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Pedagogias e Tecnologias em Quilombos


Conquistas e Novos Desafios

Organizadora:
Regina Marques de Souza Oliveira

Cruz das Almas - BA


2019
Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)

O48c Oliveira, Regina Marques de Souza (Org.)

Psicologias, pedagogias e tecnologias em Quilombos /


(Organização) Regina Marques de Souza Oliveira. Cruz das Almas,
BA: EDUFRB, 2019.

203p.: il.;

ISBN: 978-85-5971-093-9

1. Psicologia – Educação Quilombola – Tecnologia em Saúde e


Educação – I. Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. II.
Título.

CDD: 155.4
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

REITOR VICE-REITORA
Silvio Luiz de Oliveira Soglia Georgina Gonçalves dos Santos

DIAGRAMAÇÃO
Superintendência de Educação Aberta e a Distância - SEAD
PREFÁCIO

A coleção de ensaios em Pedagogias e Tecnologias em Quilombos: Conquistas e Novos


Desafios força a leitura a confrontar o fato básico da formação social do Brasil. Esse fato é a
antinegritude. A antinegritude emerge nas avalições apresentadas em todos os artigos que
apontam o seguinte: em se tratando das experiências coletivas de pessoas negras, os desafios
superam exponencialmente as conquistas. Apesar de melhoras programáticas, resultado de
políticas públicas pró-negras que antecederam o golpe de 2016, como as de infraestrutura
e qualidade de vida em territórios negros, e da introdução de abordagens inovadoras de
formação de docentes e de elaboração de currículos atentos às histórias e experiências negras,
os aspectos estruturais que demarcam a antinegritude persistem. O mais óbvio deles é a
negação da humanidade do corpo negro. Essa negação – fato estrutural que políticas pró-
negras não foram capazes de modificar – é mais facilmente verificada nas taxas de homicídios
(incluindo aqueles cometidos por policiais) e de morte por causas evitáveis, abrangendo
aquelas causadas por atendimento médico inadequado ou inexistente. A morte negra continua
sendo o marco fundante e estrutural da formação social brasileira. A morte negra define o que
vem a ser o racismo, cuja matriz é a antinegritude.
É inegável que grupos sociais não negros sofrem dos mais variados tipos de discriminação.
A populações indígenas são testemunhas e sobreviventes de um genocídio que se estende
aos dias de hoje. Mas mesmo as populações indígenas, como outras populações não negras
marginalizadas, são capazes de produzir demandas efetivas de pertencimento, demandas
que são impossíveis de serem realizadas estruturalmente para pessoas negras. Sejam
essas demandas por terras originais, sejam elas por direitos sociais e culturais, grupos não
negros, relativos a grupos negros, têm uma maior probabilidade de aceitação e portanto de
estabelecimento de direitos. Essa proposição é informada pelo que propus acima: ao passo
que populações negras podem ser beneficiadas por mudanças programáticas, que incluem,
entre outras, ações afirmativas e direito à terras quilombolas, tais mudanças não incidem sobre
o fato social nevrálgico, estrutural, e permanente, qual seja, o fato da antinegritude. Dito de
outra maneira: a morte negra, enquanto dado banal e estruturante, derivada da aceitação
social da não humanidade da pessoa negra, torna possível a viabilidade relativa de grupos
sociais não negros, incluindo, obviamente, o mais privilegiado deles, padrão de pertencimento
e humanidade, o de pessoas brancas.
Diante do fato da antinegritude, o que fazer? As abordagens dos artigos desse volume
propõem um primeiro passo: reconhecer o sujeito negro enquanto não só sujeito de conheci-
mento, mas também sujeito cuja subjetividade negada alicerça todas as outras identidades não
negras: identidades morais (do bem), racionais (da verdade), e estéticas (da beleza). Ou seja,
reconhecer o não-sujeito negro como fundante da subjetividade moderna requer que esse
sujeito moderno não negro seja desfeito, explodido. (Há quem diga que o sujeito negro também
é produto da modernidade, e que portanto também tem de ser destruído. Não discordo. Mas
quero sugerir que a pessoa coletiva negra, por ser a negação da modernidade – mesmo
habitando, e talvez até inaugurando, a modernidade, esse mundo maluco e genocida – carrega
com ela uma crítica avassaladora da modernidade, uma crítica que é absolutamente necessária
para sairmos desse pesadelo secular.) Criticar modelos pedagógicos e elaborar novas estraté-
gias de aprendizagem dialógica e crítica; reescrever a história da perspectiva de uma tradição
negra radical; apropriar tecnologias e transformá-las em meios de vida; empregar perspectivas
de descolonização e de crítica do estado-império brasileiro; e desconstruir paradigmas de
conhecimento e sociabilidade: esses passos, exemplificados com rigor nesse volume, são
necessários, mas não são suficientes. O passo fundamental é extirpar, de nossa subjetividade
(consciente e inconsciente), da sociabilidade, e das estruturas sociais, a antinegritude que
estrutura e atualiza formas de gerenciamento da morte negra.
Na medida em que os quilombos constituem um campo de afirmação da autonomia negra,
e de possibilidades para além da antinegritude, esse livro deve ser lido com os pés plantados
nas camadas profundas da morte negra e o olhar voltado para as utopias imanentes às
experiências generativas da negritude.

Austin, 12 de Outubro de 2016.

João da Costa Vargas


Universidade do Texas
Estados Unidos
APRESENTAÇÃO

Este livro é fruto do trabalho realizado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise,
Identidade, Negritude e Sociedade da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e suas
parcerias institucionais com outros centros de desenvolvimento em pesquisa, ensino e exten-
são.
Os textos pertencem a autores já tarimbados no campo do fazer científico e da docência
universitária de centros de pesquisa de diferentes regiões da Bahia e do Brasil: Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS), Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB),
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(UFRB), Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e Universidade Federal do Tocantins (UFT).
Mas antes de falar especificamente destas relações acadêmicas que fomentaram a pro-
dução do livro queremos escrever algumas palavras sobre o núcleo de pesquisa que promove
estas articulações: O NEPPINS.
Nossos trabalhos estão em desenvolvimento desde 2011 no cenário da cidade de Santo
Antônio de Jesus, no Centro de Ciências da Saúde, com os alunos da graduação em Psicologia,
Enfermagem e Nutrição. Posteriormente, nossas atividades passaram também a serem
desenvolvidas com estudantes do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde e Medicina.
Nesta trajetória, o apoio social e político das cidades do entorno da universidade, sempre
nos procuraram ou estiveram atentas às nossas necessidades de parcerias.
Em função disto, nossa preocupação foi de desenvolver metodologias, técnicas e pesquisas
em saúde e educação que priorizassem a divulgação e acesso das pessoas do Recôncavo da
Bahia.
Enquanto pesquisadores, sabíamos da importância da atenção em produções científicas no
contexto nacional e internacional. No entanto, também nos era inquietante atender as necessi-
dades emergentes de formação do profissional de saúde para uma prática e epistemologia
que representasse a população do Recôncavo.
Desde 2011, vivíamos com os pés no ensino, nas discussões em sala de aula e grupos
de estudos com textos de autores clássicos na psicologia, psicanálise e relações raciais,
considerando que nosso núcleo de pesquisa leva por nome a intersecção destes saberes
epistêmicos.
Ao mesmo tempo, promovíamos – professores ligados ao núcleo, profissionais da educação
e saúde vinculados aos municípios do Recôncavo e alunos da graduação – encontros de
caráter científico e extensionista, com o fim de apresentar nossas atividades, pensamentos e
direcionamentos de pesquisas.
Nesta trajetória, todas as nossas ações foram recebidas com grande entusiasmo e sucesso
no contexto do Recôncavo. Por conta disto, nosso núcleo passou a agregar também pessoas
de outras universidades, cujo professores, convidavam-nos para palestras, conferências e nós
também fazíamos o mesmo.
As universidades que marcaram o fortalecimento do núcleo foram a UNEB e a UESB,
principalmente. Estabelecemos parcerias importantes com estas universidades experientes
no trabalho com a população do interior da Bahia. E passamos a integrar o Programa de
Pós-graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade da UESB, um dos mestrados
ícones do país na temática e formalmente parabenizado pelos pareceristas da CAPES.
Nestas experiências, observávamos que a interiorização do ensino superior no país é ainda
um desafio complexo. O qual exige conhecimento, articulação, diálogos constantes e amor
pela igualdade de acesso e oportunidades para jovens e pessoas que habitam ou pertencem
as regiões mais difíceis de desenvolvimento social, técnico e científico do país.
Portanto, a UFRB em seu desafio jovem de multicampi, no interior do Recôncavo, através
de nosso núcleo, nunca desprezou os saberes já trilhados por outras universidades de nosso
estado.
Observamos que nos últimos dez anos o Brasil mudou. O eixo de desenvolvimento do
Estado Nacional tornou-se também o Nordeste.
A Bahia, o nordeste e também o norte cresceram com as novas universidades públicas
federais e as políticas de acesso ao ensino superior.
O Brasil, em sua periferia, demonstra uma aparência melhor cuidada.
As casas da população pobre estão revestidas na cozinha, nos banheiros. Ganharam
pinturas novas, móveis e eletrodomésticos. As crianças vão à escola e estão melhor nutridas.
Isto significa também a dimensão do tratamento que o país deu a população quilombola e
aos quilombos.
Sejam eles urbanos ou rurais, nas periferias ou em transmutações de empoderamento
da juventude negra que em diferentes estados, gosta de adotar a linguagem e estética dos
quilombos a fim de reafirmar sua historicidade de vitórias e resistência.
Este livro se consagra a isto.
Os autores que aqui escrevem nos trazem notícias de pesquisas realizadas em quilombos
e experiências com populações de quilombos.
Eles nos apresentam à escola, seus desenvolvimentos e tecnologias.
Os investimentos importantes que produziram trabalhos pioneiros no âmbito destes ter-
ritórios estigmatizados por preconceitos de todos os tipos e que vencem, a partir do acesso ao
ensino financiado pelo estado nacional muitos entraves.
Também demonstram neste livro as dificuldades ainda existentes no âmbito do fazer
educacional das populações quilombolas e negras.
Porém, os avanços na capacidade de pesquisadores brasileiros de alto nível dedicarem-se
a estes estudos são inegáveis, pois atestam que os investimentos em pesquisas de qualidade
dependem também do interesse das direções políticas de nosso Brasil.
Por tal razão dissemos no início sobre a atuação de nosso núcleo de pesquisa, nossas
inquietações e trabalhos: porque fomos produtos desta nova mentalidade nacional firmada por
uma política de desenvolvimento para o país em sua totalidade. Privilegiando sim, e porque
não assumir isto, a opção pelos mais pobres e historicamente marginalizados.
A pesquisa, os avanços tecnológicos devem servir necessariamente a comunidade e a uni-
versalidade. Mas para isto, há que se focar nos nichos mais precários de desenvolvimento como
um todo, a fim de superar mazelas sociais e reinventar novos alicerces de desenvolvimento.
Os textos do livro Pedagogias e tecnologias em quilombos: conquistas e novos desafios
é escrito por autores que dissertam sobre a escola brasileira: suas bases formativas para
professores que exercem à docência em territórios segregados, como os quilombos em sua
designação histórica e clássica, bem como nos territórios segregados das periferias enquanto
metáforas do quilombo apropriada pela linguagem da juventude negra de ascendência africana
nas periferias do Brasil.
O cenário que eles nos apresentam fala prioritariamente da formação escolar: no quilombo,
no desenvolvimento de metodologias de formação para docentes de escolas quilombolas,
de políticas públicas educacionais para a instituição da educação escolar quilombola, identi-
dade e violência, resistência e conquistas sociais, além de refletir sobre o pragmatismo e os
fundamentos de uma educação científica na realidade quilombola.
O texto inaugural informa sobre o pioneirismo da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia em empreender pela primeira vez no Estado da Bahia uma formação para mais de 100
professores com atuação em escolas quilombolas no Recôncavo e Portal do Sertão.
O texto elabora os caminhos curriculares e pedagógicos que possibilitaram esta arrojada
inserção e convida outros estudiosos compromissados com a necessidade de melhorias para
todo o conjunto populacional do Brasil que reconhece a existência de milhões de quilombos
em sua territorialidade a refletirem e a exercerem o protagonismo de reformularem ou melhor
organizarem outras ações político pedagógicas para estas populações.
O texto é um relato técnico, curricular e pedagógico sobre o curso de formação em educação
escolar quilombola da UFRB, o qual apresenta suas metodologias e produto a fim de que outros
possam não somente também realizar semelhantes trabalhos; mas criar novas possibilidades
de visões e interpretações sobre quilombos, educação, populações negras, quilombolas e sala
de aula.
O segundo texto do professor mestre e quilombola Josemar da Purificação é um relato
científico sobre o famoso quilombo Rio das Rãs. Ele nos mostra a partir de sua escrita a
importância da fala que vem de dentro do quilombo, do que a população do quilombo necessita.
Apresentar o seu texto é para nós uma grande honra, pois atesta mais uma vez que as
políticas de incentivo e desenvolvimento no nosso país necessitam continuar na promoção
do empoderamento dos sujeitos políticos que devem se auto representar. A fim de suprimir
todo tipo de alienação colonialista que fere nossa identidade brasileira galgada no martírio e
massacre de nossa população indígena e negra.
O texto maduro da antropóloga e doutora Sandra Nívia Oliveira, da Universidade Estadual
de Feira de Santana, é também emblemático das importantes epistemologias e tecnologias
educacionais existentes e reinventadas nos quilombos.
Sua sensibilidade na inserção do campo de estudo sobre educação e identidade nos
permite refletir sobre a própria identidade do Brasil em seu conjunto nacional de indígenas,
negros e brancos.
Ao falar de identidade e educação a partir da experiência de um quilombo, a autora nos
aponta uma nova paisagem de pensamentos, a partir do quilombo de Mangal e Barro Vermelho,
como Terra de Santo da padroeira Nossa Senhora do Rosário.
O também doutor e experiente professor Roberto Santos da Universidade Federal do
Tocantins nos traz reflexões e experiências sobre os quilombos do Tocantins. Ele nos apresenta
as diversas possibilidades de desenvolvimento instrumental na formação do professor de
geografia em territórios de quilombos. Instiga-nos a partir da experiência empírica a perceber
que algumas tecnologias e metodologias pedagógicas nos quilombos dos Tocantins necessitam
ser clássicas - como a análise crítica e dialética marxista - para o desenvolvimento do trabalho
nestes territórios, os quais saindo de sua obscuridade devem ser pensados criticamente pelo
professor nele atuante.
A geógrafa e doutora Lourdes Carril, da Universidade Federal de São Carlos, também nos
trará o anúncio sobre a escuta do sujeito da sala de aula. Ela descortina as possibilidades de
reconhecimento e aprendizagem por parte daqueles que supostamente aprendem; revelando
que o desenvolvimento de tecnologias em educação faz-se a partir da crítica aos modelos
pedagógicos em sala de aula, o qual reproduz a hierarquia racista e classista da nação
brasileira, indicando a importância ética do respeito a escrita emblemática destes sujeitos,
os quais são historicamente alijados e violados no não reconhecimento de sua condição de
seres fundantes e construtores de nossa sociedade. Outros sons para se ouvir na própria
universidade.
Para além do ensino da história da África nos currículos das escolas brasileiras, é importante
organizar uma escuta atenta aos dizeres dos sujeitos que protagonizam a cena: eles, sabem e
cantam suas histórias, e o respeito e consideração fiel as suas inquietações são os caminhos
possíveis da transformação ética da educação e comportamento da população brasileira.
O professor Valmir Araújo, físico e pesquisador em tecnologias e robóticas, dialoga sobre a
busca de fundamentos para uma educação científica nas diversidades étnicas dos quilombos.
A importância deste texto nesta obra revela o óbvio que o país teima em não ver e recon-
hecer: há que se buscar e construir paradigmas de pesquisas que sejam afetos especificamente
a nossa realidade. Desafio em trilhar passos de descolonização de saberes.
Edilene Machado e Reinaldo Oliveira trazem em seus distintos textos, os velhos pilares da
sociologia brasileira que avançou nos estudos sobre as relações étnicos-raciais.
Importante mencionar que a dimensão quilombos não é simplesmente categoria de estudo
das relações étnico-raciais, mas enquanto vasto campo ainda a ser desbravado em estudos
e pesquisas, as ciências sociais possui referências fundamentais para melhor compreensão
do campo e traçados de novas incursões em outras disciplinas como no caso, quilombos,
educação e tecnologias.
Sendo assim a Doutora Edilene, pesquisadora com passagem pela Universidade do
Texas (Austin-EUA), PUC/SP, UNESP/Araraquara e pós doutora pela Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia, apresenta juntamente com Marise de Santana, um texto forte para
discutir as conquistas do quilombo urbano Barro Preto na cidade de Jequié e a construção de
identidade da população local.
Reinaldo José de Oliveira, também da Universidade Estadual de Feira de Santana, e
também com currículo alicerçado por experiências em diferentes regiões do país e inserção
internacional (Portugal/Lisboa e França/Paris); desenvolve um ensaio sobre territórios negros e
quilombolas e suas expressivas forças no combate político e na superação da segregação.
A partir de análise social densa, ele resgata a desterritorialização da história e a memória
das populações negra e indígena, as quais são negadas pelo poder público enquanto valorosas
para a construção urbanística e a noção estética da beleza da cidade. Novamente, a análise
que se pauta é, em arguta instância, a dimensão do alicerce da colonização nas Américas que
insiste em tomar por modelos paradigmas e perspectivas que violentam nossa realidade étnica
e racial de negros, quilombolas e indígenas.
Por fim, o que temos a considerar é que este livro para ser compreendido, precisa ser lido,
considerando que os textos e autores aqui representados fazem parte de um perfil e caráter de
produção de pesquisa acadêmica que insiste e teima em considerar a realidade brasileira a
partir de sua população macro e historicamente marginalizada – negros e indígenas.
Construir perspectivas científicas transformadoras, que contestem e procuram buscar a
autonomia dos aspectos de uma colonização perversa (embora em nossa concepção não
exista forma de colonização que não seja violenta e bárbara) é o mote principal para considerar
estudos sobre quilombos, pedagogias libertadoras e emancipatórias, bem como produzir
tecnologias que instrumentalizem estas populações a conduzirem os eixos de seus próprios
desígnios.
Este é o compromisso desta ciência aqui inscrita, pelas mãos e pensamentos destes
mestres e cientistas.
Este avanço conceitual em si, embora trabalho árduo e de longo tempo desenvolvido por
estes oito pesquisadores - todos eles muito experientes e longe do perfil jovem e descompro-
missado politicamente que cada vez mais temos visto no contexto da universidade brasileira
– só é possível ser neste livro reunido em razão do compromisso ético e político de nossa
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. A qual, na pessoa de seu atual reitor, tem a
tarefa de cumprir com esta missão tão difícil no cenário de um Brasil ainda desigual e muito
injusto.
Por esta razão, saudamos a todos estes realizadores e reverenciamos também os setores
institucionais que tornaram possível a realização desta obra (SEAD, Grupo de Mídias, Prof. Dr.
Ariston Cardoso, enfim...todos).
Especial agradecimentos ao Professor Doutor Silvio de Oliveira Soglia, nosso Magnífico
Reitor e sua equipe.
Que sua luz prossiga na consciência de seu tempo e na boa condução das escolhas
políticas de nossa instituição.
Do fim da primavera em Paris para o moderado outono de Cruz das Almas na Bahia, “Terra
de Todos os Santos”, aos 20 de maio de 2016.

Regina Marques de Souza Oliveira.


Sumário

1 CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA


17

2 O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRA-


JETÓRIA QUE INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO
RIO DAS RÃS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

3 IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:


CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO
75

4 O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES


CONCEITUAIS DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS . 97

5 ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA


SALA DE AULA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

6 EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE ÉTNICOCULTURAL: EM


BUSCA DE FUNDAMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

7 COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO


PRETO E A RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
161

15
8 OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEG-
REGAÇÃO? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO
RECÔNCAVO DA BAHIA

Regina Marques de Souza Oliveira 1

Reinaldo José de Oliveira 2

Este artigo procura demonstrar os princípios formativos do curso presencial em Educação


Escolar Quilombola realizado pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia através da
aprovação no edital da Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Inclusão e Ministério da
Educação (MEC/SECADI), a qual forneceu parte dos recursos materiais necessários para sua
realização.

A partir da apresentação do currículo que organizou o curso, é possível observar quais


foram as direções eleitas pelos proponentes do curso a fim de promover o acesso qualitativo de
crianças quilombolas a uma educação mais próxima de seu contexto e identidade, através do
aperfeiçoamento do trabalho do professor atuante em comunidades ou contextos quilombolas.

1
Psicóloga, psicanalista, Mestre e Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP e EHESS/Paris. Professora
da UFRB. Desenvolve pesquisa pós-doutoral (Bolsista CAPES) sobre os Impactos psicossociais da violência na
saúde de populações negras e da diáspora africana no Instituto dos Mundos Africanos em Paris da Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais e no Centro Médico e Psicológico Minkowska (França/Paris).
2
Sociólogo, Mestre e Doutor em Ciências Sociais (Sociologia), pela PUC/SP, com estágio doutoral em Paris
(CADIS – Centro de Investigação e Intervenção Sociológica, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais –
EHESS- com Michel Wieviorka) e Lisboa (CTE – Centro de Trabalho e Empresa, Universidade de Lisboa, com
Vitor Matias Ferreira. Realizou pós-doutorado pelo Programa Nacional de Pós-Doutorado da Fundação CAPES
na PUC/SP, com a pesquisa Segregação Racial nas Cidade de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Professor
na Universidade Estadual de Feira de Santana/BA.

