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PERSPECTIVA NEGRA NA EDUCAÇÃO FÍSICA

Carolina Cristina dos Santos Nobrega


(Org.)

Perspectiva
negra na
educação física

Editora Casa Flutuante


São Paulo, 2023
Copyright © 2023 Organizadora - Todos os direitos reservados.

Organização / Carolina Cristina dos Santos Nobrega

Conselho Editorial
Edvaldo Pereira Lima, doutor em Ciências da Comunicação / USP
Marcia Furtado Avanza, doutora em Ciências da Comunicação / USP
Márcia Neme Buzalaf, doutora em História / UNESP
Maurício Pedro da Silva, pós-doutorado em Literatura Brasileira / USP
Vinicius Guedes Pereira de Souza, doutor em Comunicação / UNIP

Ilustração capa / Carolina Cristina dos Santos Nobrega


Diagramação capa e miolo / Israel Dias de Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Perspectiva negra na educação física [livro eletrônico] / organização Carolina Cristina dos Santos
Nobrega. -- 1. ed. -- São Paulo : Editora Casa Flutuante, 2023.
PDF

Vários autores.
Bibliografia.

ISBN 978-65-88595-45-9

1. Antirracismo - Brasil 2. Educação física 3. Feminismo 4. Mulheres negras - Aspectos


culturais 5. Prática pedagógica 6. Relações étnico-raciais 7. Sociologia educacional I. Nobrega,
Carolina Cristina dos Santos.

23-175247 CDD-306.4309

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO


1. Mulheres negras : Relações étnico-raciais : Sociologia educacional 306.4309

Nota: dado o caráter interdisciplinar da coletânea, os textos publicados respeitam normas,


revisão e técnicas bibliográficas utilizadas por cada autor e autora.
Artigos de responsabilidade exclusiva das(os) autoras(es)

DOI da publicação: doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9

[2023]
Todos os direitos reservados à Organizadora

Editora Casa Flutuante


Rua da Mooca, 336 - São Paulo - SP
Fone: (11) 95497-4044
www.editoraflutuante.com.br
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 1...................................................................................... 6
Carolina Cristina dos Santos Nobrega
doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_0a1

APRESENTAÇÃO 2...................................................................................... 9
Francisca Mônica Rodrigues de Lima e Carolina Cristina dos Santos Nobrega
doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_0a2

ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES


NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR................................... 18
Carolina Cristina dos Santos Nobrega
doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_001

“É VERDADE QUE TU PASSOU FILME DE EXÚ, SOR MÁRCIO?”


NEGRITUDES EM CONSTRUÇÃO E DIÁLOGO NAS AULAS DE
EDUCAÇÃO FÍSICA EM UMA ESCOLA DA REDE MUNICIPAL
DE ENSINO DE PORTO ALEGRE/RS......................................................... 51
Márcio Cardoso Coelho e Fabiano Bossle
doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_002
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL:
REFLEXÕES SOBRE PRÁTICAS DE ENSINO PARA
UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA........................................................... 70
Thiago José Silva Santana
doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_003

EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA:


NOTAS E REFLEXÕES PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA............................... 102
Izaú Veras Gomes e Roberta Batista de Faria
doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_004

doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_005

CURRÍCULO DOS(AS) AUTORES(AS)...................................................... 141


APRESENTAÇÃO 1

É com esperança na perspectiva negra que escrevo este pre-


fácio. Em primeiro lugar, quero parabenizar as autoras e os au-
tores pela tessitura dos capítulos; nós, professoras e professores,
sabemos o desafio que é trabalhar, pesquisar, escrever, tornar-se
intelectual negra(o) da própria prática, num tempo que engole
o tempo da gente. Somos agentes do conhecimento da realida-
de negra no chão da escola. Criamos, inventamos outros cami-
nhos, desobedecendo fronteiras discursivas eurocêntricas para
uma educação, educação física que compreenda a relevância das
epistemologias negras que marcam os currículos, mobilizando-
-os em suas inquietudes, incômodos e controvérsias, criticando
o contorno de suas acomodações capitalista –raciais e contradi-
ções democráticas.
O modo como a educação física pensa o problema da(o) ne-
gra(o) é a questão central desta obra. Assim, nós assumimos

doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_0a1
em cada capítulo um idioma corporal, cultural que abraça as
referências teóricas, para falar com e a respeito da sobrevivên-
cia negra que não nos é dada. A linguagem corporal defende a
existência de nossas humanidades numa audácia teórica e alerta
para a complexidade e multiface das questões negras e suas mu-
tações nas instituições educativas. Exige de nós um processo de
desfazimento de nossas (de)formações (neste caso, na educação
“física”) e propõe a necessidade de experienciar a história ne-
gra numa interdisciplinaridade, produzindo conhecimento no
caminhar coletivo de nossas narrativas, reflexões, memórias e
trajetórias, que são a tradução da nossa urgência política, da
descolonização interna, da inconclusão de nossos anseios, que
buscam vértices da verdade para outros modos de viver, conhe-
cer e tornar a criar uma escola em que as prioridades negras e
indígenas sejam a centralidade do projeto político-pedagógico.
Somos testemunhas de nossas experiências, abordando temas
que incendeiam a nossa criatividade, revisitam a nossa trajetória
docente, dores empoeiradas e coragens inesquecíveis, uma vez
que interpretam o conhecimento de nossas lutas e o conhecimen-
to elaborado com elas e sobre elas. É nesse território que nós
plantamos a formação da intelectualidade negra para uma educa-
ção física do pertencimento, que sirva as pessoas, pois as palavras
aqui empregadas transbordam o trabalho acadêmico, a prática
pedagógica, a consciência etc., uma vez que validam o conheci-
mento da nossa luta, que é a nossa própria vida.
Perspectivas Negras na Educação Física é uma dedicatória
à liberdade dos corpos ameaçados. É um compromisso com o
pensamento negro, que não expõe verdades absolutas para o
combate aos racismos, desigualdades raciais, discriminações

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raciais e demais violências raciais, apresenta teorias que são
gestadas na vida. O livro reafirma a existência pedagógica de
resistência, as suas trilhas na educação física e a preocupação
com o resgate do nosso modo coletivo de ser quilombo!

Carolina Cristina dos Santos Nobrega


Mestra em Educação pela Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP)
Doutoranda em Educação pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP).

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APRESENTAÇÃO 2

Peço licença a sua Ancestralidade, caro(a) leitor(a), para


(re)visitar as suas Histórias e Memórias que, ao fim, são Nossas.
Perspectivas Negras em Educação Física enovelam os fios desse
Coletivo Negro que, com tamanha força, vão tecendo a cada pa-
lavra, a cada linha, a cada parágrafo, a cada texto, as narrativas
corporais. Ao fim, você tem em suas mãos um mapeamento de
experiências pedagógicas de resistência capaz de compreender
o problema da(o) negra(o) nas instituições educativas e, dessa
maneira, se opõe à lógica da fabricação de corpos estrangeiros
de si próprios.
Nesta busca por mudança, começamos a caminhar por outras
epistemologias, abrindo o caminho pra quem quer chegar ...
Orí-entações afro-feministas e prioridades negras para a educa-
ção física escolar, da pesquisadora Carolina Cristina dos Santos
Nobrega, remonta ao Ori Africano, a cabeça, tendo “orí-entações”

doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_0a2
como o elo entre o passado e o presente para mobilizar o nosso
fazer político, a partir das críticas e ensinamentos das intelectuais
negras que delineiam e influenciam o nosso Pensamento-farol na
educação, em particular, na educação física. É a nossa fala, antes
retesada, do nosso ser negra(o), indígena que são um corpo unís-
sono nas nossas narrativas emaranhadas à diversidade que consti-
tuem e se impõem na força de nossas presenças desobedientes na
tessitura de um sonho coletivo.
Como resistimos ao padrão ser, saber, poder na escola? Como
criamos as nossas comunidades de resistência pedagógica no
chão da escola e/ou em diálogo com a mesma? A partir desses
questionamentos, a autora apresenta a importância da orí-enta-
ção sobre os limites pedagógicos firmados, em raízes de Baobá,
pelo pensamento feminista negro decolonial: potência afro-fe-
minista a revitalizar a educação para uma educação física do
avesso, isso é, concebendo as histórias negras como prioridade
no ensino. Daqui nascem propostas pedagógicas amefricanas
na educação física e na escola: as organizações, ocupações para
o pertencimento negro nas instituições, cursos e currículos de
formação política inventados por nós, negras, negros (de cons-
ciência racial) e alianças engajadas que buscam plantar o terri-
tório negro nas instituições. Portanto, num diálogo sensível com
as(os) professoras(es), a autora ressalta o modo de ser quilombo,
a necessidade de (re)pensar a participação negra nas instituições
e suas limitações no sentido de refundar a escola e a relevância
da política quilombista como espelho da ação pedagógica nesse
componente curricular.
Exu é Caminho, é Energia, é Vida na constante (trans)for-
mação, (re)criação. (Des)constrói Verdades nas possibilidades

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do Tempo: somos líquidos, rarefeitos, quentes sobre a terra, em
caminhadas. “É verdade que tu passou filme de Exú, sor Már-
cio?” Negritudes em construção e diálogo nas aulas de educação
física em uma escola da rede municipal de ensino de Porto Ale-
gre/RS, a partir dessa indagação provocativa, os pesquisadores
Márcio Cardoso Coelho e Fabiano Bossle apresentam suas re-
flexões e buscam nas encruzilhadas do mundo escolar a supera-
ção da consciência ingênua para uma nova consciência, crítica,
criativa e reflexiva, pautada na dialogicidade e nas experiências
existenciais das(os) estudantes que encontram suas negritudes
na intersubjetividade.
É vital entender as relações dialógicas que emergem do coti-
diano escolar como oportunidades pedagógicas. Neste capítulo, o
estudante Matheus (nome fictício) traz a questão da intolerância
religiosa como possibilidade de reflexão. Com isso, os pesquisa-
dores desenvolvem, por exemplo, a temática jogos e brincadeiras
da cultura africana, problematizando a intolerância religiosa como
um ponto de resistência e cultivo da negritude na promoção de
uma Educação Física escolar crítica. Compreender as histórias ne-
gras sendo contadas, vivenciadas, experimentadas a emergirem,
visibilizadas e respeitadas para construírem conhecimento poten-
te e descolonizado. Constitui-se nos encontros intersubjetivos nas
aulas de Educação Física.
É salutar, pois o currículo não contempla a potência da negri-
tude: Documento oficial como registro da versão dos “vencedores”
brancos. O Currículo Negro deve ser o percurso das histórias e
culturas africana e indígena com o registro e elevação dos seus Sa-
beres e Conhecimentos compreendendo o corpo como campo de
possibilidades a ser e estar no mundo.

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Nesse pensamento, o poder de Exu deve ser sentido para ser
compreendido na força que se mostra incessante diante de nós:
a criança que não “se aquieta” no lugar sabe nos inquietar para
transformar as reproduções de intolerância religiosa no espaço
escolar como possibilidade de aprendizagem. Portanto, os pes-
quisadores põem em jogo questões da educação física a partir
da experiência negra como possibilidade de inéditos viáveis e
enfatizam nas entrelinhas uma pergunta, isto é, nós podemos
pensar a cultura brasileira separada das matrizes indígenas e
africanas, Professora(or)?
Educação física no ensino fundamental: reflexões sobre prá-
ticas de ensino para uma educação antirracista, do pesquisador
Thiago José Silva Santana, põe em evidência algumas reflexões
acerca da potência do ensino na educação física escolar sob
a perspectiva das leis 10.639/03 e 11.645/08. Nesse contexto,
quais foram os avanços e o que vem sendo feito pelos profissio-
nais da educação, em especial no campo da educação física, nas
escolas do país? Há nesse questionamento uma complexidade,
que considera retomar a batalha nas linhas da história do Movi-
mento Negro e Indígena, ressaltando, nesse encontro, a impor-
tância do diálogo entre os saberes produzidos pelo Movimento
Negro e os saberes produzidos por pensadoras(es) e pesquisa-
doras(es) do Movimento Indígena, os questionamentos desses
grupos sociais no que se refere ao direito à educação e crítica à
estrutura social.
O autor sinaliza a importância do movimento da educação
para as relações étnico-raciais e educação física antirracista de
modo a ampliar a maneira de entendimento desses conceitos e
suas possíveis aproximações. Dessa forma, localiza na atribui-

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ção do termo antirracista a necessidade do comprometimento e
da consciência do papel docente a partir do conhecimento das
lutas que o produziu.
A respeito da formação de professoras(es), destaca a forma-
ção continuada, os grupos de estudos como espaços importantes
de trocas de experiências que contribuem bastante para a quali-
ficação do trabalho para a educação das relações étnico-raciais.
O capítulo é tecido na experiência do autor que descreve bo-
nitas práticas desobedientes realizadas durante as aulas de edu-
cação física para os anos finais do ensino fundamental, com ên-
fase na temática de brincadeiras e jogos dos povos originários,
buscando romper com o currículo estabelecido e construindo,
assim, uma educação antirracista.
A Educação Física Antirracista busca enfrentar os padrões
racistas que impõem limites e normas ao corpo para ser e estar
no mundo. Assim, refletir sobre a educação popular negra é
legitimar toda sua produção na busca de superar tais padrões.
Para tanto, o capítulo Educação Popular Negra: notas e reflexões
para a educação física, do pesquisador Izaú Veras Gomes e da
pesquisadora Roberta Batista de Faria, busca refletir sobre
como a cultura escolar e a educação física têm desconstruído
os estereótipos negativos sobre pessoas negras entendendo que
a cultura corporal hegemônica nas escolas está estritamente
vinculada a uma noção de civilidade branca e europeia. Nes-
sa circunstância, Professora(or), como fomos ensinadas(os) a
aprender? Quais referências construímos ao longo do tempo
sobre o aprendizado?
A educação popular negra é um meio para desconstruir o
modelo hegemônico de educação construído desde o período

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colonial. Para isso, são apresentados dois movimentos produ-
zidos na cidade de Belo Horizonte: as Afrolíricas e o Bloco
Afro Angola Janga como resistências de uma educação popu-
lar negra.
O coletivo Afrolíricas surgiu em 2019, após o encontro de três
jovens poetas, artistas e mobilizadoras sociais e vem ocupando a
cena artística preta de Belo Horizonte com poesia, intervenção ur-
bana, saraus e slams, ampliando diálogos com outros artistas da
cidade e fora dela.
O Bloco Afro Angola Janga surge em 20 de novembro de 2015,
fundado por Nayara Garófalo e Lucas Jupetipe. A iniciativa se dá
em um período de retomada do carnaval de rua belorizontino com
forte crescimento da presença dos blocos de rua, majoritariamen-
te, ocupados por pessoas brancas e distantes das periferias. Na-
yara e Lucas decidem criar um espaço de acolhida exclusivo para
pessoas negras com centralidade na música, tendo como principal
referência o Ilê Aiyê, afropioneiro dos Blocos Afro em Salvador.
Assim, o bloco recebe o nome de Angola Janga, em referência ao
Quilombo dos Palmares, também chamado de Angola Janga ou
“Pequena Angola”.
Por um lado, os movimentos Afrolíricas e o Bloco Afro Angola
Janga nos educam, são referências produzidas na educação popu-
lar negra que valorizam o corpo negro. Por outro, a autora e o au-
tor revelam nesse processo de investigação que as escolas não têm
dado conta de sustentar um projeto de educação de emancipação
social da população negra. Então, ele e ela perguntam para você
leitor(a): sabendo que o corpo é elemento fundamental de nossas
produções culturais negras, qual poderia ser o papel da educação
física nesse diálogo?

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Tranças, arroz, geometria: algumas considerações sobre a for-
mação de professores e professoras antirracistas na graduação em
educação física, do pesquisador Lázaro Rocha Oliveira, dese-
nha uma trama de sinapses que nos conduz à reflexão sobre o
significado da (sobre)vivência docente, destacando a diferença
entre tomar a luta antirracista como fundamento, algo basilar
que constrói a maneira que se compreende o conhecimento den-
tro da própria disciplina, ou tratá-la apenas como uma temática
acessória, um ponto particular de conteúdo a ser abordado por
nós, professoras e professores. Cara(o) leitora(or), como poten-
cializar a formação de professoras e professores antirracistas?
Inquietação que nos toca, lembrando que não podemos nos dar
ao luxo de esperar o mundo ideal, considerando a constante ne-
cessidade de revisitar a história e encontrar nos nossos passos
o conhecimento de nossas(os) antepassadas(os) negras e negros
que se contrapõe às brancas verdades, nesse caso, das universi-
dades e escolas.
“Você conhece a história do arroz na trança? Das pretas que es-
condiam grãos de arroz nos cabelos de suas crianças para que elas
pudessem se alimentar?” A riqueza do capítulo tecida nas histórias
de quilombo que nos preenche de tempo, narrativa e memória.
Sabemos que a educação física tende a ser extremamente
conservadora, porém, é inadiável corporificar a luta antirracista,
considerando o desafio de (re)construir o Projeto Pedagógico de
Curso das instituições com base em reflexões que ultrapassem o
modelo vigente, ou seja, um projeto de educação antirracista para
que a formação de professoras e professores seja refletida nas es-
colas e universidades respeitando e valorizando as histórias dos
corpos das(os) estudantes negras e negros.

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Educação é sobre mudar pessoas! É a maneira de plantar senti-
dos, guardar preciosamente os grãos de arroz nas tranças do ensi-
no de nossa Educação Física. Portanto, não se trata da superficia-
lidade de combater o racismo como um conteúdo acessório, que
enriquece a pauta da diversidade, mas como fundamento de um
posicionamento político-pedagógico no mundo.
E seguimos com você tecendo os fios dessa luta na história que
está viva...
Desejamos boa leitura!

Francisca Mônica Rodrigues de Lima* 1


Carolina Cristina dos Santos Nobrega

* Mestra em Educação e integrante do grupo de pesquisa Ylê-Educare: educação e questões


étnico-raciais. E-mail: franciscamoni@yahoo.com.br

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Ainda assim eu me levanto
Você pode me marcar na história
Com suas mentiras amargas e distorcidas
Você pode me esmagar na própria terra
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar[...].
(ANGELOU, 2020, p.175)*1

* ANGELOU, Maya. Poesia completa. Bauru, SP: Astral Cultural, 2020.


ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS
E PRIORIDADES NEGRAS PARA A
EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

Carolina Cristina dos Santos Nobrega

Nós podemos entrar forte nessa sociedade porque ela não tem
meios eficazes para destruir a nossa capacidade de ser humano(a).
(NASCIMENTO, 2022, p. 142).

Pega um café, professor(a), e põe açúcar, porque a realidade


racista é amarga e fatal! Começo a nossa conversa sinalizando que
as categorias do ocidente cristão – em destaque, raça e gênero –
são esse desconforto mesmo. Não somos sendo tais categorias im-
postas à nossa pele; uma identidade forjada/atribuída nas palavras
negro e índio associadas a papéis sociais, à divisão racial, sexual do
trabalho. Como diz Frantz Fanon (2022), somos os condenados da
terra, expropriados de nossas verdades e, nesse paradoxo, nós nos
ressignificamos, reivindicamos e reinscrevemos a nossa presença
político-amorosa no mundo e com o mundo.

doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_001
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

Veja você que é compreensível a identidade ter a sua potencia-


lidade, no sentido de aprendizagens necessárias à sobrevivência,
à construção coletiva da identidade política negra etc., porém o
problema reside na equívoca interpretação da política identitária
como identidade fixa que tem o fim em si mesma (OLIVEIRA,
2021). Nesse engano, não conseguimos promover uma crítica aos
problemas estruturais, pois se trata de um essencialismo que não
se preocupa com iniciativas para a construção de uma nova comu-
nidade antirracista que crítica o sentido ocidental de sociedade,
uma vez que se ocupa de ações, respostas pontuais, imediatistas,
acríticas como consequência das manifestações racistas, em que o
racismo é interpretado, especificamente, como tema na dimensão
comportamental pelo discurso hegemônico dos meios de comuni-
cação (OLIVEIRA, 2021). Nessa circunstância, observa- se a res-
trição da visão identitária, ou seja, os conflitos que dizem respeito
à população negra, e abrem espaço para a discussão sobre quem
é verdadeiramente negro ou não, quem atende à postura do ideal
de negro, negra etc. Pode-se afirmar que essa visão dialoga mui-
to mais com as experiências, expectativas de uma intelectualidade
negra específica, do que com a multidão de negros, negras que têm
perspectivas plurais.
Nessa lógica, a perspectiva política coletiva se desloca para um
aspecto individual e competitivo a respeito do enfrentamento ao
racismo. Nota-se aqui a apropriação da ideologia dominante. As-
sim sendo, nós, negras, negros, pobres, não podemos assumir o
descuido de adotar uma cegueira acrítica, cujo entendimento da
operacionalização das lógicas estruturais das acomodações insti-
tucionais do poder é por nós esquecido. Lembre-se: “[...] o Estado
capitalista é branco, independente de quem está eventualmente ad-

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ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

ministrando, isto se não houver um movimento de ruptura com a


ordem de opressão do capital” (OLIVEIRA, 2021, p. 15). Na ausên-
cia da ruptura, o capital garante a acumulação das classes reinantes
e a desumanização dos corpos da classe trabalhadora na lógica do
acúmulo permanente. A questão central é a forma de organização
da produção, que garante a riqueza de uns com base na exploração
de outros. Veja, professor(a), que a escravidão e suas semelhanças
são um exemplo disso. Trata-se da base do desenvolvimento brasi-
leiro, tendo o racismo como regra.
A presente conversa tem o cuidado de enaltecer pedagogica-
mente as orí-entações1 das intelectuais negras, sem perder a pers-
pectiva estrutural, e nesta leitura adota-se a concepção históri-
co-crítica, conectada à perspectiva de uma educação amefricana,
logo, descentralizada; em outras palavras, enquanto um corpo ne-
gro, negro-feminino, indígena, pobre for encarcerado na sua exis-
tência (em qualquer lugar do mundo), nós não seremos livres.
Nessa lida, nós aprendemos, no estado de sobrevivência, que
“[...] a educação não é uma maneira de escapar à pobreza, é uma
maneira de lutar contra ela” (NYERERE, 2000, p. 187). Assim
sendo, o que se propõe é um golpe a esse estado de inferioridade
imutável (núcleo do racismo), pois, encarceradas(os) estamos
ao longo da história brasileira, como canta a memória da Lín-
gua de pilão,

Eu fui pau, chicote e pedra, queda, pó, chicote e pau


Eu rezava Ave Maria, pedindo a Agô pra livrar-me do mal

1 Entende-se por “orí-entações” o elo entre o passado e o presente para mobilizar o nosso fazer
político, a partir das críticas e ensinamentos das intelectuais negras que delineiam e influenciam
o nosso Pensamento-farol na educação, em particular na educação física.

20
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

Jogando maculelê, congo, jongo, capoeira


Dia e noite, noite e dia
De segunda a sexta-feira [...]. (LÍNGUA..., 1977b).

Desse modo, revisitamos a advertência de nossas pré-ocupa-


ções político-pedagógicas diante da arapuca desumana que é a mo-
dernidade. Nesse contexto, o nosso ser negra(o), ser indígena, é
corporificado nas diversidades de nossas narrativas, nas diferenças
que nos compõem e se impõe no poder de nossas presenças deso-
bedientes, sobretudo ao tecer este sonho coletivo de enunciar as
reviravoltas e ocupações na educação brasileira, utopias que nos
inquietam, portanto, possibilidades de um tempo histórico que
queremos fazer surgir. Desse modo, algumas perguntas complexas
nos auxiliam a pensar este tempo. Por exemplo, como resistimos
ao padrão ser, saber, poder na escola? Como criamos as nossas
comunidades de resistência pedagógica no chão da escola e/ou em
diálogo com a mesma? Quais são as nossas (re)ações, inspirações e
respirações pedagógicas para enfrentar as faces do racismo e a an-
tinegritude nas escolas? Diante disso, o que o avesso da educação
física escolar propõe? Entre outras perguntas, que estão para des-
confortar a ausência de envolvimento nesta sociedade racista que
não admite ser o que lhe define − o Brasil indígena negro.
Então, professor(a), qual é a sua análise na relação escola-so-
ciedade para afirmar os determinantes de sua prática educativa
(RIOS, 2011)? Será que há, na sua análise, a preocupação política
com o desenvolvimento das negritudes nas aulas? Desse modo, o
presente capítulo tem o objetivo de orí-entar e refletir sobre os li-
mites pedagógicos, amparados pelo pensamento feminista negro
decolonial (traduzido aqui como potência afro-feminista) e suas

21
ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

relevantes contribuições para inventar outra educação, em parti-


cular, a educação física.

