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O USO DE FILMES NO ENSINO DE GEOGRAFIA: UMA DISCUSSÃO SOBRE

A REPRESENTAÇÃO DE ÁFRICA1

Autor: Flávio Guimarães Diniz/UERJ


flaviaogeo@ig.com.br)
Co-Autor: Thyago Faria de Araújo/UERJ
tfaffp@hotmail.com)

INTRODUÇÃO
Em janeiro de 2003, foi promulgada a Lei 10.639 que torna obrigatório em todo
o currículo escolar, o ensino da História da África e dos Africanos e da História da
Cultura Afro-Brasileira nas instituições públicas e privadas no nível básico de ensino.
Contudo, essa Lei não surge espontaneamente em nosso país. Na verdade, ela é uma
resultante dos diversos embates políticos travados pelo Movimento Negro Brasileiro
desde a década de 1930.
Neste artigo, abordamos o tema de África que aparece como um dos pontos de
conteúdo apontados pela Lei, além de fazer parte do currículo da disciplina de
Geografia.
O objetivo deste trabalho é apresentar um catálogo de filmes e documentários
que abordam preferencialmente assuntos referentes ao continente africano. Este
catálogo está sendo desenvolvido como parte do projeto de pesquisa “A Lei 10.639 e o
Ensino de Geografia”, que busca analisar desdobramentos da Lei no ensino desta
disciplina. Apresentaremos a metodologia de análise das películas que compõem o
catálogo e que estão diretamente ligadas a um “temário” construído pelos membros do
grupo de pesquisa, que tem no “Ensino de África” um de seus componentes.
Pretendemos neste artigo discutir como o ensino é um instrumento de construção
de uma imagem negativa atribuída ao continente africano que é visto como “lócus” da

1
Trabalho desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa “A Lei 10.639 e o Ensino de Geografia” pelo
Professor Dr. Renato Emerson dos Santos, no Departamento de Geografia da Faculdade de Formação de
Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
miséria, fome, dos conflitos entre etnias, das doenças etc., representação essa, que é
amplamente difundida pelos meios de comunicação de massa e que acaba sendo
naturalizada pelo senso comum. Além disso, esse estereótipo é transmitido no ensino
escolar que é fundamentado numa matriz “eurocêntrica” vista como legítima e
universal, mostrando a África como um continente subalternizado, influenciando de
maneira decisiva na representação dos negros em nossa sociedade.

O que diz a Lei 10.639/03?


No dia 9 de janeiro do ano de 2003, foi sancionada a Lei 10.639, fruto de lutas
históricas do Movimento Negro Brasileiro, que obriga as instituições públicas e
privadas do ensino básico (níveis fundamental e médio) a inserir no currículo escolar,
conteúdos referentes à História da África e dos Africanos e da História e da Cultura
Afro-Brasileira. O texto da referida Lei expõe o seguinte:

“Art. 1º A lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida


dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil. (grifo nosso)
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileira. (grifo nosso)
(...)
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia
Nacional da Consciência Negra’."
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque

A Lei 10.639/03 surge para atender uma parcela significativa da população


brasileira, no caso, a população negra, que sempre foi vista como “coadjuvante” na
história do nosso país, não exaltando a sua contribuição nas áreas social, política e
econômica do Brasil. Contudo, a Lei é vista sob diferentes ângulos, ou seja, é alvo de
diversas interpretações quanto a sua aplicação, como nos aponta Santos (2007):

“Para alguns (já que existe a Lei e ela precisa ser cumprida!)
bastaria acrescentar conteúdos de História da África; e buscar
elementos da Cultura Negra, tidos como representativos do
negro, e capazes de atender às exigências da Lei. Em oposição a
essa visão que poderia ser considerada conservadora ocorre a
denúncia sistemática do euroetnocentrismo e do racismo em
interpretações da História da África, e na manipulação de
estereótipos e folclorização do negro brasileiro”. (SANTOS,
2007, p.2)

