pela UFG. E-mail: aureliotrompete@
gmail.com
**** Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Maria, com período de Doutorado
Sanduíche na Universidade do Porto, Portugal. Mestre em Desenvolvimento Regional pela
Universidade de Santa Cruz do Sul. Especialista em História do Brasil – Novas Perspectivas
em Ensino e Pesquisa, pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Licenciada em História pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Professor na Faculdade de História, no Programa de
Pós-Graduação em História e no PROFHistória da UFG. E-mail: cristianonicolini@ufg.br

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sileira permitiu e influenciou na demonização das religiões de matrizes africanas,
na normatização da escravização dos africanos, das violências e mazelas sofridas
no decorrer da colonização do Brasil e da segregação pós abolição no país.

Palavras-chave: Decolonial. Africanidades. Interdisciplinaridade. História. Música.

A
s leis 10.639/03 e 11.645/08, são resultantes de amplas mobilizações sociais de
frentes negras e para além delas. Suas determinações instituíram a obrigatoriedade
do ensino das relações étnico raciais em 2003 e, posteriormente, o ensino da
História e da Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena em 2008. Ambas, contam
com mais de uma década de suas publicações, visto que a primeira completa esse
ano (2023) duas décadas de existência e a segunda pouco menos, ou seja, uma
década e meia.
Para além das leis vigentes, diretrizes relativas à essa legislação foram elaboradas para
direcionarem e responsabilizarem as Instituições sobre as suas aplicabilidades
no ensino. Embora essa premissa seja real, ainda há empecilhos para melhor
eficácia da implementação da lei de 2008, em decorrência do desconhecimento
e da falta de divulgação do Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE)
n. 14/2015, que trata das diretrizes operacionais e responsabilidades e reflexões
decorrentes da implantação da lei 11.645/08, sua divulgação foi frustrada em
função do documento ter sido elaborado dias antes do Golpe que retirou a presi-
denta Dilma Rousseff do poder em 20151.
O ensino das africanidades e da história e cultura indígena tanto de alunos do Ensino
Básico (em todas as suas etapas), quanto do Ensino Superior estão respaldados
por essas duas leis que modificaram o Artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases
(LDB n. 9.394/96) que possibilitam pensar e discutir a função social e política da
História e da Música/Arte na condição social e política do Brasil nessas últimas
duas décadas no Brasil.
A problemática relativa aos preconceitos e às transgressões contra as diversidades cultu-
rais, não são práticas fáceis de se findar, visto que ao longo da história brasileira
a sociedade foi instigada a conceber a Europa como centro do mundo, onde se
desenvolvia o conhecimento científico, a cultura mais elaborada e tantos outros
estereótipos de superioridade foram criados e divulgados mundo a fora, sobretu-
do, em relação aos países colonizados pelos europeus.

CONTEXTO EDUCACIONAL: RELEVÂNCIA DA APLICABILIDADE


DAS LEIS 10.639/03 E 11.645/08

Os pensamentos eurocêntricos, estiveram no bojo da sociedade brasileira e para além


dela, desde os primórdios do Brasil. Desmistificar esses “ensinamentos” requer
desenvolver uma tarefa contínua de reflexão/ação. Por meio da qual se visa refle-
tir e agir com empatia para combater os racismos, etnocentrismo, egocentrismo,
faz-se necessário partir de abordagens que valorizem as vivências e experiências
da vida cotidiana dos alunos para que possam ter conhecimento da dimensão am-

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pla do enraizamento desses preconceitos que estão impregnados na sociedade na
qual estamos inseridos. Embora a Constituição Federal de 1988, já prescrevesse:

Art. 5° inciso XLII, [...] a prática do racismo constitui crime inafiançável e im-
prescritível, sujeito de reclusão nos termos da lei.
Art. 3° Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
(…).
– IV Promover o bem estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CONSTITUIÇÃO FE-
DERAL DO BRASIL, 1988).

A Constituição de 1988, visou garantir direitos sociais e civis que foram por séculos re-
tirados dos brasileiros. Nesse sentido, há que se rememorar que desde o período
colonial e para além dele, a ideologia dos escravocratas, corroborava para que o
negro-africano fosse percebido como parte de um povo sem história, sem cultura
e sua existência como escravizados era posta como algo “natural”. Neste mote,
buscaram anular as memórias culturais desse povo que na perspectiva escrava-
gista carecia de arte, religião e sutilezas (NASCIMENTO, 2016, p.198).
Mesmo diante de tantos embates e lutas promovidas pelos movimentos sociais ao longo da
história e, especialmente, a partir da primeira década do século XXI, o preconceito
em nossa sociedade continua latente. O racismo, o ódio, a intolerância cultural e as
práticas religiosas de matrizes africanas continuam assolando a sociedade. As “viola-
ções dos direitos que vitimizam os templos e os ministros religiosos afro-brasileiros”
ainda fazem parte da realidade brasileira nos dias atuais (OLIVEIRA, 2014, p. 01).
Assim como permanecem coevas as transgressões sofridas pelos jogadores de futebol
(representantes do esporte no Brasil e fora dele). A exemplo, cita-se o caso re-
centemente ocorrido com o jogador brasileiro Vinícius Júnior (jogador do Real
Madri), que foi expulso de campo no jogo promovido no dia 21de maio de 2023
no Estádio Cívitas Metropolitano em Madri. Após ter se envolvido em uma con-
fusão, em decorrência da torcida do time rival - o Valência - o ter ultrajado com
insultos racistas denominando-o de “macaco”.
Observa-se, contudo que situações de práticas racistas contra jogadores têm sido recor-
rentes. Em virtude dos fatos, em 23 de maio de 2023, a Câmara Federal dos De-
putados no Brasil, aprovou por unanimidade a moção de repúdio ao presidente
da LaLiga, Javier Tebas (2013-2023) e à própria entidade (Primera División da
Liga de Fútbol Profesional – Campeonato Espanhol de Futebol), o mal estar ins-
taurado gerou desculpas públicas por parte de Javier à Vinícius Júnior, mas não
o livrou do sentimento negativo de ter sido ofendido por suas condições étnicas.
Esses e outros insultos, bem como os ataques à cultos de religiões de matrizes africanas
e à própria cultura africana e afro-brasileira, estão no centro de acontecimentos
que ferem os Direitos Humanos (Universal), para além da Constituição brasilei-
ra de 1988 (que rege a legislação no interior de nosso país).
A situação é alarmante e urgente, suscitando a necessidade de reflexões sobre a relevância
das leis 10.639/03 e 11.645/08 que tratam da obrigatoriedade do Ensino da His-