17
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

Os objetivos da proposta do Curso de Educação Escolar Quilombola da Universidade


Federal do Recôncavo da Bahia baseou-se em todos os mesmos objetivos pautados no Artigo
6.o da Legislação que versa sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
o
Escolar Quilombola, conforme os Decretos Legislativos n. 143/03 e 6.040/07, oriundos da
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e assegura de modo substancial o
inciso V, VI, e VII do artigo 6.o da Legislação Pertinente na página 62 do Parecer CNE/CEB
16/12:

- Fortalecer o regime de colaboração entre os sistemas de ensino da União,


dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na oferta da Educação Escolar
Quilombola;
- zelar pela garantia do direito à Educação Escolar Quilombola às comunidades
quilombolas rurais e urbana, respeitando a história, o território, a memória, a ances-
tralidade e os conhecimentos tradicionais;
- subsidiar a abordagem da temática quilombola em todas as etapas da Educação
Básica, pública e privada, compreendida como parte integrante da cultura e do
patrimônio afro-brasileiro, cujo conhecimento é imprescindível para a compreensão
da história, da cultura e da realidade brasileira.

O curso visou capacitar professores da rede pública de educação (estadual e municipal) a


partir de um processo de formação continuada, procurando promover o diálogo, compreen-
são entre os conhecimentos tradicionais, considerando a cultura, a oralidade, a memória, a
ancestralidade e o território, a fim de favorecer a abordagem do mundo do trabalho nestas
comunidades, e as linguagens estéticas.

Tivemos também por público alvo as lideranças comunitárias de territórios de quilombos,


os quais poderiam participar do curso em um contingente de 10% do público majoritário (os
professores).

Esta prerrogativa de porcentagem de vagas às lideranças quilombolas foi uma determinação


do Ministério de Educação e Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Inclusão.

Especificamente, propusemos ampliar e garantir a formação continuada a nível de aper-


feiçoamento para educadores da rede pública em Educação Quilombola com carga horária de
200 horas presenciais.

Nesta proposta, fomentamos a orientação do professor a fim de compreender que a


Educação Escolar Quilombola precisa considerar o diálogo entre os conhecimentos tradicionais

18
da comunidade com o global, o nacional, o regional e o local, e, ao longo das etapas e
modalidades do curso, deve ser capaz de considerar a cultura, as tradições, a oralidade, a
memória, a ancestralidade, o mundo do trabalho, o etnodesenvolvimento, a estética, as lutas
pela terra e pelo território como componentes formativos importantes de seu trabalho em sala
de aula e no contexto da educação em quilombos ou público dele oriundo.

O currículo pautou-se em promover em parceria com a comunidade a formação dos


docentes, focalizando aqueles que estão e/ou são destes territórios. Além de garantir integração
entre a escola e a comunidade, no diálogo estimulante com os movimentos sociais, fomentando
a participação coletiva frente a educação promovida na comunidade-escola.

Em nossa experiência formativa, observamos que é preciso enriquecer e fortalecer a


emergência de uma identidade étnico-racial a partir da ressignificação da história e cultura
afro-brasileiras e africana. Organizando um currículo capaz de recriar e reterritorializar os
territórios quilombolas em suas insígnias, marcas ancestrais e transgeracionais - memória.

Organizar um currículo formativo significou incentivar a escola e seus professores a preser-


varem às manifestações culturais das comunidades quilombolas que atuavam, valorizando e
resgatando a sua identidade no cenário educacional e comunitário.

Um currículo em educação escolar quilombola deve ser capaz de auxiliar a escola na


construção de ações que proponham a descolonização do pensar em seu cotidiano. Através
de uma autonomia autêntica capaz de reverberar no protagonismo do educando, o qual é por
excelência o agente mesmo do processo de ensino aprendizagem.

Enquanto ator social, a universidade (enquanto política) e seus agentes – professores


pesquisadores - precisam, a partir do currículo formativo, serem capazes de realizar a escuta
dos professores-cursistas nas escolas das comunidades quilombolas e que atuam na con-
strução do plano municipal de educação escolar quilombola. O protagonismo de entidade
formativa – a universidade – restringe-se na articulação de promover a emergência de uma
educação em sintonia estreita com o quilombola e para o quilombola, a fim de que a base
educativa seja realizada por horizontalidades nas relações educacionais: comunidade, escola
e gestão política.

Sob tal circunstância, o papel da universidade é amplo e ao mesmo tempo restrito: amplo

19
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

porque pode promover reflexões profundas nos modos de pensar e agir dos atores sociais, no
caso os professores quilombolas e alunos quilombolas; restrito, porque não é a universidade
quem vai protagonizar estas emergências de mudanças, não pode fazê-las e não sabe fazê-las.
Infringir este campo de atuação seria incorrer em grande violência de autonomia e possibilidade
de surgimento de políticas de emancipação.

Ela, a universidade, tem o dever de promover o acesso a um currículo emancipador,


autônomo, capaz de difundir com liberdade a expansão do pensamento em busca dos valores
tradicionalmente e classicamente humanos: liberdade, igualdade, acesso, cidadania, direitos.

Porém, ela precisa ser estrita em seu papel, sendo capaz de obedecer metodologias que
possam garantir o acesso instrumentalizado dos sujeitos sociais em seu protagonismo.

Esta responsabilidade é dever formativo de um bom currículo. Por isto, ele é sempre
importante na coluna cervical de uma proposta de curso.

O currículo do curso presencial da educação escolar quilombola da Universidade Federal


do Recôncavo da Bahia pautou-se por fornecer subsídios para que a escola com o professor
realize a crítica reflexiva sobre a educação quilombola, o acesso à saúde e às condições
de desenvolvimento social, permeando uma análise conceitual teórica sobre Brasil, África,
diáspora, relações raciais e direitos humanos.

Nos seminários formativos3 das equipes de professores pesquisadores do quadro da


universidade sempre buscávamos que refletissem a pergunta: o que é uma educação escolar
quilombola?

O sentido do questionamento era reverberar a extensão desta questão para os próprios


sujeitos da escola: professores quilombolas, alunos quilombolas, comunidade, famílias e
lideranças.

Um currículo em educação escolar quilombola visa, em significativa instância, instigar


discentes (professores e lideranças) e comunidade à capacidade de pensar a escola, a cultura
e outros espaços como locais de transformação social com vistas a um projeto de sociedade

3
Foram três encontros entre a equipe de coordenação do curso e os professores que ministraram os com-
ponentes curriculares do curso. Encontros nos quais eram trazidas duvidas, questionamentos, materiais de
apoio para uso com o cursista e fomento de olhares descolonizados do papel da escola e a formação do aluno,
ressignificando posturas e olhares sobre diásporas, Áfricas, quilombos e relações étnicas e raciais.

20
que considere a igualdade de direitos e acesso a cidadania para os povos quilombolas e da
diáspora, sensibilizando a escola a partir de seus agentes – o professor, alunos, famílias e
lideranças comunitárias - a transformarem suas condições históricas e culturais vividas em
formas de aprendizagem escolar.

Pensou-se e realizou-se neste curso a capacidade, por parte dos cursistas, de analisar
e/ou produzir material didático e paradidático distribuídos por programas federais e/ou outros, a
fim de que possam selecionar os que são condizentes com suas realidades e/ou organizando
seu próprio currículo e diretrizes de atuação escolar e de aprendizagem, quando não se veem
representados nos materiais que lhes são entregues por programas públicos de educação em
suas diferentes esferas: municipal, estadual, federal.

Sob tal aspecto o currículo do curso presencial de educação escolar quilombola da Univer-
sidade Federal do Recôncavo da Bahia, organizou-se não como um registro desvinculado de
modelos epistemológicos específicos. Mas embora utilizasse algumas premissas norteadoras
– pedagogia de Paulo Freire, epistemologias da história, geografia, psicologia, sociologia,
materialismo histórico dialético, dentre outras – organizou-se primordialmente em fomentar a
interpretação, tradução, observação da realidade do professor e do quilombo para imprimir
uma direção mais efetiva de recursos materiais disponíveis para a organização dos trabalhos.

Uma abertura de possibilidades de caminhos alojados por uma ética de responsabilidade


em promover fluxos emancipatórios foi de modo geral o caminho escolhido para a organização
pedagógica do currículo.

Buscamos, enquanto universidade, promover a condição do professor e comunidade,


pensarem a elaboração de um Projeto Político Pedagógico da escola quilombola. Projeto
que fosse condizente com a realidade dos alunos e da comunidade, fomentando discussões
pedagógicas com os estudantes a fim de que a gestão possa considerar os aspectos históricos,
políticos, sociais, culturais e econômicos do universo quilombola onde a escola está inserida.

DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES

Procuramos desenvolver uma metodologia, forma e princípios metodológicos e curriculares


conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, princi-

21
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

palmente no que diz respeito aos artigos 34 a 38, Capítulo I do Parecer da Lei de Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, mediado pela constatação da re-
alidade do Recôncavo da Bahia. Realidade extraída do diálogo com as lideranças quilombolas
e profissionais de educação, os quais solicitaram um currículo organizado de forma a contextu-
alizar a sociedade, cultura, regionalidade, territórios das comunidades quilombolas, garantindo
os valores e interesses das comunidades quilombolas. No mesmo sentido, fornecendo ao
educando o direito a conhecer o conceito, a história dos quilombos no Brasil, o protagonismo
do movimento quilombola e do movimento negro, assim como o seu histórico de lutas.

Estávamos preocupados com a metodologia em favorecer o reconhecimento da história e


cultura afro-brasileira como elementos estruturantes do processo civilizatório nacional, con-
siderando as mudanças, as recriações e as ressignificações históricas e socioculturais que
estruturam as concepções de vida dos afro-brasileiros na diáspora africana. Promovendo
assim o fortalecimento da identidade étnica-racial e a linguagem como importantes eixos
norteadores da metodologia e da proposta curricular do curso de aperfeiçoamento.

O currículo (componentes e conteúdo programático) foi organizado por eixos temáticos,


conforme prevê a Legislação Pertinente das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Edu-
cação Escolar Quilombola, (CNE/CEB, 16/02), organizando projetos de intervenção escolar
(pesquisa), eixos geradores com matrizes conceituais, nos quais os conteúdos das diver-
sas disciplinas podem ser trabalhados em perspectiva interdisciplinar. Do mesmo modo, o
conhecimento das especificidades das escolas quilombolas e das escolas que atendem aos
estudantes de territórios quilombolas foram profundamente considerados na flexibilidade da
organização curricular entre a base de articulação nacional comum com a parte diversificada.
Esta competência foi uma das principais ferramentas metodológicas que usamos para compor
o trabalho de formação em aperfeiçoamento do professor de educação escolar quilombola.

Em nosso material didático e de apoio pedagógico para o professor cursista, utilizamos


conteúdos culturais, sociais e políticos identitários específicos das comunidades quilombolas
em intervenção, a fim de instrumentalizar o professor a produzir seu próprio material didático
em consonância ao que prescreve o Parecer CNE/CEB 16/12 – Diretrizes Curriculares Na-
cionais para a Educação Escolar Quilombola, incluindo também comemorações nacionais e
locais no calendário escolar, consultas com as comunidades (pais, alunos, reuniões e assem-

22
bleias escolares com os quilombolas) a fim de compreender e organizar o que a comunidade
considera mais marcante a ponto de ser rememorado e comemorado pela escola.

Na metodologia, discutimos pedagogicamente com os professores de comunidades quilom-


bolas ou aqueles que recebem alunos quilombolas em suas escolas, sobre o sentido e o
significado das comemorações da comunidade, não deixando de incluir em nosso trabalho as
ações voltadas para o cuidado com a Educação Infantil e o atendimento Educacional Espe-
cializado complementar e suplementar à formação de estudantes quilombolas com eventuais
dificuldades de aprendizagem, deficiências, transtornos graves do desenvolvimento e com altas
habilidades (aspectos concernentes as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Quilombola, Parecer CNE/CEB, 16/12, p. 72 e 73)

FORMA E PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS

Nossa forma metodológica consistiu em exposição dialogada com o aluno, apresentação e


discussão de textos, atividades e exercícios de compreensão conceitual, projeção de filmes e
vídeos sobre realidades quilombolas mediadas pela discussão e apresentação pelos cursistas
de suas realidades. Temas que foram discutidos por professores convidados, com organização
de seminários de estudos e visitas a alguns dos territórios quilombolas cujos professores
estavam frequentando o curso com a realização de atividades previamente elaboradas e
pensadas pelos discentes nas comunidades enquanto projeto de intervenção pedagógica.

A avaliação constituiu-se como a etapa processual final na qual o cursista foi levado durante
as etapas do curso a pensar seu projeto de intervenção pedagógica, bem como a produção de
seminário temático com a elaboração e um artigo em forma de relato de experiência ou caráter
técnico científico a partir das discussões conceituais obtidas durante as aulas presenciais e
discussões com os professores pesquisadores.

O curso Educação Quilombola foi realizado em três etapas presenciais as quais incluíram:

a) Etapa I: Legislação Escolar Brasileira e Leis específicas sobre as Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (Parecer CNE/CEB n. 16/12), Relações Raciais
e lei 10.639/03 dentre outras; b) Etapa II : aprofundamento temático conforme os interesses
previamente elencados pelas comunidades quilombolas do Recôncavo da Bahia, incluindo

23
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

práticas pedagógicas de Educação Escolar Quilombola, língua e literatura brasileira e africana


(afro-brasileira) , história da África e o legado africano no Brasil, artes e cultura afro-brasileira
e africana; c) Etapa III: elaboração de Projeto de Intervenção na comunidade, produção
de seminário e artigo (relato de experiência ou técnico-científico) a partir de orientações
específicas aos discentes (professores pesquisadores e professores-cursistas).

Durante o curso, foram realizadas orientações de pesquisa aos discentes os quais contaram
com o acompanhamento de professores orientadores a fim de que fossem capazes de produzir
um trabalho final de curso. Neste estágio, os alunos desenvolveram relatos de experiências
a partir de banners os quais foram apresentados no Colóquio “Do Recôncavo ao Sertão:
Educação Escolar Quilombola e UFRB”, realizado em 28 de agosto de 2015 na cidade de
Cachoeira.

Os princípios metodológicos do curso basearam-se em uma relação dialógica com o campo


do conhecimento a partir de uma educação para uma práxis libertadora e emancipatória,
permitindo ao estudante quilombola o estudo a respeito de sua realidade de forma aprofundada,
ética e contextualizada. No mesmo sentido, os princípios metodológicos em educação Escolar
Quilombola são os mesmos da Educação Nacional. Portanto, a metodologia do curso implicou
em produzir orientações e diálogos com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Quilombola presentes nos dispositivos que alteram e agregam a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional.

Desenvolvemos durante os seminários formativos dos professores pesquisadores partici-


pantes da equipe de formação do curso, a capacidade de fomentarem suas aulas e atividades
docente sempre em consonância com a história, vivência, cultura e tradição dos quilombos na
realidade em que se apresentavam.

PRINCÍPIOS CURRICULARES

Após a realização do curso, é importante esclarecer alguns princípios curriculares por nós
considerados.

Em educação, sabemos que não há divisões estáticas entre metodologia e currículo.


No entanto, neste texto, quisemos organizar didaticamente estas reflexões a fim de melhor

24
apresentar o trabalho desenvolvido.

Conforme o Capítulo IV das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar


Quilombola, o qual aborda a importância da formação continuada e profissionalização dos
professores para atuação na educação escolar quilombola, fica clara a preocupação do estado
nacional em ter como eixo norteador do currículo os conteúdos gerais sobre a educação, política
educacional, gestão e fundamentos históricos e sociológicos, sociolinguísticos, filosóficos,
artísticos e antropológicos como integrantes da proposta do curso de aperfeiçoamento.

No mesmo sentido, o estudo da memória, da ancestralidade, da oralidade, da corporeidade,


da estética e do etnodesenvolvimento, enquanto cosmovisão produzida pelos quilombolas,
as lutas quilombolas, o papel dos quilombos nas lutas dos processos de libertação e no
contexto atual da sociedade brasileira, as ações afirmativas, as formas de superação do
racismo, da discriminação e do preconceito, conforme as Leis 9.394/96 e 10.639/03 e da
Resolução CNE/CP1/2004, foram conceitos organizados cuidadosamente em nossas ementas
e componentes curriculares.

Tentamos em nosso curso presencial observar as considerações constantes das páginas


74 e 75 do Parecer da Relatoria das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola, CNE/CEB 16/12, MEC/SECADI. Procurando seguir os princípios da Resolução
das Diretrizes Nacionais da Educação Escolar Quilombola em seu artigo 54, no qual determina
que os cursos destinados à formação continuada na Educação Escolar Quilombola deverão
atender ao disposto no art. 51 da Resolução (p.75).

Por tais razões, o Curso Presencial de Formação e Aperfeiçoamento em Educação Escolar


Quilombola da UFRB foi desenvolvido em seus princípios curriculares a partir da organiza-
ção de espaços, condições de estudo, pesquisa e discussões sobre: a) lutas quilombolas
ao longo da história, b) o papel dos quilombos nos processos de libertação e no contexto
atual da sociedade brasileira, c) as ações afirmativas, d) estudos sobre a articulação entre
conhecimentos científicos e os conhecimentos tradicionais produzidos pelas comunidades
quilombolas ao longo do seu processo histórico, sociocultural, político e econômico, e) as
formas de superação do racismo, da discriminação e do preconceito racial, nos termos da Lei
n. 9.394/96, na redação dada pela Lei no . 10.639/03 e da Resolução CNE/CP no . 1/20044 .

4
O inciso V da Resolução apresenta um defeito, porque está inscrito como IV, repetidamente, mas observa-se

25
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

Seguimos este parâmetro geral em nosso curso, fomentando encontros que traduzissem
algumas características presentes no artigo 51 da resolução específica que constitui os
alicerces de nosso trabalho (Resolução Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Quilombola, parecer CNE/CEB n.o 16/12).

Nos três seminários formativos propostos e organizados pela coordenação do curso para a
equipe de professores pesquisadores, procuramos disseminar as noções curriculares abaixo
elencadas a partir de vivências, jogos pedagógicos, filmes, momentos de leituras, teatro e
dramatização entre os docentes

PARÂMETROS CURRICULARES

Partimos do princípio de que as comunidades quilombolas despertam uma variedade


de questões socioeconômicas, espaciais, jurídicas e culturais que passam a fazer parte do
amplo diálogo a respeito dos significados, sentidos e conceitos sobre os quilombos. Diante do
quadro social, a estrutura da metodologia teve todo o cuidado para não reproduzir e aplicar
o ensinamento ocidentalizado, eurocêntrico, presentes nas escolas formais e na sociedade
urbana industrial e informacional. Portanto, desenvolvemos nossas ações e reflexões a partir
do quadro histórico, socioeconômico e cultural das comunidades quilombolas, não esquecendo
a presença na sociedade como um todo.

A educação quilombola não segue uma lógica ocidental e linear. No cotidiano social, os
sentidos materiais e subjetivos são elaborados e conectados aos elementos que ligam e dão
consistência aos significados da realidade social dos quilombos. Neste contexto, procuramos
compor os parâmetros curriculares do curso, por meio de atividades que promovam este
encontro com tais realidades – atividades extensionistas, tais como visitas a quilombos e
discussões de experiências vividas por professores pertencentes a estes contextos; bem como
leituras de textos científicos que representassem a ligação com o contexto vivido e presente
nas comunidades presentes no curso.

O plano curricular, teórico e metodológico prevê o andamento das atividades presenciais


com a realização de aulas. Tais aulas foram apresentadas e mediadas diretamente com leituras

que a sequência é V e não IV como consta.

26
e análises de textos, nos ambientes externos e internos da prática presencial, fomentando o
desenvolvimento, a partir da construção, a reflexão e diálogo dos discentes no contexto de
suas realidades.

Procuramos estabelecer uma relação dialógica e horizontal criadora de uma pedagogia


solidária e emancipatória do sujeito para com ele mesmo, na mesma medida em que, enquanto
agente coprodutor e multiplicador de conhecimento, também evidencia um respeito sine qua
non a realidade e perspectiva das pessoas, comunidade quilombola.

Também era explícito, no exercício metodológico da prática curricular, o docente colaborador


da universidade abordar a interface de formação do professor de comunidades quilombolas
aos diferentes níveis educacionais (educação infantil, ensino fundamental e médio, educação
de jovens e adultos, bem como educação especial), conforme a realidade dos professores
cursistas das comunidades do Recôncavo da Bahia. Foi possível promover com os profes-
sores cursistas, discussões sobre a realidade do contexto dos professores das comunidades
quilombolas e estes puderam enquanto discentes, observar e melhor delinear os conceitos,
significados e funções do universo quilombola, em especial, da educação que vinham desen-
volvendo nos quilombos e/ou com os alunos oriundos dele.

Fizemos uso nos componentes curriculares de atividades de sala de aula e algumas visitas
técnicas enquanto métodos de ensino e extensão, transmutados e conjugados com um trabalho
de pesquisa a ser construído a partir do envolvimento discente com o campo do conhecimento
quilombola; o qual possui sua epistemologia própria que deve ser valorizada e incluída aos
saberes educacionais formais.

Neste sentido, os discentes – professores cursistas- foram instigados a verificar, observar,


participar da construção de um “olhar fenomenológico” sobre a condição quilombola. Na tenta-
tiva de apreender as condições do território e do lugar (pessoas, costumes, tradições, princípios,
direitos, legitimidade humana) importantes para o desenvolvimento da educação quilombola
representativa e legítima em seu próprio cerne. Muitas foram as possibilidades de aberturas
e diálogos na composição do currículo, em razão da variedade e das múltiplas conexões
nos campos dos saberes sobre relações étnicas e educação escolar quilombola. Portanto,
as etapas teórico-metodológicas foram intercaladas pelo rigor conceitual de conhecimentos
consolidados sobre relações raciais e a presença do negro no Brasil.