SOCIEDADE DO CAOS ANTINEGRO E A EDUCAÇÃO

Falar de educação brasileira significa não se desprender de


uma análise crítica do contexto da segregação racial que envolve
a própria. Importa, então, compreender as relações entre educa-
ção, política, culturas afro-brasileiras, latino-americanas, violên-
cia, ideologia e sociedade capitalista etc., que delineiam o processo
educativo, pois é nesse cenário que as práticas pedagógicas são de-
senvolvidas. Aqui, compreendem-se as suas possibilidades, justa-
mente por entender os seus limites. Veja que a sociedade capita-
lista “[...] se caracteriza por ter sua organização sustentada numa
contradição básica – aquela que se dá entre capital e trabalho e que
provoca a divisão dos seus membros em classes, portanto, consi-
dera-se aqui, os efeitos desse sistema na prática educativa” (RIOS,
2011, p. 35).
A organização da sociedade é alicerçada pela produção da vida
material de sua população e das relações de poder cotidianas (RIOS,
2011). Assim sendo, é necessário entender a história da(s) raça(s)
para compreender tal organização, pois estamos falando da consti-
tuição política e econômica dessas organizações contemporâneas e,
ao mesmo tempo, do desprezo das questões raciais no que se consi-
dera “análises críticas” em teorias pedagógicas, modelos de forma-
ção etc., ou seja, a economia do conhecimento que é adotada e ali-
mentada nos cursos de professoras(es). Isso nos leva a perceber que
é preciso criticar o que se entende por análise crítica, pois tal análise
deve considerar, em solo brasileiro, a construção sociopolítica da

22
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

raça, que marca (de maneira estrutural e estruturante) as sociedades


latino-americanas (GOMES, 2012) e, desse modo, não se descarac-
teriza o impacto do colonialismo nas nossas vidas.
Cabe ressaltar que não se trata de uma “guetificação temática”, im-
posta pelo racismo acadêmico – intelectuais negros(as) só podem fa-
lar de racismo (OLIVEIRA, 2021), mas de uma acriticidade das insti-
tuições, por serem consideradas armas brancas em relação aos nossos
corpos negros. E a nós cabem a criatividade e a estratégia de defender
as prioridades negras, fazendo circular o conhecimento – nesse caso,
na escola, na universidade (assim como em todas as instituições), em
que “[...] o negro resiste e cria um novo quilombo para enfrentar algu-
ma situação adversa” (NASCIMENTO, 2022, p. 134). Em outras pala-
vras, precisamos assumir um modo Racionais MC’s de ser: “[...] entrei
pelo seu rádio, tomei, cê nem viu!” (NEGRO..., 2015).
Porém, com certo cuidado, recordo-me das palavras de Beatriz
Nascimento (2022), ao afirmar que vivemos numa sociedade racista,
autoritária e acomodada, e, quando se trata de relações de poder, nós
estamos isoladas(os) no espaço das nossas próprias propostas. Se,
por um lado, a lógica da dominação “[...] foi incapaz de prever que
o povo fosse se apropriar da história e reproduzir sua crítica através
do samba” (NASCIMENTO, 2022, p. 132); por outro lado, o interes-
se pelas culturas negras como defesa da sociedade branca também
é um mecanismo de reposição das relações de poder. Pessoas/gru-
pos obtêm vantagens, prestígios a respeito da discussão das questões
raciais, étnico-raciais, antirracistas; desse modo, sustenta-se o dis-
curso que evita qualquer mudança que dilacera a sociedade branca
e violenta (NASCIMENTO, 2022), seus valores morais, religiosos,
culturais, éticos, seus saberes, seus modelos político-econômico e
político-estético etc. Por conseguinte, nós precisamos admitir pe-

23
ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

dagogicamente que, sem o capitalismo racial, o racismo desmorona


e com ele toda a rede de exploração em nível mundial (VERGÈS,
2020; NOBREGA, 2022).
Esse convívio miscigenado adverte que vivemos uma dupla, tri-
pla sociedade, na qual a imposição da invenção da raça é uma forma
de classificação social, como estratégia do poder colonial. Veja que
a raça “[...] é uma categoria discursiva em torno da qual se organiza
um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou
seja – o racismo” (HALL, 2003, p. 69). Nessa organização, traduz-se
a inferioridade imutável dos corpos negros em palavras: “[...] você
como preto se anula, passa viver outra vida, flutua sem nenhuma
base onde pousar, sem referência e sem parâmetro do que deveria
ser a sua forma peculiar” (NASCIMENTO, 2022, p. 139). Conse-
quentemente, o não pertencimento negro, que é legitimado e propa-
gado na prática educativa; portanto, corpos condenados como ine-
ducáveis, estrangeiros de si próprios, em nome da “[...] empreitada
colonial educativa e civilizatória” (GOMES, 2012, p. 730).
Se analisarmos a raça associada às questões de gênero, como
apontam as feministas decoloniais, nós percebemos que o gêne-
ro (no projeto colonial) também é uma ferramenta fundamental
para o capitalismo, logo não está subordinado à raça, encontra-se
também imbricado no imaginário social, operando na ótica mas-
culina, sendo instrumento de poder econômico, político, cultural,
identitário, epistemológico e, principalmente, pedagógico.
Vivemos, professor(a), nessa sociedade racista que autoriza o
assassinato cultural negro. Então, somos divididos(as) cultural-
mente e esse é um processo contínuo que se inicia na educação
infantil. Veja que a cultura é um importante alicerce da sociedade
brasileira, patrimônio das populações. Importa dizer que “[...] a

24
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

educação é definida como processo de transmissão de cultura, está


presente em todas as instituições; contudo, há uma instituição cuja
função específica é a transmissão de cultura, em outras palavras, a
escola” (RIOS, 2011, p. 34).
Nesse sentido, retoma-se a raça que classifica os corpos no sis-
tema de representação que regula os relacionamentos entre pessoas
e grupos tecidos na história. À vista disso, na escola, compreen-
dem-se as diferenças construídas pela cultura na lógica da classi-
ficação. Assim sendo, “[...] classificar é uma forma de dar sentido.
A classificação costuma ser hierárquica e permite estabelecer re-
lações de pertencimento. Ao classificar, definimos, e ao defini-lo,
tomamos uma decisão a respeito da essência de algo” (CHRISPI-
NO, 2007, p. 18) e, de alguém, uma vez que o discurso da essên-
cia desconhece e ilegítima o sujeito cultural e sua identificação
como ser humano na lógica do colonialismo, pois constantemente
o desumaniza, mantendo os traços históricos do poder colonial
que mata as suas tradições, língua e cultura, embrutecendo-o(a)
e alienando-o(a) pela insistência do apagamento histórico; logo,
a definição do corpo negro é o exercício de controle, cuja resposta
é a atualização do não pertencimento nas escolas. Nesse contex-
to, o processo de não assumir a negritude crítica na educação tem
levado muitos(as) negros(as) ao abandono, isolamento, doenças,
principalmente, doenças mentais (NASCIMENTO, 2022).

POLÍTICA QUILOMBISTA

Em que momento, professor(a), a escola, a educação física para


todos se interessa pelas verdades dos(as) colonizados(as) na traje-
tória do processo de ensinar e aprender? Será que os(as) docentes

25
ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

se sentem provocados(as) a pesquisar e estudar a história da edu-


cação da população negra brasileira e suas escolas negras? Cabe
ressaltar que não me refiro à história ideal que foi/é escrita pelas
mãos brancas exploradoras e/ou pelas mãos negras alienadas que
as utilizaram como referência exclusiva (NASCIMENTO, 2022).
Observa-se que a história brasileira, diante do apagamento da his-
tória negra, da tensão entre história real e história ideal, evidencia
uma pergunta para todos(as) nós. Como recuperar a história negra
mesmo com a nossa mente de captação censurada (NASCIMEN-
TO, 2022, p. 163), deformada pelo olhar ocidental?
As estratégias de organização político-educacional em relação
à produção do conhecimento nas universidades, escolas e seus vín-
culos (e divididas com os territórios negros) nos conduz a achar as
respostas. E não é uma tarefa fácil. É quase uma comunidade secre-
ta, para se opor aos mecanismos de esquecimento que é a morte do
conhecimento negro, “[...] na medida em que a gente possa trocar
experiências e cada um, aquela coisa do quilombo, se cada um pu-
der fiscalizar um pouco, fiscalizar no sentido [...] patrulha ideoló-
gica [...]” (NASCIMENTO, 2022, p. 163-164), portanto, patrulhar
e exigir, nessa análise crítica, o(a) negro(a) visto(a) por ele(a) mes-
mo(a). É nesse pensamento que nós encontramos o nosso espaço
para a formação da educação física do avesso, isso é, as histórias
negras como prioridade no ensino.
Para nós, negras, negros, que não queremos ser propriedade do
Estado, não há somente espaços a conquistar. É preciso reintegrar,
também, questões nossas e que não são reconhecidas como nossas
características (por exemplo, o pensamento negro). Nós precisa-
mos recuperar, resgatar o nosso conhecimento, e que foi apossado
pela dominação. É por aqui que vamos chegar à discussão sobre a

26
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

posse do conhecimento. Trata-se de ações a respeito da história da


população negra, isto é, as civilizações africanas e suas referências
tecidas nas múltiplas circunstâncias históricas. Do mesmo modo,

[...] as escolas de iniciação das culturas tradicionais africanas, dos


terreiros das religiões afro-brasileiras, das irmandades, grupos de
congada junto à igreja católica, às associações beneficentes e re-
creativas, à imprensa negra, aos sindicatos, aos grupos atuais do
Movimento Negro, às escolas [...]. (SILVA; BARBOSA, 1997, p. 11).

Isso significa a população negra em busca do poder do co-


nhecimento e de sua autonomia a partir de outra educação que se
constrói de maneira estrutural e estruturante. É o lugar pra negro
viver, como canta Elza Soares na música Aldeia de Okarimbé [AL-
DEIA..., 1977a), que expõe um sonho de liberdade anticapitalista,
como melodias que reproduzem as vidas negras, suas comunida-
des de resistência e, na expressão musical, atendem didaticamente
as nossas criatividades e interesses afro-latino-americanos, pois
semeiam nas aulas a oportunidade de abraçar as nossas histórias,
teorias, narrativas corporais e afetos. É nesse engajamento políti-
co-pedagógico que precisamos entender a crítica a um Estado para
as elites brasileiras, visualizando que se trata de um jogo

[...] entre interesses internos e externos, manipularam os instru-


mentos políticos das massas no seu desejo de emancipação não
somente pelos estatutos legais, mas pelos ganhos culturais e econô-
micos (NASCIMENTO, 2022, p. 78).

À vista de tudo que foi conversado até o presente momento, é


óbvio que as relações entre negros(as) e brancos(as) em nosso país

27
ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

não são harmoniosas, democráticas e são diluídas na visão míope


e no diagnóstico antagonista no que se refere aos reais problemas
das desigualdades raciais brasileiras que são descaracterizadas na
esfera das desigualdades socioeconômicas, pois o “[...] estado, po-
lítica e sociedade civil estabelecem novos vínculos com o capital e
se refazem à sua imagem e semelhança” (NOGUEIRA, 2022, p. 10).
Pôr à vista essa realidade é entender que uma educação que
se propõe desenvolver a consciência racial, ultrapassa a ideia “[...]
do educador e da educadora entender o conjunto de representa-
ções [...] e enfatizar as representações positivas construídas poli-
ticamente pelos movimentos negros [...]” (GOMES, 2003, p. 77).
A representação é insuficiente e o educador e a educadora devem
investigar os diálogos, disputas intelectuais e políticas no contexto
do racismo reproduzido na escola e, ao mesmo tempo, identificar
os empecilhos (de toda ordem) para o enfrentamento da antinegri-
tude, que legitima o não estatuto humano dos(as) negros(as). Ou
seja, quais são os limites e possibilidades de pertencimento negro
nas escolas capitalistas? Pois a insistência nesse pensamento abis-
sal ecoa a constante saída do(a) negro(a) dentro e fora das institui-
ções. Isso significa que o ingresso real do(a) negro(a) depende de
uma educação que funcione como projeto político de ruptura com
o capitalismo, para ser antirracista, e pode não resolver a questão
da antinegritude, pois o antirracismo tem como ponto central de
análise o racismo.
É a partir da perspectiva histórico-crítica que é possível sonhar
com a escola quilombista, compreendendo o direito à educação
numa educação de direitos negros vinculada aos processos cultu-
rais do contexto em que se situa. Assim sendo, o entendimento de
“cultura” aqui presente se conecta com as estratégias da ação social,

28
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

que responde à maneira pela qual são tecidas as relações econômi-


cas e políticas (MOREIRA; CANDAU, 2003). Cientes disso, nós
devemos (re)agir, a partir de outras formas de organização incor-
poradas pela resistência ao padrão de poder-ser-saber na escola,
sem esquecer dos nossos limites, pois “[...] a organização da vida
material de uma maneira peculiar determina, ao mesmo tempo,
uma maneira peculiar de organização das ideias e das relações de
poder” (RIOS, 2011, p. 41).
O poder (capacidade de influência) e a política estão conec-
tados e influenciam o comportamento dos grupos sociais. Numa
escola, é possível identificar, nos seus objetivos educacionais, a
dimensão política na prática educativa, uma vez que, no ato de
ensinar, transmitem-se os saberes necessários aos sujeitos, conven-
cendo-os(as) e conduzindo-os(as) a um tipo de sociedade, e nesse
processo a intencionalidade docente se manifesta como espelho da
dimensão política (RIOS, 2011).
A prática política docente se apoia no poder. Nota-se que, no
contexto social, “[...] as relações entre os membros estabelecem-se
em função de um objetivo, que lhe é próprio, e a Política, longe
de ser um fim em si, é uma técnica para a realização dos valores
proposta pela sociedade” (RIOS, 2011, p. 40). À vista disso, não se
trata especificamente da inserção das culturas negras, indígenas,
etc., para combater o racismo na escola na ótica do politicamente
correto. Volto a afirmar a relevância das novas formas de organiza-
ção que buscam interpretar os denominadores comuns na rede de
exploração e opressão da população negra e pobre, e, mais do que
isso, identificar as diferenças, necessidades, particularidades des-
sa população que compõe as comunidades/favelas do entorno da
unidade escolar; esse esforço analítico crítico propõe um impacto

29
ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

no entendimento de “direitos humanos (brancos)” na escola, ao


esmiuçar “[...] o processo de cristalização dos pretos nos extratos
sociais mais pobres da sociedade” (NASCIMENTO, 2022, p. 46)
e isso exige outra política e capacidade de influência na e com a
educação.
A respeito da ideologia, como o último elemento a ser desta-
cado nessa conversa, pode-se afirmar que a mesma dissimula a
realidade, distorce passado e presente. Desse modo, ressalta Silvio
Almeida (2016 apud NOBREGA, 2020, p. 405), a ideologia é mais
que isso e tem que ser “[...] considerada como um processo de sub-
jetivação, como formação da subjetividade, nossos sentimentos,
nossa visão de mundo, a forma com que o imaginário socialmen-
te construído é incorporado”. Nessa lógica, o racismo é (também)
uma ideologia que atende os interesses das classes reinantes, bem
como a sua legítima existência.
Toda a análise das dinâmicas de classe no Brasil que não se
debruça sobre a questão racial (associada às questões de gênero) é
um desserviço, pois as classes sociais brasileiras são inquestiona-
velmente racializadas (DURANS, 2014). A educação física, como
área da linguagem, que educa na dinâmica capitalista, precisa en-
tender que “[...] o racismo é a gramática moderna da política, da
economia, do ethos social e da produção do conhecimento” (PI-
RES; QUEIROZ; NASCIMENTO, 2022, p. 9). As nossas narrativas
corporais precisam transparecer o nosso elo de classe trabalhado-
ra; por exemplo, para um branco pobre sair da economia do esgo-
tamento precisa combinar a luta anticapitalista, antipatriarcal com
negros, asiáticos, indígenas (DAMASCENO, 2021).
Então, professor(a), qual é o preço da nossa liberdade?
Uma escola, uma educação física que assume a posição política

30
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

quilombista se faz na paciência histórica, organiza-se nos passos


do incômodo e adverte à educação, à educação física, de que não
se trata exclusivamente da cultura corporal, e sim de se apropriar
da política corporal negra, pois “[...] nenhuma teoria é útil se no
seu centro não estiver a preocupação de lidar com esse horror;
fruto de um mundo compartimentado [...]” (PIRES; QUEIROZ;
NASCIMENTO, 2022, p. 13).

(RE)INVENÇÃO DA PARTICIPAÇÃO NEGRA NAS


INSTITUIÇÕES

Cabe ressaltar a necessidade de uma política pedagógica que


busca responder à questão do professor Samuel Vidda apresentada
pelo professor Dennis Oliveira (2022), isto é: como reinventamos a
nossa participação negra nos espaços institucionais?
Professor(a), apresento algumas ideias do texto intitulado “Mo-
vimentos instituintes nas escolas: afirmando a potência dos espa-
ços públicos de educação”, das autoras Célia Linhares e Ana Lúcia
Heckert (2009), que, a partir da interpretação negra, ajuda-nos a
pensar os movimentos instituintes e suas questões.
Diante dos tempos difíceis nas escolas, Linhares e Heckert
(2009) chamam a atenção para o clássico exemplo da culpabiliza-
ção de docentes e discentes no suposto fracasso escolar, quer dizer,
uma estratégia para mascarar o desamparo, descaso e irresponsabi-
lidade do Estado ao longo da história da educação brasileira, bem
como a descrença na educabilidade negra, pobre, portanto: jovens
entregues à justiça penal, como corpos fabricados na vulnerabili-
dade do descaso social; a criminalização dos movimentos sociais;
o discurso moral e agressivo por parte da igreja católica brasileira

31
ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

aos direitos das crianças e das mulheres. E, na lógica mercadológi-


ca, percebe-se que as

[...] coerções de processos culturais e educacionais, resultam de


complexas inter-relações do sistema político-econômico interna-
cional com parte dos setores dirigentes e intelectualizados de nosso
país, que influenciam as escolas (LINHARES, HECKERT, 2009, p. 6).

A respeito da formação de professoras(es), as autoras afirmam


que são utilizados velhos modelos que sobrecarregam os(as) docen-
tes com tarefas sem sentido, afastando-os(as) do trabalho coletivo,
dos diálogos sobre os reais problemas da escola, portanto, de mo-
mentos significativos para reflexão da prática docente; desse modo,
não há novas perguntas sobre os problemas da realidade social-ma-
terial. As soluções são mecânicas e de conclusões prontas, logo, des-
contextualizadas, não dialogam com a realidade político-econômi-
co-cultural do(a) professor(a) (LINHARES; HECKERT, 2009).
Citando Mia Couto, em busca dos horizontes possíveis, “[...]
é necessário não abrir mão do direito fundamental que é o direi-
to à indignação” (LINHARES; HECKERT, 2009, p. 6). Ainda no
contexto de reinvenção da escola capitalista e não de sua ruptura
(haja vista os limites do nosso tempo histórico), sinaliza que a in-
terligação com a política de resistência dos movimentos negros,
suas lutas e saberes, quando plantados nessa instituição, semeiam
experiência, existência, memória, direitos negros na educação
etc., pois o antirracismo não é e não pode ser tão somente um
tema de estudo, ele é a intimidade da transformação que a escola
deve incorporar e assumir como espelho de sua política de resis-
tência e rebeldia pedagógica. A partir disso, é possível reconhecer

32
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

as experiências de pertencimento negro que nascem do chão da


escola, no qual o tornar-se negro nesse ambiente não seja uma
surpresa exótica e sim a tradução das prioridades que evidenciam
outros processos de ensinar e aprender, bem como outros movi-
mentos instituintes.
As instituições são feitas por pessoas, e, assim, conectamo-nos
com a dimensão política quilombista que educa o movimento ins-
tituinte. O nosso Estado é o Quilombo. Estamos falando de edu-
car para uma sociedade alternativa, como diz Beatriz Nascimento
(2022), pois se engana quem pensa o Quilombo como lugar de fu-
gitivo, especificamente, como tentativa de rebelião. Ela nos lembra
que o Quilombo é uma organização sociopolítica delineada nos
nossos termos e valores, com implicações ideológicas que sobrevi-
vem ao longo do tempo “[...] não na sua forma original, mas como
uma tradição de vida do negro brasileiro. O fundamental é que
essa é uma forma de vida do negro brasileiro em qualquer época
[...]” (NASCIMENTO, 2022, p. 123). Contudo, tal sociedade hu-
mana também tem suas contradições, e não é o lugar da felicidade
plena, mas é o lugar que torna a paz negra possível; em outras pala-
vras, aprender a se defender das violências sem deixar de expressar
as negritudes por causa delas.
Retomamos a pesquisa das autoras Célia Linhares e Ana Lúcia
Heckert (2009), destacando uma das três experiências escolares,
como exemplo positivo, que expõe os seguintes aspectos: a am-
pliação na quantidade de docentes, considerando as iniciativas, de
modo a contemplar as necessidades e assumir uma participação no
processo de formação; a atuação docente em pesquisa, ampliando
e valorizando os espaços coletivos de debate, reflexões; e o com-
partilhamento das experiências no âmbito escolar. Consequente-

33
ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

mente, um comprometimento coletivo que delineia outra forma-


ção de professoras(es),

Não adianta formar professor mantendo a fragmentação dos sabe-


res, tão fortemente entrelaçada às lógicas capitalistas de acumula-
ção, controle e consumo. Precisamos de professores que se formem
continuamente no exercício de interligar os saberes da escola com
os sabores da vida, como ferramentas de construção de solidarie-
dades e de encorajamento dos processos de singularização, que não
podem se descolar dos empenhos para superar desigualdades de
todas as ordens. (LINHARES; HECKERT, 2009, p. 10).

Nós, professoras e professores, sabemos que cada escola tem


a sua realidade particular; em outras palavras, cenários não tão
positivos como esse, que exibem o descaso sobre as condições pre-
cárias do trabalho docente e a lógica da produtividade que promo-
ve desencontros docentes, entre outros problemas. Apesar de tais
empecilhos, a formação contínua tem sido um importante espaço
estratégico para defender formações que se colocam na contramão
dos modelos requeridos pelo Estado na ambição neoliberal, de-
monstrando práticas educativas vinculadas com os movimentos
negros na qualidade de mobilidade política como diz o professor
Petrônio Domingues (2007).
É, professor(a), a (re)invenção da participação negra nas insti-
tuições é um terreno fértil de conflitos, e expõe muitos caminhos,
relações temporais tecidas em ações mais concretas, maduras, du-
radouras no cotidiano escolar e intervenções mais imediatas, de-
sesperadas e urgentes (que precisam ser efetivas e frequentes). Em
ambos os casos, depende da força motriz que é a invenção quilom-
bista pedagógica que questiona e incomoda as instituições, porque

34
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

preenche o(a) negro(a) de sua negritude histórica; é a utopia de


uma sociedade alternativa que nos faz caminhar, como nos am-
para as palavras (que compreendo como orí-entações) de Bea-
triz Nascimento (2022). É evidente que, no campo da educação,
alguns elementos para traduzir essas políticas vivas negras (que
dependem do comprometimento coletivo na escola) não são no-
vos. O que muda é a prioridade e aqui o cabo de guerra se insta-
la, desde a década de 1990, uma “educação para todos”, que não
enxerga o corpo negro nos seus termos, valores, necessidades,
pautas políticas e perspectivas plurais.
Quero destacar uma ação que merece a nossa atenção na
educação física escolar, isto é, a Educação Amefricana como
exigência na centralidade do Projeto Político-Pedagógico da
unidade escolar, portanto, decisões coletivas que olham de
verdade para os problemas e as prioridades negras na contra-
mão do Estado branco, que historicamente não aparece para
superar a violência e torná-la um vestígio de sua ação, mas que
“[...] nasceu de práticas violentas e se manteve através da vio-
lência [...], a lógica do Estado é constantemente reatualizada
em territórios negros [...], periferias urbanas e campos neoco-
lônias contemporâneos” (PIRES; QUEIROZ; NASCIMENTO,
2022, p. 10-11).
Há muitas batalhas na (re)invenção da participação negra
na educação, no próprio entendimento de educação, educação
física que não nos respeita como seres humanos e outros gru-
pos condenados, mais complicado que os limites deste artigo
podem expressar. O que se deseja aqui é transformar o aparente
impossível em estratégia coletiva possível. Portanto, a (re)in-
venção da participação negra significa refundar a escola.