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tória e da Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena, tanto na Educação Básica
quanto na formação de professores no meio Universitário. Visto que é gritante a
necessidade abrangente do desenvolvimento de estudos, pesquisas e suas divul-
gações acerca da História e Cultura das diversidades, por meio de debates sobre
as africanidades no Brasil e para além dele, garantindo mais sentido e ênfase à
urgência da aplicabilidade das leis em questão.
Nesse contexto, o objetivo está em promover estudos, pesquisas, debates e discussões
que mostram os aspectos culturais: festivos, religiosos, artísticos que compõem
a História e memória dos africanos. Levando em conta a habilidade que há muito
acompanha os africanos, sobretudo, da África Subsaariana, localizada ao sul do
deserto do Saara, os quais desde a antiguidade já manipulavam o ferro, assim
como forjavam armas e diversos utensílios com esse metal. Os quais, também
dominavam o conhecimento da mutação dos metais por meio da metalurgia,
contavam/contam com vasta culinária e aparato musical de diversos ritmos e
gêneros como o Blues, o reggae, o funk, o hip-hop, o rock, dentre outros.
Da mesma forma, torna-se relevante levar em consideração a abundância cultural das
tradições indígenas, visto que esse povo se caracteriza como guardiões das flo-
restas e exímios transmissores de seus conhecimentos milenares de ervas me-
dicinais sejam elas em forma de folhas, cascas e/ou sementes. Para além de se
alimentarem dos recursos obtidos na própria natureza como frutos, caça e pesca,
praticando a cultura de subsistência.
Observa-se, portanto, que tais fatores corroboram com a defesa difundida ao longo dos
séculos pelos indígenas quanto a preservação do meio ambiente por meio da sus-
tentabilidade. Tal preocupação encontra-se no centro das discussões das conferên-
cias ambientais internacionais, visando criar legislações e estratégias sustentáveis
destinadas à preservação do planeta Terra. Na cultura indígena, só é permitido
retirar da natureza aquilo que se faz necessário para a sobrevivência diária de seu
povo, tudo que excede o consumo cotidiano foge aos seus ensinamentos.
Nesse mote, observa-se que a educação é um meio legítimo de levar conhecimento às crian-
ças, aos jovens e aos adultos. De acordo com Vera Candau (1999), existem três
momentos fundamentais para o desenvolvimento de um tema, os quais sejam:

[...] aproximação da realidade/sensibilização, aprofundamento-reflexão, cons-


trução coletiva e conclusão/compromisso. Para cada um desses momentos é ne-
cessário prever uma dinâmica adequada para cada situação específica, tendo-se
sempre presente a experiência de vida dos sujeitos envolvidos no processo edu-
cativo (CANDAU, 1999, p. 11).

Seguindo as estratégias pontuadas por Candau, observa-se que o ensino e o desenvolvi-


mento de suas nuances tornam possível mobilizar as pesquisas teóricas em favor
de coloca-las em prática na aprendizagem em sala de aula. Para tanto, se faz ne-
cessário apresentar a temática em questão, que nesse caso são as africanidades,
dimensionar seus conceitos, trabalhar suas histórias, memórias, culturas, bem
como identificar as carências em decorrência do que já é conhecido pelos alunos,