A visão conservadora de aplicação da Lei propõe a simples inserção de


conteúdos como se apenas isso contemplasse as demandas dessa política de ação
afirmativa. Mais do que acrescentar conteúdos, entendemos que é necessário “rever os
conteúdos” que geram representações que influenciam na visão de mundo dos nossos
alunos. Além disso, essa “releitura” dos conteúdos faz com que todos os “sujeitos”
envolvidos no processo de ensino-aprendizagem repensem os procedimentos de ensino,
as relações étnico-raciais na escola e os objetivos da educação oferecida nas instituições
de ensino.
A Lei, como já foi dito anteriormente, foi engendrada graças aos embates
políticos travados pelo Movimento Negro Brasileiro desde a década de 1930, que
sempre pautou em suas demandas a necessidade de se retirar os empecilhos que
dificultavam a reprodução social dos afro-descendentes em nosso país, assim como a
importância de valorizarmos todo o legado deixado pelos africanos em nossa sociedade.
Vejamos agora algumas ações históricas do Movimento Negro Brasileiro que
contribuíram para a promulgação da Lei nos dias de hoje.

Uma breve contextualização das ações históricas do Movimento Negro Brasileiro

As demandas apontadas pela Lei 10.639/03, já aparecia nas agendas das


organizações do Movimento Negro Brasileiro, já na década de 1930.
A Frente Negra Brasileira, fundada no ano de 1931 no estado de São Paulo, foi a
primeira das associações negras de “novo tipo” 2 que surgiram no Brasil entre os anos

2
Segundo L.C. Pinto (1953) essas associações surgem em nosso país, a partir das transformações sociais
engendradas na década de 1930, que geraram transformações profundas na estrutura política do Brasil.
de 1931 e 1958. Esta associação teve como fundador Arlindo Veiga dos Santos.
Segundo Gomes (2007) a Frente Negra Brasileira estava difundida em diversos núcleos
pelo país:

“Os núcleos da Frente Negra existiram no estado do Rio de


Janeiro, em Minas Gerais, na Bahia, Rio Grande do Sul,
Pernambuco e interior paulista. Tinha como objetivos: Irradiar
por todo o Brasil, a partir de São Paulo, a união política e social
da gente negra nacional, para afirmação dos direitos históricos
da mesma, em virtude de sua atividade material e moral no
passado e para reivindicação de seus direitos sociais e políticos
na comunhão brasileira. Elevação moral, intelectual, artística,
técnica, profissional e física; assistência, proteção e defesa
social, jurídica, econômica e de trabalho da ‘gente negra’.
Difundiam as suas idéias através de cabos distritais que
viajavam pelo país arregimentando adeptos e fundando
núcleos.”. (GOMES, 2007, p. 7)

Podemos observar que apesar de ter sido criada em São Paulo, as idéias desta
associação extrapolaram as fronteiras do estado difundindo pelo Brasil as idéias do
movimento. A pauta da necessidade de se valorizar as contribuições do negro em
diversas áreas de nossa sociedade aparece de maneira clara nesta organização.
Na década de 1940, mais precisamente no ano de 1944, surge na cidade do Rio
de Janeiro o Teatro Experimental do Negro, fundado pelo intelectual negro Abdias do
Nascimento, que fora no passado um dos integrantes da Frente Negra Brasileira. Em seu
artigo “Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões”, Nascimento (2004) expõe
os propósitos da organização fundada por ele:

“... O Teatro Experimental do Negro, ou TEN, que se propunha


a resgatar, no Brasil, os valores da pessoa humana e da cultura
negro-africana, degradados e negados por uma sociedade
dominante que, desde os tempos da colônia, portava a bagagem
mental de sua formação metropolitana européia, imbuída de
conceitos pseudocientíficos sobre a inferioridade da raça negra.
Propunha-se o TEN a trabalhar pela valorização social do negro
no Brasil, através da educação, da cultura e da arte.”
(NASCIMENTO, 2004: 210).

Para o autor essas associações eram dirigidas por uma “elite negra” formada por negros instruídos e
inseridos no mundo do trabalho assalariado. (GOMES, 2007:5)
Além dos objetivos expostos acima, o TEN procurava formar atores negros em
nosso país, principalmente devido ao “blackface”2 questionado pelo movimento, que
fornecia representações tendenciosas dos personagens negros.
O TEN expõe claramente em sua agenda a valorização das reminiscências
africanas e de todo o seu legado na formação do nosso país.
No ano de 1950, o TEN organiza no Rio de Janeiro o Primeiro Congresso
Nacional do Negro Brasileiro, que tinha entre as pautas: regulamentação e organização
das domésticas, campanhas em prol da alfabetização. (Gomes, 2007).
Alguns autores ressaltam, de forma significativa, as práticas educativas do
Movimento Negro, que a revelia da história da educação oficial, elabora propostas e
processos pedagógicos que influenciam sua prática organizativa e militante,
possibilitando a afirmação da identidade negra, a formação para a cidadania no combate
ao racismo e a luta pelo direito de igualdade e de oportunidades (Passos, 2005),
destacando-se a escolarização de crianças jovens e adultos como prática educativa
central.