27
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

Estes estudos, classicamente, remontam o ano de 1900, ano de “fundação” de tais questões
no contexto acadêmico brasileiro. No currículo organizado, eles foram mediados pela reflexão
expressiva das circunstâncias atuais da realidade dos quilombos no Brasil contemporâneo.

Esta opção curricular nos implicou considerar na metodologia do curso o princípio de


construção de identidade na formação do docente enquanto processo ininterrupto, com a
crítica de sua formação e os modos como ele pode (des)construir linguagens novas na sua
condição epistemológica sobre a condição de quem aprende.

Ou seja:

(...) quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender, tanto mais se


constrói e desenvolve o que venho chamando “curiosidade epistemológica”, sem a
qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto (Paulo Freire, 1998, p.27).

Neste sentido, tivemos por metodologia curricular manter um ponto de apoio e de refer-
ência (conceitual e teórico) que também se inscrevesse próximo dos discentes (profes-
sores/lideranças/público alvo do curso). O papel da comunicação com o público alvo era
promover o encontro entre os atores que desenvolvem as funções de docentes, a fim de que
este diálogo se reproduza pedagogicamente enquanto produto assimilado substancialmente
– gestualmente – nas relações deste (professor participante do curso) com a população –
crianças, jovens, adolescentes, adultos e idosos – quilombola, no trato e cuidado da educação
a ser construída e fomentada pari passo com a comunidade. Fomos felizes nesta organização,
a qual em diferentes contextos dos municípios que tiveram acesso ao curso estes fatores
ocorreram. Importante considerar que o caráter “gestual” implica em um princípio dinâmico de
formação de identidade, no que concerne a psicologia social materialista histórica: metamor-
fose, vir a ser, transformação. Produzir o gesto, o “movimento do devir”, consistiu em insistir
em novos paradigmas para a relação ensino-aprendizagem e transmissão de conhecimentos
para a educação escolar quilombola.

No currículo, coube também distinguir que, a principal referência do contexto quilombola, no


que diz respeito à educação, é a história não formal, não escrita, dita, construída e transmitida
de forma oral, por intermédio dos mais velhos paras os mais jovens.

Nesta perspectiva, nossas aulas, atividades de avaliação, visitas técnicas, deram atenção
às histórias, calendários, ritos, mitos, canções, cantigas, rezas e particularidades do campo

28
cultural e social; referendando ao público a ser formado sobre a epistemologia existente nestes
saberes e a necessidade de valorizar e construir instrumentos de registros destes saberes,
para que continuem a fazer parte do acervo e patrimônio imaterial da Humanidade.

Buscamos com o currículo formulado reiterar constantemente sobre a importância do papel


do professor de comunidades quilombolas, enquanto guardião e promotor de preservação de
tais saberes no seio da comunidade local e para além dela, na medida em que o conhecimento
(este já tradicionalmente existente nas comunidades) pode permanecer e refazer-se valorado,
prestigiado, enquanto termo necessário à comunidade de viventes – o mundo, a sociedade.

Um currículo que promovesse um diálogo ativo e vivo com a pesquisa formal acadêmica,
pois os saberes tradicionais de populações de matrizes africanas são também dignos de
serem traduzidos e preservados a partir das práticas formais do ocidente que é a pesquisa
acadêmica.

O tripé de formação do aluno-docente não pode evadir-se de seu papel de transmutar a


história, a viva história em que ele vive e é testemunha.

A pesquisa cientifica tem papel libertador para a comunidade de humanos e neste sentido
é importante fortalecer um currículo que promova esta articulação com as esferas clássicas da
sociedade instrumentalizada de nosso tempo (a universidade, a linguagem técnica, o exercício
do poder formal válido institucionalmente no mundo ocidental).

Nosso currículo e nossa metodologia tiveram por base as Diretrizes Nacionais para a
Educação Escolar Quilombola (parecer CNE/CEB, 16/12).

Através do estudo das diretrizes, observamos que a desigualdade é inerente a realidade e


contexto da educação escolar de comunidades remanescentes de quilombo. Nossas leituras,
interpretações e análises da lei nos levaram a pensar um currículo mediado por uma metodolo-
gia que considerasse a abstração das formas comuns de educação e particularização de
visões. Tentando realizar trabalho que culminasse na produção de identidades individuais
e coletivas, consciência das relações de poder e formas de organização da sociedade e da
educação.

Procuramos no currículo desenvolver um professor capaz de ouvir as vozes de seus alunos


e suas realidades, fomentando e criando através de metodologias de ensino e materiais didáti-

29
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

cos a possibilidade de interagir de forma política e dialógica na compreensão dos processos


de contestação e de disputa do currículo e sua realização no cotidiano da escola: valorizando
o passado e recriando o presente.

A partir da flexibilidade no diálogo com a comunidade e lideranças quilombolas, promove-


mos formas de participação coletiva de modo a religar a relação entre passado e presente, a
fim de construir juntamente com a comunidade – professores e discentes das comunidades
– as visões do quilombo contemporâneo, a percepção da cultura, do trabalho e do etnode-
senvolvimento enquanto formas de afirmação de identidade quilombola, enquanto processo
complexo da realidade brasileira.

Não perdemos de vista, na organização do currículo, o processo dinâmico de consideração


das comunidades tradicionais quilombolas que sempre, tanto no passado, como no presente,
se comunicam com os universos para além de si mesmas. Elas mantem e refazem seus
territórios, lugares e lutas, tendo como referência e estrutura, a prevalência da memória e
a questão da oralidade, que nas sociedades contemporâneas o excesso da velocidade da
informação retira os corpos de seus territórios físicos, transportando-os para contextos vividos
sob o signo da virtualidade e que transcendem a ordem das relações mesmas, tornando-se
corpos-objetos esvaziados de prazer humano e de sentidos.

Nestas comunidades tradicionais e “simples” (embora elas sejam na verdade extremamente


complexas para a capacidade de compreensão do pensamento ocidentalizado), o tempo
lento, da vida mesma, da construção e luta do cotidiano, das sociabilidades emergentes
dos processos discriminatórios e na leitura veloz deste processo maquinal e violento de
descentramento dos corpos, estas comunidades são o antídoto da ordem da sanidade do
mundo, preservando e mantendo a lucidez de seu tempo, de seu fazer, de sua existência.

Sob tal perspectiva e argumento, a educação quilombola representa transversalidades,


multiculturalidades, variedades de conhecimentos, histórias e projetos sociais que se inscrevem
no universo do contexto de lutas políticas, enfrentamentos culturais, processos civilizatórios que
são transnacionais e, portanto, instados nas emergências de nossa sociedade contemporânea.
Instados nas emergências das necessidades de transformação do mundo. Instados nas
necessidades urgentes de fomentar e garantir formas de vida pautadas em solidariedades,
capazes de sustentar a beleza e dignidade da existência humana. Na dimensão do belo, da

30
igualdade, do bem estar da vida para todos os iguais e tão diferentes humanos.

No currículo que exercermos no período de setembro de 2014 a agosto de 2015 nas cidades
de Cruz das Almas, Santo Antônio de Jesus, São Felipe, Cachoeira e Feira de Santana, a edu-
cação quilombola não foi só uma educação para as comunidades remanescentes de quilombos
ou territórios negros e quilombolas. A educação quilombola foi, e é, fundamentalmente, uma
educação para a Sociedade Humana, enquanto processo civilizatório.

Na última parte deste texto, temos a grata satisfação de apresentar os componentes


curriculares, suas ementas e carga horária.

Todos os componentes e ementas foram efetivamente cumpridos em nosso plano de ensino


e programa de trabalho. Os professores pesquisadores tinham a liberdade de acrescentar
textos as literaturas propostas nas ementas dos componentes agregando valor ao curso a
partir das discussões previas durante os seminários formativos com os docentes do curso.
Alguns dos componentes incluíram, quando possível, atividades práticas e de visitas técnicas
aos quilombos presentes na região, durante as aulas nos finais de semana.

Seguindo o calendário do quilombo em atividades correspondentes aos componentes a


serem trabalhados, procurávamos organizar idas às comunidades para observar e participar
dos acontecimentos.

A logística de carros, ônibus - transportes, enfim – era de difícil resolução e muitas vezes
não foi possível realizar todas as atividades práticas in locu.

Os componentes de caráter teórico pratico foram: a) Seminário pedagógica, b) Construção


de proposta de intervenção na escola quilombola, c) Arte, corporeidade e cultura afro-brasileira
e africana: poéticas da resistência e d) Língua, Literatura e Religiosidade.

Abaixo é possível observar a grade dos componentes curriculares, ementas e carga horária
do curso presencial de Educação Escolar Quilombola realizado pela Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia e Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Inclusão, do Ministério da
Educação do Brasil no período de setembro de 2014 ao mês de agosto do ano de 2015.

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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

COMPONENTES CURRICULARES, EMENTAS E CARGA HORÁRIA

Estas ementas curriculares representam as especificidades dos territórios (municípios de


abrangências) das comunidades elegidas para participação no curso presencial de formação
de professores em educação escolar quilombola. Elas representam o esforço pedagógico da
equipe de coordenação para organizar o programa de estudos formativos dos professores
cursistas.

Cada ementa representa uma reflexão específica que parte de princípios epistemológicos
de três referencias básicas: a) a síntese dos estudos sobre o negro no Brasil a partir de seu
princípio no contexto da pesquisa formal acadêmica brasileira ( ano de 1900 com Raimundo
Nina Rodrigues) até os nossos dias, b) as noções de identidade e formação e identidade
negra no contexto social e brasileiro através de perspectiva materialista histórica da psicologia
social denominada “Escola de São Paulo”, c) introduzir noções de desenvolvimento emocional
e afetivo a partir de conceitos psicanalíticos de maneira generalizada e interpretados as
realidades da população negra brasileira.

Como se sabe, a formação de um programa de estudos (componentes curriculares de


um curso), implica atrelar a cada ementa as bases epistemológicas formais; as quais se
representam pela literatura especifica que abaixo de cada ementa se inscreve classicamente
enquanto formato de apresentação do programa.

No programa original, esta foi a forma e enquadre adotado para promover a visibilidade da
ementa e as literaturas que sustentam sua concepção.

Obviamente, não se trata de agregar as literaturas dos autores enquanto fonte de citação
especifica enquanto referencias de arguição de texto técnico ou cientifico organizado. Trata-se,
claramente, de forma e enquadre atinente a maneira de apresentação de todo e qualquer curso
de formação regular, dotado de um programa de estudos e componentes conceituais os quais
são denominados “currículo”.

O enquadre ou formato: ementa e bibliografia, é o protótipo dos cursos em geral apresenta-


dos nas universidades brasileiras no que se refere a formação.

Formatamos deste modo, conforme os modelos e parâmetros vigentes em todos os pro-


gramas político e pedagógico presentes na maioria das universidades brasileiras a nível de

32
ensino, pesquisa e extensão (cursos de graduação, cursos de especialização em termos de
pós-graduação e cursos de mestrado e doutorado a nível da pesquisa acadêmica formal).

Este artigo é a discussão e apresentação da síntese do programa de estudos pois um


currículo, enquanto currículo, só é passível de ser apresentado a partir de sua síntese, porque
ele se descortina e se revela na conjunção mesma com o aluno e o professor e o debate,
possível ou não, da sala de aula.

O currículo é a proposta de direção de partida e os elementos constitutivos e indicativos


do percurso. Se ele será coerente e capaz de se afirmar em sua proposta de pensamento
epistemológico, só mesmo o acompanhamento e a finalização do processo é que poderão
nos dar algumas indicativas do sucesso da intenção ou do malogro de algumas perspectivas.
Sendo assim, pensar um currículo, é pensar os indicativos e necessidades formativas da
sociedade a partir das competências desejáveis na condição – capacitação do aluno.

Adequar realidade e intenção, conhecimento já definido e reconhecido a partir das referên-


cias bibliográficas adotadas é sempre um grande desafio.

No nosso caso, não esteve presente, felizmente o jogo de poder que é inerente a dimensão
formativa do currículo que enquanto proposta requer afirmar posições, conceitos, ideologias,
representar classes e interesses constituídos, identidades e determinar ou manter direções.

A dimensão de poder que todo currículo emana, inerentemente a seu papel, não se
constituiu do ponto de vista contraditório.

Estávamos todos cientes – equipe de coordenação – de que era fundamental organizar


uma proposta que representasse sem subterfúgios, a afirmação da população negra brasileira.

Pensar o projeto político pedagógico do curso foi materializar a obrigação e responsabili-


dade de promover o acesso ao conhecimento da história de formação do povo brasileiro e a
representação simbólica, material, psíquica e afetiva que os quilombos possuem na realidade
do passado e do presente do país.

Assim sendo, mantemos a condição de apresentação da ementa com suas respectivas


literaturas de autores específicos os quais são indicações para o trabalho do professor e estas
em nada tem a ver com o âmbito das referências de apoio escrito deste texto. Por tal razão,
apresentamos as ementas respectivas do Projeto Político e Pedagógico do Curso em separado

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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

de suas indicações bibliográficas de apoio ao professor. Tais indicações para a organização do


trabalho do docente estão disponibilizadas após o término deste capítulo a partir de um anexo
e suas respectivas indicações.

A seguir as etapas e ementas do programa de curso de educação escolar quilombola no


Recôncavo da Bahia (UFRB/MEC/SECADI).

ETAPA I – ASPECTOS GERAIS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA

1 – A IMPORTÂNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL PARA A EDUCAÇÃO BRASILEIRA


(carga horária 10)

Proporcionar oficinas de discussão com os cursistas sobre a compreensão do processo


histórico de criação da Legislação Maior Brasileira, traduzindo e dialogando as implicações
desta na realidade do contexto da educação escolar quilombola. No mesmo sentido, os artigos
215 e 216 serão priorizados nesta discussão e formas de compreender a contextualização
desta legislação, mediada pela exigência da Legislação Educacional Brasileira (Lei 9394/96) a
qual deve ser de conhecimento de todo e qualquer professor no contexto de nosso país. Sob
tal perspectiva, será observado que a Educação Escolar Quilombola é um direito previsto na
legislação brasileira como um todo.

Referências de Bibliografias conforme o Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso estão


em anexo ao final do capítulo.

2 – COMPREENDER O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: DIRE-


TRIZES CURRICULARES NACIONAIS E CONTEXTO POLÍTICO (carga horária 10)

Favorecer ao professor e lideranças quilombolas condição de compreender os princípios da


educação escolar quilombola, a partir de sua concepção política, práticas e ações pedagógicas
a partir do acesso à análise e conhecimento específico das Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Escolar Quilombola e realidades educacionais de territórios quilombolas do
contexto brasileiro.

Referências de Bibliografias conforme o PPP do curso estão em anexo ao final do capítulo.

34
3 – LEGISLAÇÃO SOBRE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO RACIAS (15 horas)

Promover a análise e discussão dialogada com os cursistas sobre o movimentos sociais e as


amplitudes legais que culminaram com a lei 10.639/03 e as resoluções que foram promovidas
no cenário escolar brasileiro mediante esta legislação. Apresentar tais desdobramentos a partir
da leitura interpretativa e de trocas de saberes sobre o Parecer CNE/CP 03/2004, Resolução
CNE/CP n. 01/2004, as quais tratam sobre as Diretrizes Curriculares para a Educação da
Relações Étnico raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira. No mesmo sentido
a resolução CNE/CP n. 01/2004 trata das diretrizes curriculares nacionais para a educação
das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana.

Referências de bibliografias conforme o PPP do curso estão em anexo ao final do capítulo.

ETAPA II – CONTEÚDOS ESPECÍFICOS DE APROFUNDAMENTO (TOTAL

DE CARGA HORÁRIA: 100)

1 - MOVIMENTO QUILOMBOLA, TERRITÓRIO: RESISTÊNCIAS, CONQUISTAS E AVANÇOS


JURÍDICOS (carga horária 15)

Ementa:

Discutir a história do movimento quilombola, explicitando seu processo de resistência,


suas estratégias e suas conquistas, observando os avanços jurídicos e legais em relação às
comunidades remanescentes de Quilombos, além de proporcionar ao aluno a capacidade de
interpretação do mundo contemporâneo, em específico, a territorialidade quilombola, presente
nos espaços urbano e rural. Hoje, o tema território tem recebido inúmeras interpretações,
assim como o termo quilombo passa por inúmeras transformações significativas. Compreender
as lutas e movimentos que marcam os territórios quilombolas em suas conquistas e estratégias
de enfrentamento a partir do acesso ao direito, a igualdade e à cidadania frente os avanços
jurídicos que o movimento quilombola protagonizou e conquistou socialmente. Apresentar
estas noções ao aluno para instrumentalizá-lo na capacidade de exercer melhor seu papel
crítico reflexivo no exercício de seu trabalho, bem como reconhecer a legitimidade destas lutas
e conquistas sociais é a condição deste componente. A partir das observações sobre comu-

35
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

nidades quilombolas, os componentes teórico/metodológico irão subsidiar o desenvolvimento


de propostas pedagógicas dos discentes com foco em sua realidade de atuação histórica e
tradição dos territórios quilombolas.

Referências de bibliografias conforme o PPP do curso estão em anexo ao final do capítulo.

2 - LUTAS QUILOMBOLAS, HISTÓRIA AFRO BRASILEIRA E RELAÇÕES RACIAIS: (Carga


horária: 15 h)

Ementa:

Apresentar leituras e interpretações de diferentes situações das lutas quilombolas, história


afro-brasileira e relações raciais em nossa sociedade. Abordar, em específico, os direitos
humanos da população quilombola. As relações do campo da educação com legislações
específicas como a LDB, Legislação do SUS e do SUAS, Estatuto da Criança e Adolescente,
bem como Estatuto da Igualdade Racial, também serão observados dentro da perspectiva
deste componente, a partir do contexto brasileiro, mas também pela historicidade da luta
por direitos humanos e civis no contexto mundial. As atividades de leitura e observação
das comunidades quilombolas nos ajudarão a melhor compreender a história de resistência
das populações negras e da diáspora como representativas das populações quilombolas e
afro-brasileira.

Referências de bibliografias conforme o PPP do curso estão em anexo ao final do capítulo.

3 - EDUCAÇÃO, MEIO AMBIENTE E ETNODESENVOLVIMENTO: SABERES AFRICANOS


E BRASIL (Carga horária: 15 h)

Ementa:

As experiências, histórias e representações das sociedades tradicionais, como as co-


munidades quilombolas e indígenas, produzem práticas de interlocução indivíduo/coletivo,
ambiente e natureza, que valorizam a produção humana e não o fetiche da mercadoria. A
educação é um percurso em construção que visa dotar no meio ambiente o espaço sustentável
para todos, e ela nos ensina que as intervenções são múltiplas e variadas, que podem estar
inscritas em cada pedaço, lugar e em cada ser vivo que habita o ambiente em que vivemos.

36
A educação é e será a grande transformação do nosso presente e do nosso futuro. Trabal-
haremos as experiências do universo quilombola e sua relação educativa/pedagógica com o
ambiente social. Considerando principalmente a articulação entre os conhecimentos científicos
e os conhecimentos tradicionais produzidos pelas comunidades quilombolas ao longo do seu
processo histórico, cultural, social, político e econômico.

Referências de bibliografias conforme o PPP do curso estão em anexo ao final do capítulo.

4 - LINGUA, LITERATURA E RELIGIOSIDADE (Carga Horária: 15 h)

Ementa:

O componente procura abordar como os modos de vida, língua e literatura afro brasileira
e africana como formas de sociabilidades em comunidades quilombolas. Pois estas estão
intimamente fundadas em aspectos religiosos e linguísticos de diferentes ordens. A emergência
do sagrado nas necessidades da vida, no cotidiano do viver, na superação das dificuldades
fazem com que os ritos religiosos sejam vividos com intensidade e sejam participantes do
cotidiano destas comunidades. Seja através de festas, novenários, rezas, benzimentos,
ligações matrimoniais, batismos, enfim, o entrelaçamento do nascimento, vida, adoecimento
e morte. Elas inscrevem expressões sobre o sagrado nas explicações sobre o cotidiano e
resoluções de demandas: cura de doenças, problemas emocionais, fortalecimento de vínculos
sociais, relações com o trabalho e o sustento do núcleo comunitário. Deste modo, para
participar de uma educação quilombola, faremos reflexões e interpretações das diferentes
religiões, trazendo o conhecimento da linguagem e literatura africana e afro-brasileira como
estruturas de práticas de sociabilidades em comunidades quilombolas. As religiões de matrizes
africanas, afro-brasileira, irmandades católicas, associações sociais, culturais e recreativas,
serão pensadas a partir das manifestações do sagrado presentes na realidade do Recôncavo
da Bahia e das comunidades de atuação dos discentes (professores). Daremos também
atenção aos emergentes conflitos e presença das religiões neopentecostais no universo das
comunidades quilombolas a fim de possibilitar o fomento de uma educação pautada no universo
de vida e compreensão histórica destas comunidades em suas formas de sociabilidades no
contexto local e global dos territórios da diáspora no século XXI.

Referências de bibliografias conforme o PPP do curso estão em anexo ao final do capitulo.