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mediar as discussões relativas às temáticas que envolvem a História e Cultura
Africana e Afro-brasileiras.
Os docentes precisam tratar das questões étnicos raciais em sala de aula, independente-
mente deste/a professor/a ser ou não negro/a, “não dá para perder a oportunida-
de de falar sobre equidade racial por ser branco/a e por isso, por esse lugar de
sujeito universal, não se sentir racionalizado e não se sentir inserido na pauta”
(PINHEIRO, 2023, p. 64). É importante levar pessoas negras da comunidade,
de fora da escola, para interagir com os jovens e propiciar para os estudantes
novas experiências, possibilitadas a partir de sua interação com as experiências
vivenciadas e contadas por esses/as palestrantes que podem ser convidados a
relatarem seus conhecimentos da vida prática com os (as) estudantes.
Nota-se, portanto, que o ensino é o caminho concreto para se desmistificar as abor-
dagens tradicionais sobre a escravidão, a mestiçagem que tem como pano de
fundo mascarar as violências as quais os escravizados eram submetidos, mos-
trar que os africanos trazem consigo conhecimentos e elementos simbólicos de
sua própria cultura, arte/música, esporte e religiosidade e que a superioridade
cultural e “ideal” de civilismo implementada pelos europeus sobre a cultura
africana e indígena fazia parte de um discurso tendencioso de dominação sob
as diversidades culturais, sobretudo, dos africanos, afro-brasileiros e indíge-
nas. A interdisciplinaridade entre a História e a Música podem favorecer esse
processo de ensino e aprendizagem dos alunos por trazerem aspectos seme-
lhantes que estão carregados do simbolismo e da cultura dos africanos, da
África e dos afro-brasileiros.
A música se traduz como uma linguagem verbal e não-verbal do mundo, dos sentimentos
e afeições. Em se tratando de África, nota-se a repercussão da marcação ditada
pelos tambores. Visto que o tambor em seu ritmo sonoro faz pulsar a música, a
vida e todas as formas de sociabilidades (MAFFESOLI, 2014). Não por acaso,
objetivamos promover a interdisciplinarização e suas possibilidades trabalhan-
do de forma integrada a História e a Música no desenvolvimento do processo
de ensino e aprendizagem no chão das escolas de forma a levar os estudantes a
construírem novos saberes favorecidos pela integração do som dos tambores e
demais instrumentos musicais africanos que os permitam adentrar ao Continente
africano, mesmo que deste lado do oceano e se misturar com os fatos históricos e
culturais desse povo associado a construção histórica, política e social do Brasil.

A ESCOLA COMO ESPAÇO PRIVILEGIADO DE REFLEXÃO


E PROBLEMATIZAÇÃO: RECONHECIMENTO DAS DIVERSIDADES
PLURAIS E DAS IDENTIDADES PESSOAIS

O Brasil, para além de muitos outros países, é estruturalmente racista e a escola como
grande parte das instituições sociais, políticas, econômicas, culturais e até mes-
mo religiosas não fogem a este cenário, “a escola é um complexo social gestado
no interior de uma sociedade” (PINHEIRO, 2023, p. 67). E por assim ser, traz
consigo marcas estruturais deste contexto assinalado por opressões. Essa con-

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dição faz da escola um lugar privilegiado para desconstituir e desconstruir os
preconceitos e superar essas mazelas ocasionadas pela disseminação dos etno-
centrismos e egocentrismos em nosso meio social ao longo do processo histó-
rico. A escola, por meio do ensino formal estabelecido em seu seio torna-se um
espaço favorável ao desenvolvimento prático da sociabilidade, do conhecimento
epistemológico das diversidades e da difusão da valorização das diferenças.
Deste modo, iniciamos essa reflexão trazendo à tona a Legislação maior que rege a edu-
cação no Brasil, a qual seja a LDB 9394/96, em seu Cap. II: da Educação Básica
– Art. 26:

§ 4º - O Ensino de História do Brasil levará em conta as contribuições das dife-


rentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das
matrizes indígena, africana e europeia. Acréscimo:
Art. 26 A - O conteúdo programático do Ensino Básico deve incluir diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da
África e dos africanos [...].

A centralidade expressa na LDB 9.394/96, em seu Artigo 26, o qual trata da circulação
de informações e conhecimentos sobre as diversidades culturais na educação
brasileira. O § 4º desse mesmo Artigo, demonstra a preocupação de que os currí-
culos escolares sejam voltados para um ensino que abranja as contribuições das
diversas culturas e etnias para a formação do povo brasileiro. O ponto alto do
documento refere-se, portanto, à cultura e à identidade nacional, possibilitando a
elaboração de outras redes de informações que contribuam para a compreensão
contextualizada e plural acerca das diversidades culturais que abarcam os africa-
nos, afro-brasileiros, indígenas e para além desses povos.
Assim, é necessário desenvolver um ensino pautado no:

[...] resgate da memória, da história, dos hábitos alimentares, costumes religio-


sos (como o Candomblé, que apesar de seus terreiros serem de origem brasilei-
ra, se estruturam sobre os moldes e modelos das tradições sociais e coletivas
oriundas das famílias dos povos Iorubás e Fon, responsáveis pela implementa-
ção de cultos dos orixás no Brasil ) e culturais, como a músicas (axés e samba),
as atividades esportivas (como a capoeira, a qual teve sua prática proibida por
interesses políticos e de dominação até meados do século XX no Brasil). Faz-se
necessário compreender que esses elementos pertencem aos africanos e, por
conseguinte, aos afro-brasileiros. Pois, conhecer suas tradições, histórias, me-
mórias e aspectos culturais que foram durante séculos esquecidos e silenciados
no meio educacional brasileiro, trata-se de um modo eficiente de resgatar esses
elementos compositores tanto da história dos africanos, quanto dos afro-brasi-
leiros. É uma forma de rememorar e trazer à tona também aspectos da própria
cultura brasileira que em muitos aspectos ressignificou a africana (SOUSA,
2020, p. 263).