35
ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

ORÍ-ENTAÇÕES PARA UMA EDUCAÇÃO FÍSICA DO AVESSO

Descreve-se a educação física do avesso no território das ex-


periências planeadas na forma de vida da população negra, que só
pode ser (re)conhecida no momento que essa população se identi-
fica como negra. À vista disso, professor(a), eu tenho uma pergunta
para você: “Se somos um país de iguais, que motivos tem o negro(a)
de lutar por melhores condições de vida?” (NASCIMENTO, 2022, p.
127). Reitero as conversas realizadas nos subtítulos anteriores como
razões negras para a urgência de uma “educação física antirracista”
ou qualquer outro termo que queira, professor(a), desde que acione
politicamente a necessidade de popularizar propostas pedagógicas
que atendam os interesses das populações negras, indígenas e po-
bres, sem desconsiderar que o racismo é relação social, e os indícios
da elaboração de uma justiça curricular ainda inserida e produzida,
boa parte por nós, negras(os), exibe a ausência de alianças e respon-
sabilidades brancas no que se refere à perspectiva antirracista.
O presente convite-texto se apresenta como orí-entação afro-
-feminista, a partir da palavra Orí de origem africana que se tra-
duz como a cabeça, na língua yorubá, ou seja, “[...] ‘fazer a cabeça’
vem ser a apreensão da consciência amadurecida do que existe no
mundo externo, concomitante ao autoconhecimento. Orí, nesse
contexto, é o elo entre o passado e o presente [...]” (NASCIMEN-
TO, 2022, p. 80). Nesse caso, a orí-entação advém das intelectuais
negras que mostram a direção com suas experiências de vida, aná-
lises críticas, pesquisas tecidas em suas mobilidades políticas e ex-
postas ao longo deste capítulo.
A meu ver, como testemunha da minha própria experiência, a
educação física antirracista não surgiu numa segunda-feira de ma-

36
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

nhã na primeira aula. É resultado de muito estudo, por vezes afasta-


mento da vida pessoal, dedicação e investimento de tempo de vida.
Ela surge da constante curiosidade epistemológica (FREIRE, 2011),
da exigência da pesquisa para se falar em outro ensino, do inconfor-
mismo e, principalmente, da afirmação negra pautada na busca pela
história; entre tantos outros elementos, isso significa que não faz
morada nos limites do antirracismo, precisa tornar-se amefricana.
A minha dissertação de mestrado, realizada em 2019, intitula-
da “Educação antirracista no município de São Paulo: análise das
experiências pedagógicas na área de educação física escolar”, foi
feita por encontros potentes de professores, principalmente afro-
-professoras pesquisadoras da própria prática. Gosto de enfatizar
que essas Senhoras do conhecimento apresentavam o elo entre pe-
dagogias afrorreferenciadas, literatura e a educação física escolar,
para falar da narrativas corporais negras, e essa estratégia pedagó-
gica era e é o nosso ponto em comum, que denuncia a escassez do
(re)conhecimento a respeito das necessidades e particularidades
das(os) estudantes, ao associar gênero, raça, classe na aula de edu-
cação física, e anuncia a base teórica potente afro-feminista para
enfrentar as violências.
A genialidade da Senhora Neusa Santos Souza merece desta-
que, e foi destaque no início da minha experiência como afro-pro-
fessora na formação de professoras(es) de educação física na pós-
-graduação, em 2021. Para compreender o processo de “tornar-se
negro”, o livro “Tornar-se negro. As vicissitudes da Identidade do
Negro Brasileiro em Ascensão Social” (SOUZA, 1983), é uma leitu-
ra de cabeceira, professor(a). Quando falamos da identidade do(a)
negro(a) brasileiro(a) observa-se a mutilação da subjetividade ne-
gra, uma vez que o eu (negro) é anulado, pois a sua construção se

37
ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

desenvolve a partir do ideal do ego branco, num método que nos


torna vítimas da alienação. O discurso que sustenta o mito negro é
uma narrativa que esconde o real, nega a história e, na mensagem
ideológica, transmite que somos “[...] o irracional, o feio, o ruim, o
sujo, o sensitivo, o superpotente e o exótico [...]” (SOUZA, 1983, p.
27-28). Essas figuras representativas rompem a nossa identificação
e, diante disso, podemos afirmar que o genocídio se esconde por
trás do mito da democracia racial, como lembra Abdias Nascimen-
to (2017), e se esconde por trás do mito negro também.
Neusa Santos Souza descreveu, na ótica da psicanálise, a cons-
trução da identidade afro-brasileira na década de 1980, portanto,
a construção da identidade afro-brasileira na “dodiscência” (FREI-
RE, 2011), pensada a partir desse referencial teórico, é indispen-
sável, ao mesmo tempo, como necessidade de avanço na análise
crítica. Nota-se a necessidade de aproximação com pesquisas con-
temporâneas que pensam a construção da identidade afro-brasilei-
ra a partir do orgulho negro e o impacto disso no âmbito escolar,
em especial, na educação física.
É curioso observar, no campo da educação física escolar, o en-
quadramento da raça e a indiferença das contribuições do femi-
nismo negro, afro-latino-americano, decolonial, indígena etc., em
pesquisas que se interessam pelo câncer social que é o racismo. No
entanto, se falamos da importância da articulação entre racismo
e colonialismo, já sinalizada pelas contribuições de Frantz Fanon
(2022), não podemos esquecer que o patriarcado também é um
alicerce do colonialismo.
Nessa linha de raciocínio, eu pergunto: o que é ou pode ser uma
educação física descolonizada? Essa disciplina ainda é vista como
um lugar quase que exclusivo da linguagem corporal masculina

38
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

(branca), pois não está descolada dos interesses desumanos de uma


sociedade neoliberal. A meu ver, é necessário falar em descoloni-
zação, pensando na fusão raça e gênero, até mesmo para entender
a articulação entre racismo, patriarcado, antinegritude no projeto
colonial, e isso exige a superação dos epistemicídios na área, que não
só apagam a história negra como sustentam e mantém os processos
de desumanização na produção do conhecimento, e se referem à re-
provação do conhecimento produzido pela razão negra. Logo, a des-
legitimação enfatiza a inexistência desse conhecimento nos espaços
escolares (CARNEIRO, 2005). Assim, tal sequestro e morte da racio-
nalidade negra mutila a capacidade de aprender (PIRES; QUEIROZ;
NASCIMENTO, 2022), descrevendo-nos em mais uma figura repre-
sentativa e redundante, ou seja, corpos ineducáveis.
As contribuições das intelectuais negras são o alicerce da po-
lítica viva dos anúncios e denúncias das narrativas do avesso. São
a espinha dorsal para uma educação física amefricana, que exige a
fusão das categorias gênero, raça e classe, ao enxergar as diferenças
e diversidades das populações negras e pobres (e seus pontos de
vistas plurais), puxando fio a fio a teia de exclusão, exploração, do-
minação etc., para compreender a repressão que esses corpos so-
frem ao longo da história e, assim, educá-los a sair desse estado de
injustiça cognitiva que se refere à injustiça social (GOMES, 2012).
Posso afirmar que a educação física, especificamente como área
da saúde, não tem condições de responder às questões da popula-
ção negra na escola. Enquanto área da linguagem, aproxima-se das
ciências humanas e sociais e apresenta importantes elementos para
(re)pensar as questões das(os) negras(os), vistas por elas(eles) mes-
mas(os). Assim, educa-nos a reinventar modos de vida para sair da
sobrevida, bem como compor as redes de economia solidária que

39
ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

delineiam e se estendem também na produção do conhecimento


que nos alimenta, popularizando o nosso jeito quilombista de ser;
em outras palavras, “[...] uma das formas de exercer autonomia é
possuir um discurso sobre si mesmo” (SOUZA, 1983, p. 17).
Lembra, professor(a), que Beatriz Nascimento enfatizou o es-
vaziamento do corpo negro?! A Senhora Lélia Gonzalez (2018)
nos ajuda a compreender, no contexto da psicanálise, as noções
de consciência e de memória. Assim sendo, entende-se a memó-
ria a partir da crítica à história oficialmente contada, ou seja,
uma ficção, o desconhecimento da história que nos foi roubada; e
a consciência se refere à negação da nossa negritude, à ferida do
corpo desconhecido como negro, portanto, navalha da mente, que
nos torna estrangeiro de nós próprios, na qualidade de verdade
do discurso dominante. Como dizem os autores inspirados nos
estudos de Lélia Gonzalez, é “[...] a dialética entre consciência e
memória que reverbera o recalque produzido pela codificação do
mundo à imagem e semelhança do branco” (PIRES; QUEIROZ;
NASCIMENTO, 2022, p. 25). É sempre importante enfatizar que
é no jeito de ser quilombo que se percebem estrategicamente as
possibilidades de ir além da consciência colonial e fazê-la trope-
çar, como diz Lélia Gonzalez, e isso exige a busca pela memória
e essa é a nossa prioridade. Então, professor(a), outra leitura de
cabeceira é o “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, no livro
“Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pes-
soa” (GONZALEZ, 2018).
O empreendimento colonial no controle das imagens é ou-
tro elemento destacado por bell hooks (2019), que, junto com
a consciência colonial, o não saber da memória, o esvaziamen-
to, a alienação, os epistemicídios, o genocídio etc., foram e são

40
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

recursos discursivos e ideológicos para escamotear a violência


da supremacia branca. É evidente que tais recursos discursivos
e ideológicos estão nas práticas de ensino e no entendimento de
escola, que se acostumou historicamente com um padrão de alu-
no(a), com regras criadas para esse padrão; e, aos demais que
não correspondem, cabe enquadramento automático. A escola
permaneceu a mesma para lidar com os(as) diferentes alunos(as)
(CHRISPINO, 2007) numa linguagem violenta.

Vemos o acionamento de uma linguagem que nos coloca diante


do espelho da própria violência colonial de como ela foi e é parte
da constituição do que somos, pensamos e agimos. [...] Nos obri-
ga a perceber que as grandiosas “luzes da modernidade” projetam
uma expressão sombria da violência sobre corpos e mentes colo-
nizados. [...] E não há como sair da “grande noite na qual fomos
mergulhados” sem sacudir, sem agitar essa mesma linguagem que
nos narra e narra o mundo que herdamos. (PIRES; QUEIROZ;
NASCIMENTO, 2022, p. 20).

À vista disso, nós precisamos de uma educação física que fale


o “pretuguês” (GONZALEZ, 2018) do movimento, sendo estraté-
gia e resistência dirigida por mulheres negras, ou seja, “[...] um
campo de descrição que se recusa a ser meramente uma reprodu-
ção dos modos coloniais de dizer e de nos oferecer uma gramática
violenta de constituição subjetiva e política” (PIRES; QUEIROZ;
NASCIMENTO, 2022, p. 19). À vista disso, a Senhora Sueli Car-
neiro (2005), em suas contribuições, lembra-nos que não se trata
apenas de denunciar os mecanismos desumanizantes. É preciso
(re)criar outras linguagens que nos afirmam humanas, humanos
e, como dizem Pires, Queiroz e Nascimento (2022, p. 21), “[...] que

41
ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

não apenas parta da humanidade para negociar o poder, mas qual


a própria humanidade, o sentido de humanos, seja parte do que
se negocia”. Nesse sentido, as minhas recentes pesquisas buscam
reconhecer o elo entre o desenvolvimento das negritudes na afir-
mação do feminino (e seus limites) e a produção do conhecimento
a partir da contribuição das intelectuais feministas negras, deco-
loniais, como prática política educativa na educação física. Por
exemplo, ações pedagógicas da educação física antirracista no meu
capítulo intitulado “Narrativas quilombolas na educação física es-
colar: combatendo o epistemicídio” (NOBREGA, 2021), no livro
“Linguagens na educação física escolar: diferentes formas de ler o
mundo” (MALDONADO; FARIAS; NOGUEIRA, 2021).
A Senhora Beatriz do Nascimento (2022) apresenta os espaços de
liberdade, isto é, os terreiros, quilombos, escolas de samba, grupos de
estudos sobre as questões contemporâneas da população negra sem
perder o elo entre passado e presente. Em resumo, são os territórios
negros que estão nos entornos das escolas. Nesse raciocínio, nós pre-
cisamos de uma educação física que dialogue com os saberes desses
movimentos negros; portanto, estamos falando de uma linguagem de
resistência produtora de currículos inventados que buscam escapar
da lógica colonial e, criativamente, criam, no chão da escola, suas re-
des de comunicação atreladas à perspectiva estrutural, uma vez que a
liberdade negra entra em disputa de poder e expõe a contradição dos
supremacistas brancos e seus seguidores, ligados “[...] ao conserva-
dorismo e ao domínio, [...] como estes atrofiam a aspiração maior em
detrimento não só das próximas gerações de negros, mas da própria
nação e do seu povo” (NASCIMENTO, 2022, p. 79).
Então, professor(a), o que de fato nos forma para a criação de
propostas pedagógicas amefricanas na educação física e na escola?

42
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

São as organizações, ocupações para o pertencimento negro nas


instituições; cursos e currículos de formação política inventa-
dos por nós, negras, negros (de consciência racial) e alianças
engajadas que buscam driblar as ementas branco-eurocentradas
e as armadilhas do capitalismo; indicações de leitura na escola
como centro de formação; as histórias contadas pelas(os) mais
velhas(os) da comunidade escolar, sabe?! A escuta ativa e a in-
cessante pesquisa sobre as experiências, memórias dos territó-
rios negros próximos à escola e seus testemunhos, sobre todas
as formas de violências que estão nas escolas e os tipos de mas-
sacres do Estado que as invadem também, parece óbvio, mas as
pessoas esquecem que todas essas questões falam da linguagem
da violência; portanto, esse apelo para uma educação amefrica-
na não é um tema qualquer, é a luta política pelas vidas negras,
negras-femininas e pobres, pobres-femininas.
Em resumo, entender as prioridades negras na educação
não se limita à esfera do “antirracismo”, o que significa ado-
tar uma postura para enfrentar os racismos (na crítica à lógi-
ca capitalista). Observa-se, em tal provocação, a urgência no
entendimento de que a existência negra exige o enfrentamento
da antinegritude (que ultrapassa as questões do racismo) sen-
do esse um dos componentes para compreender as negritudes
na condição social e material da população negra, principal-
mente pobre-feminina. Portanto, é uma luta de todos e todas a
classe trabalhadora que afirmam (nas suas ações) as negritudes
como respostas plurais e revolucionárias de enfrentamento aos
alicerces do colonialismo (NOBREGA, 2022) e, ao assumir tal
postura de corpos políticos, nós percebemos que estamos to-
cando processos diversificados de aquilombamento para uma

43
ORÍ-ENTAÇÕES AFRO-FEMINISTAS E PRIORIDADES NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR

sociedade alternativa, que depende do desenvolvimento efetivo


da educação amefricana.

PALAVRAS FINAIS

Neste saber, sabor, longe de ser um mamão com mel, este capí-
tulo pede mesmo um café para a gente pensar junto. É na ação de
escrever que me sinto livre, por isso, escrevo como quem busca al-
cançar, na ação das palavras, os passos para a liberdade quilombista.
Gosto de pensar que esta produção é audaciosa, assim como tudo
que defende e veste a negritude e se traduz como coletivo negro na
educação física e educação, justamente por trazer para o palco da
tensão racial pedagógica o grande desafio: instigar docentes a saírem
do seu corpo referência para enxergar, a partir das orí-entações as
necessidades científico-pedagógicas deste Brasil Negro.
A aspiração do texto é traduzir o entendimento de avesso para
anunciar outra educação física que contribua para a proposta de
escola em que o viver negro seja enraizado com seus afetos e hu-
manidades, portanto, na contramão do sentido de instituição como
aparelho ideológico do Estado branco. É na circularidade espiralar
que nos (re)inventamos. Parafraseando Frantz Fanon (2022), cabe
a cada professor(a) o dever de descobrir sua missão para cumpri-la
ou traí-la. Se optar, professor(a), pelo cumprimento da destruição
do projeto colonial, saiba que essas Senhoras Negras e Senhores
Negros propõem um “Pensamento-farol” para os novos caminhos
de possibilidade histórica. Esse é o meu convite para a construção
de um coletivo preocupado e bem organizado, que se forma e se
articula na produção de anúncios na educação, educação física e
assim almeja ser o espelho da existência política negra.

44
CAROLINA CRISTINA DOS SANTOS NOBREGA

Ogunhê, Ogum,
É preciso ter a coragem de viver para e pela revolução,
um brinde pras(os) guerreiras(os)!

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49
Exú matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje!
“É VERDADE QUE TU PASSOU FILME
DE EXÚ, SOR MÁRCIO?” NEGRITUDES
EM CONSTRUÇÃO E DIÁLOGO NAS
AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA EM
UMA ESCOLA DA REDE MUNICIPAL DE
ENSINO DE PORTO ALEGRE/RS

Márcio Cardoso Coelho


Fabiano Bossle

“Èsù pa eye lana pelu okuta ti o ju loni”, este velho ditado


Iorubá que quer dizer: “Exu matou um pássaro ontem com uma
pedra que só jogou hoje”, ficou famoso entre nós brasileiros
no documentário AmarELO do rapper Emicída. Este ditado
questiona e até mesmo desacredita a previsibilidade ocidental em
relação ao tempo e as ações humanas, imanta a potencialidade
de Exu na constante transformação, criação, recriação e como
nos mostra Rufino (2019), desmonta as certezas que a agenda
colonial estipulou como verdades. Verdades estas, que nos
imobilizam, nos prendem, nos colocam em “gavetas”, que não

doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_002
“É VERDADE QUE TU PASSOU FILME DE EXÚ, SOR MÁRCIO?”

dialogam com o todo que nos forma, esse todo que é muito mais
complexo do que a simplória cosmovisão eurocêntrica: branca,
masculina, judaico-cristã, hétero- cis- normativa e patriarcal
com a qual a maioria de nós que já passou dos quarenta anos,
teve seu processo educativo.
Nessa constante de transformações, buscas e novos cami-
nhos, encontramos nas encruzilhadas do mundo escolar, uma
possibilidade de inédito viável (FREIRE, 2019), na qual parti-
mos da superação da consciência ingênua para uma nova cons-
ciência, crítica, criativa e reflexiva, pautada na dialogicidade e
nas experiências existenciais dos estudantes que encontram suas
negritudes na intersubjetividade. O título deste ensaio, em tom
provocativo e não linear (se fosse linear não teria Exú no título),
foi uma pergunta realizada por um estudante negro do 4º ano
do ensino fundamental, para um de nós que é professor de Edu-
cação Física da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, em
uma escola da referida rede, no ano letivo de 2019. A pergunta,
suscitada por uma atividade realizada com a irmã deste estu-
dante que na ocasião também era nossa estudante e estava no 8º
ano do ensino fundamental na mesma escola, trouxe à tona uma
série de reflexões que permitiram nos reposicionar quanto ao
trato pedagógico emergente das escolas públicas nas periferias
do Brasil, ao que tange sobre Educação Física, negritude, anti-
negritude, currículo e escola. Pensamos como estrutura deste
ensaio, descrever brevemente esta ação pedagógica, como nos
posicionamos frente ao que emergiu, o referencial teórico que
nos sustenta para essa discussão, nosso entendimento das pos-
sibilidades de trabalho a serem construídas bem como nossas
considerações finais.

52
MÁRCIO CARDOSO COELHO E FABIANO BOSSLE

É VERDADE QUE TU PASSOU FILME


DE EXÚ, SOR MÁRCIO?

Essa pergunta um tanto surpreendente foi feita pelo Ma-


theus (nome fictício), estudante negro do 4º ano do ensino fun-
damental em uma escola da Rede Municipal de Ensino de Porto
Alegre, no ano letivo de 2019. O Matheus é irmão da Camila
(nome fictício) também estudante da escola, no 8º ano, ambos
nossos estudantes. A pergunta se originou em um debate na tur-
ma do Matheus sobre o trabalho que vínhamos desenvolven-
do com os jogos e brincadeiras da cultura Africana (CUNHA,
2016), pois associou o trabalho e as discussões com o que ficou
sabendo que estávamos trabalhando na turma de sua irmã, a
temática lutas e esportes de combate, nesse caso a capoeira, e o
referido “filme de Exú”, foi “Besouro” (2009), que foi escolhido
dentro do planejamento para iniciar a discussão da capoeira,
com uma abordagem mais ampla discutindo criticamente a si-
tuação do negro brasileiro pós abolição e a capoeira para além
da prática corporal, como um ponto de resistência e cultivo da
negritude. Não demoramos para perceber do que se tratava a
pergunta muito menos para dar a resposta. Sim Matheus, passei
“filme de Exú”, algum problema?
Nesse instante ele nos encara fixamente e responde: “minha
mãe disse que vai vir aqui reclamar na escola, lá em casa a gente
é evangélico e a mãe disse que não quer saber que a gente assista
esses filmes”. E agora José? Lembramos do famoso poema de Car-
los Drummond de Andrade musicado pelo genial e saudoso Pau-
lo Diniz nesse momento, como aproveitar essa situação a priori
complicada e transformá-la em possibilidade de aprendizagem?

53
“É VERDADE QUE TU PASSOU FILME DE EXÚ, SOR MÁRCIO?”

Dissemos a ele, que seria um imenso prazer receber a mãe dele


na escola e explicar o trabalho que vem sendo desenvolvido e prin-
cipalmente os motivos pelos quais o referido filme foi escolhido
para compor o trabalho pedagógico com a capoeira. Nos instigou
a possibilidade de diálogo com uma mulher negra, mãe solteira, da
classe trabalhadora e evangélica. De que forma essa mãe cultivava
sua negritude? O que poderíamos aprender e apreender com essa
situação que emerge do trabalho didático pedagógico?
A crescente evangelização das periferias das grandes capi-
tais brasileiras vem sendo um fenômeno recorrente em nossas
comunidades escolares, a intolerância religiosa e aspectos liga-
dos à antinegritude (VARGAS, 2017; 2020) acompanham esse
movimento. Entender como se dá esse processo pode ter uma
possível explicação nas palavras de Rufino:

Assim, a política colonial sempre foi e sempre será uma biopolítica.


Por aqui, há mais de cinco séculos se empilham corpos, se cavam
covas rasas, assim como se investe em tecnologias de contenção,
tortura e docilização dos mesmos. Para além da manutenção do ge-
nocídio de indígenas e negros, há também o investimento na per-
petuação do esquecimento. Essa dimensão é aquela que os iorubas
conhecem como a morte espiritual, a morte não física. A empresa
colonial mata de inúmeras formas, seja com balas, com a precari-
zação da vida, com o desarranjo das memórias, com o desmantelo
cognitivo, com a coisificação do ser ou com a produção e a manu-
tenção do trauma (RUFINO, 2019, p. 129-130).

A perpetuação de uma “história única” (ADICHIE, 2019), re-


gula corpos negros (GOMES, 2017), e não permite a observação
crítica que leva à emancipação. A reprodução deste paradigma

54
MÁRCIO CARDOSO COELHO E FABIANO BOSSLE

faz com que o negro não consiga sair nunca da frente do “espelho
enigmático” (MBEMBE, 2018), o “não ser” em sua infindável bus-
ca. E qual é a função da escola e da Educação Física nesse proces-
so? Como considerar a experiência negra individual de cada pes-
soa que compõe a comunidade escolar e entender essa experiência
intersubjetivamente na negritude da cultura escolar neste contexto
particular? Será que a escola que opera em uma lógica curricular e
didática colonizada, considera as experiências e o corpo negro em
suas dinâmicas? Aproveitando essa questão que emergiu do Ma-
theus, problematizamos a intolerância religiosa e buscamos através
dos jogos e brincadeiras da cultura africana, problematizar essa
situação e tentar tensionar a lógica dicotômica e binária que rege
a instituição escola e seus respectivos componentes curriculares.
Trazer à tona a antinegritude e o antagonismo estrutural (VAR-
GAS, 2017; 2020), parece ser uma necessidade real a ser problema-
tizada e no nosso entender essa relação se faz como possibilidade
através da Educação Física escolar crítica.

NEGRITUDES E EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR CRÍTICA:


POSSIBILIDADES DE CONSTRUÇÃO

Entender como oportunidade pedagógica a situação que de-


sencadeou esse relato e fazer uma opção por problematizar a ques-
tão de forma dialógica é para além de uma opção política, uma
opção teórica. E nossa opção é por uma forma crítica e reflexiva de
pensar o trabalho didático pedagógico. Nos pautamos pela Educa-
ção Física escolar crítica.
Ao nos pautarmos pela Educação Física escolar crítica (VON
BOROWSKI; MEDEIROS; BOSSLE, 2020; ROCHA; COELHO;

55
“É VERDADE QUE TU PASSOU FILME DE EXÚ, SOR MÁRCIO?”

ARAÚJO, 2021) nos entendemos como intelectuais, intelectuais


que entendem a conjuntura em que vivem, estudam, pesquisam e
planejam seu trabalho na incessante luta de apontar as contradi-
ções de uma estrutura social excludente, colonizada e que acredita
na meritocracia. Acreditamos então na função do professor (a),
como um intelectual transformador. Acreditamos que:

[..] o intelectual transformador é aquele que se manifesta contra


as injustiças e desigualdades econômicas, políticas e sociais dentro
e fora das escolas e constrói uma práxis libertadora incorporada
de maneira orgânica à sua prática educativa, à sua identidade de
professor (BOSSLE, 2018, p.23).