“O Teatro Experimental do Negro (...) seu projeto político


pedagógico articulava a educação como estratégia para a
visibilidade e inserção de negros e negras, e o teatro como
instrumento. Organizou cursos noturnos de alfabetização de
adultos com conhecimentos gerais sobre história, geografia,
matemática, literatura e noções de teatro, entre outros, para
trabalhadores, operários, desempregados e empregadas
domésticas.” (PASSOS, 2005: 164)

Esta breve reconstituição das principais organizações do Movimento Negro


Brasileiro e suas pautas nos mostra que a Lei carrega consigo a essência das lutas do
Movimento que sempre lutou por uma transformação em nossa sociedade.
É importante ressaltarmos aqui que a Lei 10.639 é um dos instrumentos de luta
do Movimento Negro Brasileiro numa importante esfera, no caso, a educação. Com
isso, podemos inferir que o principal objetivo da Lei é “reposicionar o negro e as
relações raciais no mundo da educação”.
Apresentaremos agora, o projeto que estuda os impactos desta política de ação
afirmativa na disciplina de Geografia.

2
Em seu texto “O cinema em negro e branco” Carvalho (2006) explica que o “blackface” consistia na
utilização de atores de cútis branca pintados de preto para representar personagens de cor preta nas obras
cinematográficas brasileiras. De acordo com o autor, essa prática preconceituosa expõe a representação
dos negros de acordo com os valores e visão de mundo dos brancos, inspirada numa matriz eurocêntrica.
Projeto “A Lei 10.639 e o Ensino de Geografia”

O projeto de pesquisa “A Lei 10.639 e o Ensino de Geografia” foi criado no ano


de 2008 tendo como objetivo principal “analisar os desdobramentos da lei no ensino da
disciplina”. No projeto, procuramos mostrar como a Geografia pode contribuir para a
aplicação da Lei no ensino, contemplando assim as demandas exigidas pela mesma.
Este projeto está estruturado em quatro vertentes, são elas:

a) A revisão e a inserção de conteúdos que compõe o currículo de Geografia;


b) A revisão de práticas, metodologias e posturas pedagógicas;
c) A gestão das relações raciais no cotidiano escolar;
d) Relações de poder na construção do currículo praticado na escola.

Anteriormente discorremos aqui sobre postura conservadora de aplicação da Lei


que compreende que a simples inserção de conteúdos referentes à História da África e
da Cultura Afro-Brasileira, supriria as suas demandas. Entretanto, defendemos uma
postura mais complexa que esta, entendendo que, mais do que “inserir conteúdos é
preciso revê-los”. Pensando nisso, criamos um “temário” que abarca um rol de assuntos
que estão intimamente ligados aos conteúdos apontados pela Lei. Este temário, que
compreende uma das atividades da pesquisa, nos orienta na discussão de bibliografias,
na busca por materiais alternativos e promove discussões em cima dos conteúdos do
currículo escolar. O temário é composto pelos seguintes itens:

I) O debate raça e modernidade;