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A relevância da capoeira neste contexto demonstra a capacidade de integração que essa
manifestação esportiva e cultural africana e afro-brasileira esboçava e ainda es-
boça numa sociedade altamente preconceituosa e forjada sob a máscara de uma
branquitude2, numa tentativa de naturalizar as desigualdades e mostrar a supe-
rioridade dos “não” africanos. Outro fator relevante quanto a capoeira refere-se à
musicalidade (os sons) promovidos pelos berimbaus e as gingas que a atividade
permite em seu desenvolvimento, a totalidade de sua riqueza envolta em suas ca-
racterísticas rítmicas de resistência aos preconceitos engendrados contra os ne-
gros, desmistificam as ideologias furtivas de superioridade dos europeus frente
aos africanos. Pois seus adeptos consagraram o ritmo musical, a beleza da dança,
dos movimentos esportivos, das caracterizações de suas vestimentas e dos pen-
teados utilizados, a “força” de um povo vivaz que mesmo em meio as mazelas
demonstraram a coragem e a raça esboçados por meio do exercício físico e da
beleza corporal que compõem essa prática: a capoeira. Pois, de acordo com Car-
los Eduardo Calvani (1998), a força da música, dos tambores e da África se faz
presente em nossa sociedade e nas sociabilidades que a integra e a compõe.
Mas, para promover um ensino decolonial, precisamos nos questionar: De qual identidade
nacional estamos falando? Para responder essa questão de imediato já pensamos
“a brasileira”. Assim, indagamos mais uma vez: Qual música mostrou ao mun-
do a nossa cultura? Quem não se lembra da apresentação da ginasta brasileira
Daiana dos Santos, que ao som do choro o “Brasileirinho” de Waldir Azevedo,
encantou o mundo e conquistou uma medalha de ouro para o Brasil no Mundial
Olímpico de 2003? Esse ritmo musical, assim como a Bossa Nova e o Maxixe
são herdeiros da cultura musical africana. Nossas raízes não tem como serem
desvencilhadas desse emaranhado cultural que envolvem os indígenas, os africa-
nos e os afro-brasileiros, há em nossas origens uma gama cultural advinda desses
povos que precisam ser valorizados e respeitados a partir do que lhes foram “to-
mado”, as suas raízes culturais, sabedorias e conhecimentos milenares que foram
silenciados na construção histórica do processo de formação do Brasil.
Nesse sentido, políticas públicas voltadas à educação e também a legislação educacio-
nal podem determinar que a educação caminhe no sentido de contribuir para a
constituição e reconstrução de identidades afirmativas e que sejam capazes de
formar alunos/agentes de transformação para atuarem como protagonistas de
ações autônomas e solidárias que promovam a vida em sociedade, a superação
de discriminações e exclusões nos mais diversos espaços e contextos, sobretudo,
nos meios âmbitos educacionais, reduzindo o racismo, o sexismo e os preconcei-
tos estruturais dimensionados pelas desigualdades sociais, econômicas e étnicas
de nossa sociedade.
Pois, ainda é contemporânea a premissa do preconceito, da desigualdade social e da discri-
minação racial, que formam um tripé de negatividades relativas aos africanos e a
sua cultura que embora tenha se passado pouco mais de um século da abolição da
escravatura (1888), os “males” da dominação escravagista sob os africanos, ain-
da encontram-se presente na sociedade brasileira. Esses fenômenos fazem parte
do legado deixado pelo processo sócio histórico do Brasil, lançado por meio da

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construção e divulgação de textos e imagens negativas do povo afro-brasileiro,
que difundiram a ideia de superioridade dos brancos em detrimento aos negros,
se legitimando e compondo o imaginário coletivo principiado no período colo-
nial e para além dele (SOUSA; NORONHA, 2021, p. 339).
A relevância do espaço escolar nesse processo, está em sua capacidade de agregar alunos
de diversas bases culturais e étnicas. Contudo, os docentes precisam estar atentos
para o resgaste da autoestima e superação do sentimento pejorativo ocasionado
pelas ações discriminatórias decorrentes das relações com preconceitos instaura-
dos e fortalecidos nos processos de formação da nacionalidade brasileira, (COE-
LHO e COELHO, 2013). Os quais também são vivenciados nos espaços escola-
res e que precisam da intervenção do docente, a fim de que haja uma crescente
conscientização e quebra do preconceito para que não se repitam os inúmeros
preconceitos e discriminações e para tirar para que (também) os discentes sejam
capacitados e conscientizados da importância de compreender as diferenças e
conhecer a história e a cultura das diversidades para aprender a respeitá-las.
Portanto, cabe ao professor/a mediador/a do conhecimento compreender o contexto do racis-
mo e como esses elementos interferem na autoestima de seus alunos/as e que a falta
de intervenção da parte do docente implica negativamente na construção de uma
escola voltada para as práticas democráticas e inclusiva (GOMES, 2003, p. 77).
O processo de formação de professores se constitui como o ponto central para a compreen-
são dos processos de construção do Brasil em seus aspectos mais abrangentes que
culminaram para a ampliação dos preconceitos e suas derivações. Conhecimentos
esses, que são basilares para a desconstrução dos mitos, racismos e discrimina-
ções instauradas historicamente frente as diversidades culturais. Para tanto, inú-
meras iniciativas legais carecem ser tomadas para institucionalizar a implemen-
tação de uma educação pautada no atendimento para a diversidade das relações
étnico-raciais, pensando amplamente sobre a seleção dos conteúdos (currículos)
que devem ser trabalhados nas aulas relativas à essa temática: africanidades.
Faz-se necessário, assumir o papel de professor/a formador/a responsável por difundir o co-
nhecimento, formar alunos com senso crítico, reflexivo e questionador, capazes de
compreender e interagir frente aos conteúdos das africanidades e dos seus desdobra-
mentos. Propiciando para os discentes um ambiente aprazível de produção de co-
nhecimentos por meio de diversas estratégias metodológicas. À exemplo, citamos
as rodas de conversas, ou demais metodologias que favoreçam o desenvolvimento
do pensamento de forma individual e coletiva, incentivando o debate, a participação
e intervenção que demonstrem suas experiências cotidianas.
Desta forma, as leis 10.639/03 e 11.645/08 se constituem como marcos legais importan-
tes, pois provocaram alterações na legislação educacional brasileira, por con-
seguinte nos currículos, favorecendo a ampliação das investigações científicas
sobre as diversidades: África, Indígenas, dentre outros. Assim, modificaram
também as posturas dos pesquisadores e os seus objetos de investigações que
passaram a promover a profusão de novos estudos da história, cultura, memó-
rias de povos que antes eram “esquecidos”, e porque não dizer até mesmo mar-
ginalizados intencionalmente.