Nos manifestamos contra as estruturas colonizadas pautadas


pela antinegritude (VARGAS, 2017; 2020), que desumanizam, si-
lenciam e coisificam os corpos negros, pois “ o esquecimento ativo
de uma história pontuada pelo sofrimento, pela humilhação, pela
exploração, pelo etnocídio aponta para uma perda de identidade
própria, logo reafirmada alhures (o que é compreensível em face das
pressões raciais no próprio país)” (GONZALEZ, 2020, p.136). O
posicionamento pela experiência negra como forma de construir
conhecimento, se baseia em uma relação da/na práxis em que a “ex-
periência existencial” (FREIRE, 2019) dos educandos é a base e o
ponto de partida de qualquer prática educativa, pois “ a experiência
existencial incorpora a vital e a supera” (FREIRE, 2019b, p.129).
Ademais “o conhecimento deve ser compreendido ontológica
e socialmente” (CARSPECKEN, 2011, p.396), até para não cair-
mos no “perigo de uma história única” (ADICHE, 2019). E nes-
sa “história universal”, o que Mbembe (2018) chama de “pequeno
segredo”, do colonialismo, uma monstruosidade que nos faz ser o

56
MÁRCIO CARDOSO COELHO E FABIANO BOSSLE

“outro, o não ser, aquele que não reconhece o próprio reflexo em


frente ao espelho”, pois nossa história é desconsiderada, diminuída
e não contada, “sobre vidas e histórias negras o Brasil foi construí-
do, mesmo que esse devido reconhecimento não conste nos currí-
culos escolares” (COELHO et al. 2021, p. 116).
Ainda dessa forma, acreditamos que:

Na busca pela reflexão crítica, ao tensionar as relações de poder, as for-


mas de opressão social e a mercadorização do ensino, professores crí-
ticos e professoras críticas se localizam e posicionam no mundo e, ao
fazer isso, reconstroem a própria Educação Física de forma que, agora,
faça sentido ser um componente curricular (COELHO et al, 2022).

A experiência negra como possibilidade de inéditos viáveis


questiona a dicotômica verdade “escrita” pelo colonialismo e pela
civilização ocidental de que ontologia e epistemologia são concei-
tos distintos, separados por uma razão que não enxerga o corpo
como produtor de conhecimento, como nos explica Rufino:

Assim, manteve-se de forma institucional a lógica de disciplinariza-


ção dos corpos, os desmantelos, blindagens e desordens das memó-
rias e cognições. Plantou-se na subjetividade dos seres da colônia a
toada “preto não tem história”. A tríade colonialismo, igreja e ciência
operou no desmembramento da integralidade entre mente, corpo e
espírito e na transformação dessas três instâncias como partes a se-
rem cultivadas de forma separada (RUFINO, 2019, p.133).

Talvez a historicidade impregnada no corpo negro, seja pen-


sada de forma distinta no fazer pedagógico de uma base nacional
comum curricular (BNCC), que entende que para o ensino funda-
mental, os jogos e brincadeiras da cultura Africana tenham que ser

57
“É VERDADE QUE TU PASSOU FILME DE EXÚ, SOR MÁRCIO?”

estudados apenas no período do 3° ao 5° ano e entende que exis-


tem lutas brasileiras, lutas indígenas e lutas de matriz africanas,
como se pudéssemos pensar qualquer coisa brasileira separada das
matrizes indígenas e africanas. Por isso buscamos por:

Uma pedagogia problematizadora que entende os sujeitos, os es-


tudantes, na condição da boniteza de um corpo consciente numa
Educação Física que reconhece outros saberes, conhecimentos,
práticas corporais e manifestações da cultural corporal do mundo
das linguagens corporal e vocabular dos grupos populares e étnicos
distintos que são oprimidos por uma racionalidade curricular per-
sistentemente colonizadora (BOSSLE, 2021, p. 14).

Pois assim pautados teoricamente, podemos pensar “na pos-


sibilidade e na promessa de libertação da personalidade humana,
sem a abdicação de sua responsabilidade como um ser histórico”
(NASCIMENTO, 2019, p.67). Capazes de produzir conhecimento,
tensões, apontar contradições, sem abrirmos mão de nossas expe-
riências negras, que nos encontros intersubjetivos nas escolas ao
longo das aulas do componente curricular Educação Física, pos-
samos compreender que “historias negras” (COELHO et al, 2021)
precisam ser contadas, vivenciadas, experimentadas, mas acima de
tudo, visibilizadas e respeitadas como forma de construir um co-
nhecimento potente e descolonizado.

E DEPOIS DE PASSAR FILME DE EXÚ SOR MÁRCIO, O QUE


FAZEMOS AGORA?

Que Exú em toda a sua potencialidade comunicativa, nos pro-


teja e nos guie para que possamos conseguir lucidez para enfrentar

58
MÁRCIO CARDOSO COELHO E FABIANO BOSSLE

as demandas e as mandingas das “marafundas coloniais” (RUFI-


NO, 2019). Pois sem Exú, não se faz nada. Talvez, através desse
relato de experiência possamos compreender e repensar alguns
importantes aspectos de nosso fazer docente, aspectos que justi-
ficam vivermos nossas experiências em um currículo colonizado
construído na antinegritude.
Fica evidenciado no relato que aqui apresentamos, a natu-
ralização da invisibilização da experiência negra no currículo e
nos espaços escolares. E para além de naturalizado, parece ser
proibido trazer tais discussões para o âmbito das atividades de
ensino. O currículo, não contempla a negritude, o currículo é
“campo de disputas”, é a versão da História contada pelos “ven-
cedores”, entenda-se brancos. O grande sucesso deste currículo
no tal campo de disputas, é conseguir fazer com que a própria
comunidade negra, entenda ser correto desconhecer sua própria
História, que esses saberes e conhecimentos, de alguma maneira
podem ser deixados de lado e ou substituídos pelos saberes e co-
nhecimentos de outros. Talvez as certezas e linearidades se per-
cam no momento de pensar o mundo em uma ontologia outra,
entendemos que essa discussão é que deve pautar os diálogos e
as construções coletivas em torno de uma pedagogia libertadora
e renovada. Talvez a dialogicidade seja algo renovador mediante
uma cultura escolar e curricular que insiste em uma perspectiva
de “educação bancária” (FREIRE, 2019). Educação esta que depo-
sita nos estudantes suas verdades, dogmas, racionalidades, como
se os estudantes fossem recipientes desprovidos de qualquer ex-
periência ou de qualquer saber que possa vir a se constituir um
conhecimento de relevante bem para a coletividade a qual está
inserido. Mas como construir essas possibilidades dentro do que

59
“É VERDADE QUE TU PASSOU FILME DE EXÚ, SOR MÁRCIO?”

constitui o trabalho didático pedagógico? Como visualizar essa


estrutura que desumaniza a negritude?
Talvez o primeiro passo seja:

O que temos de entender, criticar e superar é o mundo presente-


mente constituído, o mundo da Humanidade que requer a não Hu-
manidade da pessoa negra. Esse mundo constituído exige a degra-
dação do outro, um outro paradigmaticamente negro. Um mundo,
portanto, que é, ele mesmo, sinônimo de degradação. Um mundo
em que os seus sujeitos, a fim de se firmarem enquanto sujeitos,
têm de tornar objetos abjetos outros sujeitos, os sujeitos negros
(VARGAS, 2020, p.20).

Ao entender que a lógica humana é branca e a não humana


negra (antinegritude) pode ser o início de uma transformação pa-
radigmática e ontológica que se torna possibilidade de avançar de
uma consciência ingênua para uma consciência crítica e construir
uma relação de empoderamento e educação libertadora para estu-
dantes e professores (as) negros (as). Essa relação entende também
que o marcador racismo, não é suficiente para explicar e entender
as formas de violência sofridas pelo povo negro em sua relação no
mundo e com o mundo e que uma visão conciliatória com essa for-
ma de ver o mundo, logo com esse currículo, também não parece
ser o caminho mais indicado.
Se estamos falando de uma ontologia outra, logo optamos pela
ruptura com as estruturas vigentes, logo o romper dos “grilhões”,
se faz urgente e definitivo. A racionalidade opressora deve ser ten-
sionada e suas contradições apontadas, para que finalmente tenha-
mos uma “luz no horizonte”, para que possamos esperançar uma
negritude renovada, construída coletiva e intersubjetivamente,

60
MÁRCIO CARDOSO COELHO E FABIANO BOSSLE

muito para além das relações étnico raciais. Advogamos nessa es-
crita a construção intersubjetiva de negritudes no diálogo das mais
diversas experiências negras. Do corpo negro brincante, dançante
que professa a fé dos terreiros, mas também aquele que frequenta
os cultos e templos evangélicos, pois toda a experiência que vive,
afeta, muda, constrói e reconstrói os corpos negros, deve ser con-
siderada e assim, como possibilidades reais de aprendizagens e de
construção de conhecimentos e saberes transformadores de uma
racionalidade opressiva e colonizadora.
Entender como romper com essa lógica persistentemente co-
lonizadora e desumanizadora é o desafio que está posto. Pensar,
refletir, dialogar, pesquisar é a tarefa que nos cabe como forma de
buscar no horizonte esse objetivo, pois a utopia que nos move é o
que nos mantém em constante movimento.
Neste texto descrevemos duas situações, uma desencadeou ou-
tra que nos possibilitou trazer como título desse diálogo. Mas quais
foram as mediações pedagógicas (BOLDORI et al, 2022) desenvol-
vidas? De que forma mediamos o conhecimento produzido por estas
duas situações junto aos estudantes? Com a turma do oitavo ano
da estudante Camila (nome fictício), o objetivo era problematizar a
situação do negro no período recente pós abolição (época do filme),
em que o trabalho análogo à escravidão permanecia (permanece em
pleno 2023, vide as vinícolas da serra gaúcha), o povo negro tinha,
em pleno século XX proibição ao culto religioso, as manifestações
culturais, precariedade nas questões de trabalho, os castigos físicos
permaneciam e o acesso à escolarização era limitado. Todas essas
questões foram discutidas mediante ao enredo contado pelo filme.
A afro religiosidade ampla e ricamente apresentada no contexto do
filme, nos possibilitou um igualmente rico debate, com depoimen-

61
“É VERDADE QUE TU PASSOU FILME DE EXÚ, SOR MÁRCIO?”

tos emocionantes dos estudantes com relação a intolerância religiosa


que sofrem. Relatam que por medo e vergonha, preferem esconder
sua fé pelo nosso sagrado, com receio da escalada conservadora que
vive nosso país e que atingiu em cheio também as periferias, enten-
der uma outra forma de viver as experiências da vida, sem dicoto-
mias, também emergiu com força e potência nos debates que foram
construídos, pois a capoeira abrangia todos os aspectos da ontologia
negra. O corpo que carrega fé, dança, luta, saber e uma corporeidade
outra, não pode ser dividido, não cabe em “caixinhas binárias” tra-
dicionais da cultura ocidental. Talvez a percepção desses aspectos,
tenha sido o grande mérito desse trabalho, realmente algo que foi
apreendido de forma muito densa por todos e todas.
Já com a turma do Matheus do quarto ano, que fez a pergunta
central que desencadeou toda essa reflexão, partimos dos jogos e
brincadeiras da cultura africana (CUNHA, 2016), para problema-
tizar aspectos que nos regem como sociedade. Individualização,
competição, meritocracia, segregação, violência racial e de gênero
e intolerância religiosa. Todos esses aspectos foram problematiza-
dos e tematizados com os jogos e brincadeiras da cultura africa-
na. Alguns diálogos foram potentes, foram questionadores, como
quando em uma das brincadeiras uma menina da turma do Ma-
theus disse: “esses jogos não são como a realidade sor Márcio1, na
realidade sempre existem vencedores e perdedores, sempre. Para
alguém ganhar, outros tem que perder. É a vida”...
Que vida? Por que para uma pessoa vencer, todas as outras
do grupo tem que perder? Por que o indivíduo se sobrepõe ao

1 “SOR” é uma pequena abreviação da palavra professor, forma carinhosa pela qual os estudantes
chamam seus professores em algumas cidades do Rio Grande do Sul, não temos conhecimento se
no resto do Brasil, essa forma de se referir aos professores e professoras (soras) ocorre.

62
MÁRCIO CARDOSO COELHO E FABIANO BOSSLE

coletivo? Não existe outra forma de ser e viver? Estes foram os


aspectos que trabalhamos com esses jogos e brincadeiras, mos-
tramos outras possibilidades de ser, viver, conviver e estar no
mundo. Formas essas que respeitam uma outra lógica de pensar
a “ontológica e histórica vocação dos homens- a do ser mais”
(FREIRE, 2019, p.58).
Para solidificar esse trabalho propusemos um projeto de traba-
lho junto a professora referência da turma do Matheus. Essa fala
da coleguinha dele nos inquietou e incomodou muito. Conversa-
mos muito e planejamos ações didáticas para essa turma. Uma das
mais interessantes foi a apresentação da animação Òrun Àiyé - A
Criação do Mundo, em que mostramos que uma outra forma de
explicar a criação do mundo e de todas as coisas, existe e está aí,
presente tensionando as certezas, as verdades absolutas antinegras
que insistem em querer nos forçar a acreditar em uma versão úni-
ca, versão essa que não nos inclui, não nos proporciona diálogo,
tampouco protagonismo. E dessa forma violenta nossas crianças
negras hoje e nós professores negros (as) ontem, fomos sendo des-
considerados no processo educativo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos que através desse pequeno texto em forma de


ensaio baseado em um relato de experiência ocorrido no ano
letivo de 2019 em uma das escolas da rede municipal de ensi-
no de Porto Alegre, conseguimos constatar alguns aspectos que
nos chamam ao diálogo. Nesse ano de 2023, completam-se vinte
anos da lei 10639/03, um marco importantíssimo para a Edu-
cação Brasileira, na qual passamos a tratar das questões étnico

63
“É VERDADE QUE TU PASSOU FILME DE EXÚ, SOR MÁRCIO?”

raciais de forma séria e dentro de uma perspectiva legal. Mas


algumas inquietações permanecem, entendendo que legalmente
tratamos de relações, nos preocupa que a concepção de currí-
culo, baseado em uma cultura hegemônica branca eurocêntrica,
permanece a mesma.
Talvez se esse marco legal tivesse por objetivo tensionar as
relações que pautam esse currículo, talvez tivéssemos mais con-
dições de desenvolver uma Educação com maior equidade. As
relações são importantes, não há dúvidas a esse respeito, mas
como buscar mais equidade em um currículo que não abre mão
de estar construído em uma epistemologia terminantemente co-
lonizadora? Talvez para os limites dessa escrita não consigamos
uma possibilidade de resposta para essa questão, mas entende-
mos que a forma crítica de pensar o trabalho pedagógico ainda
é uma possibilidade viável de apontar tais contradições, por isso
nos pautamos pela Educação Física escolar crítica, em que ten-
sionamos as relações constituídas e apontamos as contradições
de um sistema opressor e colonizado.
Entendemos também que as negritudes se encontram nas
experiências compartilhadas e se relacionam intersubjetiva-
mente, dialogando coletivamente na cultura escolar. Falamos
de negritudes no plural por acreditarmos que nas encruzilhas,
nos cruzos, nos encontros é que as potencialidades aparecem e
se encontram, irmanadas pela ancestralidade e pela experiência
existencial negra de cada um e cada uma de nós. “Cada geração,
numa relativa opacidade, deve descobrir sua missão, cumpri-la
ou traí-la” (FANON, 2022, p.207), sem dúvida alguma decidi-
mos cumpri-la, não nos omitimos tampouco nos escondemos
desse chamado, concordamos que:

64
MÁRCIO CARDOSO COELHO E FABIANO BOSSLE

O corpo é um campo de possibilidades. Para nós, moldados nos di-


tames da política colonial, ainda há muito que descobrir sobre as
potências desse suporte que assenta o poder de Elegbara. O moleque
que não se aquieta na carteira escolar talvez saiba mais sobre isso do
que nós. Já que, com o passar do tempo, inchamos nossas cabeças ao
ponto de esquecermos nosso corpo. As sabedorias inscritas nas gra-
máticas das macumbas já nos diriam que é o movimento que cura.
Porém, somos resultado de um mundo contrário à mobilidade. Gin-
ga demais, para aqueles obcecados pela “segurança” dos caminhos
retos, é um sinal de má conduta (RUFINO, 2019, p. 149).

Laroyê Exú.....

REFERÊNCIAS

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1º ed. São Paulo: Companhia da Letra, 2019.

BESOURO. Direção João Daniel Tikhomiroff. Roteiro Patrícia


Andrade; João Daniel Tikhomiroff; Bráulio Tavares. Gênero ação
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GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes


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2015 Dirigido por Cintia Maria - Jamile Coelho. Duração12
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Português- Brasil.

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VARGAS, João H. Costa. Racismo não dá conta: antinegritu-


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VARGAS, João H. Costa. Por uma Mudança de Paradigma: anti-


negritude e antagonismo estrutural. Revista de Ciências Sociais.
Fortaleza, v.48, n. 2, p.83-105, jul./dez., 2017.

VON BOROWSKI, E. B.; MEDEIROS, T. N.; BOSSLE, F. (org.).


Por uma perspectiva crítica na Educação Física escolar: ensaian-
do possibilidades. Curitiba: CRV, 2020.

68
A luta por outras educações, experiências, linguagens e
gramáticas é uma luta pela vida. A educação como um
fenômeno radicalizado na condição humana trata diretamente
da emergência e do exercício dos seres como construtores dos
tempos e das possibilidades.
(RUFINO, 2019. p.75)* 1

* RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO
FUNDAMENTAL: REFLEXÕES SOBRE
PRÁTICAS DE ENSINO PARA UMA
EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

Thiago José Silva Santana

O presente texto pretende apresentar algumas reflexões acerca


do ensino na educação física escolar sob a perspectivas das leis
10.639/03 (versa sobre a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira”) e 11.645/08 (trata os assuntos relacio-
nados a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indíge-
na e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental
e médio). Trata-se de um tema que impacta o trabalho de pro-
fessoras(es) sobretudo quando trabalham nas redes públicas e pe-
riféricas das grandes cidades do Brasil. Em 2023 as leis referidas
anteriormente completaram 20 e 15 anos respectivamente e desde
sua promulgação. E quais foram os avanços e o que vem sendo
feito pelos profissionais da educação, em especial no campo da
educação física, nas escolas do país? São questões complexas de se
responder pois, apesar de terem ocorrido muitas conquistas, ainda

doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_003
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

há um longo caminho a ser percorrido na construção de uma so-


ciedade sem racismo, sem machismo, sem homofobia, entre outras
forma de discriminação. E o percurso é igualmente longo na busca
por mais justiça social, redução das desigualdades socioeconômi-
cas entre outras formas de dominação.
Para tecer tais reflexões são apresentadas algumas conside-
rações acerca do entendimento sobre a educação para relações
étnico-raciais (ERER) nas Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de His-
tória e Cultura Afro-Brasileira e Africana, bem como a elabora-
ção feita Silva (2011). O papel da educação física no contexto da
ERER é discutido por Grando e Pinho (2016) e a busca de ir além
dessa perspectiva é apresentada por Nobrega (2020) a partir da
construção de uma ideia de educação física antirracista.
Trazer à tona todas estas reflexões me leva a apresentar os as-
pectos que considero importantes na formação e que repercutem
para a sensibilização docente acerca do tema. Para isso abordo
as leis 10.639 e 11.645 para retomar brevemente as lutas travadas
pelos Movimentos Negro e Indígena valendo-se das produções de
Gomes (2011, 2017), Silva (2011) e Munduruku (2012).
Em seguida o olhar volta para a busca pela capacitação e
formação sobre o tema aqui discutido. Ao longo do texto busco
apresentar uma trajetória docente que se faz parte de uma pers-
pectiva da educação para as relações étnico-raciais e/para uma
educação física antirracista. A intenção de escrever “e/para” tem
o objetivo de transmitir uma noção de movimento, de ampliação
de uma forma de entender esses conceitos. Essa noção será me-
lhor exemplificada no texto ao abordar os espaços de formação
continuada. Acredito também que uma perspectiva não exclui a

71
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL

outra, uma vez que, conforme dito anteriormente, ainda há muito


o que se avançar em todos os campos da educação, em especial
na educação física.
Também são realizadas algumas considerações acerca do cur-
rículo adotado pela Prefeitura de Belo Horizonte, bem como, a
partir dos dados apresentados por Pereira et al (2019) e Gomes et
al (2021), é abordada a necessidade de a educação física, enquan-
to campo de conhecimento, como uma dimensão potente para
trabalhar o que determinas as leis 10.639 e 11.645.
Por fim são apresentadas algumas práticas realizada durantes
as aulas de educação física para os anos finais do ensino funda-
mental. Para isso cito algumas formas de abordagem realizadas a
partir das unidades temáticas que fazem parte do currículo esco-
lar e busco desenvolver mais o tema das brincadeiras e jogos dos
povos originários nas aulas de educação física a partir dos traba-
lhos de Santana (2019) e Santana e Santos (2019). E finalizando o
texto são realizadas algumas considerações finais. Para começar
essas reflexões partimos com algumas entendimentos acerca da
ERER e educação antirracista.

EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E


ANTIRRACISTA

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Re-


lações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
-Brasileira e Africana afirma que

“... a educação das relações étnico-raciais impõe aprendizagens en-


tre brancos e negros, trocas de conhecimentos, quebra de descon-

72
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

fianças, projeto conjunto para construção de uma sociedade justa,


igual, equânime” (BRASIL, 2004. p.14).

Como entendimento acerca da educação para as relações étni-


co-raciais (ERER) Silva (2011, p.12) afirma que

“A educação das relações étnico-raciais tem por alvo a formação de


cidadãos, mulheres e homens empenhados em promover condições
de igualdade no exercício de direitos sociais, políticos, econômi-
cos, dos direitos de ser, viver, pensar, próprios aos diferentes per-
tencimentos étnico-raciais e sociais”.

Em relação à ERER é importante refletir sobre qual o papel da


educação física nesse contexto e para isso Grando e Pinho (2016)
discutem apresentam reflexões acerca das relações racistas que
constem a sociedade brasileira, como a colonialidade do poder, o
eurocentrismo e o capitalismo. Considerando esses aspectos as au-
toras consideram que:

“Pois o objetivo do ensino da Educação Física no âmbito das rela-


ções étnico-raciais perpassa pela construção de narrativas e imagi-
nários que busca, acima de tudo, desconstruir os pensamentos que
subalternam os diferentes grupos étnicos e raciais construídos na
“dita modernidade” e transformou a subjetividade de povos intei-
ros” (GRANDO e PINHO, 2016. p.28).

Cabe nesse sentido ponderar que a ERER, com toda a contri-


buição que ela traz para a educação para a diversidade, também
é passível de críticas. Nesse sentido Nobrega (2020) apresenta as
limitações da ERER por ela integrar um projeto de direitos huma-
nos cujo os discursos “não tem como modelo os sujeitos represen-

73
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL

tativos da zona do não ser” (idem, p.51). Para além da perspectiva


representada pela ERER podemos pensar em uma educação físi-
ca antirracista. A respeito dessa outra perspectiva Nobrega (2020,
p.57) entende como

“a educação física antirracista propõe uma inversão, ou seja de-


núncias são importantes, mas é a produção de anúncios que muda
a realidade, inscrevendo nesse ato político a quebra do silêncio,
que tira população negra/preta da condição de encarcerados na
própria realidade”.

Dessa forma entendo que uma educação física antirracista con-


templa elementos de uma educação para as relações étnico-raciais
mas que, conforme afirma Nobrega (2020) produz anúncios, e des-
sa forma coloca a população negra como protagonista na produção
de conhecimento. E nesse sentido vale ressaltar que essa produção
de conhecimento e protagonismo citados anteriormente são fruto
das lutas históricas do Movimento Negro e também do Movimento
Indígena, que entre as diversas pautas está o direito à educação.

MOVIMENTO NEGRO E INDÍGENA: A LUTA POR UMA


OUTRA EDUCAÇÃO E CIDADANIA

O ano de 2023 marca os 20 anos de promulgação da lei 10.639.