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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

5 - PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E AÇÕES AFIRMATIVAS NA ESCOLA: IDENTIDADE QUILOM-


BOLA E LITERATURA (EDUCAÇÃO INFANTIL, ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO) (Carga
Horária: 15 h)

Ementa:

A identidade é processo complexo que implica a relação do sujeito com o entorno social
além de suas matrizes históricas familiares e culturais. Neste longo processo de construção
de identidade, processos subjetivos são inerentemente presentes nos contextos sociais e
políticos da vida em comunidade do jovem negro (escola, serviços de saúde, relações de
trabalho, enfim, diferentes instituições). As matrizes culturais do Brasil remontam, no currículo
de formação escolar, pouca visibilidade para o conjunto social deste processo de formação de
identidade do contexto brasileiro. Em geral, a confluência e interpretação deste contexto revela-
se no currículo da escola em ocasiões pontuais: festas, comemorações, datas específicas.
Favorecer o profissional de educação (professores e gestores) e saúde a compreenderem as
relações de formação da identidade brasileira para o contexto unitário da formação do Brasil é
a função deste componente curricular, partindo de experiências empíricas no campo da saúde
e educação em comunidade de quilombos, conjugando a análise conceitual teórica do acervo
histórico social existente em ciências humanas e sociais para a abordagem da questão.

Referências de bibliografias conforme o PPP do curso estão em anexo ao final do capítulo.

Referências Bibliográficas

6 – ARTE, CORPOREIDADE E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA: POÉTICAS


DA RESISTÊNCIA (Carga Horária:10 h)

Ementa:

Organizar o trabalho do professor/gestor com noções sobre arte e cultura africana e


afro-brasileira a fim de que seja capaz de reconhecer as produções culturais e artísticas
presentes na comunidade para promover a valorização destas práticas no contexto e currículo
de aprendizagem de crianças e jovens quilombolas. Promover o reconhecimento de que no
quilombo estão presentes práticas artísticas e culturais plenas de densidade significados,
saberes históricos e sócio-antropológicos que se exercem através da arte e da cultura. Na

38
consideração da arte e da cultura afro-brasileira e africana, o quilombo é forma de consciência
identitária, interação e ação social , emergindo enquanto forma de organização e resistência,
movimentando-se no campo das artes, da cultura e do patrimônio para se transformar em
memória social, poética e política. Estas questões serão abordadas através de documentos,
imagens, objetos que expressem essa condição de reflexão –ação artística do quilombo.
Enquanto elemento artístico e cultura de força, identidade e resistência.

Referências de bibliografias conforme o PPP do curso estão em anexo ao final do capítulo.

7 - LINGUAGENS ‘GRIOTS” E SUPERAÇÃO DO RACISMO: CURRÍCULO EM EDUCAÇÃO


QUILOMBOLA E DESCONSTRUÇÃO DE PRECONCEITOS (Carga horária: 15 h)

Ementa:

Visando habilitar o professor/gestor em educação ao exercício pleno de seu trabalho no


referente a educação quilombola e na interface com questões voltadas para saúde mental da
população negra e direitos humanos, o componente favorece a construção de instrumentos
pedagógicos para o uso na escola com o público infantil, jovem e adulto (EJA). Além da
condição de abordagem da família do estudante quilombola. Na educação infantil, fundamental,
médio e no EJA, a produção do material didático far-se-á mediante a observação participante
e etnográfica em comunidades negras e territórios quilombolas de atuação dos cursistas.
Na produção de seminários de extensão realizados por professores e alunos no resgate e
(re)construção do acervo da memória da cultura destas comunidades, como por exemplo:
cantigas, danças, hábitos de vida, jogos, histórias, lendas, objetos, brinquedos e brincadeiras.
O aluno será levado a pensar e discutir o currículo com o qual vem trabalhando, propondo e
refletindo no decorrer da disciplina a construção de um currículo e metodologias de ensino
mais adequadas a uma educação quilombola com o auxílio do professor-formador.

Referências de bibliografias conforme o PPP do curso estão em anexo ao final do capítulo.

39
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

ETAPA III – INTERVENÇÃO E ELABORAÇÃO DE ARTIGO (Total carga

horária: 50 horas)

1 – SEMINÁRIO PEDAGÓGICO (Carga horária: 15 horas)

Ementa

Esta etapa possui caráter teórico - prático. Nesta etapa os professores do curso estarão
aptos desde o início do curso a promover as orientações necessárias para que os alunos
possam ir construindo ao longo do curso seus projetos pedagógicos de intervenção na escola,
junto à comunidade em que realizam suas atividades profissionais.

O percurso de construção da atividade compreende a realização de seminário pedagógico


a partir do contexto da realidade local de sua atuação, com orientação de leitura e produção
textual por professores que acompanharão os alunos no percurso de formação discente. Em
paralelo as orientações, organização do seminário e construção do projeto de intervenção
pedagógica na comunidade escolar quilombola, o aluno será levado a organizar no âmbito
escrito suas experiências, em forma de artigo, o qual ganhará com o apoio do professor
orientador que fará os ajustes necessários para esta produções textuais.

Observações: nesta ementa, os alunos foram incentivados a revisar e selecionar as leituras


já trabalhadas nos componentes de conteúdos específicos e de aprofundamento.

2 – CONSTRUÇÃO DE PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA NA ESCOLA QUILOM-


BOLA (Carga horária: 15horas)

Ementa:

Enquanto componente teórico prático, o aluno cursista será levado a construir a partir da
reflexão crítica de seu amadurecimento durante o processo de frequência e discussão no curso
com professores e pares (lideranças, gestores, comunidade escolar quilombola e extensiva),
a sua proposta de intervenção pedagógica na escola. Neste processo, o aluno será capaz
de formular ações importantes para alterar a realidade local a fim de promover as condições
mais adequadas da formação dos alunos e famílias das comunidades remanescentes de
quilombos conforme sua concepção mediada pela realidade e os conhecimentos adquiridos

40
em sua formação. Será incentivado a utilizar os recursos epistemológicos da realidade de sua
comunidade a fim de promover a valorização do contexto e produzir ações que privilegiem o
fortalecimento da identidade quilombola e os saberes das comunidades tradicionais. Promoverá
a construção da proposta a partir de elementos da arte, literatura, língua afro brasileira e
africana dentre outra possibilidades de construção da proposta em sintonia com a realidade
de sua comunidade e as lacunas pelo discente e lideranças observadas. A orientação dos
professores do curso capacitarão os discentes a organizarem as propostas de intervenção.

Referências:

Obs: Os alunos serão incentivados a revisar e selecionar as leituras já trabalhadas nos


componentes de conteúdos específicos e de aprofundamento. Além de poderem pesquisar
também outras literaturas nas Bibliotecas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,
cujos pólos sejam próximos geograficamente da Universidade.

3 – ELABORAÇÃO E ESCRITA DE ARTIGO (relato de experiência ou técnico-científico -


Carga Horária: 20horas)

Ementa:

Neste componente, o aluno será levado a produzir artigo técnico científico a partir dos
resultados observados de sua reflexão sobre as experiências vividas em seu contexto de
atuação docente – relatos de experiências – mediados por conceitos que aprimorem estas
reflexões e análises. As propostas de intervenção que foram elaboradas e postas em prática
durante o processo de apropriação do conhecimento vivido e “re-organizado” serão passíveis
de registro nestes artigos. A finalidade deste componente é garantir a produção escrita de
saberes que se inscrevem no âmbito das práticas pedagógicas educacionais quilombolas – sua
problemática, complexidade, desafios e sucessos – que não encontram canais de expressão
e divulgação escrita no contexto de produção técnico científica do mundo acadêmico e da
sociedade produtora de conhecimento e saber em termos de hegemonia de poder. A escrita
do artigo é o empoderamento das pessoas consideradas invisíveis – minorias sociais (negros,
mulheres, indígenas, quilombolas, entre outros). É também a legitimação de sua visibilidade
formal, capaz de promover a alteração social dos contextos em termos de resistência, garantias
de direitos e acesso ao conhecimento formal em níveis de igualdade aos demais seres humanos

41
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

– populações. Tais reflexões serão parte deste componente que mediado pelos professores
orientadores favorecerão o crescimento dos discentes e comunidades quilombolas locais.

Nota: As referências de bibliografias conforme o Projeto Político Pedagógico do Curso


estão em anexo ao final deste capitulo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a apresentação das ementas e as respectivas bibliografias que compõem o instru-


mento de operacionalização dos professores em sala de aula (em anexo), é possível vislumbrar
o conteúdo do curso e o modo como este se organizou no contexto do cotidiano do Recôncavo
e Portal do Sertão no Estado da Bahia.

Este texto procurou trazer ideias para o fomento de iniciativas como esta, que visem
instrumentalizar atores sociais que necessitem de apoio técnico coerente e formal para produzir
novos conhecimentos. Seja por parte de docentes, gestores em educação, seja por parte da
comunidade, associações e outros setores envolvidos.

Na trajetória do curso de educação escolar quilombola da Universidade Federal do Recôn-


cavo da Bahia acreditamos que outras inserções podem ser feitas no nosso Estado, bem como
em outros estados brasileiros; lembrando que o Curso de Educação Escolar Quilombola da
UFRB foi o primeiro curso a ser efetivamente realizado por uma universidade no estado da
Bahia5 . Sendo a Federal do Recôncavo uma universidade pública, torna-se um diferencial
importante para o desenvolvimento dos trabalhos que se realizaram.

Não pretendemos com este texto sermos exemplo de como realizar outros cursos. No
entanto, cientes de que somos toda imperfeição inerente aos que pioneiramente realizam,
temos a certeza de que esta experiência rendeu importantes eixos de transformações sociais
e individuais nos contextos em que atuamos.

Cabe agora outros no Brasil fecundo e carente de boas iniciativas emancipatórias, realizar
5
Os estados de Minas Gerais e Mato Grosso foram os pioneiros a realizar estas ações no cenário brasileiro
atraves da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
Nos anos de 2014 e 2015 apenas quatro estados realizavam formação em Educação Escolar Quilombola no
pais: Minas Gerais (UFMG), Mato Grosso (UFMT), Maranhão (CEFET-MA) e Bahia (UFRB). Fonte de dados:
MEC/SECADI (Ministério da Educação / Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Inclusão), durante a Reunião
de Coordenadores de Cursos apoiados pelo MEC em novembro de 2014, em Brasília/DF.

42
novas propostas igualmente ou talvez mais articuladas. Pois esta experiência é um relato do
qual nada sabíamos se daria certo ou não. Não tínhamos certeza de nada. Não sabíamos
nada e possivelmente ainda não saibamos de fato. No entanto, queríamos ver a escrita de
conhecimentos inusitados pelos professores quilombolas, pelas crianças, pela comunidade e
também pela universidade, que em sua história sempre privilegiou o acesso das elites.

Os atores sociais participantes do curso se revelaram satisfeitos em seus relatos. Mas isto
não é plenamente suficiente no contexto do Brasil. Outras estradas devem ser construídas
e agregarem melhores condições ao que foi feito pioneiramente no estado da Bahia pela
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Esta instituição jovem teve a coragem e
responsabilidade de fazer.

Então, neste texto, encerramos parte do que realizamos a partir dos conselhos de Toni
Morrison (1996)6 : Se há um livro que você quer ler, mas ainda não foi escrito, então você deve
escreve-lo.

E ainda:

As pessoas dizem que escrevemos aquilo que sabemos. Eu estou aqui para te dizer:
ninguém quer ler isto. Porque você não sabe de nada. Então escreva sobre algo que não sabe.
E não tenhas medo. Nunca (Morrison, 1996).

A todos os griots7 do mundo negro africano e dos quilombos da Bahia que muito nos
ensinam, nossas mais distintas reverencias.

6
Prêmio Nobel de Literatura em 1993. Escritora negra, seus romances tratam sobre a vida de mulheres
afro-americanas nos Estados Unidos nos séculos 19 e 20. Foi editora da Random House uma das principais
editoras de livros em língua inglesa do mundo. Como editora, Toni Morrison ajudou a tornar a literatura negra
popular nos Estados Unidos, publicando autores como Henry Dumas, Toni Cade Bambara, Angela Davis e Gayl
Jones. Foi professora nas universidades publicas de Nova York e da Universidade Rutgers. Lecionou também na
Howard University, Albany Universty, Yale, Texas e Princeton University onde se aposentou em 2006. Recebeu o
diploma de Doutora Honoris Cause pelas Universidades de Oxford e Rutgers nos Estados Unidos.
7
Ancião das comunidades africanas que transmite aos mais jovens através da poesia, música e canto os
conhecimentos de toda comunidade. Uma biblioteca viva.

43
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Paz e Terra: Rio de Janeiros, 2003.

GOMES, Nilma Lino (Relatora). Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola – DCNEEQ/MEC/SECADI. Parecer n. 16/2012.

MEC/SECADI - Ministério da Educação/Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Exclusão.


Proposta de Curso de Aperfeiçoamento em Educação Escolar Quilombola da Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia para a Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Inclusão,
2014.

MORRISON, Tony. Discurso durante o recebimento do Prêmio Nobel de Literatura. New York
Times, 1996.

OLIVEIRA, Reinaldo Jose de Oliveira. A cidade e o negro no Brasil: cidadania e território.


Editora Alameda: São Paulo, 2013.

OLIVEIRA, Regina Marques de Souza. Cenários da saúde da população negra: diálogos e


pesquisas. Coleção UNIAFRO, Editora UFRB, Cruz das Almas e Editora Fino Traço, Belo
Horizonte, 2016.

44
ANEXO: REFERÊNCIAS DE LEITURAS DO PROGRAMA DE ESTUDOS EM

EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA

ETAPA I: ASPECTOS GERAIS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA

1 – A IMPORTÂNCIA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL PARA A EDUCAÇÃO BRASILEIRA


(carga horária 10)

Referências para o professor e material didático para o curso

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 35. Ed. São
Paulo: Saraiva, 2005.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional. Lei n.o 9.394 de 20 de dezembro de
1996. 3.Ed. São Paulo: Saraiva, 2000.

2 – COMPREENDER O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: DIRE-


TRIZES CURRICULARES NACIONAIS E CONTEXTO POLÍTICO (carga horária 10)

Referências para o professor e material didático para o curso

- CONSELHO FEDERAL DE EDUCAÇÃO. Parecer no 03/2004 - Diretrizes Curriculares Na-


cionais para a Educação Escolar Quilombola de 16 de junho de 2012. Relator: Nilma Lino
Gomes. Diário Oficial (da República Federativa do Brasil), no 68546, Seção 3.

CUNHA, Ana Stela de Almeida. Construindo quilombos, desconstruindo mitos: a educação


formal e a realidade quilombola no Brasil. São Luiz/MA: Ed. SETAGRAF, 2011.

3 – ALTERAÇÃO DA LDB: A LEI 10.639/2003, AS AÇÕES AFIRMATIVAS E DIRETRIZES


DA EDUCAÇÃO QUILOMBOLA (carga horária 15 horas)

Referências para o professor e material didático para o curso

BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro


de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira",
e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003. Disponível em:

45
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.html.>

CONSELHO FEDERAL DE EDUCAÇÃO. Parecer no 03/2004 - Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação Escolar Quilombola de 16 de junho de 2012. Relator: Nilma Lino Gomes.
Diário Oficial (da República Federativa do Brasil), no 68546, Seção 3.

4 – LEGISLAÇÃO SOBRE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO RACIAS (15 horas)

Referências para o professor e material didático para o curso

CONSELHO FEDERAL DE EDUCAÇÃO. Parecer no 03/2004 - Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação Escolar Quilombola de 16 de junho de 2012. Relator: Nilma Lino Gomes.
Diario Oficial (da República Federativa do Brasil), no 68546, Seção 3.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e


para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Lei Federal n.o 10639 de 09 de
janeiro de 2003. Diário Oficial (da República Federativa do Brasil), Brasília, 2003, Seção 2.

o
BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial: Lei Federal n. 12.288 de 20 de julho de 2010. São
Paulo: Imprensa Oficial, 2014.

OLIVEIRA, Reinaldo José, OLIVEIRA, Regina Marques. Educação antirracista. Uma década
de legislação afirmativa. São Paulo: Ed. Alameda (no prelo).

ETAPA II – CONTEÚDOS ESPECÍFICOS DE APROFUNDAMENTO (TOTAL

DE CARGA HORÁRIA: 100)

1 - MOVIMENTO QUILOMBOLA, TERRITÓRIO: RESISTÊNCIAS, CONQUISTAS E AVANÇOS


JURÍDICOS (carga horária 15)

Referências para o professor e material didático para o curso

CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2012.

MOURA, Clovis. Os quilombos na dinâmica social do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Edufal, 1998.

FABIANI, Adelmir. Mato, palhoça e pilão – o quilombo, da escravidão às comunidades re-


manescentes (1532 -2004). Rio de Janeiro: Expressão Popular, 2006.

46
MARTINIANO, J. Silva. Quilombos do Brasil: Violência e Resistência Escrava 1719 -1888. São
Paulo: Ed. Kelps, 2008.

O’DWYER, Eliane Cantarino. Quilombo – identidade étnica e territorialidade. São Paulo: FGV,
2010.

TELES, Ricardo. Terras de Preto – Mocambos, Quilombos: Histórias de Nove Comunidades


Negras Rurais do Brasil. São Paulo: Abooks, 2003.

SANTOS, Milton. Espaço do Cidadão. São Paulo: Editora Hucitec, 1993.

CARRIL, Lourdes. Quilombo, favela e Periferia: a longa busca da cidadania. São Paulo: editora
Anna Blume, 2006.

CARRIL, Lourdes. Terras de Preto no vale do Ribeira: Território e Resistência. Dissertação de


mestrado em História Social. FFLCH USP: São Paulo, 2005.

OLIVEIRA, Reinaldo José de. A Cidade e o negro no Brasil: Cidadania e Território. São Paulo:
Editora Alameda, 2013.

REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil – A história do levante dos malês em 1835. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005.

REIS, João José e GOMES,Flávio dos Santos. Liberdade por um fio – histórias dos quilombos
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

OLIVEIRA, Rosy de. O Barulho da terra: nem Kalunga nem Camponeses. Curitiba: Editora
Progressiva, 2010.

CEDEFES - Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva. Comunidades Quilombolas de


Minas Gerais no século XXI – história e resistência, Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2008.

MOURA, Gloria. Festa dos Quilombos. Brasília, UNB, 2012.

47
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

2 - LUTAS QUILOMBOLAS, HISTÓRIA AFRO BRASILEIRA E RELAÇÕES RACIAIS: (Carga


horária: 15 h)

Referências para o professor e material didático para o curso

COLEÇÃO HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA. Unesco e Ministério de Educação. Distrito Federal:


Brasília, 2010.

ANJOS, Rafael Sanzio Araujo dos. Quilombos – Geografia Africana. Mapas Editora, 2009.

SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e Meio Técnico-científico informa-


cional. São Paulo: Editora Hucitec, 1998.

______________. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.


Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.

______________. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Editora Hucitec, 1993.

SADER, Emir e GENTILI, Pablo. Pós-neoliberalismo – as Políticas Sociais e o Estado


Democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

OLIVEIRA, Francisco de. À sombra do manifesto comunista: globalização e reforma do Estado


na América Latina. SADER, Emir e GENTILI, Pablo. In: Pós-Neoliberalismo II – Que Estado
para que democracia? .Petrópolis: Vozes, 2009.

OLIVEIRA, Reinaldo José de. A Cidade e o negro no Brasil: Cidadania e Território. São Paulo:
Editora Alameda, 2013.

PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS (PNDH 3). Secretaria de Direitos Humanos


da Presidência da República, Brasília, SDH, 2010.

QUIJANO, Aníbal. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. Estudos Avançados,
número 19, 2005.

QUIJANO, Aníbal. Colonialismo do Poder – eurocentrismo e América Latina. CLACSO, Buenos


Aires, 2005.

CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia. Crítica y emancipación: Revista Latino Americana de


Sciencias Sociales, Buenos Aires, n.1, ano 1, CLACSO, 2008.

WIEVIORKA, Michel. Em que mundo viveremos?. São Paulo: Perspectiva, 2006.

48
SILVA, Ligia Maria Osório. A Lei da Terra (Um Estudo sobre a História da Propriedade da terra
no Brasil). Tese de Doutorado em Ciências Sociais PUC SP, São Paulo, 1990.

ZALUAR, Alba. Exclusão e Políticas Públicas: dilemas teóricos e alternativas políticas. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2004.

GOMES, Flávio dos Santos. História dos Quilombos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

3 - EDUCAÇÃO, MEIO AMBIENTE E ETNODESENVOLVIMENTO: SABERES AFRICANOS


E BRASIL (Carga horária: 15 h)

Referências para o professor e material didático para o curso

DIEGUES, Antonio Carlos. Comunidades Tradicionais e manejo dos recursos naturas da Mata
Atlântica.São Paulo: Editora Hucitec, 2004.

SILVA, Ligia Maria Osório. A Lei da Terra (Um Estudo sobre a História da Propriedade da terra
no Brasil). Tese de Doutorado em Ciências Sociais PUC SP, São Paulo, 1990.

DOWBOR, Ladislau. O que é Poder Local. São Paulo: Brasiliense, 2008.

JACOBI, Pedro. Poder local, Políticas Sociais e Sustentabilidade. Saúde e Sociedade, 1999.

JACOBI, Pedro. Meio Ambiente e Educação para a Cidadania: o que está em jogo nas Grandes
Cidades? A contribuição da educação ambiental à esperança de Pandora. J.Eduardo dos
Santos, São Carlos. RIMA, 2001.

PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS (PNDH 3). Secretaria de Direitos Humanos


da Presidência da República, Brasília, SDH, 2010.

QUIJANO, Aníbal. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. Estudos Avançados,
número 19, 2005.

QUIJANO, Aníbal. Colonialismo do Poder – eurocentrismo e América Latina. CLACSO, Buenos


Aires, 2005.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – Do pensamento único à consciência universal.
Rio de Janeiro: Record, 2001.

SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo – Globalização e Meio Técnico científico informa-

49
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

cional. São Paulo, Editora Hucitec, 1998.