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A promulgação e, por conseguinte, a implementação dessas leis, possibilitaram ações que
privilegiaram a revisitação de documentos, bem como práticas e investigações, que
tornaram possível identificar as dificuldades e permitir avanços da aplicabilidade
das leis para a promoção de um ensino decolonial pautado na leitura a contrapelo
de um processo histórico marcado por ideias e discursos que antes privilegiavam
os colonizadores, o imperialismo e os desmandos intencionais daqueles que deti-
nham o poder. Essas leis favoreceram a propagação e difusão de estudos relativos à
África, aos africanos, afro-brasileiros, indígenas e ainda favoreceram a ampliação
de novos horizontes de investigação privilegiando o desenvolvimento de pesquisas
sobre outros grupos étnicos como judeus, ciganos, mouros, dentre outros.
Para conseguir dar forma às ações que possibilitam questionar esse modelo de história
ditada pelos colonizadores, faz-se necessário também elencar e pensar algumas
questões, as quais sejam: Quais subsídios foram dados para que os/as professo-
res/as do ensino básico trabalhassem com esses conteúdos em salas de aula? Será
que receberam formação acadêmica para ministrarem tais conteúdos, os levando
a questionarem o processo de formação da sociedade brasileira?
A esse respeito, podemos elencar que há uma mudança em curso, apesar da assistência
mínima dispensada aos/às professores/as por parte dos governantes estaduais
e municipais. A formação que ora temos visto estar em curso, está sendo pro-
movida por Centros de Formações instituídas e controladas pelos governantes
que não têm recorrido às formações docentes promovidas pelas Universidades.
Hipoteticamente, pensamos que há interesses restritos em controlar e manipular
essas formações de acordo com a intencionalidade governamental para efeti-
var o Novo Ensino Médio que propõe atualmente uma série de mudanças nos
currículos e na estruturação do ensino (integrando as disciplinas em áreas do
conhecimento) em benefício da entrada do capital na educação, privilegiando as
iniciativas privadas e a promoção da educação voltada para o mundo do trabalho
com sua alta precarização e baixos salários e suas carências que impedem que
esses jovens possam ascender às Universidades Públicas.
Em se tratando desta reformulação do Ensino Médio, merece destaque ainda, o fato do
Ministério da Educação (MEC) não ter buscado estabelecer interlocuções com
as universidades federais ou estaduais e muito menos com investigadores do
campo da educação, bem como com professores e/ou alunos. Entretanto, as par-
cerias e diálogos se deram entre representantes do MEC e empresariados, por
meio de organizações e representantes do Instituto Alfa Beta, Sistema S, Institu-
to Unibanco, Instituto Ayrton Senna, Fundação Itaú, dentre outros (GONÇAL-
VES, 2017, p. 141).
Outra questão desfavorável, está na condição dos acervos escolares serem pequenos e
(des)atualizados3, apesar do quantitativo de produção de bibliografias relativas
às temáticas africanas terem se avolumado nos últimos anos, já quanto à temá-
tica indígena essa ainda requer a ampliação de pesquisas que abranjam novos
espaços de abordagens e consequentemente a sua divulgação. A renovação dos
currículos, também tem sido um entrave para aplicabilidade das leis 10.639/03 e
11.645/08 no meio escolar.

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Uma forma de mudar os rumos históricos e educacionais que o Brasil tomou desde o iní-
cio de seu processo histórico (colonização), está na prerrogativa de lutar com as
armas que temos. Mediante esse contexto, e na tentativa de ampliar os conheci-
mentos dos estudantes, lançamos a ideia de trabalharmos a interdisciplinaridade
a partir de duas áreas do conhecimento, a História e a Música, como uma forma
de descolonizar o processo de ensino e aprendizagem estabelecendo as ligações
históricas da arte e da música com os aspectos culturais, étnicos, religiosos da
História da África, dos africanos e dos afro-brasileiros a partir da integração
dessas duas áreas do saber.