A lei que estabelece a obrigatoriedade do estudo da histórica con-
tribuição em diversas áreas do povo negro para a sociedade bra-
sileira a partir da “História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação
da sociedade nacional, [...]” (BRASIL, 2003). Essa lei foi posterior-
mente complementada pela lei 11.645 (que em 2023 completou 15

74
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

anos de sua promulgação) que incluiu que inclui no texto a temáti-


ca dos povos indígenas. Dessa forma, o texto da lei busca levar para
a educação brasileira as contribuições em diversas áreas de suas
duas grandes matrizes étnicas formadoras da sociedade brasilei-
ra, pois segundo texto, estipula no conteúdo programático escolar
“[...] a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura
negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da so-
ciedade nacional [...]” (BRASIL, 2008).
Esse importante marco para a educação nacional foi fruto de
décadas de luta do Movimento Indígena. Ambos tiveram seus
próprios processos históricos de lutas em busca por direitos cujo
um dos principais momentos de destaque ocorre com a promul-
gação da constituição de 1988. Silva (2011) lembra que embora
tardiamente a constituição de 1988 reconhece a diversidade do
povo brasileiro e “... garante o direito à cultura própria e ao co-
nhecimento das demais formadoras da nação, torna o racismo um
crime inafiançável e imprescritível” (idem, p.27). Já Munduruku
(2012) afirma que pela primeira vez a constituição 1988 traz um
tratamento diferenciado para a questão indígena.
Além da importância e influência do Movimento Negro e
Indígena na constituinte que culminou com a constituição de
1988, é importante mencionar como os saberes produzidos pelo
Movimento Negro dialogam com saberes produzidos por pensa-
dores(as) e pesquisadoras(es) do Movimento Indígena. A título
de exemplo deste diálogo Munduruku (2012), ao refletir sobre
o caráter educativo do Movimento Indígena, cita a pesquisadora
e intelectual negra Sueli Carneiro, se valendo de sua elaboração
acerca do epistemicídio, para mostrar como o ocidente dito ci-
vilizado agride os saberes tradicionais indígenas e como isto se

75
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL

constituiu como uma forma de extermínio de vários povos e de


suas memorias ancestrais.
Embora o objetivo deste texto não seja fazer uma ampla revisão
histórica acerca da importância de tais movimentos, cabe desta-
car que são dois importantes atores políticos no cenário nacional
e precisam de uma atenção na construção deste texto, ainda que
brevemente, pois se caracterizam como movimentos produtores de
saberes e educadores da sociedade.
Valendo-se do entendimento Gomes (2017) o Movimento Ne-
gro pode ser compreendido como “...as mais diversas formas de
organização e articulação das negras e dos negros politicamente
posicionados na luta contra o racismo e que visam a superação
desse perverso fenômeno na sociedade” (p.23). O Movimento ne-
gro também se constitui em “...um dos principais mediadores entre
comunidade negra, o Estado, a sociedade, a escola básica e a uni-
versidade” (GOMES, 2017. p.42).
Acerca da importância e da trajetória do Movimento Negro
como ator político Gomes (2017) nos lembra que

“No caso do Brasil, o Movimento Negro ressignifica e politizada


afirmativamente a ideia de raça, entendendo-a como potência de
emancipação, e não como uma regulação conservadora; explícita
como ela opera na construção de identidades étnico-raciais.” (p.21).

E por politizar o conceito de raça que o Movimento Negro, se-


gundo Gomes (2017) acaba por romper com visões distorcidas, na-
turalizada e negativas acerca dos negros e de sua cultura, conheci-
mentos, história. Dessa forma retira o povo negro de uma suposta
inferioridade, interpreta a raça como construção social e questiona
o mito da democracia racial. Além disso o Movimento Negro tem

76
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

sido ao longo do tempo “...o principal responsável pelo reconheci-


mento do direito à educação para a população negra, ...” (GOMES,
p.48. 2011). Com isso o apresenta historicamente um projeto de
educação baseado em uma realidade de luta (GOMES, 2011).
Com relação à questão indígena Munduruku (2012), ao traçar
uma panorama amplo, afirma que é a partir do contexto social e po-
lítico da década de 1970 que nasceu o Movimento Indígena Brasilei-
ro. Foi nesse período que segundo o autor, “... as lideranças ultrapas-
saram as suas próprias comunidades originárias” (MUNDURUKU,
2012. p.51). Também foi em meados dessa década que começaram
a acontecer as assembleias de lideranças indígenas promovidas pelo
meio do Conselho Indígena Missionário (CIMI) e cujo tema de dis-
cussões estavam voltadas para a questão territorial. Os anos 1980
marcam uma fase de maior organização macro e micro, no qual fo-
ram estabelecidas alianças do Movimento Indígena com outros se-
guimentos da sociedade civil e com setores populares.
Os anos 1990 foi marcado pela disposição em fazer que as pro-
messas estabelecidas nas constituição recém promulgada fossem
concretizadas, em especial a demarcação, no período de cinco anos,
de todas a áreas indígenas. Algo que não aconteceu posteriormente.
A relação com o Estado começa a ter outra dinâmica na medida que
muitos jovem começam a ter diploma universitário e passam a ter
um olhar diferente para a sociedade brasileira e participação na vida
cidadã, buscando um protagonismo indígena. A consolidação de
projetos como o desenvolvimento sustentável, professores bilíngues,
projetos radiofônicos, capacitação profissional entre outros também
marcam esse período (MUNDURUKU, 2012).
Em síntese, a importância e o caráter educativo do Movimento
Indígena é apresentado por Munduruku (2012, p.195)

77
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL

“... o Movimento Indígena foi o importante instrumental para a


compreensão da realidade eles era apresentada naquele momen-
to. Representou uma forma nova de perceber como a sociedade
brasileira percebia os povos indígenas e como os povos indígenas
poderiam continuar exercendo um papel questionador dentro da
sociedade brasileira”.

Estas breves considerações no que se refere a caracterização


dos Movimentos Negro e Indígena tiveram por objetivo retomar
o processo histórico de lutas em por direitos entre os quais está o
direito por educação. E também por considerar que conhecer tais
processos contribuem para uma maior conscientização em relação
às demandas históricas, entre as quais está a educação, dessas ma-
trizes formadoras da sociedade brasileira.
Cabe ressaltar que a luta por educação não é uma luta por qual-
quer educação. Silva (2011) nos lembra que “No Brasil, os povos
indígenas, primeiramente nas escolas dos Jesuítas, mais tarde nas
públicas, viram-se constrangidos por tentativas de fazê-los esque-
cer em sua língua, religião, cultura” (SILVA, 2011. p.20).
Acerca das lutas por outras formas educação Rufino (2019.
p.75) nos lembra que

“A luta por outras educações, experiências, linguagens e gramáticas


é uma luta pela vida. A educação como um fenômeno radicalizado
na condição humana trata diretamente da emergência e do exercí-
cio dos seres como construtores dos tempos e das possibilidades”.

Dessa forma, uma educação que quer ser de fato antirracista


precisa estar comprometida e consciente de seu papel, a partir do
conhecimento das lutas que a produziu e sendo mais um agente
transformador da sociedade.

78
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

Portanto, a lei 10.639 é resultado de décadas de lutas e atua-


ção do Movimento Negro. Pois conforme afirma Gomes (2017) a
atuação em fóruns da política educacional ocorre desde o início
do século XX com as reivindicações de organizações negras. A
partir da referida lei diretrizes e pareceres foram produzidos a
fim de promover sua concretização no ambiente escolar. Fina-
lizado esta discussão sobre a história da luta pela construção de
uma educação antirracista abordarei os aspectos da prática em
relação à formação continuada.

ENCONTROS E PARTILHAS: OS ESPAÇOS DE FORMAÇÃO


CONTINUADA

A busca por referenciais que amparem o preparo para um


educação que vislumbre a educação para as relações étnico-ra-
ciais é um desafio profissionais que apresentam essa lacuna na
uma formação. Esse déficit formativo que eu e tantos outros
profissionais que almejam uma educação mais justa viveram foi
abordado por Gomes (2011). A autora ao criticar o currículo das
faculdades de educação pelo país pondera que “o caráter conser-
vador dos currículos acaba por expulsar qualquer discussão que
pontue a diversidade cultural e étnico-racial na formação do(a)
educador(a).” (p.43).
No que concerne a questão da formação Carolina Nobrega
(2020) também aponta reflexões que contribuem para pensar a
lacuna na formação, no que tange a relação para a educação das
relações étnico-raciais, tanto de profissionais negros e não negros.
A pesquisa da autora nos desvelou que:

79
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL

“Na categoria formação docente (formação acadêmica e formação


continuada), os docentes negros entrevistados afirmam que há
sempre a necessidade de suprir as lacunas que ficaram a respeito
da ausência da formação das relações étnico-raciais dentro e fora
da graduação em educação física (licenciatura e bacharelado); por
isso realizaram pós-graduação stricto sensu e lato sensu na área de
educação para pensar as relações étnico-raciais na educação física.”
(NOBREGA, 2020. p.55).

Nobrega (2020) ao descrever as características do sujeitos de


sua pesquisa aponta uma que considero relevante destacar que é a
participação em grupos de estudos com foco nas relações étnico-
-raciais. Esse destaque se faz relevante porque assim como ocorre
com profissionais da rede municipal de ensino de São Paulo, lo-
cal da pesquisa de Nobrega (2020), o mesmo ocorre comigo e ou-
tras(os) professoras(es) em Minas Gerais com destaque para Belo
Horizonte e região metropolitana.
Refletindo sobre esse aspecto da formação continuada, os gru-
po de estudos são espaços importantes de trocas de experiências
que contribuem bastante para a qualificação do trabalho para a
educação das relações étnico-raciais. Primeiramente destaco a im-
portância em minha formação do coletivo de professoras(es) Pen-
sando a Educação Física Escolar (Pensando), do qual faço parte
desde o início do coletivo, na minha formação continuada. O co-
letivo constitui-se de professoras(es) que atuam na rede pública
e particular inicialmente de Belo Horizonte e em seguida alguns
membros mudam para outras cidades e com a ampliação do grupo
pessoas de outros estados também passam a integrar o grupo. Para
ficar mais nítido o propósito do coletivo valho-me das palavras de
Faria e Nicácio (2020, p.3):

80
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

“O coletivo “Pensando” surge em 2012 numa perspectiva de tor-


nar-se um espaço de compartilhamento de ideias acerca da atua-
ção docente de professores de EF. Trata-se, então, de um coletivo
constituído como um lócus de formação e produção de novas for-
mas de perceber e agir no mundo”.

As reuniões de estudo, os momentos formativos e os eventos


organizados pelo coletivo são de grande importância para minha
formação continuada, pois os temas abordados nesses tempos de
trocas abrangem diversos questões que perpassam a atuação pro-
fissional das(os) professoras(es) de educação física, incluindo a
educação para as relações étnico-raciais. Ainda sobre o Pensado
é importante dizer que com o crescimento do coletivo e as de-
mandas variadas das pessoas que o compõe, em 2020 estabeleceu
cinco linhas de estudos e pesquisas entre as quais está a linha
“Educação Física e relações étnico raciais, de gênero e sexualida-
des”1. Foi através das(os) professoras(es) que conheci nessa espa-
ço de formação continuada que entro em contato com as críticas
que se faz a perspectiva da educação para a ERER e a necessidade
de superá-la e com isso a educação física antirracista se apresenta
como potência para isso.
Ainda pensando sobre os espaços de trocas para uma forma-
ção continuada é de fundamental importância citar os Núcleos de
Estudos para as Relações Étnico Raciais (NERER-PBH) da Pre-
feitura de Belo Horizonte (PBH). Os Núcleos estão divididos nas
nove regionais da cidade e são “...uma estratégia de formação con-
tinuada e em serviço para a implementação das leis nº 10.639/03

1 As linhas de estudo e pesquisa que compõe o Pensando, bem como os(as) pesquisadores(as)
pode ser conferido em: <http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/212915#linhaPesquisa>. Acesso
em: 19 de mar. de 2023.

81
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL

e nº 11.645/08.”2 Para tal são realizados encontros quer seja para a


formação ou para “... aprofundamento teórico, socialização e re-
flexão sobre as práticas de promoção da igualdade étnico-racial
realizadas pelas escolas e creches”. Minha participação no núcleo
veio inicialmente a partir de um convite devido a apresentação do
trabalho “Brincadeiras e jogos: uma abordagem da temática indí-
gena nas aulas de educação física” apresentado no II Congresso de
Boas Práticas3 dos Profissionais da Rede Municipal de Educação
de Belo Horizonte, realizado em dezembro de 2019 (SANTANA e
SANTOS, 2019).
O trabalho é oriundo do pôster intitulado “Brincadeiras e jo-
gos indígenas: uma possível abordagem do tema nas aulas de edu-
cação física” na mostra de produções pedagógicas do II Encontro
Pensando a Educação Física Escolar, ocorrido em junho 2019. Am-
bos os textos tratam-se de relatos de experiência com a temática ao
longo da minha trajetória profissional na PBH no trato da questão
indígena nas aulas de educação física para estudantes do sexto ao
nono ano, também conhecido como ensino fundamental dois ou
anos finais.
O trabalho Santana e Santos (2019) foi reapresentado para as/
os colegas de profissão participantes do núcleo em uma reunião
remota do Núcleos de Estudos para as Relações Étnico Raciais da

2 Para mais informações acerca dos Núcleos de Estudos para as relações Étnico-Raciais
da PBH acessar: https://prefeitura.pbh.gov.br/educacao/educacao-e-relacoes-etnico-raciais.
Acesso em: 1 de mar. de 2023.

3 O Congresso de Boas Práticas é um evento promovido pela Prefeitura de Belo Horizonte


e teve sua terceira edição em 2022. O congresso é direcionado aos professores(as) da rede
municipal e tem como objetivo de compartilhar experiências e saberes. Para mais sobre o evento
consultar em: https://prefeitura.pbh.gov.br/educacao/congresso-de-boas-praticas. Acesso em:
18 de mar. de 2023.

82
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

regional norte (NERER-Norte), já no contexto da pandemia, no


ano de 2020. Na ocasião foram apresentados três relatos de expe-
riência cujo o tema era a abordagem sobre a questão indígena na
educação infantil e no ensino fundamental um e dois. A reunião
foi um momento marcante pois pude também ouvir os trabalhos
desenvolvidos por colegas de outras áreas do conhecimento e se
configurou em um momento riquíssimo de troca de experiências.
Esse aspecto é algo que considero de uma relevância ímpar, pois a
possibilidade de falar e ouvir colegas que também vem abordando
a temática indígena nas aulas das disciplinas pelas quais são res-
ponsáveis inspirou novas possibilidades de se abordar a temática
étnico-racial nas aulas de educação física.
Ainda acerca dos trabalhos de Santana (2019) e Santana e
Santos (2019), vale ressaltar que foram os primeiros ensaios de
transformar em texto as reflexões acerca do trabalho docente
acerca da educação para as relações étnico-raciais. Essas tenta-
tivas se devem à participação no Pensando e no NERER-Nor-
te. Tais espaços se constituem como espaços de formação conti-
nuada e como espaços de afetos. A título de exemplo considero
fundamental dizer da importância da condução dos momentos
formativos pelas Professoras Maria das Mercês e Mara Evaristo
ao longo do período em que faço parte do NERER-Norte. Duas
mulheres negras que com muito afeto acolhem todas, todes e to-
dos profissionais que ingressam no núcleo. Foi com elas, nesse
espaço de formação, que ampliou a noção de se trabalhar a ERER
para além de projetos datados, buscando inserir os conteúdos das
leis no cotidiano escolar, nos demais temas que as áreas da edu-
cação já trabalham. Ou seja, a partir do currículo disposto levar
as questões étnico-raciais para as aulas.

83
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL

ENTRE A ESCOLA E A ACADEMIA: CURRÍCULOS,


EDUCAÇÃO FÍSICA E AS QUESTÕES ÉTNICO-RACIAIS

Assim como Gomes (2011) aponta para a falta de diversida-


de nos currículos da universidades o mesmo pode-se dizer para
o currículo do ensino básico. A Base Nacional Comum Curri-
cular (BNCC), que é alvo de críticas 4, referência os currículos
das redes estaduais e municipais de ensino. A PBH produziu um
documento para servir de referência aos profissionais da rede
denominado “Percursos Curriculares e trilhas de aprendizagem
para a rede municipal de educação de Belo Horizonte em tempo
de pandemia” 5.
Anteriormente à pandemia de COVID-19 o que referenciava
aos profissionais da rede Belo Horizonte era um documento de-
nominado “Proposições Curriculares”6 cuja sua primeira edição
publicada data do ano de 2010. E neste documento, em sua versão
para a área de educação física, a única menção que se poderia con-
siderar, com algum esforço, direcionada às questões étnico-raciais
se refere ao ‘respeito às diferenças’. Portanto, um documento pu-
blicado sete anos após a lei 10.639 ainda não apresentava de forma
nítida o conteúdo da referida lei. O mesmo se aplica à questão in-
dígena disposta na lei 11.645 de 2008.

4 O artigo “Incoerências e inconsistências da BNCC de Educação Física” produzido pode Neira


(2018) aponta para os problemas presentes no documento de abrangência nacional.

5 Para maior conhecimento o documento está disponibilizado no site < https://


prefeitura.pbh.gov.br/sites/default/files/estrutura-de-governo/educacao/2021/percursos_
curriculares_26novembro_versaopreliminar_para_escolas.pdf>. Acesso em: 11 de mar. de 2023.

6 A integra do documento destinada à educação física poder conferida em: < https://prefeitura.
pbh.gov.br/sites/default/files/estrutura-de-governo/educacao/2021/proposicoes-curriculares-
ensino-fundamental-educacao-fisica.pdf>. Acesso em: 11 de mar. de 2023.

84
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

Retomando o “Percursos Curriculares” da PBH, esse documen-


to é baseado no currículo estadual de Minas Gerais, denominado
“Currículo Referência de Minas Gerais”, que por sua vez é baseado
na BNCC. O documento de Belo Horizonte que foi elaborado para
o contexto da pandemia continua sendo a referência após o retor-
no presencial das aulas.
Assim sendo os problemas originários do documento nacional
acabam que por uma reação em cadeia repercutidos nos currícu-
los que se referenciam nele. A BNCC de educação física coloca
a questão étnico-racial para ser trabalhada do terceiro ao quinto
ano, sobretudo nas unidades temáticas de Brincadeira e jogos e
de Danças oriundas das matrizes africanas e indígenas. Os “Per-
cursos de Curriculares” de Belo Horizonte ampliou a presença das
questões étnico-raciais ao propor também o estudo das lutas de
matrizes africanas e indígenas. Porém as questões étnico-raciais,
no currículo, ficam restritas ao quarto e quinto anos.
O currículo é um campo de disputa e os saberes que lá estão
dispostos, nos documentos das três esferas (nacional, estadual e
municipal) ainda são bastante baseados na matriz europeia. No
campo da educação física isso pode ser constatado pela presença
do esporte e da ginástica ao longo de todos os anos o ensino fun-
damental. E em nenhum ano as habilidades a serem trabalhadas
contemplam as questões étnico-raciais nessas unidades temáticas.
A partir desse contexto, a educação física enquanto área do
conhecimento precisa se apresentar como uma dimensão potente
para trabalhar com as questões étnico-raciais. Gomes et al (2011)
afirmam que o livro “Orientações e Ações para a Educação das
Relações Étnico-Raciais” do Ministério da Educação (2006) ao
mencionar os curso de formação de professores(as) para atuar na

85
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL

educação básica cita nominalmente quase todas as áreas, exceto a


educação física.
No campo da educação física ainda há a necessidade se reali-
zar mais trabalhos que envolvam as questões étnico-raciais e an-
tirracista. A pesquisa de Gomes et al (2021) revelou que em dois
periódicos ligados ao Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte
(CBCE), há uma escassez de publicações. Os autores verificaram
que a publicação Cadernos de Formação há uma prevalência maior
de trabalhos em comparação com a Revista Brasileira de Ciências
do Esporte. Anda destaque-se que tais trabalhos da revista Cader-
nos de Formação foram em sua maioria relatos de experiência.
Pereira et al (2019) pesquisaram os professoras(es) da rede mu-
nicipal de Fortaleza e concluíram que embora a maioria das(os)
professoras(es) desconheça as leis a maior parte trabalham con-
teúdos com a temática étnico-racial nas aulas de educação física.
Também ressaltam ser importante que se elabore documentos e/
ou instrumentos que busquem construir na educação física escolar
um currículo intercultural, assim como a necessidade de remode-
lar práticas pedagógicas que abordem de relações étnico-raciais na
escola (PEREIRA et al, 2019).
Dessa forma, pouca presença das questões étnico-raciais nos
currículos da educação física, bem como nas pesquisas mostram
como os corpos negros e indígenas são negligenciados pelo campo.
Acerca disso, Moreira e Silva (2016, p.53) apresentam uma contri-
buição ao afirmarem que

“Desta forma percebemos que as representações de corpo negro e


corpo indígena na escola e na educação física seguem ideologias
dominantes que historicamente segregaram saberes destas cultu-

86
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

ras. Isso decorre da percepção de que a Educação Física encontra


em seu percurso histórico dificuldades para associar o seu objeto
de investigação a questão étnico-racial”.

Portanto, embora haja pesquisas no campo da educação física,


o que há no contexto escolar são algumas(uns) professoras(es) que
tem buscado, ainda que com uma formação que apresenta a lacu-
na da ERER, realizar no chão da escola o que determinas as leis
10.639/03 e 11.645/08.

NO CHÃO DA ESCOLA: ALGUMAS PRÁTICAS REALIZADAS

Nesse tópico do texto busco apresentar algumas práticas reali-


zadas nas aulas de educação física que buscam romper com o cur-
rículo estabelecido ao buscar priorizar temas ligados as questões
étnico-raciais. A ênfase fica para o trabalho com os brincadeiras
e jogos indígenas que incialmente tratados em Santana (2019) e
Santana e Santos (2019).
Ao se tematizar as práticas corporais afro-brasileiras e indíge-
nas Grando e Pinho (2016) nos lembram da importância de que
a apresentação de tais práticas devem ser apresentadas de formas
contextualizadas, ou seja, como expressões que possuem história e
um enraizamento cultural e que devido a isso são fruto das socie-
dades que as produziram.
Além disso, conforme dito anteriormente, trazer as questões
étnico-raciais para as demais unidades temáticas é algo fundamen-
tal, e que pode até mesmo questionar a divisão em unidades temá-
ticas. Isso fica mais evidente ao se trabalhar o conteúdo capoeira,
que quebra esse paradigma uma vez que se trata de uma prática
que é simultaneamente jogo, dança e luta.

87
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL

Outro momento que exemplifica a possibilidade de trabalhar


temas africanos e indígenas nas unidades temáticas foi ao abordar,
em um conjunto de aulas sobre jogos de tabuleiro, o jogo africano,
oriundo do Quênia, denominado Shisima7. Esse jogo foi trabalha-
do tanto antes da suspensão das aulas devido à pandemia de CO-
VID-19 quanto durante o ensino remoto. Um fato que vale men-
cionar foi quando uma aluna, após conhecer o jogo, propôs fazer a
versão humana do jogo. E assim foi realizado. Outro jogo de tabu-
leiro trabalhado nesse conjunto de aulas foi o Adugo8 (ou “jogo da
onça”), de origem indígena, da etnia Bororo. Essa foi uma forma
de buscar apresentar aos estudantes práticas que são oriundas das
matrizes africanas e indígenas.
No conteúdo de lutas acorreu de maneira semelhante, ao se
abordar a luta Marajoara9, praticada no estado do Pará, bem como
o huka-huka10 que é praticada pelo povo Bakairi e em rituais dos
povos do Xingu, como o Quarup. O huka-huka também foi traba-
lhado nas aulas sobre Brincadeiras e Jogos indígenas.
Além disso, buscou-se trabalhar na unidade temática espor-
tes ao se solicitar aos estudantes pesquisas que sobre atletas ne-
gros. Quando trabalhado o atletismo foi pedido a pesquisa sobre
mulheres negras do atletismo e discutida sua presença no esporte.

7 Maiores informações sobre o jogo Shisima estão disponíveis em: <https://disciplinaninja.


com/2020/07/03/shisima-jogo-africano/>. Acesso em: 25 de mar. de 2023.

8 Maiores informações sobre o jogo Adugo estão disponíveis em: <https://pt.wikipedia.org/


wiki/Jogo_da_on%C3%A7a>. Acesso em 25 de mar. de 2023.

9 Maiores informações sobre a luta Marajoara estão disponíveis em: <https://pt.wikipedia.org/


wiki/Luta_marajoara>. Acesso em: 25 de mar. de 2023.

10 Maiores informações sobre a luta Huka-huka estão disponíveis em: <https://www.infoescola.


com/artes-marciais/huka-huka/>. Acesso em 25 de mar. de 2023.