JACOBI, P. Educação ambiental, cidadania e sustentabilidade. São Paulo: Cadernos de


Pesquisa no 118, p. 189-205, março de 2003.

4 - LINGUA, LITERATURA E RELIGIOSIDADE (Carga Horária: 15 h)

Referências para o professor e material didático para o curso

FILHO, Luiz Vianna. O Negro na Bahia (um ensaio clássico sobre a escravidão). Salvador:
EDUFBA, Fundação Gregório Mattos, 2008.

RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Editora Madras, 2008.

RAMOS, Artur. O folclore negro do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

QUINTÃO. Antonia Aparecida. Irmandades Negras: outro espaço de luta e resistência (São
Paulo: 1870: 1890). São Paulo: Editora Anna Blume, FAPESP, 2007.

CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares Africanos na Bahia – um vocabulário afro-brasileiro. Rio
de Janeiro: Editora Topbooks, 2005.

HABERMAS, Jurguen. Dialética da Secularização. Aparecida/SP: Idéias e Letras, 2014.

WEBER, Max. Sociologia da Religião (tipos de relações comunitárias religiosas). Economia e


Sociedade, vol. 1. Brasília: Editora UNB, 2004.

MOURA, Gloria. Festa dos Quilombos. Brasilia, UNB, 2012

HAMPATÊ BÂ, Amadou. A tradição vivda. In: I Metodologia e pré-história da África, coorde-
nador do volume J. Ki Zerbo. São Paulo: Ática (Paris): Unesco, 1982.

MUNANGA, Kabengele. Estratégias e políticas de combate à discriminação racial. São Paulo:


EDUSP: estação Ciência, 1996.

LAPRLANTINE, François. A descrição etnográfica. São Paulo: Terceira Margem, 2004.

RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil, 6a . São Paulo: Editora Nacional, Brasília: Editora
da Universidade de Brasília, 1982.

BASTIDE, Roger. O candomblé na Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

50
DURKHEIM, Emile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo. Martins Fontes.
1996.

5 - PRATÍCAS PEDAGÓGICAS E AÇÕES AFIRMATIVAS NA ESCOLA: IDENTIDADE QUILOM-


BOLA E LITERATURA (EDUCAÇÃO INFANTIL, ENSINO FUNDAMENTAL E MÉDIO) (Carga
Horária: 15 h)

Referências para o professor e material didático para o curso

CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia –um vocabulário afro-brasileiro. Rio de
Janeiro, Toop Books, 2001.

HAMPATÉ BÁ, Amadou. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Casa das Áfricas, 1992.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues Brandão. Identidade e etnia. São Paulo, Brasiliense, 1986.

SILVA, Joana Maria Ferreira da. Centro de Cultura e Arte Negra – Cecan – Coleção Retratos
do Brasil Negro. São Paulo, Selo Negro, 1998.

GOFFMAN, Ervinj. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de


Janeiro, Zahar, 1982.

FRANKLIN, Ricardo. Afro-brasileiro: identidade em construção. São Paulo, selo negro, 1997.

DOLTO, Françoise. A imagem inconsciente do Corpo. São Paulo, Perspectiva, 2004.

NOGUEIRA. Significações do corpo negro. Tese de Doutorado em Psicologia da Educação.


USP/SP, 1998.

OLIVEIRA, Identidade do Jovem Negro e metrópoles: enunciados da diáspora em São Paulo e


Paris. In: A cidade e o negro no Brasil – cidadania e território, Reinaldo José de Oliveira (org.),
São Paulo, Alameda, 2013.

OLIVEIRA, A cidade nas franjas do capitalismo: habitar a periferia e ser jovem negro. Revista
da ABPN, vol.4, n.8, outubro, 2012.

51
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

6 – ARTE, CORPOREIDADE E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA: POÉTICAS


DA RESISTÊNCIA (Carga Horária:10 h)

Referências para o professor e material didático para o curso

SILVA, Dilma Melo. Arte Africana e Afro Brasileira. São Paulo: Ed. Terceira Margem, 2006

SILVA, Dilma Melo. Brasil: sua gente e sua cultura. São Paulo: Ed. Terceira Margem, 2007.

SILVA, Dilma Melo. Corpo e ancestralidade. Uma proposta pluricultural de dança – arte –
educação. São Paulo: Terceira Margem, 2006.

PRANDI, Reginaldo. Contos e lendas afro-brasileiras. São Paulo: Cia das Letras, 2008.

MACEDO, Aroldo. FAUSTINO, Oswaldo. Luana, a menina que viu o Brasil neném. São Paulo:
Ed. FTD, 2010.

SANTOS, Joel Rufino. Zumbi. Rio de janeiro: Ed. Global, 1997.

MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

CIANNI, Solange Azevedo. Doce Princesa Negra. Rio de Janeiro: Ed. LGE, 2003.

ROCHA, Rosa. AGOSTINHO, Cristina. Alfabeto Negro. Belo Horizonte: Ed. Mazza, 2006.

CALLADO, Antonio. Uma rede para Iemanjá. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

SHAKESPEARE, Willian. Antonio e Cleópatra. Rio de Janeiro: Ediçoes Ediouro, 2000.

GERAS, Adele. Carmem ou Aída a Princesa Etíope. São Paulo: Ed. Salamandra, 1999.

BARBOSA, Rogério Andrade. Contos Africanos para crianças brasileiras. São Paulo: Ed.
Paulinas, 2000.

MATOS, Rejane Augusto. História e Cultura Afro Brasileira. São Paulo: Ed. Contexto, 2007.

PENHA, Edileuza de Souza. Negritude, Cinema e Educação: caminhos para a implementação


da Lei 10.639/2003 (vol. 1 e 2) Belo Horizonte: Ed. Mazza, 2007.

DIDI, Mestre. História de um terreiro nagô. Salvador: Ed. Max Limonad, 2000.

SODRÉ, Lilian Abreu. Música africana na sala de aula. São Paulo: Ed. Duna Dueto, 2004.

52
7 - LINGUAGENS ‘GRIOTS” E SUPERAÇÃO DO RACISMO: CURRÍCULO EM EDUCAÇÃO
QUILOMBOLA E DESCONTRUÇÃO DE PRECONCEITOS (Carga horária: 15 h)

Referências para o professor e material didático para o curso

SAMPAIO, Maria Cristina. O currículo vivido e os repertórios culturais negros nas escolas
municipais da matinha dos pretos – BA. Diálogos com a Lei 10.639/03. Dissertação de
Mestrado em Educação. UEFS/BA,2013.

SILVA, Givânia Maria da. Educação como processo de luta política: a experiência de educação
diferenciada do território quilombola de Conceição das Crioulas. Dissertação de Mestrado em
Educação: Políticas Públicas e Gestão da Educação. UNB/DF, 2012.

BRAGA, Maria Lúcia de Santana, SOUZA, Edileuza Penha, PINTO, Ana Flávia Magalhães.
Dimensões da inclusão no ensino médio: mercado de trabalho, religiosidade e educação
quilombola. Brasília/DF, MEC/BID/UNESCO, 2006.

GUSMÃO, Neusa M. M. Terra de pretos, terra de mulheres. Brasília: Ministério da Cultura,


Fundação Cultural Palmares, 1995.

PAZ, Maura Rosa de Paula. Identidade quilombola e políticas públicas. Dissertação de


Mestrado em Psicologia Social. PUC/SP, 2001.

CARRIL, L. Terras de Negros. Herança de quilombos. São Paulo: Scipione, 1997.

FREIRE, P. Ação Cultural para a Liberdade e Outros Escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976.

FREIRE, P. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

MOURA, C. Quilombos - Resistência ao Escravismo. São Paulo: Brasiliense, 1987.

MUNANGA, K. Negritude. Usos e sentidos. 2a edição. São Paulo: Ática, 1988.

_________________ (org.). Estratégias de Combate à Discriminação Racial. São Paulo:


EDUSP, 1996.

_____________________. Origem e Histórico do Quilombo na África. In: Revista Usp – Dossiê


Povo Negro, 300 anos. São Paulo: Universidade de São Paulo, Dez/Fev 95/96.

CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia –um vocabulário afro-brasileiro. Rio de

53
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA

Janeiro, Toop Books, 2001.

HAMPATÉ BÁ, Amadou. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Casa das Áfricas, 1992.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues Brandão. Identidade e etnia. São Paulo, Brasiliense, 1986.

SILVA, Joana Maria Ferreira da. Centro de Cultura e Arte Negra – Cecan – Coleção Retratos
do Brasil Negro. São Paulo, Selo Negro, 1998.

GOFFMAN, Ervinj. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de


Janeiro, Zahar, 1982.

FRANKLIN, Ricardo. Afro-brasileiro: identidade em construção. São Paulo, selo negro, 1997.

DOLTO, Françoise. A imagem inconsciente do Corpo. São Paulo, Perspectiva, 2004.

NOGUEIRA. Significações do corpo negro. Tese de Doutorado em Psicologia da Educação.


USP/SP, 1998.

OLIVEIRA, Identidade do Jovem Negro e metrópoles: enunciados da diáspora em São Paulo e


Paris. In: A cidade e o negro no Brasil – cidadania e território, Reinaldo José de Oliveira (org.),
São Paulo, Alameda, 2013.

OLIVEIRA, A cidade nas franjas do capitalismo: habitar a periferia e ser jovem negro. Revista
da ABPN, vol.4, n.8, outubro, 2012.

ETAPA III – INTERVENÇÃO E ELABORAÇÃO DE ARTIGO (Total carga

horária: 50 horas)

1 – SEMINÁRIO PEDAGÓGICO (Carga horária: 15 horas)

Referências para o professor e material didático para o curso

Obs: Os alunos serão incentivados a revisar e selecionar as leituras já trabalhadas nos


componentes de conteúdos específicos e de aprofundamento.

54
2 – CONSTRUÇÃO DE PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA NA ESCOLA QUILOM-
BOLA (Carga horária: 15horas)

Referências para o professor e material didático para o curso

Obs: Os alunos serão incentivados a revisar e selecionar as leituras já trabalhadas nos


componentes de conteúdos específicos e de aprofundamento. Além de poderem pesquisar
também outras literaturas nas Bibliotecas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,
cujos pólos sejam próximos geograficamente da Universidade.

3 – ELABORAÇÃO E ESCRITA DE ARTIGO (relato de experiência ou técnico-cientifico -


Carga Horária: 20horas)

Referências para o professor e material didático para o curso

KI-ZERBO, Joseph. Metodologia e pré-história da África. Capítulo 7: A tradição oral e sua


metodologia , Volume VIII, Unesco e Ministério da Educação, DF: Brasília, 2013

SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2004.

LAKATOS, Eva Maria. Metodologia científica. São Paulo: Atlas, 1991.

SILVA, Delma Josefa da. Educação quilombola: um direito a ser efetivado. Recife: Centro de
Cultura Luiz Freire, Instituto Samaúma, 2007.

55
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A
RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE INSTITUI A
EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS

Josemar Oliveira Purificação1

Compondo o mosaico da história da educação no município de Bom Jesus da Lapa/BA,


a memória coletiva de Rio das Rãs traz uma significativa colaboração com a revelação da
existência dos professores/as leigos/as muito antes das primeiras iniciativas ou atendimentos
do Poder Público. Esse artigo, com base nas seguintes pesquisas: Pesquisa sobre a Educação
Formal e Informal nas Comunidades Negras Rurais de Rio das Rãs, Município de Bom
Jesus da Lapa (2004). Sob a coordenação da pesquisadora Ana Célia da Silva. Requerida pelo
Ministério da Educação – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade;
Diretoria de Educação para Diversidade e Cidadania, Coordenação Geral de Diversidade Social;
Pesquisa para construção da Monografia - trabalho de conclusão do curso de Pedagogia, pelo
autor, na Universidade do Estado da Bahia, Campus de Bom Jesus da Lapa – BA; e na
remissiva ao mestrado, apresenta o percurso realizado pela Comunidade Negra Rural de Rio
das Rãs a caminho de uma educação diferenciada.

As primeiras iniciativas escolares em Rio das Rãs partiram da preocupação de alguns


pais e da boa vontade de algumas pessoas que sabiam ler, escrever e resolver questões
1
Mestre em Educação e Contemporaneidade; licenciado em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia
– UNEB. Atua como Educador Social pela FUNDESF. E-mail: josemarpurificacao@hotmail.com.

57
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS

envolvendo as quatro operações básicas de matemática. E assim, teve início às primeiras


experiências escolares na comunidade, inexistentes até o ano de 1944 como indica a memória
social.

Oh, mil novecentos e quarenta e quatro não tinha escola. Tinha escola no Pau
Preto e na Batalha. Na Batalha, em casa de família na casa de Dona Carmem.
Mil novecentos e quarenta e quatro tinha escola no Pau Preto e na Batalha. Esse
trecho aqui nunca existiu, aqui [Rio das Rãs] nunca existiu escola (Chico de Helena,
entrevistado por PURIFICAÇÃO, 2007).

A informação apresentada em entrevista refere-se às primeiras iniciativas, particulares,


recordando das professoras leigas que atuavam nas regiões de Pau Preto, localidade per-
tencente ao Quilombo Rio das Rãs e na antiga Fazenda Batalha, local onde atualmente
encontra-se implantado um Projeto de Assentamento de Reforma Agrária. De acordo com Seu
Francisco, além de Dona Carmem que lecionava em sua casa, na Fazenda Batalha, que está a
aproximadamente 20 quilômetros do Quilombo; ele lembra que nesta época, outra professora
(que não recorda o nome) atuava na localidade do Pau Preto, a uma única que atuava na
região, atualmente, reconhecida como Rio das Rãs.

As denominadas mestras alfabetizavam em suas casas. Nos quilombos, algumas práticas


curiosas são registradas pelos moradores ao relatarem que era comum, os pais buscarem
instrutores/as para seus filhos aprenderem o “abc”, a “cartilha”, “as primeiras letras”, ou a
“leitura” como os quilombolas mais velhos preferem falar. Ocorre que os genitores apresentavam
empenho em “trazer o aprendizado” apenas para os filhos, do gênero masculino, uma postura
recorrente à época; que consistia em evitar que as meninas aprendessem a ler; como forma
de manter maior controle sobre suas filhas, quanto ao tempo de casar e com quem casar.

Há exemplo de pais que contratavam professora para alfabetizar seus filhos, contudo a
filha, não era contemplada, pois para eles, as mulheres não podiam aprender a ler e escrever;
considerando que isso daria a elas a possibilidade de conseguirem namorados, através de
bilhetes ou conquistariam a independência; atos que para eles, colocariam em risco a sua
autoridade e o controle no ir e vir das filhas, enquanto que para os filhos, não havia nenhuma
restrição.

Desse modo, na História da Educação de Rio das Rãs, destacou-se com relevância o
processo de alfabetização realizada por professoras/es leigas/os no início do século XX; que

58
em suas casas alfabetizavam e iniciavam em regime particular educandos de faixa etária
diversificada, recebendo uma remuneração dos pais. Prática comum no contexto regional,
no qual se destaca Maria Vitalina de Jesus, conhecida como Dona Vitalina, nasceu em 1897,
aprendeu já em idade adulta as primeiras letras, tornando-se alfabetizadora, responsável pela
primeira experiência mestre-escola em Bom Jesus da Lapa/BA. (BARBOSA, 1984).

Esta era a organização da educação formal na época decorrente da ausência de uma


atuação do poder público, a precariedade “obrigava a sociedade civil a organizar suas próprias
escolas, mesmo quando subvencionadas pelo próprio poder público, era isso ou não ter escola”
(OLIVEIRA, 2004, p. 130).

As pesquisas realizadas na comunidade não registraram nenhum dado que demonstre


atenção do poder público (municipal, estadual e federal) para essa população, o que indica ter
havido por muito tempo um isolamento da comunidade, mesmo se tratando de um grupo social
populoso.

Segundo Souza & Almeida (1994), o primeiro empreendimento público que veio a beneficiar
o quilombo Rio das Rãs, foi o asfaltamento do trecho da rodovia BA – 160, que liga Bom Jesus
da Lapa à cidade de Malhada; obra realizada na década de 1990. Pelo fato de oferecer acesso
aos quilombos: Lagoa do Peixe, Araçá Cariacá, Bebedouro, Nova Batalhinha, Rio das Rãs e
Pau D’Arco/Parateca; a rodovia é conhecida na região por “via quilombola”.

Nesse contexto, poucas pessoas conseguiam aprender a ler, diante das dificuldades
enfrentadas, e as que conseguiam o aprendizado passavam a ser mais valorizadas pelos
demais, transformavam-se em importantes referências na comunidade. Eram elas que liam
e/ou escreviam as cartas.

No processo de modernização da sociedade, a leitura e a escrita se constituíram em


poderosos instrumentos de diferenciação entre grupos sociais, permitindo àqueles
que dominassem o código, melhor condição de negociação nas relações sociais
(Oliveira, 2004, p. 123).

Entre as poucas pessoas da época que sabiam ler e escrever duas delas têm seus nomes
emprestados para as denominações das escolas que funcionam nas localidades da Brasileira
e de Rio das Rãs, sendo respectivamente o Sr. Emiliano Joaquim Vilaça e o Sr. Elgino Nunes
de Souza; reverenciados pela comunidade.

59
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS

Hoje eu me acho muito feliz aqui no quilombo de Rio das Rãs, porque eu sou de
1929, conheci esse pedaço de chão aqui de Pau Preto até a Batalhinha [quilombo] e
só tinha cinco pessoas que sabia lê. Era Emiliano, Ergino Nunes de Souza, Mané
Batista, ninguém aqui sabia ler, se alguém mandasse uma carta só tinha mandar ou
Emiliano na Passagem de Areia, ou tio Henrique, ou meu pai ou Ergino, nunca existia
escola, eu mesmo nasci, o maior sofrimento que eu tive na minha vida é porque num
aprendi a ler (Chico de Helena, depoimento Grupo Focal, 2013).

A tristeza exposta por Seu Francisco devido à falta da educação formal e por não saber
ler e não poder escrever, retrata a situação vivenciada por muitas outras pessoas residentes
na comunidade na ocasião da pesquisa de campo. As impossibilidades de acesso aos
aprendizados escolares, possivelmente o levou a buscar e desenvolver outras aprendizagens
para a constituição pessoal da sua leitura de mundo e a representação social dos saberes
disponíveis na educação familiar.

Tinha as pessoa que tinha boa mimória, como é meu pai mermo, era um home
mimorista. Meu pai sabia fazer um balaio, meu pai fazia uma canoa, meu pai fazia
uma rede, meu pai tudo, tudo, fazia uma gamela, meu pai fazia uma imbarcação, tudo
meu pai fazia (Chico de Helena, entrevistado por PURIFICAÇÃO, 2007).

O contexto acima apresentado, não era específico do Quilombo Rio das Rãs; considerando
que outros quilombos, também localizados no Território Velho Chico vivenciaram situações
semelhantes; a citar o Quilombo Araçá Cariacá e o Quilombo Mangal Barro Vermelho. Portanto,
essa estrutura nos remete a um cenário mais abrangente e contemporâneo ao período de
1878, quando foi aprovado um decreto que aproximava oficialmente os negros da realidade
escolar. O Decreto 7031-A permitia o ingresso de negros à escola, contanto que estudassem
em período noturno (BRASIL, 2005, p.7).

Ocorreu que o acesso por esta autorização não se efetivava nem mesmo nos centros
urbanos, ou nas suas proximidades, devido ao contexto político e pelas condições vividas
pelos negros, ainda que livres do escravismo. Xavier (1994 apud OLIVEIRA, 2004) convida a
pensar nas possibilidades ofertadas em 1935, quando apenas 54% das crianças em idade
escolar encontravam-se matriculadas, analisando uma política nacional com dificuldades para
expandir e qualificar o ensino primário.

Difícil imaginar, portanto, como o ensino público chegaria a lugares tão distantes e de
moradas de comunidades negras em situação de isolamento, sob o enfrentamento de ameaças
e tentativas de reescravização.

60
As primeiras iniciativas de construção de prédios escolares na zona rural de Bom Jesus
da Lapa, segundo Barbosa (1996), foram realizadas em 1954, nos dois mais populosos
povoados do município, Favelândia e Sítio do Mato; o segundo elevou-se a município em 1990.
Essas iniciativas com muitas deficiências visavam atender o ensino primário; não dispondo de
abastecimento de água encanada e energia elétrica. Não havia exigência do magistério para o
ofício de professor, realidade que perdurou por muitos anos.

As implantações das escolas no interior do município eram realizadas a partir das relações
dos fazendeiros e/ou representantes das comunidades com o poder político local. Até o
início da década de 1990, as lideranças de Rio das Rãs, não eram reconhecidas, enquanto
representantes comunitários, pelos gestores no município de Bom Jesus da Lapa; e as relações
políticas e comerciais dos ditos donos da Fazenda Rio das Rãs se concentravam nas cidades
de Caetité e Guanambi. Fato que tornava ainda mais distante a possibilidade de investimentos
públicos para a educação em Rio das Rãs.

PROFESSORES/AS LEIGOS/AS: UMA EDUCAÇÃO PARA AFIRMAÇÃO

Na situação vivenciada pelos professores/as leigos/as nas casas-escola, a qualidade do


ensino realizado estava diretamente ligada à capacidade individual do/a professor/a e ao
seu nível de formação. A estrutura física utilizada era a casa da professora, o mobiliário se
restringia a alguns móveis pertencentes à residência, assim como os bancos e cadeiras que
os educandos levavam de suas próprias residências para a casa-escola.

A professora exercia total autonomia para administrar as ações referentes à “sua” escola e
era considerada a “dona da escola”. A pesquisa de Oliveira (2004) faz uma observação impor-
tante sobre o efeito da autonomia da professora em relação aos conhecimentos ensinados, os
conhecimentos da professora, que neste exercício se torna o conhecimento escolarizado.