HISTÓRIA E MÚSICA: A INTERDISCIPLINARIDADE COMO PONTO ALTO


NO ENSINO DECOLONIAL

A promoção da descolonização do ensino acerca das africanidades, requer atenção espe-


cial frente aos desafios de conscientizar a sociedade brasileira sobre a construção
de discursos baseados no suposto exotismo dos povos “selvagens, primitivos e
inferiores” que habitavam a África, privilegiando o colonialismo e as teorias
racistas como um projeto eficaz de uma mentalidade escravagista (NASCIMEN-
TO, 2016, p.197).
A proposta que ora apresentamos segue o viés de sistematização de conteúdos relativos
às africanidades tendo como foco a interdisciplinarização entre duas áreas do co-
nhecimento: a História e a Música/arte, estabelecendo a integração dessas áreas
do saber a partir do conhecimento epistemológico baseados nas continuidades e
rupturas que envolvem o processo histórico e a simultaneidade dos eventos que
os constituem. Essa iniciativa visa agregar os conteúdos relativos às africanida-
des que se complementam e se integram objetivando desenvolver o ensino e a
aprendizagem de forma integral.
A música é a forma artística e cultural encontrada pela sociedade como um meio de ex-
pressão dos sentimentos, a qual agrega inúmeras linguagens, como: a sentida, a
falada, a ouvida e a dançada. Essa forma artística, traz consigo a revelação de
diversas formas de interpretar e ler o mundo e expressar os conhecimentos cultu-
rais de um povo. Parafraseando: “a música é o verbo rubro da palavra cantada”.
Os ritmos da musicalidade e da dança brasileira, se constituíram a partir das inúmeras
contribuições indígenas e africanas para a formação cultural do Brasil. A exem-
plo desse feito, citamos o Samba que se consolidou como um dos ritmos simbó-
licos nacionais da sociedade brasileira, para além de outros ritmos mais reginais
que também se materializaram em nossa cultura, como o Baião, o Maracatu e o
Coco (SANTOS, 2012, p.45).
A musicalidade africana bantu, é uma das expressões presentes nos ritmos, nos instru-
mentos e nas danças tradicionais que foram aderidas na cultura, sobretudo, do
sudeste brasileiro. A música se configura como um símbolo cultural efetivo do
processo histórico de um povo, que integra os homens com os seus pares e com
a natureza e surge como um elemento forte na afirmação da identidade afro-bra-
sileira. A interdisciplinaridade entre a História e a Música, possibilita ao docente

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apresentar aos alunos as formas de resistências criadas pelos negros frente ao
processo de escravização que buscava desumanizá-los.
A interdisciplinarização desenvolvida nas aulas tendem a oportunizar aos estudantes o co-
nhecimento das raízes elementares dos africanos associada à cultura musical do
Brasil que consolidou o gosto e a afetividade dos brasileiros por ritmos distintos
como: o rock, o samba, o baião, o xote, o xaxado, o maracatu, o blues, o jazz, o
funk, o reggae, o hip-hop e tantos outros estilos musicais africanos e afro-bra-
sileiros que compõem essa riqueza cultural tão diversa que integra os africanos
e os afro-brasileiros em nossa sociedade tão múltipla e repleta de africanidades.
Nesse sentido, a música tem função primordial para o desenvolvimento do en-
sino decolonial, haja vista que transcende o conhecimento africano de modo a
dissemina-lo, favorecendo a valorização de sua cultura e de seus saberes mais
profundos e enraizados mesmo diante de tantos golpes e silenciamentos sofridos
com o mundo colonial que os expôs a barbárie.
A música se configura como uma forte aliada no ensino de História, pois conforme afirma
Santos (2012, p. 37):

A presença de populações africanas no Brasil, decorrente dos processos de es-


cravização iniciados por reinos europeus como Espanha e Portugal, gerou fe-
nômenos sociais sem os quais seria inimaginável a representação de um Brasil
culturalmente rico como o que conhecemos hoje. Entre estes fenômenos figura a
música, e as festas às quais está ligada, como grande marcador daquilo que hoje
é levado em conta como expressão de domínio nacional.

As práticas africanas se consolidaram por todo o país, assim não há como negar que
houve a assimilação dos costumes europeus por parte dos afro-brasileiros, assim
como os demais povos que habitavam o Brasil foram aculturados.
É importante compreender neste contexto que os instrumentos musicais agem como meios
de comunicação coletivo. Fatores que os assemelham aos seres humanos, por se
expressarem através da fala e por transmitirem suas mensagens mais íntimas ou
as mais sórdidas. As línguas africanas, em sua maioria são tonais, assim como
os tambores produzem sua “fala” de diversas etnias, retomando a melodia do
idioma. Deste modo, expressam frases inteiras, articulando e anunciando fatos
de interesses locais (PINTO, 2001, p. 223).
A sonoridade das palavras faladas muito se assemelha à dos instrumentos em alguns ca-
sos. Assim, é providencial aproximar o ensino de história da música para melhor
compreender a participação dos africanos no processo de construção da história
do Brasil e desmistificar o silenciamento intencional desse povo como parte re-
levante da cultura brasileira.
A identificação dos brasileiros com os africanos não é casual, mas parte integrante da
história e das memórias deste país. A expressões musicais que se fazem presente
em festas brasileiras, também são herdeiras da cultura africana. A esse exemplo
citamos a Congada, a qual traz a representatividade da santa protetora, que é
uma herança africana e a presença de dois reis congos, que são coroados em mo-

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mentos centrais do festejo, bem como a nomenclatura de instrumentos musicais
utilizados na festa, como as gungas (assim como as congas4, atabaques5, alfaias6)
que aludem ao contexto escravagista do Brasil, usadas mesmo na atualidade.

Figura 1: 41 anos de Festival do Congado em Conselheiro Lafaiete, Junho/2012


Fonte: https://conselheirolafaiete.mg.gov.br/v2/conselheiro-lafaiete-
celebra-41-anos-de-festival-congado/.