88
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

Luta indígena Uca-Uca durante a aula de educação física


para uma turma do 6º ano em 25/02/2015 .
Fonte: o autor. Acervo pessoal

Quando foi trabalhado o futebol algumas questões raciais foram


discutidas e em um ano foi pedido aos estudantes uma pesquisa
sobre quantos negros eram dirigentes de clubes ou técnicos dos
clubes da série A do campeonato brasileiro. O objetivo era estabe-
lecer um olhar crítico para as relações raciais que se estabelecem
no esporte profissional.
O trabalho realizado entre os anos de 2015 a 2019 com a temá-
tica das brincadeiras e jogos indígenas nas aulas de educação físi-
ca gerou o os trabalhos citados anteriormente (SANTANA, 2019 e
SANTANA e SANTOS, 2019). Vários objetivos estavam estabele-
cidos ao tematizar as práticas corporais oriundas das culturas dos
povos originários estabelecidas no território brasileiro, que podem
ser resumidas de uma forma geral, da seguinte forma: I) discutir os
papeis de gênero nas brincadeiras; II) diferenciar os tipos de brin-
quedos; III) identificar as práticas corporais em comum com a que
os estudantes já conheciam; e IV) os significados do brincar nas

89
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL

culturas indígenas e no contexto local das/dos estudantes (SAN-


TANA e SANTOS, 2019).
O preparo das aulas para tematizar as brincadeiras e jogos in-
dígenas se deu pela pesquisa de artigos, sites, vídeos11, livros, que
depois de selecionados serviram de subsídio para a elaboração das
aulas e alguns apresentados aos estudantes. Após alguns anos e
com a ampliação do conhecimento acerca dos povos originários
alguns vídeos foram abandonados por apresentar pontos proble-
máticos na abordagem do tema. Contudo algumas fontes ainda são
muito relevantes e merecedoras de serem citadas.
O site Mirim.org12 apresenta textos, vídeos de brincadeiras,
brinquedos e jogos contextualizadas, ou seja, informa a quais et-
nias praticam, quem são as pessoas da comunidades que partici-
pam, como a cultura é passada de uma geração para a outra. O
conteúdo do site também está disponível no formato de livro in-
titulado “Povos Indígenas no Brasil Mirim”. Tanto no site quanto o
livro apresentam uma linguagem acessível, no formato de divulga-
ção científica, onde pode-se encontrar sessões como: quem são os
povos, como vivem, onde estão, antes de Cabral.
As aulas sempre se iniciaram perguntando às turmas qual o
conhecimento que tinham acerca das culturas indígenas. Esse mo-
mento prologou algumas vezes com mais perguntas para que as/
os estudantes pudessem elaborar melhor suas respostas. A seguir

11 Um dos vídeos utilizados traz várias imagens de jogos e brincadeiras indígenas está
disponível <https://youtu.be/NRGHiB8jdpE>. Acesso em: 11 de mar. de 2023. Alguns vídeos
utilizado também estão disponíveis no site mirim.org. São vídeos curtos mostrando algumas
brincadeiras e jogos indígenas no contexto de suas culturas.

12 Para poder verificar as informações que o site disponibiliza verificar em <https://mirim.org/


pt-br>. Acesso em: 10 de mar. de 2023.

90
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

foram mostrados vídeos com jogos e brincadeiras indígenas para


que as turmas tivessem uma referência visual de como ocorriam
algumas brincadeiras.
Entre as várias práticas que as/os estudantes identificaram, que
fizeram ou fazem parte do seu cotidiano, apresentadas nos vídeos es-
tavam, entre outras o peão, corrida, cabo de guerra e o futebol. Em-
bora está última não seja uma pratica originalmente indígena está
muito presente em comunidades indígenas tanto próximas quanto
distantes dos grandes centros urbanos. Souza et al (2018) apresenta
que há produções acadêmicas que tematizam o futebol praticado en-
tro os povos indígenas. Freitas e Fassheber (2011)13 após relatar uma
cena que envolve o futebol e o povo indígena Xikrin, afirmam que

“... Mostra a dinâmica cultural na incorporação de elementos não


tradicionais mesclado aos tradicionais. Demonstra também que o
esporte não é apenas copiado ou imitado, mas sim incorporado,
no sentido de que ele ganha significado próprio em cada cultura
indígena, dentro da tradição, e a partir das explicações míticas.
Com isso, estamos demonstrando que o Futebol, e em particular
o que a sociedade reconhece como futebol indígena, constitui-se
como uma prática social derivada de experiências vividas, uma
composição de pluralidades, uma prática temporal. Sobretudo, fu-
tebol indígena é um termo ou um conceito forjado pela sociedade
envolvente” (idem, p.128-129).

Durante uma das aulas uma aluna do nono ano relatou, em tom
nostálgico, que a brincadeira “arranca mandioca” era algo que ela

13 Cabe ponderar que embora o trabalho de Freitas e Fassheber (2011) mostre essa apropriação
do esporte, assim como a pesquisa de Souza et al (2018) apresente que há produções acadêmicas
que tematizem o futebol praticados entre os povos indígenas, esses povos sofreram e ainda sobre
com o etnocídio em diversas partes do Brasil.

91
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL

Brincadeira do “Arranca a mandioca” durante uma aula de educação física


para uma turma do 7º ano em 12/04/2017 (à esquerda) e
para uma turma do 9º ano em 04/04/2018 (à direita).
Fonte: o autor. Acervo pessoal.

e outros colegas brincavam quando estavam nos anos iniciais da


escola. Essa afirmação vai de encontro com a informação do livro
Povos Indígenas no Brasil Mirim que afirma que “Esta brincadeira
ainda vive firme e forte em algumas comunidades indígenas, mas é
desconhecida entre crianças e adultos não indígenas” (idem, p.70).
Embora não tenha lembrado qual a relação que a estudante tinha
com os povos indígenas, ou como a brincadeira foi apresentada
à ela, foi uma agradável surpresa saber que uma prática indígena
conseguiu chegar à uma estudante de uma escola da periferia de
Belo Horizonte.
Outras práticas realizadas na maioria das turmas foram cabo
de guerra, peteca, corrida de tora, corrida de saci, uca-uca, jogo
da onça e, como dito anteriormente, futebol. A ‘corrida de tora’ é
uma prática que foi realizada de forma adaptada para a realidade
escolas. Foi solicitado que um(a) estudante fizesse o papel de tora
que foi carregado(a) pelos demais integrantes do grupo.
As discussões suscitadas nas aulas problematizaram temas que
perpassam várias dimensões da vida humana, como as questões

92
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

Atividade “Corrida de tora” com o colega durante a aula de educação física


para uma turma do 9º ano em 04/04/2018.
Fonte: o autor. Acervo pessoal.

de gênero, étnico-racial, a relação com o ambiente, com os demais


membros de um grupo, a desconstrução da imagem estereotipada
que se tem dos povos originários, entre outras.
Quando se apresentou o tema brinquedos e brincadeiras de ma-
neira geral, o questionamento sobre quais brinquedos e brincadeiras
são destinados às meninas e aos meninos, e isso implicou na reflexão
que essas diferenças apontavam para um preparo sobre os papeis
a se desempenhar quando adultos. A partir desse questionamento
uma discussão sobre questões relacionadas aos papeis de gênero foi
estabelecida quando, por exemplo, se o papel de cuidar dos bebes
eram função exclusiva da mãe ou se o pai deveria igualmente par-
ticipar dessa fase inicial da vida, e como a brincadeira de boneca
estava relacionada à esse papel de gênero. Na abordagem sobre as
brincadeiras e jogos indígenas essa discussão foi retomada.

93
EDUCAÇÃO FÍSICA NO ENSINO FUNDAMENTAL

Para desenvolver essa temática foram utilizadas em torno de


seis aulas. Assim como ocorre ao abordar outros conteúdos da
educação física, não houve uma participação unanime em todas as
turmas, bem como em todas as atividades. Apesar dessas dificulda-
des que fazem parte da vida de professores de todas as disciplinas,
a avaliação que se faz desse conjunto específico de aulas é que foi
significante para a formação dos estudantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No ano em que as leis 10.639/03 e 10.645/08 completaram 20


e 15 anos respectivamente é marcante devido à importância his-
tórica dessas leis para o Brasil. Essas leis são resultado das lutas
dos Movimentos Negro e Indígena em busca de reconhecimento
pelo Estado brasileiro de direitos historicamente recusados a essas
parcelas da população. Ao longo da trajetória de lutas dos Movi-
mentos Negro e Indígena muitos avanços ocorreram e as pautas
levantadas provocaram mudanças na sociedade. Esses Movimen-
tos ao lutarem mostraram que são produtores de conhecimentos e
com isso mostram o seu caráter educador.
Todos os avanços conquistados pelos Movimentos Negro e In-
dígenas produziram de mudanças na educação. Ainda assim muito
há que ser fazer para que mais avanços se concretizem. O que foi
possível verificar é que o empenho em construir uma educação física
antirracista e que eduque para as relações étnico-raciais perpassa
mais pelo empenho pessoal de profissionais comprometidos, como
mostrou Nóbrega (2020), que buscam grupos de pesquisa e outros
espaços formativos. Ainda há um desconhecimento acerca das leis,
conforme apresentado por Pereira et al (2019). Apesar dos inúmeros

94
THIAGO JOSÉ SILVA SANTANA

avanços em direção a uma educação para as relações étnico-raciais


desde a promulgação das leis 10.639/03 e 11.645/08 ainda há muito
o que avançar no que tange a formação de professores(as).
Os espaços de formação continuada mostram-se como alterna-
tivas bastante interessantes para compensar as lacunas na forma-
ção. Nesse sentido as experiências com o coletivo Pensando e os
NERER-PBH foram apresentadas como exemplos de relevantes e
profícuos espaços formativos na trajetória docente.
Nesse texto trouxe alguns exemplos de práticas de ensino que
foram tentativas de construir uma educação antirracista. A ênfase
ficou no trabalho desenvolvido no conjunto de aulas dedicados as
brincadeiras e jogos indígenas. O empenho em buscar produzir
essa educação pautada nas referências indígenas, afro-brasileiras
e africanas mostram-se muito interessantes. Finalizando entendo
que o caminho em fazer uma outra educação para construir ou-
tra sociedade, pautada na justiça e igualdade é árduo, contudo a
construção de uma educação física antirracista tem se mostrado
potente nesse sentido.

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100
Aquele que tenta sacudir o tronco de uma árvore
sacode somente a si mesmo!
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA:
NOTAS E REFLEXÕES PARA A
EDUCAÇÃO FÍSICA

Izaú Veras Gomes


Roberta Batista de Faria

É preciso desaprender! Que possamos ter atenção às boas no-


vas trazidas pelos ventos, que possamos nos render ao vento que nos
venta da cabeça aos pés1 e nos leva para onde não queremos, pois é
preciso desaprender.
Como fomos ensinados(as) a aprender? Quais referências
construímos ao longo do tempo sobre o aprendizado? Essas re-
ferências contemplam as diferentes existências presentes no am-
biente escolar, e fora dele? Quando falamos aqui de referências,
estamos nos referindo aos currículos, às técnicas de aprendizagens
e até mesmo a forma como nosso corpo aprende a se comportar na
relação com os espaços e sujeitos presentes na escola, referências
estas, na maioria das vezes, embranquecidas e eurocêntricas.

1 Trecho da música “Asas” do álbum “Um corpo no mundo” de Luedji Luna, 2017.

doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_004
IZAÚ VERAS GOMES E ROBERTA BATISTA DE FARIA

A nossa reivindicação enquanto população negra pelo acesso


à educação é uma luta constante que vem de longe. A busca pela
legitimidade das contribuições das culturas Africanas e Afro-bra-
sileira nos currículos, historicamente sempre foram pauta dos Mo-
vimentos Negros e ganhou mais força de reivindicação na década
de 80 após a criação do MNU (Movimento Negro Unificado), po-
rém esses passos também vieram de longe, lutas e reivindicações
da população negra desde o período colonial, em que esses sujeitos
eram destituídos dos seus direitos. Só em 2003, fruto dessas lutas,
tivemos uma lei federal que estabeleceu a obrigatoriedade do ensi-
no da história e da cultura africana e afro-brasileira nos currículos
escolares e nas diferentes disciplinas, a lei 10.6392. (BRASIL, 2003)
Vinte anos após a promulgação da lei, por mais que se tenha
ampliado o debate acerca da importância do ensino para as rela-
ções étnico-raciais, investido na construção de materiais didáticos
e formação continuada de professores que se alinhem com essa
proposta, a escola ainda é um espaço que privilegia uma perspec-
tiva educativa embranquecida e colonizadora, para além disso, si-
lencia as vozes e cerceiam os corpos que naquele espaço existem.
Atentemo-nos para o fato de que antes mesmo da promulgação
da lei, no processo de luta pelo direito à educação, a população
negra sempre foi educadora, sempre produziu e promoveu ações e
projetos educativos em nossa sociedade nas mais diversas lingua-
gens e maneiras de se fazer e construir educação. Resgatamos aqui
a noção de educação popular negra (SILVA, 2021), apontadas pelo
professor Natalino enquanto um “conjunto de ações sociopolíticas,

2 A Lei 10639 e, posteriormente, a Lei 11645, que dá a mesma orientação quanto à temática
indígena, São leis afirmativas que tornam obrigatório o ensino da História e cultura Africana e
afro-brasileira no currículo escolar.

103
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA

educativas, religiosas e culturais, as quais foram historicamente


promovidas e agenciadas por entidades e associações afro-brasilei-
ras”. (SILVA, 2021, p.90)
Pensemos nas potências educativas periféricas negras que
pulsam nas ruas e nos corpos que habitam as escolas, mas são
silenciadas pelas próprias escolas e narrativas dominantes que
seguem ditando o que é cultura, o que é educativo, o que merece
investimento, o que deve estar nos currículos escolares; em resu-
mo: o que é branco.
Mas, como nos lembra Lélia, “de Palmares às escolas de samba,
tamos aí” (GONZALEZ, 2018, p.119) resistindo, produzindo cultura
e educação muito antes da noção branca de currículo. Não buscamos
aqui inventar a roda, os caminhos já estão abertos e cá propomos um
exercício de olharmos para o avesso do mesmo lugar3 na educação,
deslocar o olhar para os saberes produzidos pelo Movimento Negro
Educador (GOMES, 2017) que há tanto e tanto nos ensina.
Reafirmamos a fala de Natalino ao dizer que refletir sobre a
educação popular negra diz respeito também “à legitimação da
produção da população negra no curso da história em diferentes
campos, a saber: epistêmico, ético, estético, sociopolítico, econô-
mico, cultural, entre outros.” (SILVA, 2020, p.2)
Esperamos que esse texto possa trazer provocações a partir da
educação popular negra para repensarmos nossas práticas educa-
tivas em educação física. Dessa forma, iremos na primeira sessão
resgatar os saberes produzidos pelo movimento negro ao longo
do tempo, que dizem sobre nossa maneira de pensar e produzir

3 Trecho do samba enredo “Histórias pra ninar gente grande” da G.R.E.S - Estação Primeira
de Mangueira, RJ, 2019.

104
IZAÚ VERAS GOMES E ROBERTA BATISTA DE FARIA

educação, na segunda sessão traremos o corpo para o debate e


sua relação com a educação nas perspectivas negras e fecharemos
com a presença de grupos, organizações e ações do movimento
negro da cidade de Belo Horizonte que através de suas diversas
manifestações se articulam com a ideia de currículos marginais e
produções educativas que acreditamos.

EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA:


MODOS DE APRENDER E ENSINAR

Sempre tivemos nossas formas de educar. O acesso à educação


sempre foi uma luta constante da população negra que ao longo dos
tempos e espaços foram produzindo diversas maneiras de apren-
der e ensinar. De todo modo, as reivindicações das pessoas pretas
pela educação formal sempre foi pauta do movimento negro.
Se antes, no período escravocrata, as pessoas escravizadas
eram proibidas institucionalmente de estudarem, na transição do
império para a república o acesso continuou sendo campo escasso,
porém a reivindicação da população negra começou a tomar uma
proporção e organização maior ao longo dos tempos. A crítica ao
descaso do governo para com a educação dos negros aparece na
mesma proporção em que o protesto racial endurece, ou seja, se
radicaliza. (GONÇALVES e SILVA, 2000, p.143)
As primeiras décadas do séc. XX foram marcadas por várias
mobilizações do movimento negro, entre eles, intelectuais, pro-
fessores e/ou militantes, organizações políticas ligadas a entidades
negras que incentivavam a comunidade negra a alfabetização e não
só crianças ou jovens, mas também adultos que não tiveram opor-
tunidade de estudar ou continuar com seus estudos.

105
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA

Por mais que a educação formal sempre tenha sido pauta da


comunidade negra, nós nunca nos limitamos a ela, a população
negra sempre se movimentou de diferentes formas, inspirados em
diferentes referências e ancestralidades, portanto as estratégias de
produzir saberes e passar ensinamentos não seriam diferentes.
Aqui ressaltamos a oralidade, uma de nossas grandes heranças
ancestrais. Aqui e em África, os griots são os guardiões das pala-
vras e através das histórias que são passadas de pais para filhos e
filhas, são passados também os ensinamentos saberes e culturas
dos diferentes povos e sua ancestralidade. As histórias, os provér-
bios, os itans, as músicas e rezas são parte dos modos de aprender
e ensinar que as populações pretas preservaram e passaram de ge-
rações a gerações.
Nossos modos de aprender e ensinar sempre dialogaram com
o cotidiano, com as diferentes maneiras de viver e estabelecer rela-
ções com as pessoas e com o meio. Conceição Evaristo quando fala
sobre a Escrevivência traz consigo memórias de sua infância, em
que o primeiro contato que teve com a escrita foi na dinâmica do
trabalho de sua mãe, que era lavadeira.

Talvez o primeiro sinal gráfico que me foi apresentado como escri-


ta, tenha vindo de um gesto antigo de minha mãe. Ancestral, quem
sabe? Pois de quem ela teria herdado aquele ensinamento, a não ser
dos seus, os mais antigos ainda? Ainda me lembro, o lápis era um
graveto, quase sempre em forma de uma forquilha, e o papel era
a terra lamacenta, rente as suas pernas abertas. Mãe se abaixava,
mas antes cuidadosamente ajuntava e enrolava a saia, para prendê-
-la entre as coxas e o ventre. E de cócoras, com parte do corpo
quase alisando a umidade do chão, ela desenhava um grande sol,
cheio de infinitas pernas. Era um gesto solene, que acontecia sem-

106
IZAÚ VERAS GOMES E ROBERTA BATISTA DE FARIA

pre acompanhado pelo olhar e pela postura cúmplice das filhas, eu


e minhas irmãs, todas nós ainda meninas. Era um ritual de uma
escrita composta de múltiplos gestos, em que todo o corpo dela
se movimentava e não só os dedos. E os nossos corpos também,
que se deslocavam no espaço acompanhando os passos de mãe em
direção à página-chão em que o sol seria escrito. Aquele gesto de
movimento-grafia era uma simpatia para chamar o sol. Fazia-se a
estrela no chão. (EVARISTO, 2020, p.49)

Esse relato de Conceição diz muitos sobre os modos e fazeres


que as pessoas negras herdaram de seus ancestrais e que são pas-
sados de geração a geração. O ato de aprender e de ensinar que
está grafado no corpo, nas memórias e nas presenças porque assim
como Conceição narra em suas memórias, ela foi criada e incen-
tivada ao universo da leitura e da escrita não só por sua mãe, mas
por suas tias, vizinhas e amigas lavadeiras que a acompanhavam

Foram elas que guiaram os meus dedos no exercício de copiar meu


nome, as letras do alfabeto, as sílabas, os números, difíceis deve-
res de escola, para crianças oriundas de famílias semianalfabetas.
Foram essas mãos também que, folheando comigo revistas velhas,
jornais e poucos livros que nos chegavam recolhidos dos lixos ou
recebidos das casas dos ricos, aguçaram a minha curiosidade para
a leitura e para a escrita. Daquelas mãos lavadeiras recebi também
cadernos feitos de papéis de embrulho de pão, ou ainda outras fo-
lhas soltas, que, pacientemente costuradas, evidenciavam a nossa
pobreza, e distinguiam mais uma de nossas diferenças, em um gru-
po escolar, que nos anos 50 recebia a classe média alta belorizonti-
na. (EVARISTO, 2020, p.51)

E foram essas mulheres, mesmo sendo semianalfabetas, com


pouco recurso ao universo da escrita, que teceram caminhos para

107
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA

que crianças como Conceição pudessem conseguir um maior


acesso à educação formal. A partilha da escritora não se trata de
uma história isolada, é a história de nossas mães, tias e avós, que
estão presentes em muitas trajetórias de famílias pretas ao longo
de suas existências.
As associações e organizações negras tiveram um papel fun-
damental na formação e organização da população negra no séc
XX que se perpetua ainda hoje. Elas se organizavam para ofertar
uma educação que não se limitava somente à alfabetização, tinham
também um importante viés político, cultural e de assistência so-
cial. Eram incluídas nos cursos oferecidos pelas organizações: ati-
vidades musicais, teatrais, danças, leituras entre outras. Assim, se
pensava uma dimensão educacional não só para um grupo de alfa-
betizados, mas também um público de não-alfabetizados.
Uma das organizações de grande importância foi a Frente Ne-
gra Brasileira. A Frente Negra era uma associação de intelectuais
negros que surgiu em 1931, em São Paulo, sendo composta por
escolas nas mais variadas áreas e cursos de alfabetizações e forma-
ção política. Os frentenegrinos tinham a consciência de que para
efetuar uma mudança significativa na comunidade negra, seria ne-
cessário promover junto à escolarização, cursos de formação po-
lítica. Séculos de escravidão haviam afetado profundamente seus
conhecimentos sobre si e suas ancestralidades. A Frente Negra pre-
tendia tornar- se uma organização nacional e em 1936 se tornou
um partido político, entretanto, entrou em extinção em 1937 em
decorrência do Decreto assinado pelo até então Presidente Getúlio
Vargas que colocava como ilegal todos os partidos políticos.
Outra organização que mobilizou o protesto racial, no perío-
do em consideração articulado também a Frente Negra Brasilei-

108
IZAÚ VERAS GOMES E ROBERTA BATISTA DE FARIA

ra, foi o Teatro Experimental do Negro (TEN), idealizado por


Abdias do Nascimento, tinha como ideal a valorização e protago-
nismo do negro no teatro. O TEN toma forma no nascimento do
Teatro Moderno, em 1944. O projeto do Teatro Experimental do
Negro – TEN, engloba sempre trabalhou pela cidadania dos seus
atores, por meio da conscientização e também da alfabetização
do elenco, recrutados entre operários, empregadas domésticas,
favelados sem profissão definida e modestos funcionários públi-
cos. (GÉLEDES, 2011)
As mobilizações dos movimentos não aconteciam somente nas
associações e organizações institucionalizadas, elas aconteciam
também nos terreiros de umbanda e candomblé pelo país. Em Sal-
vador, segundo Marco Aurélio Luz (1983), comunidades de Can-
domblé criaram escolas dentro dos terreiros para atender crianças
e jovens negros e candomblecistas. Nestes espaços, as crianças ti-
nham acesso a conteúdos escolares, mas também vivenciavam e
desenvolviam a cultura Nagô.

Estes tinham todos os clássicos conteúdos escolares, mas desenvol-


viam, ao mesmo tempo, elementos da cultura nagô. Da avaliação
do relator, depreendia-se que os alunos, à medida que não preci-
savam, ao entrar na escola, descartar os valores da cultura de seus
ancestrais, sentiam-se mais integrados na comunidade e demons-
travam uma visível melhora em seus rendimentos (Cadernos de
Educação Comunitária, 1983).

Ainda em Salvador, as experiências de educação comunitária


extrapolavam os limites da educação formal. Os Blocos Afros e
Afoxés tiveram grande influência na formação da população negra
no enfrentamento contra o racismo. O Ilê Ayê é um exemplo

109
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA

importante de construção e ação artística, cultural, política e


educativa na cidade

Em breves palavras, podemos considerar que os projetos educa-


tivos do Bloco Carnavalesco Ilê Aiyê acontecem em três lugares
específicos que se auto influenciam: o Ilê Axé Jitolú, terreiro de
Candomblé; o próprio Bloco Ilê Aiyê; e o PEP- Projeto de Exten-
são Pedagógica. Todas essas territorialidades tem como referên-
cia a liderança de Mãe Hilda Jitolú, matriarca que esteve à frente
do grupo até o ano de 2009, quando realizou sua passagem para o
Orum. Mãe Hilda considerava que um terreiro é como uma escola
vem dela o desejo de ampliar o projeto educativo do Ilê, que nasce
da procura dos moradores do atual Bairro do Curuzu, por reforço
escolar para seus filhos. (ANTUNES, 2019, p. 5)

As referências pretas de organização e produção de saberes e


conhecimentos são diversas, perpassam as gerações e os espaços
ao longo do tempo. Cada tempo e espaço possuem referência
com o contexto no qual brotam as possibilidades de construção
e vão se ampliando e se modificando, o movimento assume um
lugar de importância nestes processos que marcam as diversi-
dades que são produzidas pelos modos de ensinar e aprender da
negritude brasileira.