Ficava garantido nesse processo o ensino e a aprendizagem da cultura vivenciada na


comunidade. “A Comunidade era a própria referência e o conhecimento valorizado era o que o
mestre sabia, e este saber não entrava em choque com os saberes comunitários, visto que, o
que o mestre sabia, incluía os saberes da Comunidade.” (OLIVEIRA, 2004. p.131).

Na região do Território Velho Chico, há nomes e experiências que se destacam nesse ofício,

61
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS

a imortalizada Dona Vitalina, citada como precursora na educação em Bom Jesus da Lapa;
e o Senhor José Modesto Santos, natural de Paratinga/BA, “um mulato polido” (que) “já era
professor leigo em sua terra natal, em 1937.” (BARBOSA, 1986. p.26).

Através de Oliveira (2004), vêm um relato de uma moradora, como indicador de uma
segunda experiência escolar em Mangal Barro Vermelho, que retrata o desafio do ensino das
primeiras letras aos quilombolas, ao final da década de 1940, na qual, a perspectiva está
diretamente ligada à formação da professora, a sua vivência naquela comunidade. Esta se dá
sob os moldes de educação apresentados acima, desta vez patrocinada por um fazendeiro,
como diz a senhora Elvina Carmo Santiago, conhecida no Quilombo Mangal/Barro Vermelho
como Dona Pituca, neste relato, refere-se à cidade de Barra, uma das primeiras cidades do
Território Velho Chico, onde aos (09) nove anos de idade, foi morar com o senhor Avelino que
era seu Padrinho.

Aquele tempo usava aquelas cartilhas, do povo [...] Que tinha aquele cinco dedos.
Num sei se vocês alembra, né. Então, tinha o, o alfabeto, todo a, b, c, d, e, f... e eu
cumecei. Saí daqui já dizarnada, num sabe. Chequei lá, continuei e istudei; até o
terceiro ano [...] Aqui tinha uma professora que chamava Arcanja. Era casada, o
marido dela era vaqueiro de seu Avilino [...] A escola era, era na casa... ah, essa casa
já, já, eles dismancharam [...]. Escola de pobre. Tinha as cadeirinha, tudo mundo
levava seu banquim, né. Justamente, essa escola. Foi seu Avilino qui arrumô, cum,
acho com os prefeitos, as pessoas mais ou menos daí da Lapa, e colocô essa [...]
A gente aprendeu um pôco assim, algumas coisinhas assim. Agora, ela não sabia
muita coisa num sabe... era mesmo só pra dizarná, pra não ficá aí tanta gente burro
(entrevistada por OLIVEIRA, 2004, p. 128).

O senhor Florisvaldo Pereira da Silva, liderança do Quilombo Araçá Cariacá, relatou que foi
alfabetizado pela professora Lindaura Lopes dos Santos, nascida em 27 de novembro de 1960,
no Cariacá, alfabetizada aos 08 anos, pela Professora leiga de nome Diolinda, na paragem do
Juazeirão, comunidade rural pertencente ao Município de Bom Jesus da Lapa/BA, localizada a
aproximadamente 8 quilômetros do Araçá Cariacá. Seguindo o exemplo da mestra Diolinda;
a professora Lindaura ensinava o “abc e a cartilha”. Atuou durante (03) três anos, sob uma
“latada” - construção improvisada, elaborada com estrutura rústica, produzida com utilização
de restos e pedaços de madeira; coberta por telhas ou palhas retiradas das árvores - erguida
para esse fim, em sua casa até se casar e deixar de morar no quilombo.

Comecei a lecionar porque não tinha ninguém com disponibilidade. Alguns pais de
alunos foram atrás de mim, mas como era menor de idade, os próprios pais vieram

62
falar com Dr. Anísio juiz da cidade e dono da fazenda que morávamos para ele poder
dá um jeito. Permitindo que eu tirasse meus documentos. O que na época não era
permitido. Isso foi em 1977(...) até 1980. Sai quando casei e vim morar na Lapa para
terminar os estudos (Professora Lindaura, entrevistada por PURIFICAÇÃO, 2013).

A professora Lindaura continuou os seus estudos na cidade de Bom Jesus da Lapa/BA,


onde concluiu o Curso de Magistério, 2o grau no ano de 2006. Relatou que conhecia outras
professoras leigas que também ensinavam em sua época, Aparecida no Araçá e Dalvina Rosa
no Cariacá, fato que aponta para a ocorrência de existirem outras professoras leigas que
atuavam na educação do Quilombo.

Florisvaldo, seu aluno mais ilustre, após a partida da professora da comunidade, prosseguiu
os seus estudos sob a orientação da Professora Maria Benes Lobato, popularmente conhecida
por Benes, 47 anos, graduada no Magistério Superior, que com 15 anos de idade, quando
ainda cursava a quinta série ginasial, atual sexto ano do Ensino Fundamental, diante das
reivindicações dos moradores das localidades de Araçá e Cariacá junto à Prefeitura de Bom
Jesus da Lapa pela instalação de uma escola na comunidade, Benes, que atualmente atua
como diretora na Escola Municipal Araçá Cariacá, se colocou à disposição para compartilhar
os seus conhecimentos à época.

Reforçada pela disposição da menina, a busca iniciada em 1980, ganhou o apoio de um


vereador do município, que tem relação de parentesco com moradores, tendo conquistado
em 1983 a instalação de uma de sala da denominada Escola da Fazenda Volta, sediada na
localidade Araçá.

Sob o sistema de multisseriação, Benes, que suspendera os estudos para assumir o


desafio, como leiga vai se profissionalizando no ensino de 1a a 4a série primária, chegando
a atuar nos três turnos, com estudantes das localidades de Araçá, Cariacá, Patos, Pedras
e Retiro. Inicialmente, as aulas eram ministradas em uma estrutura rústica conhecida como
latada. Posteriormente, a escola passa a funcionar em uma “casa” alugada pela Prefeitura do
município (MACEDO, 2006, p. 65).

Mesmo após a chegada das escolas públicas na sede do município, permaneceram na


cidade as casas-escolas, dirigidas pelas professoras leigas e tornaram-se bastante comuns
na zona rural até o início das intervenções institucionais que aos poucos foram organizados
em postos, que funcionavam ainda nas casas das professoras, em seguida substituídos por

63
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS

imóveis separados que foram ganhando estruturas onde, posteriormente, passaram a funcionar
as escolas públicas.

Em Rio das Rãs, a experiência de alfabetização realizada por professores/as leigas/os,


seguiu até o ano de 1983. Experiências como a vivenciada por Dona Emília, professora leiga,
moradora da Vila Martins, onde atuou durante 23 anos dedicados a alfabetização, que fala
sobre a existência de uma escola, na localidade de Rio das Rãs. Seguiu narrando a sua
iniciativa de ensinar a “leitura” em sua residência.

Quando eu casei, lá em Bom Retiro, não tinha professora, só lá em Rio das Rãs.
Ninguém sabia ler, eu comecei a dar aula particular cobrando uma taxinha, aí fiquei
trabalhando em minha casa. Nas eleições ficavam prometendo professora e nunca
vinha, eu ficava vendo as criancinhas todas sem estudar (Dona Emília, entrevistada
por SILVA, 2004).

Na oportunidade, respondendo sobre sua rotina na realização das aulas quando atuava
como alfabetizadora, a professora Emília comentou acerca dos conteúdos lecionados e expôs
como relacionava a sua prática pedagógica com a vivência no cotidiano da comunidade: “ As
crianças gostam da folia né, da alegria. Acho que ficaria mais fácil, é o jeito daqui mesmo, da
gente”. Dona Emília faz analogia aos novos métodos aplicados na escola, a partir da chegada
da professora “formada” e à sua maneira de atuar.

Na escola tem reza, canto para as crianças, roda de brincadeiras e cantigas trazidas
pela professora. A professora quando chegou veio com os esquemas dela. Eu
passava o alfabeto, ensinava as vogais, às consoantes, depois juntava as letras e
formava as sílabas, chegando ao b-a-bá. Gostava de ensinar a eles lerem soletrando,
depois que eles liam as sílabas eles liam as palavras (Dona Emília entrevistada por
SILVA, 2004).

Este relato de Dona Emília retrata uma fase que marcou o período de transição entre o
ensino informal e o ensino institucionalizado. Na ocasião, já existia uma relação das professoras
com os órgãos do governo; contudo elas prosseguiam com a responsabilidade de direcionar o
ensino. Desse modo, construíam o currículo a partir dos conhecimentos adquiridos em espaços
formais ou nas vivências comunitárias. Cada profissional realizava as atividades escolares
de acordo com seu conhecimento e habilidade, estabelecendo a partir daí os conteúdos e
metodologias a serem desenvolvidos.

64
Eram escolas cujos professores eram reconhecidos ou nomeados pelos órgãos
de governos responsáveis pela instrução e funcionavam em espaços improvisados,
geralmente na casa dos professores, os quais, algumas vezes recebiam uma pequena
ajuda para o pagamento do aluguel. Os alunos ou alunas dirigiam-se para a casa
do mestre ou da mestra e lá permaneciam por algumas horas (FARIA FILHO, 2000.
p.144).

Com esta configuração, a história da educação escolar no Quilombo Rio das Rãs, passa
aos poucos a funcionar, ainda que timidamente sob o patrocínio do Poder Público, que através
do Município passou a contratar os professores/as leigos/as; ainda que estas continuassem a
atuar em suas residências.

REIVINDICAÇÕES E CONQUISTAS: DA CASA-ESCOLA PARA OS PRÉ-

DIOS MUNICIPAIS

A institucionalização da educação no Quilombo Rio das Rãs ocorreu a partir de um “arranjo”


entre um vereador e o gestor do município, e assim, em 1983, surge a primeira Escola da
comunidade, ainda sem estrutura física, funcionava na casa de Dona Nilza, conhecida como
Nilza “de Miúdo”, nascida na comunidade de Parateca; atualmente localidade pertencente ao
Quilombo Parateca Pau D’arco.

Na ocasião, Dona Nilza era professora leiga, mesmo não sendo seu sonho, assumiu o
ofício de educadora, que de acordo com seus relatos, aos poucos ela foi se envolvendo e
se apegou à função de instrutora. “Luto para que eles cresçam e para isso trabalhei como
professora leiga até 2003, concluindo o curso Pro-formação (MEC/Governo Municipal) em
julho de 2004, em Caetité.” (Dona Nilza entrevistada por SILVA, 2004).

Com esse propósito Dona Nilza despontou como alfabetizadora reverenciada com grande
importância na história educacional de Rio das Rãs. Seu nome ficou diretamente relacionado
à transição da Escola das Professoras leigas para a Escola Institucional. Como relata Seu
Francisco:

Dona Nilza começou a ensinar debaixo de um pé de árvore, de juazeiro. Foi que


foi indo, e hoje, já tem pessoas aqui ó, ela merece um prêmio. Trate de dona Nilza.
Um neto meu que eu criei, peguei com sete meses de nascido, levou dois anos pra
caminhar e, olha aqui ó, onde ela já está. Trate bem dona Nilza. Olhe ai pro senhor
ver (Chico de Helena, entrevistado por SILVA, 2004).

65
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS

Como parte da trajetória de luta que compõe a História do Quilombo Rio das Rãs, logo
após o reconhecimento do território como comunidade quilombola, seus moradores intensi-
ficaram a busca junto aos órgãos públicos pela efetivação dos seus direitos; dentre eles, o
direito à educação escolar e através de muitas ações como abaixo assinados, reuniões e
reivindicações junto às esferas Municipal, Estadual e Federal, foram gradativamente obtendo
resultados. Assim sendo, o quilombo conquistou prédios escolares, equipamentos, contratação
de professores e transporte escolar.

ESCOLA MUNICIPAL QUILOMBOLA EMILIANO JOAQUIM VILAÇA

Situada na localidade de Brasileira, 62 quilômetros de Bom Jesus da Lapa/BA, a princípio


essa escola era nomeada como Escola Municipal Brasileira. Por volta de 1992, a escola
iniciou suas atividades, e até o ano de 2004 funcionou em um prédio de boa estrutura física,
construída de tijolos e acabamento com reboco, as portas e janelas eram de aço, protegidas
com grades; a cobertura era bancada com telhas de cerâmica.

Nesse antigo prédio, atuou cursos de Alfabetização e Ensino Fundamental até 8a série
(atualmente 9o ano). Dispondo de água encanada e energia elétrica. Composta por (03) três
salas de aula, (01) uma cantina, (01) uma secretaria. Dispunha de poucos móveis, em relação
ao número de alunos que frequentava e havia apenas (01) um sanitário para o uso de todos/as.
Devido à falta de cadeiras e mesas para a realização das atividades; muitos/as educandos/as
participavam das aulas, sentados/as ou até mesmo, deitados no chão.

A Escola Municipal Quilombola Emiliano Joaquim Vilaça, nome posto em homenagem a


um antigo morador da localidade; foi construída no terreno situado ao lado das instalações
referentes à Escola Municipal Brasileira. A construção foi efetivada no intuito de atender
um maior número de alunos, oferecendo melhores condições físicas e materiais de acordo
com o rol de reivindicações feitas pelos quilombolas locais. Uma conquista efetivada com a
participação direta nas deliberações e encaminhamentos junto aos órgãos públicos, como
narra uma das principais lideranças do Quilombo:

Essa escola ai, eu lembro que Lia Rocha [Maria da Conceição Silva Rocha – Se-
cretária Municipal de Educação à época lembrada] mandou uma pasta pra mim. . .
pra mi ir conhecendo a forma de trabalhar, mandou uma carta pra mim ir numa

66
reunião e, assim meio escondido, era pra mim ir pra Brasília numa reunião mais ela,
mas na verdade ela ia mais a reunião era 200 prefeito que ia tá reunindo lá, ia tá
discutindo essa questão de educação e tale, ai eu fui pra lá, foi aonde colocou mais
cinco escola [...] e foi aprovada e tem assim. . . ai veio o transporte também. . . e hoje
chegou, tá ai e eu tenho esse orgulho de tá participando. É como se fosse assim,
mudou da água pro vim, quer dizer assim que todo aquele sofrimento (Simplício
Arcanjo, depoimento Grupo Focal, 2013).

Esta contava com 214 (duzentos e quatorze) alunos matriculados, no ano letivo 2013, para
cursarem as séries desde a Educação Infantil até o Ensino Fundamental II, contando com
turmas multisseriadas, conforme informação fornecida pela Secretaria Municipal de Educação
de Bom Jesus da Lapa, cadastrados no Censo Escolar EDUCACENSO, coordenado pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira – INEP.

Atualmente, a escola encontra-se aparelhada, possuindo máquina copiadora para realiza-


ção de xerox e scanner, computadores, câmera digital, aparelho de som, caixa acústica com
amplificador, microfone e televisor. E tem uma biblioteca.

Por ocasião da realização da observação participante, no mês de outubro de 2013, fui


informado pela direção sobre o quadro docente composto por onze professores. Destes, 03
(três) professores/as são graduados, nas áreas referentes à Biologia, Letras e Pedagogia; 01
(uma) professora graduada e com especialização Latu Sensu; outros 06 (seis) professores/as
encontram-se com graduação em curso nos campos da Pedagogia, História e Letras; e 03
(três) professoras que ainda não acessaram o Ensino Superior, concluíram apenas o Curso
de Magistério, referente ao Ensino Médio. Quanto ao vínculo empregatício, somente 03(três)
professores/as são concursados e efetivos no cargo. Os demais atuam em regime de contrato
temporário.

ESCOLA MUNICIPAL ELGINO NUNES DE SOUZA

Como parte das primeiras conquistas e diante da necessidade dos moradores da localidade
de Rio das Rãs inserirem suas crianças e adultos no contexto escolar, no ano de 2002, ainda
em uma casa alugada, sem contar com infraestrutura básica, começou a funcionar uma escola
no local, distante 62 quilômetros de Bom Jesus da Lapa/ BA. O espaço foi utilizado até o ano
de 2004, quando através do Programa Dinheiro Direto na Escola Emergencial – PDDEE; foi

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2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS

construída a Escola Municipal Elgino Nunes de Souza, registrada com o nome de um dos mais
antigos moradores, patriarca de uma das maiores famílias do quilombo.

O prédio observado em pesquisa realizada em 2004 era considerado de boa estrutura


física, construído com tijolos e rebocado com cimento, assim como na escola construída na
localidade de Brasileira, as portas e janelas eram de aço e protegidas com grades, a cobertura
era de telha de cerâmica. O espaço físico era composto por 02 (duas) salas de aula, 01 (uma)
secretaria e 02 (dois) sanitários. Entretanto, o ambiente era avaliado como insuficiente para
acolher a quantidade de alunos/as matriculados/as; o número aproximado de 300 (trezentos)
educandos distribuídos entre os turnos matutino e vespertino.

Devido à falta de espaço suficiente, uma parte dos/as matriculados/as passou a frequentar
as aulas em uma grande sala, cedida pela Associação Comunitária, locada nas proximidades
da escola. Os 02 (dois) locais contavam com água encanada, porém nenhum deles possuía
energia elétrica.

No ano de 2007, um novo desenho do contexto educacional se apresenta em resposta às


constantes reivindicações dos quilombolas, foi construído um novo prédio escolar na localidade
de Rio das Rãs, com recursos do Ministério da Educação, onde passou a funcionar no atual
prédio da escola, construído em um terreno vizinho ao prédio anterior.

O quadro de docentes em 2013 era formado por 09 (nove) professores/as, a partir do mês
de outubro, do mesmo ano, passou a contar com mais 01 (uma) professora. No tocante ao
nível de formação do corpo docente: 03 (três) professores/as são graduados em História,
Pedagogia e Matemática; 06 (seis) professores/as estão em processo de graduação nas áreas
referentes à Pedagogia, História e Letras Vernáculas e 01 (uma) professora, cursou o Magistério,
tendo como grau de instrução o Ensino Médio. Destes, apenas 03 (três) professores/as são
efetivos/as. Os demais atuam através de contrato por tempo determinado.

Com o novo prédio, a comunidade escolar recebeu equipamentos como máquina copiadora
para xerox e scanner, computadores, câmera digital, aparelho de som, caixa acústica com
amplificador, microfone, televisor e uma sala de leitura pronta para uso, no entanto, ainda não
foi disponibilizada.

Atende a 269 (duzentos e sessenta e nove) alunos, distribuídos em 12 (doze) turmas; a

68
escola funciona com o Programa Educação Integral e no Ensino Médio com Intermediação
Tecnológica – EMITEC, programa da Secretaria da Educação da Bahia que faz uso de uma
rede de serviços de comunicação multimídia que integra dados, voz e imagem; com 01 (uma)
turma composta por jovens do Quilombo Rio das Rãs, do Quilombo Nova Batalhinha e do
Projeto de Assentamento Batalha.

De acordo com informações passadas por moradores do local, neste estabelecimento


tem ocorrido com frequência falta de água e falta da merenda escolar. Durante o período da
observação, na Escola Elgino Nunes, tive a oportunidade de vivenciar o problema da falta de
água durante as aulas realizadas à noite.

ESCOLA MUNICIPAL FRANCISCO XAVIER

Situada na localidade denominada Enchú, há 03 (três) quilômetros da localidade Rio das


Rãs, o nome Francisco Xavier foi posto na escola, por iniciativa dos moradores de Enchú, que
desejavam homenagear o senhor Andrelino Francisco Xavier, nascido em 1945, conhecido
como “Seu” Andrelino um dos mais velhos moradores e líder do culto da Jurema no lugar, a
denominação da escola, na verdade, recebe o nome do pai do homenageado.

O seu prédio construído de tijolos, com paredes rebocadas com cimento e pintadas;
composto por 02 (duas) salas e 01 (uma) secretaria; por não dispor de 01 (uma) cozinha para
produzir a merenda escolar, o fogão ficava na casa da merendeira; não havia banheiro. Essa
observação foi realizada em 2004, ainda verificou-se que o número de carteiras eram inferiores
à necessidade dos/as educandos/as, por isso eles/as levavam das suas casas bancos e
cadeiras, alguns escreviam com os cadernos apoiados sobre as pernas.

Em 2007, a estrutura passou por uma reforma, quando o terreno foi cercado com um muro,
foram construídos: o banheiro e a cozinha. Assim como, ocorreu com as escolas já citadas,
em 2010, a comunidade escolar de Enchú, recebeu dos órgãos públicos acessórios como
máquina copiadora para xerox e scanner, computadores, câmera digital, aparelho de som,
caixa acústica com amplificador, microfone e televisor.

Entretanto, os 05 (cinco) computadores recebidos há três anos, continuam guardados em


caixas por falta de espaço para a instalação do laboratório de informática; assim como os

69
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS

livros que irão compor a sala de leitura, encontram-se empilhados no espaço onde funciona
a secretaria da escola; por falta de um local apropriado para serem arrumados e acessados
pelos/as alunos/as.

Apesar das dificuldades apresentadas, a escola atende a 95 (noventa e cinco) alunos/as,


incluindo estudantes das localidades Aribá e Capão do Cedro (comunidades vizinhas); os/as
alunos/as cursam entre Educação infantil e o Ensino Fundamental II, a maioria destes, sob o
sistema de multisseriação. Em agosto de 2013, iniciou-se uma turma formada para Educação
de Jovens e Adultos – EJA. Conforme cadastro: Educasenso/Secretaria Municipal de Educação
de Bom Jesus da Lapa - Setembro/2013.