II) O ensino sobre África;
III) As comunidades remanescentes de quilombos;
IV) A segregação sócio-espacial nos meios urbanos;
V) Espacialização de dados sobre desigualdades raciais;
VI) As experiências de espaço de diferentes indivíduos e grupos;
VII) Toponímia/Marcas históricas da presença negra;
VIII) Marcas na paisagem/estética, arte e tecnologia africana e afro-brasileira;
IX) Política de branqueamento da população e branqueamento do território
Na segunda vertente do projeto “revisão de práticas, metodologias e posturas
pedagógicas”, tecemos discussões sobre os materiais didáticos utilizados na escola, no
caso os livros didáticos, e propomos métodos alternativos de tratamento dos conteúdos
que fazem parte do currículo de Geografia. Esta vertente do projeto está sendo
trabalhada em duas frentes, são elas: análise de livros didáticos de Geografia e a
construção de um rol de filmes e documentários que abordam temas relativos à questão
étnico-racial.
A terceira vertente do projeto “A gestão das relações raciais no cotidiano
escolar” analisa a reação da escola e dos sujeitos que a vivenciam, sobre as situações de
preconceito racial que acontecem no dia-a-dia, ou seja, como uma escola trabalha a
questão da diferença com os seus alunos? O silenciamento ou o tratamento inadequado
em relação ao assunto podem acirrar ainda mais a prática do racismo.
A última vertente que compõem o projeto “Relações de poder na construção do
currículo praticado na escola” analisa as disputas que envolvem diferentes atores
(professores, direção, coordenação pedagógica etc.) no cotidiano escolar sobre a
construção do currículo e das prioridades da escola que acabam incidindo na aplicação
da Lei 10.639.
A partir do entendimento dessa estruturação geral do projeto, com a discussão
sobre os componentes das vertentes, do temário e de bibliografias afins, algumas
atividades são elaboradas para a sistematização e tratamento das informações.

Atividades desenvolvidas pelo grupo de pesquisa

O grupo de pesquisa realiza diversas atividades que contribuem para a realização


dos objetivos específicos do projeto, contemplando assim as demandas de cada uma de
suas quatro vertentes.
Buscando analisar os desdobramentos da Lei na escola, tendo como foco o
ensino de Geografia, acompanhamos a prática docente de cinco professores que
lecionam a disciplina em escolas públicas das redes estadual e municipal no estado do
Rio de Janeiro (Duque de Caxias, Itaboraí, Niterói, Rio de Janeiro, São Pedro da Aldeia
e Tanguá) e tecemos discussões com pesquisadores dos temas afins, através de reuniões
que acontecem um sábado ao mês na Faculdade de Formação de Professore da UERJ
situada no município de São Gonçalo-RJ.
Nestas reuniões mensais, os professores fazem relatos de sua prática em sala de
aula, dissertando sobre os conteúdos trabalhados com suas turmas e como eles procuram
desconstruir a visão eurocêntrica enraizada em nosso ensino. Além disso, os docentes
relatam as disputas de poder e algumas situações de preconceito que ocorrem no
cotidiano da escola. Essas reuniões são muito importantes em nosso processo
investigativo, pois neste momento em especial, as quatro vertentes do projeto são
contempladas.
Nesse sentido, este trabalho reflete o esforço de por em prática todas essas
considerações, discussões e informações obtidas ao longo do projeto, articulando, dando
dinamismo as suas estruturas. Em outras palavras trata-se da articulação das duas
primeiras vertentes ao segundo ponto do temário, ou seja, buscamos através da
problematização do ensino de África sugerir a inserção de conteúdos não representados
no currículo de geografia e a revisão de conteúdos que difundem uma visão de mundo
hegemônica, que se pretende universal; da mesma maneira que propomos uma forma de
rever práticas, metodologias e posturas pedagógicas através do uso de filmes no ensino
de geografia, dando um enfoque especial ao conteúdo de África.
Iremos, desta forma, discorrer um pouco mais - de forma separada, mas
entendida em sua articulação dialética que revaloriza o processo ensino-aprendizagem -
sobre a revisão/desconstrução do ensino de África subsidiada por obras
cinematográficas que retratam elementos referentes a esta temática.