ESTEREOTIPIA DO CORPO NEGRO E A ESCOLA

Os estereótipos do homem negro e da mulher negra no Brasil


são historicamente debatidos pelo Movimento Negro brasileiro
e, por muitas vezes, perpassam a dimensão da sexualidade e
da corporeidade. Lélia (GONZALEZ, 2018), por exemplo, nos
lembra dos estereótipos que recaem sobre a mulher negra nas

110
IZAÚ VERAS GOMES E ROBERTA BATISTA DE FARIA

imagens de mucama, mulata e da mãe preta e podemos ainda


citar os estereótipos do homem negro forte, bom trabalhador
braçal e também hipersexualizado, estereótipos que se acentuam
com a pele retinta.
Pensando a partir dessas reflexões sobre o corpo negro, a
Educação Física é, então, uma área extremamente importante nas
contribuições para o enfrentamento de tais padrões racistas e,
também, para a superação dessa dicotomia racializada posta em
nossa sociedade.
O professor Fabiano (MARANHÃO, 2016) ressalta essa noção
de um estereótipo negro no campo da Educação Física em expres-
sões como: “você samba muito bem”; “essa ginga vem de sangue”;
“capoeira, isso é coisa da raça”. Afinal, expressões com essas são
uma das formas sutis do racismo no Brasil, pois:

Quando fornecemos explicações biológicas a fenômenos cul-


turais africanos, estamos negando toda capacidade intelectual,
criativa, estética destes povos. É como se atribuíssemos suas habi-
lidade ao acaso, à natureza ou a características inatas, e uma vez
que retiramos tudo que há de humano, histórico e inventivo
dessas culturas, estamos também esvaziando seus sentimentos,
seus valores (MARANHÃO, 2016, p.66).

A professora Vilma (PINHO, 2004) faz uma importante análise


sobre a percepção e a relação de docentes de educação física com
estudantes negras/os. Um dos indícios é de que estudantes negros
são “problemáticos”, “revoltados”, “malandrinhos”, “agressivos”,
“perversos”. Já as percepções sobre as estudantes negras estão
calcadas na promiscuidade e na degeneração social, por sua vez,
calcada na premissa da gravidez precoce (PINHO, 2004, s/p).

111
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA

Se um/a estudante negro/a apresenta uma postura transgres-


sora ou tem problemas com a escola, a tendência é de que do-
centes de Educação Física estigmatizem todos os outros estudan-
tes com o mesmo fenótipo. De uma forma geral, Pinho (2004)
demonstra que docentes, sem conhecer mais profundamente a
identidade de cada estudante, constroem uma biografia a partir
de expectativas identitárias racializadas, reforçando e mantendo
o estigma social do negro.
Gomes (2021) nos lembra o quanto o adjetivo de negritude
precisa ser ressaltado quando um de nós subverte essa lógica fata-
lista do sistema escolar, ou mesmo das “qualidades esperadas para
um negro”.

“Você é um negro inteligente”; “ela é uma negra linda”; “apesar de


negro, ele é muito culto”. Mais uma vez, retomando a noção de Fa-
non (2008) sobre a humanidade posta intrinsecamente ao branco,
não vemos um elogio como “você é um branco inteligente” ou “ela
é uma branca linda”. O branco já porta em seu corpo o padrão de
humanidade; ele é a referência neutra do conceito, sendo que toda
qualidade a ele atribuída já está automaticamente ligada a sua hu-
manidade não nomeada, não sendo necessário um adjetivo racial
para ressaltar suas qualidades. (GOMES, 2021, p.584)

Aqui, indagamos: até que ponto a cultura escolar, ou as cultu-


ras escolares, e a educação física tem rompido com esse processo
de estereotipia negativa de pessoas negras? Ora, lembremo-nos
com Lélia (GONZALEZ, 2018) que a exploração, em benefício
dos brancos é também política, cultural e psicológica, não so-
mente econômica.
Lembremo-nos que a cultura corporal hegemônica nas
escolas brasileiras está estritamente vinculada a uma noção

112
IZAÚ VERAS GOMES E ROBERTA BATISTA DE FARIA

de civilidade branca e europeia. Tal constatação é fruto de um


processo histórico de busca por uma identidade nacional brasileira
eugênica, calcada na ordem e no progresso e em outros valores
civilizatórios europeus. (GOMES, 2021)
Partindo dos conceitos de Fanon (2008), podemos ressaltar
que essa noção de civilidade se refere diretamente à ideia de
humanidade branca. À branquitude, a racionalidade, a beleza, a
delicadeza. Tudo aquilo que destoa desse campo estaria próxi-
mo do primitivo, daquilo que não é considerado tão humano e,
por extensão, daquilo que não é branco. A nós, a brutalidade, o
exagero, a emoção, o não ser, coisas, um devir negro no desejo
consciente de vida.
A nós, dentro da dicotomia ocidental, o estereótipo da emoção,
dos saberes corporais e, portanto, distantes da idealização escolar
da racionalidade iluminista e dos padrões de comportamento so-
cialmente aceitos e produzidos por um viés eugênico e higienista
na sociedade brasileira.
Para nós, uma escola que busca manter os processos de colo-
nização e a estabilidade social capitalista, não sem luta. Para nós, a
luta: “Antes de ser eu, eu sempre quis ser nós. Agora só quero ser nós
sem deixar de ser eu.4”
Romper com o modelo regulador de escola é uma das possi-
bilidades para uma educação emancipatória. Permite quebrar um
ciclo de uma forma de conhecimento científico colonial que desfa-
vorece a população negra e seus saberes políticos, estético-corpo-
rais e identitários que se diferem desse conhecimento e permitem
uma produção e reprodução da existência.

4 Trecho da música “Eu”, do álbum “Nu” de Djonga, 2021. 1

113
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA

Valendo-nos das ideias da professora Nilma, romper com


esse modelo educacional regulador é trazer novas possibilida-
des de emancipação para a população negra , uma vez que “a
educação escolar tem sido um dos principais meios de sociali-
zação de discursos reguladores sobre o corpo negro” (GOMES,
2017, p.95).
Obviamente, a noção de romper não se concretiza na lógica
de uma ação individual; tão pouco é algo simplista, uma vez que a
escola está a serviço do estado e das reproduções sociais. Romper
com a educação reguladora é um horizonte:

“A utopia está lá no horizonte.


Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.” (BIRRI apud
GALEANO, 1994, p.310)

Ora, foi também com esse horizonte que muitas lutas do Mo-
vimento Negro, durante o último século, fizeram emergir transfor-
mações curriculares para ressignificar as práticas de um currículo
colonizado (GOMES, 2017) que historicamente tem compactuado
com a opressão racial, embranquecendo o conhecimento e desva-
lorizando a cultura negra e indígena.
É aqui que concentramos nossos esforços para, humilde-
mente, dar mais evidência às contribuições da Educação Po-
pular Negra resgatando um pouco de dois movimentos pro-
duzidos na cidade de Belo Horizonte: Afrolíricas e Bloco Afro
Angola Janga.

114
IZAÚ VERAS GOMES E ROBERTA BATISTA DE FARIA

PRESENTE…PRESENÇAS NA GRANDE BH
BLOCO AFRO ANGOLA JANGA

O Bloco Afro Angola Janga5 surge em 20 de novembro de 2015,


fundado por Nayara Garófalo e Lucas Jupetipe. A iniciativa se dá
em um período de retomada do carnaval de rua belorizontino com
forte crescimento da presença dos blocos de rua, majoritariamente
ocupados por pessoas brancas e distantes das periferias.
Enxergando o distanciamento produzido por esse movimen-
to para a população negra da cidade e após vivenciarem situações
racistas em outros blocos, Nayara e Lucas decidem criar um espa-
ço de acolhida exclusivo para pessoas negras com centralidade na
música, tendo como principal referência o Ilê Aiyê, afropioneiro
dos Blocos Afro em Salvador. Assim, o bloco recebe o nome de
Angola Janga em referência ao Quilombo dos Palmares, também
chamado de Angola Janga ou “Pequena Angola”.
O bloco inicia seus trabalhos no viaduto Santa Tereza6 em um
primeiro ensaio com oito pessoas negras dispostas a dar continui-
dade nessa luta. Representando e pedindo as bênçãos de seus ori-
xás, o Angola sai em suas cores (roxo, verde e amarelo) para seu
primeiro cortejo de carnaval em 2016 e é surpreendido pelo públi-
co de mais de 80 mil pessoas, majoritariamente negras, no centro
de Belo Horizonte.

5 A autora e o autor são integrantes do Bloco Afro Angola Janga e as informações aqui
trazidas são frutos de suas experiências no mesmo desde o ano de fundação até a data de
publicação do texto.

6 Espaço público da cidade de Belo Horizonte onde acontecem várias manifestações artísticas e
culturais fruto da resistência dos Movimentos sociais, coletivos artísticos e pessoas que transitam
e moram naquele espaço.

115
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA

A partir de então o movimento toma mais força, ganha mais


integrantes e a cada ciclo de carnaval é escolhido um tema educa-
tivo7, ação muito inspirada nos Blocos Afros pioneiros. A escolha
dos temas reflete no trabalho realizado durante todo ano de prepa-
ração ao cortejo, passando pelos ensaios, pinturas, roupas, ritmos
e escolha do repertório.
Quando, durante um ensaio, o bloco então que “o sistema tenta
desconstruir, lhe afastar de suas origens para que você não pos-
sa interagir, construir! Já passou da hora de acordar. Assumir sua
negritude é vital para prosperar”8 ou quando, também cantando,
relembra as históricas lutas populares de resistência “Retirante
ruralista, lavrador’’. Nordestino lampião, salvador. Pátria sertane-
ja, independente. Antônio Conselheiro em Canudos presidente.
Zumbi em Alagoas comandou um exército de ideias, libertador!”
estamos produzindo educação popular negra.
Estamos produzindo educação popular negra quando, por
exemplo, é pensado, a partir das guardas de congado, o concei-
to estético e produzidas as roupas do cortejo para homenagear os
tambores mineiros. Produção essa também toda feita, a cada ano,
por famílias negras integrantes do bloco; buscando valorizar o
nosso próprio processo criativo e girar a economia entre nós.
Produz-se educação popular negra quando tencionamos os
estereótipos racistas que recaem sobre o corpo negro para valori-
zarmos e enaltecermos, coletivamente, nossa autoestima estética,
intelectual e mental a cada encontro produzido.

7 Alguns dos temas foram o próprio Bloco Afro Ilê Aiyê, Ngoma, os tambores mineiros, Ouro
Negro: Resistência do Povo é Beleza!,Ginga: Agbara na luta do povo.

8 Alienação - Ilê Aiyê.

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IZAÚ VERAS GOMES E ROBERTA BATISTA DE FARIA

Fonte: pagina oficial do instagram do Bloco Angola Janga


Acesso em: <https://www.instagram.com/blocoangolajanga/>.

Como nos diz Matheus (FERREIRA, 2021) o bloco utiliza de


estratégias educativas pautadas nos saberes estéticos corpóreos e
também com forte organização de saberes políticos e identitários.
Realizando diversas entrevistas com integrantes do bloco, Matheus
(FERREIRA, 2021) identifica que a luta antirracista ocorre nas en-
trelinhas do carnaval, mas principalmente no cotidiano, dissemi-
nando possibilidades culturais e reflexivas construindo e recons-
truindo uma consciência racial crítica em cada integrante que se
torna também formador e multiplicador.

117
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA

Com o crescimento do número de integrantes, que em al-


guns momentos se aproxima de 200 pessoas negras, o Angola
amplia também seu leque de atuação. Nesse sentido, são ini-
ciadas ações como o Cursinho pré-vestibular Angola Janga que
atende jovens negros/as periféricos/as que buscam ingressar
nas universidades; Núcleo de atendimento psicológico para in-
tegrantes do Bloco, Núcleo de advocacia negra, visitas às escolas
públicas para apresentações, oficinas de dança e musicalização
durante todo ano, seminário de juventudes e até mesmo grupos
de estudos virtuais que foram organizados durante a pandemia.
Todas essas ações organizadas por integrantes do bloco de-
monstram a potência educativa encontrada em nossa coletivi-
dade. Afinal, a luta histórica dos movimentos negros sempre
se deu no encontro e na força coletiva. Concordamos com o
professor Natalino (SILVA, 2021, p.97) quando nos diz que “os
saberes tradicionais afrodiaspóricos e populares se realizam,
pois, por meio de práticas sociais adquiridas a partir de expe-
riências socioafetivas”.

COLETIVO AFROLÍRICAS

O coletivo Afrolíricas nasceu no ano de 2019 após o encontro de


três jovens poetas, artistas e mobilizadoras sociais após a finalização
de um curso que as três poetas fizeram juntas do CENARAB9. Desde

9 O CENARAB - Centro Nacional de Africanidade de Resistência Afro-Brasileira - foi fundado


em 1991, em São Paulo, por religiosos e religiosas de Matriz Africana, com o intuito de fortalecer
as comunidades tradicionais e resistir ao preconceito às Religiões de Matriz Africanas, através
da organização e discussão racial, assim como a mobilização de políticas públicas para sua
existência e ampliação em outros estados e cidades.

118
IZAÚ VERAS GOMES E ROBERTA BATISTA DE FARIA

2019 o coletivo vem ocupando a cena artística preta de Belo Hori-


zonte com poesia, intervenção urbana, saraus10 e slams11, ampliando
diálogos com outros artistas da cidade e fora dela.
As Afrolíricas mobilizam ações artísticas e educativas através
de diversas linguagens, além da produção Afrosarau (que iremos
falar com mais detalhes posteriormente), elas participam de outros
torneios e competições de poesia dentro e fora de Belo Horizonte,
apresentam suas poesias autorais em eventos culturais e atraves-
sam a cidade com intervenções urbanas, expondo suas poesias nos
espaços públicos.
Quando questionadas sobre como elas criam, participam e
interagem com tantas ações elas responderam, “Muitas coisas
foram surgindo, as pessoas foram convidando. São umas pontes
mesmo, que a galera vai vendo e vai convidando e quando a gente
acha que é interessante, a gente aceita.” (Trecho de entrevista com
Afrolíricas, 2021).

10 Os saraus são eventos de apresentações artísticas. Segundo Frazão (2017)“Os saraus,


em princípio, para as novas gerações podem parecer genuinamente pós-modernos, com
performances, dramatizações criativas, com o apoio ou não da música. Mas como se sabe, em
muitos momentos da cultura ocidental, independente de suas denominações e guardadas as
diferenças temporais e estéticas, os saraus atraiam a atenção e tornaram-se ponto de encontro e
prazer de diversas gerações. ” (FRAZÃO, 2017, p.28)

11 O Slam, pode ser definido como uma competição de poesia falada. Surgiu na cidade de
Chicago em 1984. Entre as regras pré-estabelecidas desta prática, destaca-se a presença do slam
master (sujeito quem conduz), o tempo de declamação das poesias (não podendo passar de
3 minutos), a presença dos jurados que são escolhidos no momento da competição (pessoas
da plateia que avaliam as declamações de 0 a 10, considerando a poesia, a performance e a
subjetividade poética) e a não utilização de artifícios como figurinos e cenários para a
apresentação.OSlam acontece dentro de circuitos de campeonatos interescolares, interestaduais,
nacionais e mundiais, mas também acontecem fora destes circuitos de maneira livre e
independente dentro das particularidades de cada coletivo e cada evento. Neste sentido, o
Slam se apresenta como um espaço democrático para a livre expressão poética, pois nasce na
contraposição de uma ideia elitizada e academicista sobre poesia.

119
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA

Puxando essa noção das pontes que vão sendo construídas na


trajetória, a dimensão educativa para o coletivo foi tomando uma
proporção maior a partir do momento que para além das apresen-
tações artísticas, elas também foram convidadas e produzir ofici-
nas, participar de construções educativas em suas múltiplas possi-
bilidades, dentro e fora da escola.
Em 2020, oferecerem oficinas de escrita criativa no Circuito
Municipal de Cultura, após essa participação, as oficinas de es-
crita criativa começaram a fazer parte das ações das Afrolíricas
de maneira mais autônoma, outra ação que as poetas desenvolvem
junto a outros artistas da cena local, é o campeonato interescolar
de slam, ou seja, os slams que acontecem nas escolas, construídos
entre estudantes, poetas e educadores, principalmente no perío-
do mais severo do isolamento social causado pelo alastramento do
Coronavírus (Covid-19) em nossa sociedade. Neste período, mui-
tas atividades sociais, culturais e artísticas migraram para o for-
mato remoto pela impossibilidade do encontro e das aglomerações
e o coletivo precisou construir novas pontes e se reinventar para
continuar produzindo existência.
Através das redes sociais as Afrolíricas mobilizaram além das
oficinas de escrita criativa, lives com a participação de artistas, fi-
lósofos e educadores: “A literatura é o caminho de volta pra casa”12
e “As filosofias Africanas como perspectivas de vida”13, produziram
também algumas edições do Afroslam e do Afrosarau online.
O Afrosarau e o Afroslam são idealizados, organizados e pro-
duzidos pelas Afrolíricas. Elas construíram o corpo e o sentido

12 Disponível em: https://www.instagram.com/tv/CNLs32CJDqy/

13 Disponível em: https://www.instagram.com/tv/CNv0pJiJXM0/

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IZAÚ VERAS GOMES E ROBERTA BATISTA DE FARIA

deles. As artistas deixam explícito que por mais que os eventos se-
jam abertos ao público, são espaços que privilegiam as presenças
artísticas de pessoas pretas, ou seja, eles possuem um lugar polí-
tico, racializado constituído pela comunidade preta. Eles também
possuem temas e as dinâmicas e diálogos vão sendo construídos
através deles.
Por mais que os saraus e slams, possuam suas especificidades
para acontecerem, eles possuem flexibilidades para se reinventa-
rem e se constituírem. Isso vai depender, do coletivo, do contexto
inserido, dos locais que acontecem e de muitas outras variáveis,
elas molda as maneiras como os saraus e slams são produzidos.
Neste sentido, as poetas falam:

Tudo que a gente faz, a gente bota muito sentido e significado. Des-
de a costurinha da nossa roupa e a galera não fraga isso. A gente
não explica, tem coisas que não demandam explicação. Eu acho que
isso também dá muita energia e potência para movimentar nossas
coisas… ter propósito e razão em tudo. O AfroSlam e o AfroSarau
estão em constante construção, eles tão vivos, é basicamente isso.
Os eventos estão vivos e eles se reconfiguram a todo momento.
(Trecho de entrevista com Afrolíricas, 2021)

Sendo assim, estabelecendo conexões com as várias ações que


o coletivo mobiliza pela cidade, em diferentes linguagens artísti-
cas e formativas, é importante ressaltar que as Afrolíricas se com-
preendem como Pontes de Africanidades que segundo uma delas ao
falar dessa compreensão diz: “Acho que é fundamental que a gente
se veja como essa ponte de africanidades que quer espalhar conhe-
cimentos, né? A educação nos move de alguma forma”. (Trecho de
entrevista com Afrolíricas, 2021).

121
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA

Fonte: pagina oficial do instagram do Bloco Angola Janga


Acesso em:<https://www.instagram.com/afroliricas/>.

Sobre essa fala de uma das poetas do coletivo, nos remete o que
Nilma Lino Gomes traz sobre projetos emancipatórios e a conhe-
cimento que o movimento negro, na formação do seu povo, estão
sempre se movimentando e se reinventando: “Sim, porque se tem
algo que me fascina no conhecimento, é a sua capacidade de estar
sempre aberto para incorporar novas reflexões e construir conclu-
sões provisórias que não são fechamento de um assunto, mas por-
tas abertas para o novo que sempre virá” (GOMES, 2018, p. 133).
Sendo assim, espalhar conhecimento, repassar informações
através de seus meios de comunicação, tornaram-se estratégias de
construção educativa que perpassam as ações do coletivo, cruzam
as experiências e fazendo presente o ato de educar.

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IZAÚ VERAS GOMES E ROBERTA BATISTA DE FARIA

GINGA: REFLEXÕES EM MOVIMENTO

Buscamos, ao longo do texto, provocar reflexões sobre como


a população negra vem se relacionando e produzindo educa-
ção em nossa sociedade historicamente. Junto a essas reflexões,
buscamos questionar em breves apontamentos sobre a educação
escolarizada neste cenário. Quais são as ausências e presenças
desse formato de educação escolarizada na contribuição de um
projeto racializado na formação dos sujeitos? As escolas têm
dado conta de tratar da negritude, ou mesmo das relações ra-
ciais, presentes nas práticas culturais e nos corpos das pessoas
que ocupam aquele espaço?
O nosso processo de investigação acerca dessas questões vêm
mostrando que as escolas não têm dado conta de sustentar um pro-
jeto de educação de emancipação social da população negra. Nesse
texto, não nos aprofundamos no debate histórico da construção de
diferentes projetos de educação colonial que sempre estiveram a
serviço do estado; tão pouco nas limitações de nossa legislação ao
tratar da educação para as relações étnico-raciais. Completamos
20 anos da lei 10.639/2003 e – a despeito de todos seus importantes
desdobramentos em políticas públicas, nos currículos escolares, na
produção científica educacional e no debate público – os parcos
avanços, ou melhor, tensionamentos, tem se dado muito mais pela
força do próprio movimento negro, da educação popular negra e
de docentes negras e negros em luta na educação, do que por ação
do Estado e novas políticas públicas.
Trouxemos ao longo do texto, espaços e organizações que sem-
pre tomaram a frente dessa luta, em sua maioria fora do espaço es-
colar, atuando em outros processos educativos.

123
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA

Para além disso, também precisamos refletir sobre em que medi-


da as relações étnico-raciais podem ser um projeto de emancipação
social em um contexto colonial, de um Estado capitalista branco,
quando a esse não interessa uma reeducação das relações étnico-ra-
ciais, não o interessa sequer um projeto conciliatório. Abdias já nos
alertava de que a organização da luta por nós mesmos é um impe-
rativo de sobrevivência, afinal, precisamos de extrema cautela para
qualquer aliança com “forças políticas, seja as ditas revolucionárias,
reformistas, radicais, progressistas ou liberais” (NASCIMENTO,
2019 p.296), todas alianças devem ser pautadas com o poder de de-
cisão ao negro, evitando manipulações por interesses alheios.
Reiteramos aqui que não nos aprofundaremos nesse debate,
obstante da centralidade do texto. Entretanto, chamamos a aten-
ção para esses fatos para mais uma vez refletirmos sobre a edu-
cação escolarizada e a educação física, como componente impor-
tante desse espaço podendo trazer o corpo em sua integralidade
para a educação. Ora, não nos parece possível também pensar
um projeto de emancipação negra sem a educação pública res-
ponsável pela educação cerca de 82% dos mais de 47 milhões de
estudantes em nosso país, considerando ainda que aproximada-
mente 90% de estudantes negras e negros estão matriculados na
educação pública. (INEP, 2023)
Urge repensarmos e agirmos na e com a educação pública, por
meio de nosso espaço de práxis: a educação física escolar.
Sem buscar dar respostas e inventar a roda para esse proble-
ma, nos inspiramos na educação popular negra para repensar
nossa práxis em educação física nas escolas. Dessa forma, trou-
xemos aqui dois coletivos negros da cidade de Belo Horizonte
que atuam com a construção de uma educação popular negra no

124
IZAÚ VERAS GOMES E ROBERTA BATISTA DE FARIA

dado presente, essas construções possuem referências de inspi-


rações de outros projetos que já atuaram em nossas sociedade
com esse mesmo objetivo por mais que fossem construídos com
sujeitos, maneiras e linguagens diferentes.
O Bloco Afro Angola Janga e as Afrolíricas nos permitem vislum-
brar um projeto real de emancipação por meio da valorização da cul-
tura popular negra que podem consolidar práticas educativas outras.
“Práticas educativas essas capazes de integrar saberes populares afro-
diaspóricos articulados aos saberes escolares.” (SILVA, 2020, p.9)
De uma forma geral, o professor Natalino (SILVA, 2020) nos
alerta que os saberes da educação popular negra e as aprendizagens
dessas experiências socioafetivas ainda são pouco incorporadas
pelas práticas escolares. Resgatamos aqui então a importância de
fortalecermos as diversas ações da educação popular negra, bem
como em chamar a atenção para sua potência nas práticas esco-
lares, seja como pesquisa desses movimentos; na incorporação de
suas práticas no currículo escolar vide as perspectivas aqui apre-
sentadas dos blocos afro e do afrosarau envolvendo música, poesia
e historicidade; na interlocução com esses movimentos dentro da
escola, ou mesmo na escola indo até esses movimentos em seus
espaços, dentre inúmeras outras possibilidades.
A educação popular negra aconteceu, acontece e acontecerá
com toda sua potência fora das escolas. Cabe a nós, sabendo da
importância da escola pública e ocupando diferentes posições na
educação, abrir caminhos para essas interlocuções. E é aqui que
deixamos uma pergunta: sabendo que o corpo é elemento funda-
mental de nossas produções culturais negras, qual poderia ser o
papel da educação física nesse diálogo?
Os caminhos estão atravessados.