O quadro de docentes foi alterado em setembro de 2013, aumentando de 03 (três) para


04 (quatro) professores/as. Quanto à formação todos/as os/as professores/as, concluíram
o Curso de Magistério - Ensino Médio e estão frequentando ensino superior, sendo: 01
(uma) professora no curso de Letras Vernáculas; 01 (um) professor em História e 02 (duas)
professoras em Pedagogia. Apenas 01(uma) é concursada, os/as demais atuam em regime de
contrato temporário.

Tanto os professores, quanto os alunos esperam que com a inauguração do novo prédio
construído na localidade, venham mudanças com relação à qualidade do ensino na comu-
nidade.

Junto com a expectativa da inauguração do novo prédio, acompanha a esperança dos


moradores em findar o sistema de ensino multisseriado, considerando a disponibilidade de um
maior número de salas, a contratação de um número adequado de profissionais para atender
as demandas da comunidade.

UM PANORAMA DIDÁTICO-PEDAGÓGICO

A educação institucional no quilombo é uma conquista recente, apesar da obrigatoriedade


e do longo tempo de lutas individuais e coletivas dos quilombolas pelo letramento e pela
formação escolar. Há muito tempo a educação é compreendida por essas pessoas como
passaporte para as relações extra comunitárias e principalmente para a busca de afirmação e
respeito.

70
No processo de institucionalização da educação em Rio das Rãs, os/as professores/as
passaram a participar do planejamento único, da Secretaria de Educação, estipulado para todo
o município. A uniformidade dos planejamentos gerou alguns transtornos, os/as alunos/as
passaram a enfrentar problemas com o calendário escolar que não consideram questões como:
os períodos das lavouras, quando é comum os filhos acompanharem os pais na preparação
da terra, por ocasião das chuvas; os períodos pós-enchentes do Rio São Francisco, quando
plantam na beira do rio (lameiro) e nas ilhas; e ainda o mês de junho, período utilizado para
fazer farinha.

Nos dias atuais, os festejos e celebrações da comunidade ficam fora do planejamento,


em geral, estes acontecimentos não contam com a participação de parte considerável dos/as
professores/as. Os livros didáticos utilizados são os mesmos para as escolas (rurais e urbanas)
de Bom Jesus da Lapa – BA. O material didático ilustrativo, das salas de aula dessas escolas
não expressa a relação com o cotidiano ou experiência da cultura local e o pertencimento
étnico racial dos/as alunos/as.

Silva (2004) registrou um elemento importante que foi apresentado por uma professora em
entrevista: no desenho livre os/as alunos/as desenham os/as negros/as tocando tambores, o
reisado, os cavalos enfeitados do reisado, os reis do reisado e Zumbi. No Cantinho da Arte,
os/as alunos/as negros/as, maioria na escola, pintam as crianças e adultos da cor preta nas
gravuras que fazem.

Entrevistadas em 2004, as professoras das três escolas declararam que não havia uma
relação direta da educação escolar com vida cultural da comunidade. As professoras “de fora”
não ficavam na comunidade por ocasião dos eventos, festejos e manifestações e foi quase
unânime nas suas opiniões sobre a não realização de atividades na escola relacionando às
expressões culturais da comunidade, impedidas por mães, pais e professoras evangélicos.

Posteriormente, profissionais da educação da localidade Rio das Rãs foram entrevistadas


em trabalho de pesquisa, em 2007, e opinaram sobre a relação da escola com a cultura do
quilombo. Dizem achar importante, no entanto, não se sentem preparadas para ensinar os
conteúdos que são indicados relacionando-os à realidade da comunidade.

Uma das professoras utiliza como exemplo a Escola Elgino Nunes de Souza, que durante
os anos de 2005-2007, contou com a metade do corpo docente formado por professores

71
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS

nativos, os quais buscavam parceria com a comunidade, através das lideranças e a escola
envolvia alunos/as e professores/as em eventos realizados, como a comemoração do dia 20 de
Novembro – Evento itinerante realizado desde 2003, nos Quilombos do Território Velho Chico,
em reverência ao Dia Nacional da Consciência Negra - abarcando a comunidade, através de
pais, mães e lideranças, nas gincanas organizadas.

As professoras foram unânimes ao afirmar que deve haver formação preparatória para
todos os/as educadores/as que vão trabalhar em quilombos, especialmente, para quem ainda
não conhece a realidade quilombola e suas especificidades. A Professora Juvenice Vieira,
relatou que teve muita dificuldade de entender a vida e a cultura do lugar: “eu não conhecia
nada lá, passei a conhecer com as professoras leigas e as pessoas mais velhas” (entrevistada
por PURIFICAÇÃO, 2007), demonstrando compreender a importância da interação com o
saber comunitário, no entanto, defende a formação específica.

Por informação da SME-BJL, em 2007, metade da equipe docente era formada por pro-
fessores nativos. Os profissionais de limpeza, as merendeiras e os agentes de portaria, são
contratados temporários. Com a realização do concurso público, em 2008, e o fim dos contratos
temporários, o quadro de docentes passou a contar, apenas com o professor Jonas Duque,
aprovado no concurso, como o único professor nascido na comunidade. As outras funções não
incluídas no processo seletivo (concurso) continuaram sendo ocupadas pelos quilombolas. As
diretoras, em 2007, eram todas moradoras da sede do município.

A Secretaria Municipal de Educação (SME-BJL) informou em 2008 que o quadro educa-


cional no Rio das Rãs encontrava-se composto por quatro escolas que correspondiam das
séries iniciais a 8a série (o 9o ano atual) sediadas nas localidades de Brasileira, Rio das
Rãs, Vila Martins e Enchú com 654 (seiscentos e cinquenta e quatro) no total de estudantes
matriculados.

Funcionava, também, o Programa de Tele sala da Secretaria Estadual de Educação e o


Ensino sem Fronteira/telecurso 2◦ Grau, atendendo jovens e adultos nativos e moradores do
quilombo vizinho Pau D’arco/Parateca.

Para o transporte escolar, foram disponibilizados, em 2009, 02 (dois) ônibus cedidos


pelo Programa “Caminho para Escola” do MEC. Estes ficam à disposição dos estudantes e
professores das Escolas Emiliano Vilaça e Elgino Nunes.

72
Duas vans foram alugadas pela Prefeitura Municipal de Bom Jesus da Lapa, para trans-
portar estudantes e professores, sendo que uma atende à Escola Francisco Xavier e outra
dando suporte à Elgino Nunes, especificamente à noite, para o público residente no Quilombo
Nova Batalhinha e no Assentamento Batalha (comunidades circunvizinhas). Esse recurso
é considerado de muita importância pelos quilombolas devido a considerável distância que
separa as residências das escolas.

A partir do histórico apresentado, tornam-se inegáveis os avanços no sistema educacional


do quilombo, com investimentos dedicados às construções de novos e maiores prédios, o
aparelhamento das escolas, a disponibilização do transporte escolar e o crescimento do quadro
de profissionais para o exercício da educação no quilombo.

Estes aspectos demonstram quanto o processo educacional em Rio das Rãs tem evoluído,
no entanto, perduram aspectos importantes que evidenciam a necessidade de avaliação, no
sentido de buscar caminhos para a promoção de uma diferenciação no processo ensino-
aprendizagem, na construção de uma escolarização que contemple a identidade e os valores
da comunidade.

Gerar uma educação de qualidade, protegida pela garantia dos direitos, consiste em um
grande desafio que requer compromisso e reflexão por parte dos atores sociais envolvidos no
que tange as práticas institucionais. Em relação à Educação Escolar Quilombola, observei as
ações desenvolvidas pelo poder público e os profissionais da educação, não obstante, creio
que estas iniciativas e práticas necessitam de qualificação e o alinhamento das concepções de
entendimento entre o saber popular e o saber instituído.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Antônio. Bom Jesus da Lapa: antes do Monsenhor Turíbio, no tempo do Monsen-
hor Turíbio, depois do Monsenhor Turíbio. Rio de Janeiro: Jotanesi Edições, 1996.

BRASIL. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal no 10.639/03/ Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília: MEC, SECAD. 2005.

FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Instrução elementar no Século XIX In. LOPES, Eliane
Marta Teixeira, FARIA FILHO, Luciano Mendes VEIGA, Cynthia Greive (orgs). 500 Anos de

73
REFERÊNCIAS

Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autênctica, 2000.

MACEDO, Dinalva de J. S. O currículo escolar e a construção da identidade étnico-racial


da criança e do adolescente quilombola: um olhar reflexivo sobre a auto-estima. Salvador:
dissertação de mestrado. Uneb, 2006.

OLIVEIRA, Sandra N. S. de. De mangazeiros a quilombolas: terra, educação e identidade


em Mangal Barro Vermelho – Sítio do Mato – Bahia. Salvador: Dissertação de Mestrado.
UNEB, 2004.

SILVA, Ana Célia da. Educação formal e informal nas comunidades negras rurais de Rio
das Rãs, município de Bom Jesus da Lapa. Salvador: Relatório de pesquisa, Digitado, 2004.

SOUZA, José Evangelista de e DE ALMEIDA, João Carlos Deschamps. O mucambo do Rio


das Rãs - um modelo de resistência negra, Bom Jesus da Lapa: SINERGIA/CÁRITAS,
1994.

74
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO
ESCOLAR QUILOMBOLA: CONTRIBUIÇÕES A PARTIR
DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO

Sandra Nívia Soares de Oliveira1

Participando como Professora Pesquisadora do Curso de Aperfeiçoamento em Educação


Escolar Quilombola da Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério
da Educação e Universidade Federal do Recôncavo da Bahia ( SECADI/MEC/UFRB) e a
Secretaria de Educação do Município de Feira de Santana e colaboradora na Escola Rosa
Esperidião, no Quilombo da Matinha dos Prêtos, Feira de Santana, senti necessidade de
revisitar minha dissertação de mestrado, defendida no ano de 2006, na Universidade do Estado
da Bahia (UNEB), por conta dos questionamentos feitos por dois cursistas acerca do que é
quilombo e da identidade quilombola de/em algumas comunidades.

A dissertação intitulada De Mangazeiros a Quilombolas: Terra Educação e Identidade em


Mangal e Barro Vermelho, como o próprio nome sugere, estuda a relação entre terra, educação
e identidade na comunidade.

No trabalho realizado, tanto na escola como no Curso de Aperfeiçoamento, em alguns


professores percebia-se o conflito que se instalou após o reconhecimento e titulação de
algumas destas comunidades. Professores que trabalhavam na comunidade há anos de
1
Doutora em Antropologia. Professora Adjunta da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
sandraniviasoares@gmail.com

75
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO

repente não sabiam o que ensinar e nem como ensinar aos mesmos alunos. Uma fala em
especial chamou a minha atenção: “professora, agora que eles viraram quilombolas, estou
confusa.” Creio que este conflito não seja de uma professora em particular; por esta razão,
me senti desafiada a construir um texto que possa auxiliar esses professores e professoras
na compreensão do que seja quilombo e do que autoriza uma comunidade a ser reconhecida
como quilombola e, assim, identificar-se. As reflexões as quais me proponho a fazer estão
ancoradas na pesquisa, que culminou com minha dissertação de mestrado, e nas Diretrizes
Curriculares para a Educação Nacional Quilombola cuja aprovação data de 2012, seis anos
depois da defesa do mestrado.

As Diretrizes Curriculares para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica –


Resolução número 08, de 20 de novembro de 2012 – coloca mais um desafio aos sistemas
educacionais, às escolas, aos professores, aos alunos e às comunidades quilombolas: pensar e
construir uma escola que dê conta de atender as especificidades das comunidades quilombolas,
evidenciadas a partir do seu reconhecimento legal.

Desde o reconhecimento na Constituição de 1988, Artigo 68 das Disposições Nacionais


Transitórias, do direito à terra e à titulação aos herdeiros da resistência ao regime de escravidão
no Brasil, o conceito de quilombo precisou se ressignificar para atender as especificidades
das comunidades negras que reivindicam as terras onde vivem secularmente, tomando a
identidade quilombola como estratégia de afirmação da ancestralidade e de visibilização de
uma história conscientemente ocultada em nossa sociedade por razões políticas, sociais,
econômicas e culturais.

Neste trabalho, toma-se o processo de construção de identidade da comunidade negra


quilombola de Mangal e Barro Vermelho, no Oeste da Bahia, como referência para refletir
sobre o conceito de quilombo, ampliando a compreensão acerca dessas comunidades, con-
tribuindo para a desconstrução de preconceitos e favorecendo a convivência respeitosa entre
as diversas culturas. Objetiva-se, também, pensar a educação escolar quilombola a partir
do “reconhecimento e respeito da história dos quilombos, dos espaços e dos tempos nos
quais as crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos quilombolas aprendem e se educam;”
(BRASIL, 2012. p. 5).

76
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE QUILOMBO E QUILOMBO CON-

TEMPORÂNEO

Tradicionalmente, quilombo designa esconderijo de negro fugido. De acordo com o pará-


grafo terceiro do regimento de 1724, por quilombo se devia entender “[...] toda habitação de
negros fugidos que passe de cinco em parte despovoada ainda que não tenham ranchos
levantados nem nela se achem pilões” (LARA, 1996, p.96). O regimento de 1733, aprovado
pela Câmara de São Paulo, apresenta outra definição de quilombo, sendo este “[...] o ajun-
tamento de mais de quatro escravos vindos em matos para viver neles e fazerem roubos e
homicídios [...]” (LARA, 1996, p.97). Outra definição é apresentada, em 1757, pela Câmara de
São Salvador dos Campos dos Goitacases que, ao se referir a quilombo, o definia como:

[...] Escravos que estivessem arranchados e fortificados com ânimo a defender-


se [para] que não sejam apanhados, esclarecendo que os tais ranchos não eram
quaisquer, mas daqueles em que ficam “por se repararem do tempo” e estipulavam
que “achando-se de seis escravos para cima que estejam juntos se entenderá também
[por] quilombo.” (LARA, 1996, 97)

Observa-se que, no contexto da escravidão, o conceito de quilombo variou de acordo,


certamente, com a realidade de cada lugar, tendo como ponto de intersecção a fuga do regime,
indicando o movimento que fez o conceito para se adequar às realidades e experiências
naquele contexto, “tratando-se de uma definição operacional diretamente ligada ao estabeleci-
mento dos salários do capitão-do-mato, mas que é, sobretudo, uma definição política.” (LARA,
1996, p.97)

A Constituição Federal de 1988, com a conquista do Artigo 68 dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias – a qual afirma que aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” –, revela a necessidade de repensar o conceito de
quilombo a partir da diversidade de comunidades negras. Como afirma Oliveira, utilizando-se
das palavras de Santos Silva (1997),

[...] Após essa conquista, considerando a diversidade de comunidades negras


existente no país e, da própria originalidade e complexidade do termo, o debate
em torno da regulamentação do artigo atraiu historiadores, juristas, antropólogos,
historiadores, políticos e militantes para essa discussão. A questão agora era definir

77
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO

o que se compreende por quilombo neste momento, para poder reconhecer seus
remanescentes. Mais uma vez, será no campo da política que o sentido/conceito de
quilombo será redefinido. (2006, p.84)

Com essa preocupação, em 1994, surgiu um grupo de trabalho dentro da Associação


Brasileira de Antropologia (ABA), apresentando como objetivo principal construir uma definição
para as terras pertencentes a comunidades negras consideradas remanescentes de quilombos.
O documento produzido por este grupo de trabalho, assim conceitua quilombo:

Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquí-


cios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também
não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da
mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais
ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas
cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida carac-
terísticos na consolidação de um território próprio. (O’DWYER, 1995, apud. MOURA,
1999, p.102-103)

A luta das comunidades negras pela conquista da terra difere da luta de outros setores
rurais, porque a terra que essas comunidades reivindicam traz consigo uma ancestralidade
que a faz mais que terra, fundindo-se à própria história do indivíduo, quase uma extensão
de seu corpo. Essas comunidades não apenas produzem na terra, mas produzem a terra
cotidianamente, tornando-a particular, única; uma terra que sempre foi de alguém, que eu
conheço, de quem herdei toda a referência de uma terra impregnada de uma historicidade que
a particulariza, porque,

[...] as comunidades negras possuem características etno-culturais distintas das


dos camponeses assentados em área de reforma agrária. Os camponeses [...] são
grupos sociais formados por indivíduos muitas vezes sem uma convivência cultural
comum e que lutam especificamente para dar utilidade social às terras desapropriadas.
(SANTOS SILVA, 1997, s/p)

As pressões desses grupos negros rurais, fortalecidos com a luta organizada do Movimento
Negro, tornaram inevitável o seu reconhecimento, por parte do Estado Brasileiro, enquanto
remanescentes de quilombos e, consequentemente, a titulação de suas terras (embora muitas
comunidades ainda hoje lutem pelo reconhecimento), sendo pioneira a comunidade de Frechal,
no Pará, em 1992.

Por força dessa organização, fica assegurada, na Constituição Federal de metricconverter-


ProductID1988, a1988, a inclusão do artigo 68 das Disposições Constitucionais Transitórias,

78
o direito das comunidades remanescentes de quilombos ao reconhecimento da terra que, in-
discutivelmente, lhes pertence. A inclusão desse artigo foi, sem dúvida, um ganho significativo
para a história e a luta dos afrodescendentes, pois é crucial assegurar a legalidade da terra,
e é de valor inestimável, o reconhecimento da ancestralidade dessas comunidades e de sua
produção cultural.

Com a inclusão dos artigos 215 e 216 (Da Cultura) da Constituição Federal do Brasil de
1988, que reconhece oficialmente a contribuição de grupos negros ao patrimônio cultural,
as comunidades negras rurais percebem, de modo mais palpável, a possibilidade de obter,
legalmente, o que já lhes pertencia de forma legítima: a terra onde vivem. É nesse cenário de
luta por condições de vida que a resistência negra vai se constituindo nos espaços urbano e
rural, quer seja pelos caminhos da negociação, quer seja pela via do conflito, de forma cada
vez mais organizada.

Entretanto, como tradicionalmente acontece no Brasil, para o reconhecimento dos direitos


das minorias é necessário todo empenho possível, porque “se viver é lutar, sobreviver e ainda
criar uma cultura com a expressão de liberdade que a cultura negra possui, é lutar dobrado”
(REIS, 1983, p.108).

No bojo da luta do Movimento Negro pela reparação social, especialmente a partir da


promulgação da constituição de 1988, quilombo, uma categoria coletiva (VERAN, 1998, p.199)
que estava no passado, é retomada, e seu conceito ganha novo sentido. O conceito de
quilombo é, nesse momento, repensado e reconstruído politicamente no jogo do poder, abrindo
possibilidades para as populações negras rurais, historicamente marginalizadas, do direito ao
reconhecimento de uma ancestralidade que lhes garantirão benefícios políticos e materiais.

Abordar a ressemantização do conceito de quilombo é importante neste trabalho porque


só a partir daí é possível pensar em Mangal como quilombo, visto que as comunidades
negras de Mangal e Barro Vermelho não aparecem na narrativa de seus moradores, nem em
qualquer outro documento, como tendo sido quilombo a partir dos conceitos apresentados pela
historiografia tradicional – como lugar de negro fugido. Mangal e Barro Vermelho têm todas as
características daquilo que podemos denominar de Terra de Santo como se pode evidenciar
no depoimento do senhor Isauro: “[...] a terra pá Santa quem deu foi uma mulher que tinha
aqui que era de minha família [...].”

79
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO

Diante desse cenário, no estudo dessa comunidade, a memória a ser valorizada não é se o
grupo em questão tem ou não alguma relação com as formações que se encaixam na definição
tradicional de quilombos, que tem em Palmares sua principal referência, outros elementos
precisam ser considerados, especialmente se pensarmos em quilombo como uma categoria
que se justifica para além da definição de um espaço físico, se justifica como um modo de se
portar no mundo diante da experiência da escravidão e da discriminação. Quilombo, nessa
perspectiva, é o lugar da resistência, e resistência não se dá de uma mesma forma em
territórios e contextos diferentes, muito menos entre sujeitos diferentes. Não reconhecer essa
complexidade é desconsiderar a dialética das relações entre os sujeitos e seus contextos e
entre si.

Fora dessa perspectiva, Mangal jamais poderia ser reconhecido como quilombo, pois
mesmo o termo quilombola era desconhecido na Comunidade, como podemos observar na
fala de um dos moradores: “[...] o senhor desculpa as minhas expressão, a minha ingnorança,
o que... que é quilombo? Porque o quilombo que, que... que eu entendo é quilometrage, é
midição”. A fala de Senhorzinho, diante do representante do INCRA, em 1997, deixa claro que
nem sempre se foi quilombola em Mangal/Barro Vermelho e, portanto, Mangal nem sempre foi
quilombo a partir de uma concepção tradicional.

A fala de Senhorzinho se dá exatamente no ano de 1997, em meio à luta pela conquista da


terra. Até então não tinha havido nenhum pronunciamento no sentido de que a desapropriação
da terra se desse com o reconhecimento da Comunidade como remanescente de quilombo, e
os trabalhadores, em sua maioria, nunca tinham ouvido falar em quilombo.

Guilhermina, professora da Comunidade, afirma ter participado, em 1991, de uma reunião


em Bom Jesus da Lapa para discutir questões referentes ao negro na região, quando foi
mencionada a possibilidade de a Comunidade ser remanescente de quilombo, entretanto, o
conteúdo da discussão sequer foi apresentado à professora. Vejamos o que nos apresenta seu
relato, com destaque para a justificativa de Guilhermina para desconsiderar as informações
adquiridas na reunião:

A primeira vez que eu fui assim numa reunião assim que falara sobre o negro, aí
eu acho que nós debatemos sobre isso aqui, o que é ser negro? Como é a relação
entre negros e brancos? E como os negros se relacionam entre si? [...] Só que eu
não lembro mais assim como foi, e daí porque eles me falaram que aqui tinha tudo

80
para ser quilombo, mas só que eu cheguei aqui, tava nessa reunião. Eu mesmo
não falei nada pra ninguém não, porque o pessoal também não ia se interessar,
bem... É, até com isso, acho que eles achava eu não ia chegar ao ponto que chegou.
(GUILHERMINA, 2005, Apud OLIVEIRA,2006. p 77)

A falta de conhecimento por parte de Guilhermina e, possivelmente, a descrença na


possibilidade de que essa informação pudesse trazer algum benefício prático à Comunidade,
fez com que a sua importância fosse minimizada, e o assunto não fosse tratado coletivamente.