A importância do ensino de África

Discutir os impactos da lei 10.639 no ensino de geografia nos remete a uma


análise de como o negro e “seus espaços” vem sendo tratados no mundo da educação e
como isso é reflexo de uma série de estratégias de hierarquização/inferiorização que
marcam (grafam) a colonialidade em nosso mundo, expressa, muita das vezes, por
práticas racistas.
Segundo Grosfoguel (ANO???), a idéia de raça e o racismo constituem o
princípio organizador que estrutura todas as múltiplas hierarquias do Sistema-Mundo
em superior e inferior. Se adotar-mos aqui a concepção que o currículo é uma questão
de saber, identidade e poder e visto que essas múltiplas hierarquias também são
permeadas por relações de saber, identidade e poder, então a discussão da questão racial
no currículo escolar torna-se central para uma educação mais igualitária, mais plural,
uma educação anti-racista. Trata-se, em suma, de uma discussão que revela mais que
obscurece ou silencia.
Nesta perspectiva ciência e conhecimento são representantes do poder, são
campos de luta em torno da verdade e, diante da materialização dessas relações de poder
no currículo escolar, a pergunta a ser feita é: para quem isso é verdade?
Por um lado as teorias críticas, como fala Silva (2001), nos ensinaram que o
currículo é resultado de um processo histórico, é uma construção social, é um espaço de
poder que transmite a ideologia dominante, um território político que tem um papel
decisivo na reprodução da estrutura de classes da sociedade capitalista, onde as
diferentes classes aprendem quais são seus respectivos papeis nas relações sociais e é
nesse sentido que alguns conhecimentos são representados/legitimados no currículo e
outros são silenciados. Já as teorias pós-críticas nos colocam que as relações de poder
estão espalhadas por toda rede social, o conhecimento não é exterior ao poder, mas parte
inerente dele (hierarquia epistêmica), sendo visto a partir da sua significação. Nesta
visão o currículo é lugar, espaço e território; é trajetória, viagem, percurso; é texto,
discurso e documento, é identidade.
Nesse sentido as diferentes hierarquias de inferiorização que nos coloca
Grosfoguel (povos sem escrita, povos sem história, povos sem civilização, povos sem
desenvolvimento e povos sem democracia) legitimam a criação de constructos sócio-
espaciais, ou melhor, de identidades geoculturais, como bem aponta Quijano (2007) - a
imagem do negro é remetida à África, do amarelo à Ásia, do índio à América e do
branco à Europa - onde os povos localizados no pólo dominado são descritos como
preguiçosos, inferiores, brutos, animalescos, sem história, incapazes de se auto-
reapresentar, etc., enquanto que os povos brancos (europeus, euro americanos, euro
africanos, euro australianos, euro asiáticos) são vistos como superiores, inventivos,
engenhosos, etc. Portanto, como nos coloca Santos (2007) o que se ensina sobre África
tem um papel crucial na construção de subjetividades, de visões de mundo de
representações sobre os negros, onde a palavra afrodescendentes se refere, ao mesmo
tempo, à um ente social e espacial, à descendência de africanos mas também de África.
Assim temos de problematizar com as seguintes perguntas: Como a África é
retratada nos telejornais, nas reportagens de jornais, revistas, Internet etc., ou seja, pelos
meios de comunicação de massa? Como a África é representada, que visões de África e
de africanos são contempladas pelo ensino de Geografia?
Em primeiro lugar, e isso nos remete à questão prática deste trabalho que é o uso
de filmes, há uma imagem de África que povoa o imaginário da maioria das pessoas que
acompanham as notícias transmitidas pelos meios de comunicação de massa, que são
controladas por um pequeno grupo de empresas que detêm quase 80% do domínio dos
mesmos3, espalhando o discurso da classe dominante.
Por outro lado, a representação da África mostrada não domina apenas os
veículos de comunicação, mas também o ensino escolar que deveria mostrar aos sujeitos
a “realidade” em nossa sociedade. Contudo, não podemos nos esquecer que o nosso
ensino está enraizado numa matriz eurocêntrica de conhecimento que apresenta apenas
uma “visão de mundo” tida como legítima, desqualificando as demais.
Em ambas as esferas de (re)produção social – mídia e escola – imperam imagens
e constructos homogeneizantes e inferiorizadores de África. Waldman (2007) nos
coloca a seguinte questão
“Compreender a África é sumamente um exercício crítico.
Uma de suas metas aponta para o desvendamento de
realidades encobertas por mitos, ficções e imagens
fantasiosas. Indiscutivelmente, ainda que existam visões
estereotipadas cultivadas por outros povos e regiões, a
África, mais do que qualquer outro continente, terminou
encoberta por um véu de preconceitos que ainda hoje
marcam a percepção de sua realidade” (SERRANO e
WALDMAN, 2004: 21)