125
EDUCAÇÃO POPULAR NEGRA

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128
Dona Isabel que história é essa?
Dona Isabel que história é essa de ter feito abolição?
De ser princesa boazinha que libertou a escravidão
Tô cansado de conversa
Tô cansado de ilusão
Abolição se fez com o sangue
Que inundava este país
Que o negro transformou em luta
Cansado de ser infeliz
Abolição se fez bem antes
E ainda há por se fazer agora
Com a verdade da favela
E não com a mentira da escola
Dona Isabel chegou a hora
De se acabar com essa maldade
De se ensinar aos nossos filhos
O quanto custa a liberdade
Viva Zumbi nosso rei negro
Que fez-se herói lá em Palmares
Viva a cultura desse povo
A liberdade verdadeira
Que já corria nos Quilombos
E já jogava capoeira

Mestre Toni Vargas


TRANÇAS, ARROZ, GEOMETRIA:
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES E
PROFESSORAS ANTIRRACISTAS NA
GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA.

Lázaro Rocha Oliveira

A formação de professores e professoras em cursos de Licencia-


tura em Educação Física possui desafios das mais diversas ordens.
Há disputas econômicas, políticas e pedagógicas que precedem a
criação de um curso, há disputas políticas e pedagógicas durante
a construção do Projeto Pedagógico de Curso (PPC), e há, final-
mente todos os desafios relacionados à implementação concreta
do PPC, no processo de transformação do documento em currícu-
lo para alunas e alunos, professores e professoras.
(Sobre)Vivemos em uma sociedade extremamente desigual e
profundamente racista, nossos projetos de curso expressam, em
menor ou maior grau, as marcas das desigualdades e do racismo.
Nesse sentido, é basilar assumir que é necessária uma profunda
mudança social até que possamos produzir uma formação de pro-

doi doi.org/10.36599/cflu-978-65-88595-45-9_005
LÁZARO ROCHA OLIVEIRA

fessoras e professores que seja plenamente não racista. Mas, já que


eu e você temos que ministrar aulas amanhã, no segundo maior
curso de licenciatura do país em número de estudantes1, não pode-
mos nos dar ao luxo de esperar o mundo ideal para que nossos alu-
nos e alunas experienciem uma formação de professoras e profes-
sores não racista. Somos desafiados a pensar hoje, dentro de uma
estrutura social racista, possibilidades de formação antirracistas,
em um infeliz, inadiável e indispensável jogo de enxugar gelo.
Nesse sentido, o questionamento que vai mobilizar nossa re-
flexão neste texto é: como potencializar a formação de professo-
res e professoras antirracistas na graduação em Educação Física
quando nossas estruturas curriculares carregam as marcas do ra-
cismo? Isso é possível? Obviamente eu não tenho uma resposta
definitiva para algo tão complexo, mas nesse movimento mesmo
de refletirmos sobre as coisas que fizemos ou fazemos, talvez pos-
samos nos renovar para outras possibilidades de fazer, em senti-
do freiriano mesmo.

POR UMA DOCÊNCIA QUE CORPORIFIQUE A LUTA


ANTIRRACISTA NO ENSINO SUPERIOR

A luta antirracista é fundamento, não acessório. Vou deixar as-


sim mesmo, como uma máxima, que retomarei mais adiante.
Quantos de nós podemos dizer que tivemos em nossa graduação
em Educação Física momentos de reflexão sobre o combate ao ra-
cismo (ou sobre o combate ao preconceito, o eufemismo geralmente
utilizado)? Acredito que muitos, mas se questionássemos quantos de

1 Conforme dados do último censo da Educação Superior feito pelo INEP (BRASIL, 2021).

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TRANÇAS, ARROZ, GEOMETRIA

nós tivemos em nossa graduação em Educação Física professores e


professoras que apresentavam a luta antirracista como fundamento
de suas disciplinas, independentes dessas disciplinas pertencerem a
uma área mais pedagógica, certamente chegaríamos a um número
menor do que no questionamento anterior. Se questionássemos, na
sequência quantos de nós pudemos ter em nossa graduação em Edu-
cação Física professores ou professoras que realmente encampavam
a luta antirracista fora da universidade, provavelmente teríamos um
número bem reduzido de contemplados e, por fim, se perguntásse-
mos quantos de nós tivemos na graduação professores ou professo-
ras negros(as) que corporificavam a luta antirracista, bem, os privi-
legiados e privilegiadas seriam poucos, eu particularmente não tive.
O ponto que quero destacar é que há diferença, uma grande
diferença entre tomar a luta antirracista como fundamento, algo
basilar que constrói a maneira que se compreende o conhecimento
dentro da própria disciplina ou tratá-la apenas como uma temática
acessória, um ponto particular de conteúdo a ser abordado por nós
professores e professoras. Da mesma forma, há uma grande dife-
rença entre ensinar sobre aquilo que se vive e ensinar sobre algo
que se houve falar. A educação se dá pelo exemplo, é especialmente
assim nas práticas corporais de matriz africana nas quais a figura
do(a) griô representa a maestria de um saber construído e enrai-
zado na própria experiência de vida, experiência essa que também
é testemunho das experiências dos(das) que vieram antes dele(a):
têm-se uma concepção de saber na qual o conhecimento não é ape-
nas um atributo intelectual abstrato que possa ser dissociado da
trajetória daquele(a) que sabe.
Em nossos cursos de graduação em Educação Física, por outro
lado, é recorrente a concepção de um conhecimento que pode ser

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LÁZARO ROCHA OLIVEIRA

dividido por disciplinas e estas, por sua vez, podem ser distribuí-
das conforme a demanda entre os(as) docentes que possuem algu-
ma afinidade intelectual com o tema – às vezes muita afinidade,
às vezes pouca afinidade, de qualquer forma as disciplinas serão
distribuídas. Neste processo, por força de Lei, e de maneira mais
enfática nas Licenciaturas, alguma disciplina terá que abordar a
temática da Educação para as Relações Étnico-raciais: para fins de
validação de um Projeto Pedagógico de Curso (PPC), basta que a
disciplina exista ou que a temática seja apontada como um conteú-
do da ementa de alguma disciplina da matriz curricular do curso.
Nossos colegas podem então dizer que o currículo não é racista,
pois lá, bem escondidinho em um canto de alguma disciplina do
PPC, há uma menção ao combate aos preconceitos ou à valoriza-
ção da diversidade. Não é possível garantir a formação de profes-
sores e professoras antirracistas assim.
Para potencializar a formação de professores e professoras an-
tirracistas devemos tomar a luta antirracista como fundamento, o
que quer dizer que, independentemente de qual disciplina ou pro-
jeto eu lecione na graduação em Educação Física, eu vou conside-
rar que o racismo marca a maneira que as pessoas negras podem
viver os seus próprios corpos, e também marca, de maneira geral,
a maneira que a nossa sociedade vê o mundo, conta sua própria
história, naturaliza modos de agir, constrói, valida e hierarquiza
conhecimentos. Para cada história oral e conhecimento de nossos
antepassados negros e negras, há várias narrativas oficiais, escritas
por homens brancos: narrativas geralmente inexatas, mas nunca
desacreditadas. Nós tendemos a reproduzir e legitimar na univer-
sidade essas brancas verdades. A título de exemplo, compartilho
uma experiência que vivi há não muito tempo.

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TRANÇAS, ARROZ, GEOMETRIA

Um querido amigo, também professor negro de uma universi-


dade pública, mas que leciona e investiga na área da matemática,
entrou em contato comigo para me contar que ele pretendia ensi-
nar geometria através do estudo das tranças nagô, meu amigo me
explicou que a técnica de trançar, do ponto de vista da matemática,
permitia analisar segmentos de reta e que era possível apreciar isso
junto aos seus alunos e alunas tendo em vistas a valorização do
saber tradicional, o aprendizado da geometria e a ampliação do
conhecimento sobre etnomatemática. Encantei-me, pois na escola
pública escutamos tanto sobre a genialidade de Euclides, Tales, Pi-
tágoras e muitos outros nomes, mas a matemática não nos é apre-
sentada como um saber também negro.
Perguntei a meu amigo como eu poderia colaborar com o pro-
jeto dele e ele me respondeu que estava construindo o arcabou-
ço do curso, e precisava de materiais que ajudassem a destacar a
importância da trança nagô em nossa cultura. Lembro-me de ter
perguntado a ele: “Você conhece a história do arroz na trança? Das
pretas que escondiam grãos de arroz nos cabelos de suas crianças
para que elas pudessem se alimentar?”. Eu me referia à história que
se ouve em quilombos de vários Estados do Brasil sobre a origem
de determinadas variedades de arroz e que ganhou as redes sociais
a partir de um vídeo surinamense que eu havia tido o prazer de
legendar para o português. No vídeo, Edith Adjako, uma mulher
negra, quilombola do povo Saramaka, demonstra para a entrevis-
tadora, professora Tinde Van Andel, a técnica de trançar aprendida
com os seus avós2.

2 Me refiro ao vídeo “How the Marron ancestors hid rice grains in their hair” (Como os
ancestrais Maroon escondiam grãos em seus cabelos?), disponível em https://www.youtube.
com/watch?v=4H1IbY6PGIk

134
LÁZARO ROCHA OLIVEIRA

No Brasil, a história que Edith conta havia sido registrada pela


professora Judith A. Carney em um quilombo do Maranhão, onde
a matriarca Dona Luciana mantinha viva a história que sua avó
escravizada passou para ela...

“Uma mulher africana escravizada – incapaz de impedir que suas


crianças fossem vendidas como escravas – colocou algumas se-
mentes de arroz em seus cabelos para que elas pudessem comer
quando o navio chegasse ao seu destino. Como o cabelo delas era
muito grosso, ela pensou que os grãos passariam despercebidos.
Mas, quando desembarcaram do navio negreiro, o agricultor que
as comprou descobriu os grãos. Ao percorrer com as mãos pelos
cabelos de uma criança, ele encontrou as sementes e exigiu saber
do que se tratava. “Isto é comida da África”, a criança respondeu. E
foi assim que o arroz veio para o Brasil, através dos africanos, que
esconderam as sementes no cabelo” (CARNEY, 2004. With Grains
in Her Hair: Rice in Colonial Brazil, p.21, tradução livre)

Meu amigo não conhecia essa história, e como poderia? A me-


mória social negra não é a história repassada nas escolas e uni-
versidades de nosso país. Como poderiam as palavras de Dona
Luciana serem amplamente reconhecidas por nós, se no famoso
Diccionário Historico-Geographicco, escrito ainda no período es-
cravocrata, lê-se que a origem do mesmo arroz é europeia?

“O arroz cultivado n’esta província desde eras mui remotas era o


arroz da terra, vermelho, conhecido pelo nome de arroz de Veneza
[...] [O capitão José Vieira da Silva] Desejando ser útil á província,
e aproveitando-se da sua posição de administrador da companhia,
pedio e obteve de Lisboa, no fim de 1765, uma porção do arroz
branco, que no anno seguinte fez distribuir por alguns lavradores”
(MARQUES, 1870, p.28. Palavras e grifos do autor)

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TRANÇAS, ARROZ, GEOMETRIA

Algumas das inquietações que me tocaram enquanto conver-


sava com meu amigo: qual das duas narrativas está, ainda hoje,
disponível para consulta na Biblioteca do Senado Federal? A que
fala da resistência, da criatividade e do roubo da expertise negra ou
a que trata da iniciativa do europeu colonizador que supostamente
teria trazido a semente de Veneza e depois a substituído por outra?
Toma-se como verdade a sabedoria de Dona Luciana e de Edith ou
o que escreveram os historiadores brancos?
Acontece que em estudo publicado na famosa revista científica
Nature, a professora Van Andel, professora Carney e colaboradores
provaram, através da análise genômica de sementes de arroz colhi-
das no quilombo do Suriname, que a semente é de fato “irmã” da
semente africana e só poderia ter as características que possui se a
semente original tivesse sido trazida da África (VAN ANDEL et al,
2016). Não é de Veneza, não é o asiático, veio da África3, por mais
que a história oficial insista em dizer o contrário. Talvez daqui a
pouco surja um espírito colonizador, destes muitos que temos na
academia, para dizer: “mas veja bem, a semente analisada foi co-
lhida no Suriname, a gente não pode extrapolar a validade ecoló-
gica do estudo e dizer que no Brasil também foi assim”, exatamente
como ocorreu naquela discussão sobre as tranças nagô terem sido
usadas pelas nossas antepassadas para guiar rotas de fuga: há re-
latos sobre isso no Brasil, mas para a branquitude é apenas válido

3 Domesticar e aperfeiçoar uma semente é fruto do trabalho árduo de muitas gerações. Carney
(2020) conta que embora existam muitas variedades selvagens de arroz, apenas duas foram
domesticadas: o arroz asiático Oryza sativa e o arroz africano Oryza glaberrima. A autora aponta
que a domesticação do arroz africano começou há mais de 3.500 anos no delta do Rio Níger
e engloba uma expertise muito particular a respeito do modo de plantar, colher e até mesmo
descascar as sementes. Em muitos lugares da África as mulheres eram as responsáveis por todo
esse processo.

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LÁZARO ROCHA OLIVEIRA

falar que isso ocorreu na Colômbia, pois os estudos que registram


o saber foram feitos lá e não aqui. A cada nó de trança, uma gota de
sangue negro, mas para nós fica sempre o ônus da prova. Quem se
importa se as tranças nagô forem usadas apenas como um look al-
ternativo, como fez aquela socialite famosa, não é mesmo? Partilhei
com meu amigo essas inquietações e ele seguiu com seu projeto
junto às suas alunas e alunos da Licenciatura em matemática.
Tranças, arroz, geometria... o que isso tem mesmo a ver com
potencializar a formação de professores e professoras antirracistas
na graduação em Educação Física de hoje? O caso narrado nos
provoca à medida que mostra que na matemática é possível susten-
tar o processo de ensino-aprendizagem partindo de um saber ne-
gro e valorizando-o, quando muitas vezes nós, tratando de práticas
corporais – um campo no qual a matriz africana é extremamente
rica e plural – nos sentimos com tanta dificuldade para abandonar
o paradigma fundado no homem europeu. Passamos anos ensi-
nando nossos alunos e alunas de graduação uma visão europeia de
corpo e movimento, repetindo a versão de uma Educação Física
que nasce nos movimentos ginásticos. Depois torcemos, esperan-
çosamente, para que eles e elas possam ir além da divulgação dos
esportes na escola.
Sabemos que nossa área tende a ser extremamente conser-
vadora e que as condições precárias nas quais muitos de nossos
professores e professoras são contratados(as) não favorecem uma
posição que possibilite encampar uma luta por grandes mudan-
ças no Projeto de Pedagógico de Curso das instituições em que
lecionam: reconstruir os projetos de curso para que eles deixem
de ser tão colonizados, embora seja uma potente ideia que nos
mobiliza, não está - a meu ver - ao alcance de todos e todas no

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TRANÇAS, ARROZ, GEOMETRIA

curto e médio prazo. E digo isso como alguém que, nos últimos
anos, viveu, lecionou e brigou em reformulações de projetos de
curso de Educação Física em instituições de ensino superior de
quatro das cinco regiões do país.
Assim como não foi a assinatura da princesa que garantiu
a liberdade ao pai de meu avô, não vai ser o que está escrito na
matriz curricular que vai garantir a educação antirracista. Nesse
sentido, é inadiável corporificar a luta antirracista no cotidiano
da graduação, de modo que nossos alunos e alunas tenham refe-
rências concretas dela; É inadiável aproveitarmos nossos espaços
de relativa autonomia em cada módulo ou disciplina pelas quais
formos responsáveis, na tentativa de levar nossos alunos e alunas
a verem, sentirem e se questionarem – além de apenas refletirem
abstratamente – sobre o que está ocorrendo além dos muros da
universidade: podemos fazer isso lá na escola de periferia e na pe-
riferia do mundo das ditas “práticas corporais”, como uma maneira
de plantar sentidos, guardar preciosamente os grãos de arroz nas
tranças do ensino de nossa Educação Física. Não se trata apenas
de tratar o combate ao racismo como um conteúdo acessório, que
enriquece a pauta da diversidade, mas como fundamento de um
posicionamento político-pedagógico no mundo.
Seria uma prática de enxugar gelo? Aceito que sim, ao menos
no sentido de possuir um escopo limitado de ação perante a di-
mensão e complexidade do problema, mas é também um enxugar
gelo revolucionário, à medida que potencializa a inversão da ma-
neira que nossos alunos e alunas de carne e osso se posicionam
no mundo. Educação não é mesmo sobre mudar pessoas? Então
alimentemos a possibilidade de nossos alunos e alunas se verem, se
descobrirem e se formarem antirracistas.

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LÁZARO ROCHA OLIVEIRA

Isso passa, em nossas aulas e projetos, pela tentativa de cons-


truir uma graduação em Educação Física menos conteudista e des-
locada da realidade; Passa pelo abandono ao discurso da cientifi-
cidade supostamente neutra que tanto nos desmobiliza; Passa por
um olhar para as manifestações de matriz africana para além do
tom folclórico para aprendermos, de maneira fundamentalmente
corporal, a ritualizar momentos de aprendizado onde possamos
partilhar, acolher, respeitar e configurar genuínas relações de per-
tencimento. As configurações atuais podem nos limitar fortemen-
te, mas não nos vetam de semear em todos esses campos. Oxalá
encontremos na Educação Física do futuro, em condições mais
favoráveis, o DNA das práticas pedagógicas que semearmos hoje.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as


diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União.
Brasília, DF, 23 dez. 1996.

BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais


Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior: Divulgação
dos Resultados. Brasília: 2021.

CARNEY, J. A. ‘With grains in her hair’: rice in colonial Brazil.


Slavery & Abolition, v. 25, n. 1, p. 1-27, 2004.

CARNEY, J. A. Rice Cultivation in the History of Slavery.


Oxford Research Encyclopedia of African History. University
Press, 2020.

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TRANÇAS, ARROZ, GEOMETRIA

FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civi-


lização Brasileira, 1968.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

MARQUES, C. A. Diccionario historico-geographico da provin-


cia do Maranhão. Tip. do Frias, 1870.

SEVERINO, A. J. O ensino superior brasileiro: novas configura-


ções e velhos desafios. Educar em revista, n. 31, p. 73-89, 2008.

SOUZA, N. S. Tornar-se negro. As vicissitudes da Identidade do


Negro Brasileiro em Ascensão Social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

VAN ANDEL, T. R. et al. Tracing ancestor rice of Suriname


Maroons back to its African origin. Nature Plants, v. 2, n. 10,
p. 1-5, 2016.

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CURRÍCULO DAS(OS) AUTORAS(ES)
ORGANIZADORA

Carolina Cristina dos Santos Nobrega

Possui Graduação em Educação Física (Licenciatura plena) pela


Universidade Cruzeiro do Sul (2009). Pós-Graduação em Gestão
Pública e Extensão universitária em Docência no ensino superior
pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo (2010). Pós-Gra-
duação em Dança e Consciência corporal do Centro Universitá-
rio, Faculdade de Educação Física UNIFMU (2014). Mestra em
Educação (Antirracista) pela Universidade Federal de São Paulo
(2019). Doutoranda em Educação (Amefricana) pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), Orientadora Pedagógica da
rede municipal de Campinas. Escritora e Ilustradora. Estuda e pes-
quisa: Saberes e práticas pedagógicas antirracistas; Formação de
professoras(es) feministas; Educação física antirracista; Educação
amefricana; Pesquisaformação.

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Márcio Cardoso Coelho

Possui graduação em Educação Física Licenciatura Plena pela Uni-


versidade do Vale do Rio dos Sinos, (UNISINOS-2003), Especializa-
ção em Fisiologia do Exercício pela Universidade Veiga de Almeida
(UVA-2005), e em Cinesiologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS-2008), Mestrado em Ciências do Movi-
mento Humano, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS-2017), Doutorando em Ciências do Movimento Humano,
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS-2019).
Atualmente é professor de Educação Física da Rede Municipal de
Ensino de Porto Alegre/RS. É pesquisador do grupo de pesquisas
Didática e Metodologia de Ensino da Educação Física (DIMEEF/
UFRGS). Tem interesse nos seguintes temas: Educação Física, Edu-
cação Física escolar, Negritude, Teoria/pedagogia Crítica, Educação
Libertadora de Paulo Freire, Autoetnografias, estudos curriculares,
Didática, formação de professores e práticas pedagógicas.

143
Fabiano Bossle

Professor Associado da Escola de Educação Física, Fisioterapia e


Dança (ESEFID) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação
em Ciências do Movimento Humano atuando na linha de pesquisa
Formação de Professores e Prática Pedagógica. Pós-doutorado em
Ciências do Movimento Humano pela UFRGS (2010); Doutorado
em Ciências do Movimento Humano pela UFRGS (2008); Mes-
trado em Ciências do Movimento Humano pela UFRGS (2003);
Especialização em Ciências do Esporte pela UFRGS (1995); Gra-
duado em Educação Física - Licenciatura plena - pelo IPA (1991).
Experiência na Área de Educação Física, com ênfase em Educação
Física Escolar, atuando principalmente nos seguintes temas: Paulo
Freire, Educação Física Escolar, Educação Física Escolar Crítico-
-Libertadora, Etnografias e Autoetnografias Críticas.

144
Thiago José Silva Santana

Professor de Educação Física, procura realizar uma educação an-


tirracista na rede municipal de Belo Horizonte. Formação em Li-
cenciatura em Educação Física e Mestre em Estudos do Lazer, am-
bos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integra,
em 2023, o coletivo Pensando a Educação Física Escolar, o Grupo
de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFUT) e o Núcleo de Estu-
dos das Relações Étnico-Raciais (NERER), regional norte, da Rede
Municipal de Ensino de Belo Horizonte.

145
Izaú Veras Gomes

Sonhador e Professor da rede municipal de Belo Horizonte. Ama


café, broa de fubá, queijo, quadrinhos e livros. Integrante do Bloco
Afro Angola Janga, é violonista amador, mas não sabe se ama mais
a música ou a dança. Nas horas vagas cuida de suas plantas e faz o
doutorado em Educação, ama mais um tanto de “trem” e acredita
que tudo isso compõe seu trabalho docente, não necessariamente
nessa ordem.

146
Roberta Batista de Faria

Roberta é educadora, pesquisadora, rueira e arteira.


Licenciada em Educação Física na UFMG, defendeu sua disser-
tação de Mestrado no Jardim Mandala da FaE em 2022. Desde
então, vem tentando compreender seu lugar enquanto professora
da educação básica mas gosta mesmo é da arte. Em sua trajetória
acadêmica, foi integrante do Projeto de Pesquisa, Ensino e Exten-
são Ações Afirmativas e também foi bolsista do FIEI (Formação
Intercultural de Educadores Indígenas), ambos pelo PPGE da FAE/
UFMG. Em sua trajetória artística, já passeou nas danças, no circo
e nas aquarelas, agora tem flertado com a capoeira.
Roberta ama a rua e tudo que atravessa a cultura, de graça, pra
todo mundo e vem pensando na possibilidade de pensar a rua, o
corpo e a encantaria como futuras pesquisas em seu processo de
formação.

147
Lázaro Rocha Oliveira

Filho dos Nagôs do Vale do Rio Verde e dos pretos Tapuios do As-
suruá, nascido e criado no semiárido da Bahia; Radicado no Capão
Redondo, Zona Sul da cidade de São Paulo. Fui bolsista do PROU-
NI e graduei em Educação Física na antiga Faculdade de Taboão da
Serra depois tornei-me Mestre em Ciências através do Programa
de Educação Física do Departamento de Pedagogia do Movimento
Humano da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade
de São Paulo (EEFE-USP). Lecionei em universidades do sudeste,
sul e norte do Brasil até retornar ao nordeste para a carreira do
magistério superior na Universidade Federal do Maranhão. Meus
interesses concentram-se na interface das áreas de Educação e
Educação Física e minhas linhas de pesquisa geralmente envolvem
análise do discurso e dimensões socioculturais do movimento do
corpo humano. Possuo especial interesse na temática da educação
antirracista e nas artes marciais enquanto tecnologias de desenvol-
vimento humano.

148
Título Perspectiva negra na educação física

Formato PDF 144ppi (16x23cm)


Tipografia textos Minion Pro
Tipografia títulos Minion Pro Bold
Diagramação Israel Dias de Oliveira

F
Editora Casa Flutuante
Rua da Mooca, 336 - São Paulo - SP
Fone: (11) 95497-4044
www.editoraflutuante.com.br

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