No samba, o uso do instrumento denominado de macumba é essencial, assim como nas


congadas e nos maracatus. O reco-reco7 também é um instrumento africano uti-
lizado na musicalidade brasileira. As festas do boi, ou brincadeira do boi, ou
bumba meu boi, também expressa a sonoridade de uma chifrada de bumba. Esse
evento é marcado pela promessa realizada a algum Santo, normalmente à São
Pedro, São João ou Santo Antônio, retratando um ciclo de promessa e milagre
que pode ser longo, tanto quanto a cura. Muitas músicas cristãs, também foram
criadas a partir da ressignificação da cultura afro-brasileira. Pois, as suas melo-
dias, bem como seus ritmos são oriundos prioritariamente da música afro, assim
podemos mencionar também que no contexto histórico os Santos Católicos po-
dem ser associados aos Orixás do Candomblé como uma prática desenvolvida
no Brasil, a esse exemplo citamos São Jorge.
O Brasil é rico em culturas, constituído pela miscigenação decorrente da construção po-
lítica nacional, marcada pelo deslocamento da ideologia religiosa (inicial) para
a mundana e política constituída no Brasil colonial e nos anos seguintes. Deste
modo, o ensino interdisciplinar entre a Música e a História )ou vice-versa) favo-
rece a aprendizagem dos alunos por mediar o mesmo objeto de pesquisa entre
duas ou mais disciplinas possibilitando a eles a reflexão de diversos ângulos do
conhecimento, favorecendo que compreendam e pensem o conteúdo abordado
a partir de vieses diferenciados, suscitando o senso crítico e questionador dos
alunos que buscam compreender como esse objeto de conhecimento está posto
em cada uma das disciplinas estudadas e articuladas entre si.

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Nesse sentido, é fundamental compreender que a música carrega consigo abordagens e
sonoridades que acionam as lembranças e os sentimentos humanos, deixando
seu aprendizado mais leve e menos denso para os discentes. Assim, ao associa-la
com a história os alunos buscam sentido nas letras das músicas fazendo a relação
entre a história e a música/arte. A música, ainda é concebida por grande parte da
sociedade apenas como uma descontração, assim retira o peso da obrigatorieda-
de imposta aos alunos pelas aulas tradicionais em que somente o professor mi-
nistra o conteúdo de abordagem, essas aprendizagens mais lúdicas, promovidas
pelas artes, são expressivas no meio educacional.
Deste modo, a intersecção entre as disciplinas tende a favorecer tanto o ensino e a aprendiza-
gem quanto o desenvolvimento da maturidade intelectual dos discentes que buscam
a todo tempo associar o conhecimento a partir de duas áreas distintas do saber, mas
que se integram pelas pontes construídas e difundidas pelos docentes que promo-
vem essa interdisciplinaridade e a transversalidade dos conteúdos de abordagem.
O termo transversalizar está descrito neste contexto, no sentido de preparar a apresen-
tação e a ministração dos conteúdos, neste caso: africanidades, com contornos
didáticos em que se busca partir de um contexto real abordado em letras de
músicas que demonstrem e abordem acontecimentos históricos que remetem à
cultura africana e afro-brasileira em seu decurso processual e temporal. Trata-se
de um modo de articular os saberes por meio de áreas de saberes distintos que
dão forma ao conhecimento do discente de maneira mais ampla e inteligível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atuação dos docentes tem importância basilar e é urgente que seja munida por concep-
ções que explorem a pluralidade e o hibridismo cultural dos/as alunos/as e do
Brasil. A valorização da diversidade, bem como reconhecer as diferenças, é de
fundamental relevância no espaço escolar. Uma via de acesso para essa ação,
pode ser através da transversalização dos conteúdos. Haja vista que, transversa-
lizar indica [...] “a superação da disciplinarização. Na lógica associada à peda-
gogia de projetos, a mobilização de temáticas e/ou conteúdos como ética, saúde,
sexualidade e meio ambiente perpassaria diferentes disciplinas” (DEZEMONE,
2015, p. 93).
A interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, são quesitos formais dos currículos na-
cionais, expressos nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamen-
tal e Médio. Tais conceitos são melhores aclarados nos documentos destinados
ao Ensino Fundamental, onde evidencia-se que a disciplina de História se man-
tém como específica e a partir desta área do conhecimento os conteúdos e pro-
cedimentos foram elaborados e compartilhados com outras disciplinas, assim
como abrem possibilidades para novas abordagens a partir de outros assuntos
por meio da transdisciplinaridade.
Desta forma, deve-se dar a atenção devida à promoção dos programas de formação conti-
nuada promovidos pelas universidades. Entretanto, há que se compreender duas
questões centrais: primeiro, que eles não vão atuar sobre uma massa inerte, visto