Nesse sentido há a construção de todo um imaginário para África e para seus


habitantes atribuindo uma enorme carga pejorativa ao continente, não abarcando-se a
diversidade territorial de um Continente que foi a matriz de todas as populações no
mundo. Desta forma a África é vista enquanto lócus da não civilidade, do não
desenvolvimento, da fome, da miséria, dos conflitos entre etnias rivais, doenças como
AIDS, da desnutrição, do imobilismo, do não histórico, do exótico, do selvagem. Tais
formulações irão cristalizar, consequentemente, a imagem atribuída aos africanos: seus
saberes, técnicas e culturas são vistas como manifestações folclóricas e populares; suas
relações sociais são vistas como tradicionais e não complexas; são vistos como o outro,
o estanho, o negro, o demoníaco, o feiticeiro, o antropófago, o escravo, o primitivo, o
selvagem, o inferior, o tribal. Vê-se que não faltam adjetivos que na verdade expressam
muita criatividade para legitimar a dominação desses povos e a apropriação do seu

3
Ver filme “Encontro com Milton Santos” ou “O Mundo Global Visto do Lado de Cá”.
território (material e simbólico). Tais formulações permeiam o imaginário social e
contribuem de forma significativa para a criação de estereótipos, estigmas e
preconceitos para com a população negra, os quais são grafados no espaço através da
segregação do tecido sócio-espacial e do que Sansone (1996) chama de áreas moles e
áreas duras, ou seja, contextos onde as relações raciais são mais flexíveis e outros onde
são mais duras que acabam por configurar experiências de espaço onde o negro é bem
aceito e outros em que sua presença incomoda, causa repulsa.
Essas concepções, no entanto, escamoteiam toda uma complexidade e
diversidade do espaço africano, uma extensão territorial de 30.335.000 km2, com
793.923.000 de pessoas e 53 países; uma variedade climática e topográfica (savanas,
desertos, semi-desertos - Sahel- , floresta equatorial, região montanhosa e planície); a
existência e interação de mais de 2000 povos com diferentes modos de organização
socioeconômica e de expressão tecnológica; a área de mais longa ocupação humana de
que se tem conhecimento (2 a 3 milhões de anos até o presente) e consequentemente,
uma maior complexidade de fluxos e refluxos migratórios (árabes, europeus, asiáticos,
etc.); as trocas comerciais, o pagamento de tributos, os movimentos de reciprocidade, os
graus variados de autonomia; berço da humanidade em todas as suas configurações
tanto antiga (homo habilis, homo erectus, homo neanderthalensis) como moderna
(homo sapiens sapiens); parte do globo onde nasce o gênero história - esforço de
registrar a passagem dos homens ao longo do tempo (OLIVA, 2004:40); parte do globo
onde emergiu, de forma concomitante, o gênero geografia (esforço de registrar as
marcas, as grafias, as técnicas produzidas na superfície terrestre pelas 1ª Sociedades
Humanas ao longo do tempo); berço das 1ª civilizações agro-sedentárias e agro-
burocráticas do mundo; lugar de onde partiu o povoamento do planeta, a partir de 100 a
80 mil anos.
Nesta perspectiva valorizar uma geografia da África se faz necessário para a
compreensão mais ampla e densa da organização espacial das diferentes sociedades em
constantes transformações ao longo do tempo; entender a participação de diferentes
grupos “africanos” na formação sócio-espacial brasileira; valorizar outras formas de
conhecer, marcar e dar significado ao mundo em que vivemos; entender as marcas na
terra (geo-grafias) e as tensões de territorialidade na Invenção da África, etc.
A partir de toda essa discussão acerca das representações de África, iremos nos
ater agora a duas questões já mencionadas, a apropriação da representação
cinematográfica, mesmo que seja para fazer a crítica, e suas contribuições para o ensino
de África como conteúdo de geografia.

O uso de filmes no ensino

Neste trabalho, entendemos que a aplicação da Lei deve vir acompanhada de


uma “releitura” dos conteúdos que integram o currículo da disciplina de Geografia no
nível básico de ensino que acaba resultando também numa mudança de postura do
docente em sua profissão.
Buscando exercitar a desconstrução dos conteúdos escolares estruturados numa
matriz eurocêntrica, propomos aqui a utilização de obras cinematográficas neste
processo como um material de apoio e/ou alternativo no processo de ensino-
aprendizagem. Embora se deva ressaltar que nem sempre a película escolhida irá
exprimir a crítica a ser feita, mas pode servir como um canal que leve à reflexão da
representação que se deseja debater. E neste processo a intervenção do professor se faz
necessária na promoção do diálogo sobre o que está sendo abordado no filme. Não há
que se ter, de certa forma, receios de direcionar o aluno à reflexão proposta, uma vez
que este, sem nenhum preparo ou acompanhamento pedagógico é “bombardeado”
diariamente com representações sociais e espaciais hegemônicas presentes nos veículos
midiáticos (jornais, novelas, filmes etc.).
Em relação à utilização dos filmes na abordagem dos conteúdos da disciplina de
Geografia, partilhamos da mesma opinião Souza (2006):

“Na sala de aula, como em qualquer espaço educativo, o cinema


é um rico material didático. Agente socializante e socializador,
ele desperta interesses teóricos, questionamentos sociopolíticos,
enriquecimento cultural. E cada vez mais, tem-se intensificado
o número de programas educativos e formativos em que o
cinema é utilizado como um dos aparatos tecnológicos da
educação”. (Souza, 2006, p.9)

O uso de filmes no ensino de geografia pode aguçar a curiosidade do aluno e


tornar um pouco concreto aquilo que é extremamente subjetivo nos conteúdos presentes
nos livros didáticos. Utilizados de maneira correta, estes materiais alternativos podem
nos ajudar no processo de desconstrução de visões de mundo tendenciosas que acabam
sendo naturalizadas pelos educandos.
Neste trabalho, apresentaremos a lista de alguns filmes, em sua maioria do
circuito comercial, que já foram analisados pelo grupo, destacando as películas que
retratam o continente africano. Contudo, é preciso ressaltar que apesar da maioria das
obras tratarem do continente africano, a sua discussão não se limita apenas a este tema,
podendo ser utilizado em outros pontos do temário construído pelos membros do grupo
de pesquisa.

Catálogo de filmes

O catálogo de filmes e documentários do projeto “A Lei 10.639 e o Ensino de


Geografia” foi idealizado pelos integrantes do grupo de pesquisa, visando explorar o
aproveitamento didático e pedagógico das películas no ensino dos conteúdos exigidos
pela Lei 10.639, servindo assim, como um material de apoio e/ou alternativo aos livros
didáticos pelos docentes da área de Geografia. Ademais, todas as obras
cinematográficas presentes em nosso catálogo, foram coletadas seguindo o “temário”
que foi confeccionado pelo próprio grupo.
O catálogo citado está diretamente ligado às duas primeiras vertentes do projeto
de pesquisa (a revisão e a inserção de conteúdos e revisão de práticas, metodologias e
posturas pedagógicas respectivamente). Neste trabalho, a maioria das obras citadas se
referem ao segundo tópico do temário (o Ensino sobre África). Portanto, pretende-se
demonstrar aqui, como a inserção e revisão de conteúdos, práticas, materiais e métodos
pedagógicos – que neste caso, é a utilização de filmes e documentários - podem
subsidiar a prática dos professores de geografia no ensino de África, desconstruindo o
estereótipo negativo atribuído ao continente no ensino da disciplina.
Os filmes do catálogo que “retratam” preferencialmente assuntos ligados ao
continente africano são:
- Hotel Ruanda;
- Um Grito de Liberdade;
- Diamante de Sangue;
- O Último Rei da Escócia;
- Em minha terra;
- Mandela – Luta pela liberdade (Goodbye Bafana);
- Amistad.
Além das obras citadas acima, outros filmes que abordam a temática étnico-
racial estão presentes em nosso catálogo, são eles:
- Homo Sapiens;
- A Negação do Brasil;
- Malcom X;
- Pátria perdida: Uma jornada inesquecível a América;
- Vista Minha Pele;
- “Crash” – No Limite;
- Olhos Azuis;
- Austrália.
Vejamos agora, como é feita a análise das obras cinematográficas que compõem
o catálogo.