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que os alunos são seres capazes de criar, perceber e articular ideias e posicio-
namentos no meio escolar. Pois, a escola, trata-se de um espaço privilegiado
para construção da cultura de consciência negra e dos próprios sentidos que essa
abordagem que trazem consigo.
A segunda questão, refere-se à escola ser o reflexo das múltiplas possibilidades que a
sociedade local apresenta. Nesse sentido, valorizar as particularidades e buscar
combater os sentimentos pejorativos que assolam grande parte dos alunos é uma
das condições mais adversas e que dificultam o trabalho dos docentes quando não
conseguem identificar e trabalhar coletivamente essas frustrações causadas pe-
las desigualdades sociais e pelos preconceitos vivenciados cotidianamente pelos
discentes conforme assinala Gonçalves (1999), sobretudo, de escolas públicas.
É notório que o ensino da História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena tenham
alcançado lugar de destaque no cenário educacional na atualidade. E que essa
notoriedade seja decorrente da publicação das leis 10.639/03 e 11.645/08, que
versam sobre a obrigatoriedade do ensino desta temática tanto no Ensino Básico
quanto no Superior. Nesta senda, as pesquisas científicas e as discussões acadê-
micas sobre as diversidades têm se proliferado significativamente.
Contudo, ainda é preocupante a situação que alarma as perspectivas de falta de formação
em níveis acadêmicos para grande parte dos docentes que atuam no Ensino Bási-
co (com poucas exceções). A demanda contemporânea consiste na desconstrução
de estudos tradicionais que privilegiaram as ideologias coloniais e imperialistas
da formação histórica do Brasil, para a promoção do ensino decolonial relativo
às africanidades, faz-se necessário partir de abordagens e reflexões críticas ba-
seadas em conhecimentos científicos atuais.
Para tanto, carece que os currículos educacionais sejam (re)elaborados dando ênfase a
essa temática não apenas no Ensino Fundamental II, mas em todas as etapas que
contemplam a educação básica. Há ainda, que haver formações universitárias
que sejam de preparação para que os docentes que trabalham no chão das escolas
consigam dominar, questionar de forma científica e com embasamento teórico
essas bases de construções históricas deformadas pelas classes dominantes do
Brasil colonial. Visto que é preciso conhecer e ter argumentos contundentes para
tecer críticas, refletir cientificamente sobre os processos e seus desdobramentos
no meio político, social e para além deles. Ter clareza da importância dos Mo-
vimentos Sociais de Frente Negras, do Teatro Experimental do Negro e Movi-
mento Negro Educador que se fortaleceram pós Constituição Federal de 1988, e
refletir sobre as ações conduzidas por esses grupos em defesa da valorização dos
africanos e de suas histórias e culturas. Pois, só a partir dessas reflexões e desses
estudos será possível lutar pela descolonização dos currículos educacionais, vi-
sando garantir a execução eficaz das Leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornaram
obrigatório o ensino da história e da cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena
nas Instituições Educacionais de Educação Básica e do Ensino Superior.

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HISTORY AND MUSIC: DECOLONIZING THE TEACHING OF AFRICANITIES
FROM THE LAWS 10.639/03 AND 11.645/08

Abstract: This article aims to discuss the laws 10.639/03 and 11.645/08 as part of affirmative poli-
cies and combat prejudice established since the colonial period. We bring to light the
possibilities of the interdisciplinary proposal of African and Afro-Brazilian themes and
their unfolding from the teaching of history in interface with music/art. Such determina-
tions are fundamental for the promotion of decolonial teaching in Brazil, enabling the
dynamization of studies and reflections in the most varied spaces, in order to think the
prejudices, the romanticized and folkloric images of the Brazilian “miscegenation” as a
myth, the structural and institutional racisms that remain present in public spaces such
as schools, universities, churches and beyond. Since the Brazilian historical construc-
tion itself has allowed and influenced the demonization of religions of African origin,
the standardization of the enslavement of Africans, the violence and suffering during the
colonization of Brazil and the post-abolition segregation in the country.

Keywords: Decolonial. Africanities. Interdisciplinarity. History. Music.

Notas

1 O golpe contra o governo da presidenta Dilma Rousseff, iniciado nos idos de 2015 e con-
solidado em 2016, atingiu também a educação no Brasil, para além dos aspectos econô-
micos, políticos e sociais. Visto que suas últimas nomeações de conselheiros membros do
Conselho Nacional de Educação (CNE), assim como suas derradeiras decisões e medidas
destinadas à educação e à legislação educacional foram revogadas e/ou silenciadas por
Michel Temer (a princípio presidente interino e a posteriori assumiu o cargo definitiva-
mente), o qual aliado aos políticos de direita tinham prerrogativas neoliberais para serem
colocadas em curso em situação de certa urgência. Assim, as atuais estratégias reformistas
neoliberais que levaram à instituição da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do
autoproclamado “Novo” Ensino Médio, já estavam presentes no bojo do chamado Golpe
de 2016 (DUARTE, 2020; SOUSA, NORONHA, 2023).
2 “A branquitude se expressa em uma repetição ao longo da história, de lugares de privilégio
assegurados para as pessoas brancas, mantidos e transmitidos para as novas gerações”
(BENTO, 2022).
3 Como diria o sociólogo Darci Ribeiro o descaso com a Educação no Brasil, faz parte do
Projeto de Governo da Direita, não se trata de um mero acidente. Assim como o Golpe
de 2015, consolidado em 2016, que retirou do poder a presidenta Dilma Rousseff, o qual
fez parte de um Projeto arquitetado e praticado por políticos neoliberais de direita que
mantinham interesse em efetivar a entrada do Capitalismo na Educação. Deste modo, o
descaso com as bibliotecas de Escolas e Universidades Públicas também faz parte desse
Projeto maior de neutralizar a Educação no país, visando formar trabalhadores capazes
de venderem suas forças de trabalho, com reduzida qualidade intelectual para reivindicar
seus direitos contumazes e legais.

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4 Congas- Tambor alto, de forma ovalada e som grave, feito de madeira ou de fibra de vidro.
Dicionário Priberam.
5 Atabaques - são tambores estreitos e altos, afunilados usando apenas um couro.
6 Alfaias - Instrumento musical da família dos membranofones.
7 Reco-reco é um instrumento de origem africana, é construído quase sempre de madeira e
tocado por uma vareta.

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