Metodologia de Análise dos filmes e documentários

A classificação das películas levantadas está calcada na seguinte metodologia:


Inicialmente, classificamos as obras pesquisadas em duas categorias: 1) Filmes e
documentários que estão “diretamente ligados ao temário da pesquisa”; 2) Filmes e
documentários que são “passíveis de exploração dentro do temário”. Após esta breve
classificação, catalogamos as obras seguindo alguns parâmetros que foram estabelecidos
pelos integrantes da pesquisa: a) Título do filme ou documentário; b) Dados referentes à
obra analisada (ano de produção, país de origem, direção, etc.); c) Sinopse adaptada
para o ensino de geografia; d) Conteúdos que podem ser abordados através do uso das
películas de acordo com o currículo praticado pelos professores; e) Inserção do filme no
temário.
Para tornarmos este processo mais palpável, apresentaremos agora a ficha
catalográfica do filme Hotel Ruanda.

Título

Nome: Hotel Ruanda

Dados da Obra
Ano: 2004
Direção: Terry George
Origem: África do Sul/ Canadá/ Reino Unido
Duração: 121 minutos

Sinopse Adaptada

O filme conta a história verídica de Paul Rusesabagina que era um “gerente influente”,
ou seja, conhecia pessoas poderosas, do Hotel “Mile Coline” em Ruanda, na África. No
ano de 1994, Ruanda presenciou uma sangrenta guerra civil travada por duas etnias
rivais que disputavam o controle do país, os tutsis e os hutus. Através da película
podemos observar as mazelas causadas pela “repartição” do continente africano
(herança do imperialismo), como por exemplo, os conflitos étnicos, comuns na África
Subsaariana, que atrapalham o desenvolvimento do país. Ademais, podemos visualizar
os graves problemas sociais vividos não só por Ruanda, mas por grande parte dos países
que compõem o continente africano.

Conteúdos que podem ser abordados:

Conflitos Étnicos na África; como os Organismos Internacionais vêem a África (ex.


ONU, FMI, BIRD, etc.); articulação de povos autóctones com os antigos colonizadores
(belgas), economia africana, características urbanísticas.

Inserção no Temário:

Ensino de África

Essa metodologia de análise é aplicada aos filmes a partir das discussões


realizadas pelo grupo, principalmente nas reuniões realizadas aos sábados quando
verificamos como todo o arcabouço teórico/conceitual se reflete na prática dos(as)
professores(as) que participam do grupo. É nesse sentido que um questionário foi
montado para verificar a experiência dos docentes com a utilização dos filmes. Tal
questionário é composto por quatro perguntas, as quais serão mais à frente descritas.
Com isso, é viabilizada toda uma troca de experiências, ressaltando-se pontos positivos
e negativos, uma socialização de práticas que (re)qualifica a prática individual de cada
professor e professora. Vejamos isso mais de perto conhecendo a experiência da
professora F. L. O. com o filme Hotel Ruanda.

Compartilhando experiências

a) Em qual série utilizou o filme?


Trabalhou o filme com a sua turma de nono ano (8ª série), abordando o continente
africano.

b) Com quais conteúdos de geografia dialogou?


Através do uso do filme a professora trabalhou a relação existente entre o colonizador e
suas ex-colônias; mostrou a desintegração econômica, política e social em Ruanda
devido à colonização, e como ela produz os conflitos étnicos; os aspectos físicos do
país; a questão do contrabando no continente e mostrou como as organizações
internacionais reagem aos conflitos étnico-religiosos de suas ex-colônias.

c) Que atividade foi proposta após a exibição do filme?


Nesse caso em especial, a professora cobrou três atividades: i) Pediu um relatório com
base na relação pós-colonial levando em consideração a cultura, a política e a economia;
ii) Promoveu um debate sobre o papel da ONU em relação aos conflitos étnico-
religiosos produzidos na época da colonização; iii) Pediu uma breve análise crítica do
filme na prova.

d) Qual foi o resultado obtido com a utilização do filme como material de


apoio?
Não só atendeu como superou as expectativas. A professora ressaltou que a película nos
ajuda a perceber que os problemas nos países africanos foram gerados pelo capitalismo,
produzido historicamente a partir de uma exploração sistemática.

Considerações Finais

Pretendemos, neste artigo, mostrar como os filmes e os documentários podem


ajudar os professores de geografia a trabalhar o conteúdo de África de uma forma mais
aprofundada, fazendo uma crítica ao esteriótipo negativo do continente que é
amplamente difundido pela mídia e que acaba refletindo na representação dos negros
em nosso país.

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