Entretanto, as estratégias utilizadas pelos “mangazeiros” a fim de garantirem o seu território


– lugar de histórias, memórias e identidades – não podem deixar de ser consideradas como
resistência, ou ser consideradas uma resistência menor, se tomarmos as formações tradicionais
como referência.

O modo como Mangal garantiu a sobrevivência dos elementos destacados por eles como
fundantes na construção da identidade, tem como cenário um pedaço de terra às margens do
Rio São Francisco, que é o lugar onde se desenvolveram mitos, ritos, fazeres e saberes que,
para eles, dão suporte à identidade do grupo ou à identidade de cada um, faz dele quilombo,
compreendido como lugar de resistência e de transgressão.

Dessa forma, discutir o que é quilombo e a identidade quilombola são necessidades política
e pedagógica, especialmente a partir da aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, a qual tem provocado movimentos políticos
e pedagógicos no interior dessas instituições escolares, muitas vezes por desconhecimento
de seu significado histórico e de sua amplitude. Nesse sentido, contar a história de Mangal e
Barro Vermelho contribui para fortalecer a compreensão do processo histórico de identificação
e reconhecimento das diversas comunidades quilombolas presentes em nosso território.

Consciente do grande número de comunidades quilombolas no território nacional e da


diversidade de realidades dessas comunidades (considerando sua localização geográfica e a
sua relação com o território onde está assentada, onde historicamente produziram uma cultura
material e imaterial), necessita-se tomar o cuidado de não pensar em quilombo no singular.
Faz-se necessário atentar que, ainda que as histórias e modos de viver da comunidade de
Mangal e Barro Vermelho se aproximem da história de outras comunidades quilombolas,
cada história é uma história particular. Mas, é exatamente porque, apesar de diversas, estas
comunidades estão ligadas entre si pelo passado da escravidão que determinou as condições

81
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO

atuais de suas existências, que a história do Mangal torna-se uma referência para outras
realidades.

Mangal reivindicou a identidade quilombola no bojo da luta pela terra, a qual, posterior-
mente, se desdobrou num processo de retomada de sua história e identidade. Foi assim
que a comunidade em pouco mais de dois anos passou de mangazeira a quilombola ao ser
reconhecida como “remanescente” de quilombo em 1998, inclusive pelo reconhecimento de
que não se tornariam quilombolas se não fossem mangazeiros.

ANTES, “MANGAZEIROS”, NEGROS FEITICEIROS; HOJE, QUILOMBO-

LAS: RESSIGNIFICANDO A IDENTIDADE

O povo do Mangal está arraigado naquelas terras, segundo a tradição oral, às margens
do Rio São Francisco, no Município de Sítio do Mato-Estado da Bahia, desde o século XVIII,
onde construíram a experiência histórica de se reproduzirem, de produzirem as condições
de sua existência e de reproduzirem a cultura de seus ancestrais, nem sempre do mesmo
jeito, mas no jogo da vivência e sobrevivência, conservando e/ou reformulando significados.
Segundo os relatos orais, a comunidade surge a partir da escravaria de certo Capitão João,
que teria se apaixonado por uma escrava e que, a pedido dela, teria doado a terra a Nossa
Senhora do Rosário. Desde então, os negros da fazenda passaram a morar no Mangal, lugar
onde se soltava o gado. Na negociação com seu entorno, durante muito tempo, a comunidade
– de origem escrava e adepta a práticas religiosas de matriz africana –, negou sua crença,
tomando a Nossa Senhora do Rosário como padroeira. Ser Mangazeiro era ser reconhecido
pelo entorno como negros feiticeiros.

Muitas histórias à beira do Rio São Francisco foram construídas em torno do que chamo
de hetero-identidade, pois, eles eram reconhecidos pelo outro como mangazeiros, mas não
se auto-reconheciam. Ao contrário, negavam. Nos anos metricconverterProductID90, a90,
a possibilidade de perda da terra, que lhes pertenciam legitimamente, mas não legalmente,
possibilitou a esses negros e negras a (re) conhecerem suas histórias quando, mais uma vez
um outro lhes dizem que são, agora, quilombolas. A partir de então, a comunidade faz um
movimento de retomada de sua história e de suas histórias e, para se tornarem quilombolas,

82
retomam e ressiginificam a identidade mangazeira. Assim, Mangazeiros, que até então não
sabiam o que era quilombo, tornam-se quilombolas.

Um pressuposto que permeia a concepção de identidade nesta discussão é que esta


é construída coletivamente, posto que é “um processo de duas vias em operação tanto no
indivíduo quanto no grupo” (GIRAUDO, 1997, p.12). Embora a internalização dos elementos
constituintes da identidade passe, necessariamente, por um processo de individuação, seria
impossível a construção da identidade sem as marcas de uma experiência coletiva que religue
o passado ao presente, principalmente porque,

Toda e qualquer identidade é construída. A principal questão, na verdade, diz respeito


a, como, a partir de quê, por quem e para que isso acontece. A construção de
identidades vale-se da matéria prima fornecida pela história, geografia, biologia,
instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais,
pelo aparato de poder e revelações de cunho religioso. Porém todos esses materiais
são processados pelo indivíduo, pelos grupos sociais e sociedades que reorganizam
seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em
sua estrutura social, bem como sua visão de tempo e espaço. (CASTELLS, 1999,
p.23)

O existir humano está inserido num contexto marcado por relações de poder que vão
influenciar nas estratégias de luta dos grupos sociais a fim de impor seus interesses e, nesse
sentido, garantir a construção de referências que darão ao grupo condições de sobrevivência,
produção, reprodução e ressignificação das realidades, necessárias enquanto tecidos que
construirão a identidade, que não se baseia na “ficção idealizadora” (APPIAH, 1997), mas na
construção possível dos atores sociais a partir da experiência adquirida na luta constante para
manter-se vivo e, com ele, os elementos constitutivos do EU e do NÓS.

A reflexão acerca da relação da Comunidade com a experiência da escravidão e da


discriminação, a lida na terra e com a terra, bem como a luta por sua conquista, além de seus
ritos e festejos, são os recortes priorizados na análise desse tecido.

O medo de falar da escravidão como forma de evitar com que esta se repita e o silêncio
sobre a questão que desemboca na ignorância das gerações mais jovens sobre o assunto
são evidências do quanto este tema é relevante para se pensar a identidade na comunidade.
Mesmo porque, embora institucionalmente a escravidão tenha sido abolida no Brasil, em
Mangal ainda é atual o seu medo desta, como demonstra Senhorzinho em depoimento: “[...]
fico procupado com essa geração, porque se num souber fazer..., a escravidão, ela pode

83
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO

tornar a vim; e, se ela vim agora, ela vem mais feia, porque ela num cabou, civilizou.” (Apud
OLIVEIRA, 2006, p.91) É importante atentar para as reflexões de Senhorzinho ao se referir
à escravidão. No trecho em que demonstra sua preocupação com o retorno da escravidão,
está evidente que ele não fala da escravidão do passado, mas fica subentendida uma crítica
às condições de vida e trabalho a que são submetidos os negros no Brasil, ao frisar que “[...]
ela num cabou, civilizou” ( Idem). Uma referência explícita às condições de desigualdades, nas
quais estão submetidos os negros.

A origem escrava da comunidade e, por conseguinte, sua afrodescendência, discriminada


pela sociedade local, rendeu aos moradores a “pecha” “mangazeiro”. Este é um termo de
fora da Comunidade. Foi o entorno que assim os denominou de forma preconceituosa. Ser
“mangazeiro” significava ser negro feiticeiro. A forma pejorativa como eram tratados pela
vizinhança, durante muito tempo, fez com que os “mangazeiros” negassem sua origem. Vários
relatos de moradores dão conta da visão que tinha a vizinhança em relação a eles, a exemplo
do relato de Senhorzinho que diz que “[...] naquele tempo era a pobreza, nué? Era a pobreza,
era uns negos, beiçudos, eram preguiçosos, era feiticeiro, entendeu? Só vinha aqui quem tinha
negoço.(SENHORZINHO, 2005,apud OLIVEIRA, p. 91)”

Além da narrativa acima, o relato de Martinho, a seguir, também evidencia o quanto a


relação de Mangal com o seu entorno era marcada pela discriminação, embora tivesse que
manter com este atividades comerciais que assegurassem a sobrevivência do grupo: “porque
até 1998 pa trás, nenhum rapaz do Mangal, aqui, chegava em Gamelêra namorava uma moça.
Chegava em Partinga, namorava?”

A rejeição da vizinhança favoreceu o casamento endogâmico na Comunidade, o que


contribuiu para que vivessem voltados para as relações internas e fortalecessem laços de
solidariedade importantes na história deles como elemento de resistência. Por essa razão, a
relação destes moradores com seu entorno era bastante restrita. Até mesmo o poder público
desconsiderava a existência da Comunidade. “Eles vivia aqui isoladamente, relata Senhorzinho,
parecia uns vereador aqui de quatro em quatro ano, pra pegar os voto. E eles: “voto, voto,
voto, voto”, entendeu? E aí, o galante sumia.”. É nesse contexto conflituoso e marcado por
negociações com seu entorno que os mangazeiros construíram a sua (s) existência (s) e, por
conseguinte sua(s) identidade(s).

84
Nessa perspectiva, a tradição – pensada como “uma forma de comunicação no tempo”
(SODRÉ, 1999, p.103) – assume papel relevante na medida em que se configura numa
experiência partilhada e ressignificada em contextos marcados por esta comunicação entre o
tempo passado e o tempo presente. Nesse sentido, a memória dos mais velhos teve papel
relevante na transmissão e ressignificação de conhecimentos, saberes e valores que fizeram
da Comunidade única, mesmo partilhando características gerais com outras comunidades
negras rurais. A singularidade dela é construída na atualização da experiência que impossibilita
a reprodução fiel do vivido que ganha sentido único no contexto em que se insere, posto que
“a temporal, no mínimo, pode levar a cristalização de valores absolutamente extemporâneos
em relação às características e demandas da contemporaneidade” (MATTOS, 2001, p.230).

O processo de construção das identidades nasce de situações reais de vida. No caso


específico de Mangal, a luta pela conquista da terra é a luta de um grupo que vivenciou, por
um longo tempo, uma história marcada pelo preconceito e pela possibilidade de expulsão de
seu território, solo de origem onde estão enraizadas memórias e histórias relevantes para a
Comunidade.

A terra para a comunidade de Mangal é território para além de espaço físico, é também
espaço político no qual são implementadas ações e negociações que possibilitam ao grupo a
manutenção de valores comunitários que, certamente, garantiram a sobrevivência do grupo em
meio a todos os conflitos vividos. Nesse contexto, “o território aparece assim como um dado
necessário à formação da identidade grupal/individual, ao reconhecimento de si por outros”
(SODRÉ, 1999, p.15).

O modo peculiar com que a Comunidade ocupa a terra é um elemento de identificação e


diferenciação desse espaço. Por ocasião do reconhecimento, o Instituto Nacional de Coloniza-
ção e Reforma Agrária (INCRA) propunha que a comunidade em questão se organizasse de
acordo com o padrão considerado para todos os assentamentos em área de reforma agrária.
Nesse modelo, a divisão do território se daria por lotes individuais onde o cultivo da terra e a
decisão do que plantar seriam uma prerrogativa individual. Tal proposta foi desconsiderada
pelo grupo, que se recusou a lotear a terra nos moldes apresentados pelo INCRA.

Em Mangal, as casas são muito próximas umas das outras, mas nem sempre foi assim;
o território por onde poderiam transitar e explorar, antes do conflito, lhes possibilitavam um

85
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO

maior espaçamento entre as casas. Um elemento importante para compreender a forma de


organização das moradias é o rio. As primeiras habitações foram construídas às margens
deste; próximas umas das outras e próximas ao rio: eis duas referências importantes na
observação do morar em Mangal.

O espaço aparece aí como o resultado do morar. Morar por sua vez não se define como um
mero efeito de um fazer comunitário, mas como algo que indica a própria identidade do grupo.
O que dá identidade a um grupo são as marcas que ele imprime na terra, nas árvores, nos rios
[...] A idéia de território coloca de fato a questão da identidade, por referir-se à demarcação
de um espaço na diferença com outros. Conhecer a exclusividade ou a pertinência de um
determinado grupo implica também localizá-lo territorialmente. (SODRÉ, 1999, p. 22-23)

A terra, que é também território, é o lugar da vida, de simbologias onde se constroem


identidades, é “espaço e lugar, no qual se constrói a percepção de si mesmo e dos demais, os
que aí estão e compartilham a existência. Uma existência sua e de seus iguais” (GUSMÃO,
1999, p.144).

O depoimento de Carlinhos é bastante ilustrativo do que vem a ser o modo como a


Comunidade se relaciona com o seu território: “a coletividade. Porque se não tivesse, nós
tava igual os outros assentamentos. Cada um com seu pedacinho, cada um olhando pro seu
umbigo. Nada de olhar pra ninguém”.

Da terra eles tiram o sustento desde os tempos em que a memória coletiva aponta como o
marco da origem da Comunidade. Segundo essas memórias, o marco delimitador do tempo
originário daquele povo em suas terras é o tempo do cativeiro, tempo do Capitão João. Desde
aquela época, a prática por meio da qual esses indivíduos viabilizavam seu sustento era a lida
na terra. Dona Clara relata como os mais velhos tiravam o sustento, evidenciando a origem
camponesa: “na roça e a inchada na mão, feijão de corda, feijão de arranca, milho, melencia,
abóbora...”.

A cultura era de subsistência e permanece ainda hoje presente no cotidiano do quilombo. O


excedente, quando existia, era vendido para comprar o que não era possível de ser produzido
na Comunidade, a prioridade era o abastecimento desta. Segundo dona Clara, nessa época
“todos comia”:

86
Na roça e a inchada na mão, feijão de corda, feijão de arranca, milho, melencia,
abóbora..., quando dicia, chega dicia, ói, cabeça baixa, pá vender abóbora. Todos
cumia. [...] levar pá rua, pá vender. Pá comprar café, rapadura, era nem açúcar, de
primeiro num usava açúcar, era só rapadura. [...] Só vendia em Paratinga. Na Lapa,
não. (Dona Clara, 2005, Apud OLIVEIRA, 2006, p.95)

A vazante sempre foi o lugar do plantio. A memória dos ancestrais também está enraizada
no modo de produzir materialmente a vida. Ainda hoje, no Mangal, coexistem, de forma
harmoniosa, espaços coletivos e espaços privados. Praticamente não existem cercas no
espaço interno de Mangal, a não ser as que delimitam a antiga sede da fazenda, hoje sede
da Associação Agro-Pastoril Quilombola de Mangal/Barro Vermelho, transformada em espaço
coletivo. Nem mesmo na vazante, onde cada família cultiva seu “pedacinho”, são verificadas
cercas.

Algumas poucas casas possuem uma frágil e pequena cerca para proteger algumas
hortaliças e plantas ornamentais dos animais domésticos, que vagam pelo quilombo compondo
o cenário em meio às atividades cotidianas de homens, mulheres e crianças. São porcos,
galinhas, sacuês, bodes, cabras, cachorros, vacas e bois que dividem o espaço de forma
organizada e perfeitamente coerente com a relação que a Comunidade estabelece com os
elementos que definem aquele território como seu.

A luta por essa terra é, sem dúvida, o elemento principal na construção da identidade
quilombola dos moradores do Mangal. Em 1997, quando os moradores do Mangal iniciam o
confronto com o Grupo Aliança, com o intuito de conquistar a posse da terra, eles eram sim-
plesmente os negros do Mangal. Alguns deles, hoje lideranças, como Senhorzinho, Carlinhos e
Caboje, (os dois primeiros já não moravam na comunidade há algum tempo) buscavam junto a
outros trabalhadores reivindicar um pedaço de terra de onde pudessem tirar o sustento. A luta
inicial foi por um pedaço de terra na Fazenda Vale Verde, juntamente com outros trabalhadores
rurais.

A negativa desses trabalhadores em inseri-los na luta, e a provocação de que eles tinham


terra, os forçaram a se organizarem para conquistar a fazenda. Até então conquistar a terra
não tinha relação direta com tornar-se quilombola. O depoimento de Caboje esclarece bem o
caminho e as razões de tornar-se quilombola no Mangal:

Eu tinha um colega que falava nesse negoço de quilombo, mas ele não explicava o

87
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO

que é que significava quilombo, isso era nessa faixa aí de 80, por aí. Aí, eu fiquei
pensando assim, quilombola... Só que ele disse que o processo ia ser lento, mas vale
a pena. Eu disse: – Rapaz, sei não!. Lá na hora da reunião também num dei opinião,
fiquei quieto. Quando foi um dia, cheguei em casa e falei: – E esse negoço que irmã
Míria falou que aqui é remanescente de quilombo, num demora muito não? Já que a
gente tá na luta pra ter um coisa agora, esse trem demora. Hum! Eu acho que eu
sou contra esse trem. Eu acho que sou contra (risos). Antes ser assentamento de
reforma agrária, diz que anda mais ligeiro. Ele disse: “ – Moço, uns diz que é bom”! –
Moço, mas isso demora demais. Aí disse: “ Não, nós vamos ter que esperar”. Aí um
dia a CPT me chamou e me disse: “ – Não, é assim, assim, assim, vale a pena você
esperar”. Já que vale a pena esperar... Ele falou que a gente ia receber uma terra, e
aí não ia comprar a terra de ninguém, ia receber uma coisa que era nossa, que foi
nossa, dos antepassados, que foi tomado; então, nós vamos mostrar ter esse direito.
Aí pense: “– Já que é assim, então... o jeito é esperar”. Aí a gente, já tava animado
e a gente começou a animar mais, aí a irmã Míria diz: “– Já que aconteceu isso, o
certo agora é encaminhar o negoço, ser remanescente de quilombo”. Quando foi com
poucos dias, o pessoal do INCRA, vêi pra fazer o relatório e falou; “– Rapaz, ela vai
ser desapropriada. Vocês tá com tudo nas mãos”. (CABOJE, 2005 apud OLIVEIRA,
2006, p.96)

Se para conquistar a terra, era preciso tornar-se quilombola, isso seria feito, embora os
moradores não tivessem noção alguma do que viria a ser quilombo. Até mesmo a professora da
comunidade confessa sua ignorância no tema: “[...] pra lhe dizer a verdade, eu num sabia nem
o que era quilombo”. Entretanto, considerando que as identidades são políticas e atendem uma
demanda da contemporaneidade, podemos afirmar que a identidade quilombola do Mangal é
legítima. Foram as demandas concretas do contexto social, econômico, político e cultural no
qual estavam inseridos que impulsionaram esses indivíduos, tanto a assumir como a negar
uma identidade. Não se pode perder de vista que durante muito tempo, em função de uma
outra demanda, os moradores do mangal rejeitaram ser “mangazeiros” e, por conseguinte,
toda a carga histórico-cultural que dava significado ao termo:

[...] quando eu viajei daqui pra Juazeiro mais minha mãe de vapor (pausa), ela me
falou: “Se alguém perguntar de onde você é, você fala que é de Paratinga, não é do
Mangal não, você não é do Mangal” Puxa! E eu nunca perguntei ela porquê, mais
depois que eu vim saber porque era. [...] Porque dizia que o Mangal era feiticeiro, o
povo era, tá entendendo? (CARLINHOS,2005 apud OLIVEIRA, 2006, p. 97)

Tornar-se quilombola, a partir de uma necessidade imediata, para fazer valer um direito
constitucional de acesso à terra, é absolutamente coerente com os preceitos da modernidade.
Nada mais é do que uma estratégia que garantirá o cumprimento de uma promessa. Nesse
sentido,

88
A política de realização praticada pelos descendentes dos escravos exige, como fez
Delany, que a sociedade civil burguesa cumpra as promessas de sua própria retórica.
[...] Ela é imanente à modernidade e um elemento de seu contradiscurso valioso
demais para ser sistematicamente ignorado. (GILROY, 2001, p. 96)

A identidade quilombola utilizada como instrumento para a posse da terra vai possibilitar a
esses indivíduos repensarem, inclusive, a negação da identidade “mangazeira” e ressignificá-la,
e o que antes era motivo de vergonha, é hoje razão suficiente para se orgulhar:

Eu não gostava não, quando eu saía daqui pra outro lugar, eu não falava que eu
era daqui. Aí, oh! Hoje eu tenho o maior orgulho de falar: olha! Eu sou do Mangal,
sou de lá do quilombo, a terra dos negros. Eu tenho mesmo, muito, eu tenho, mas
antigamente eu não gostava não. (FARIA, Guilhermina, 2005 apud OLIVEIRA, 2006,
p. 98)

Isso só é possível porque no plano prático a identidade quilombola devolveu àqueles negros
não apenas a terra a que tinham direito, mas com ela veio a dignidade, a liberdade e o trabalho,
elementos suficientes para que possam se colocar em pé de igualdade com o seu entorno,
agora dentro de um espaço que, embora eles sempre tenham sentido como seu, não podiam,
até então, usufruir.

Os benefícios trazidos pela nova condição de proprietários da terra caminham lado a lado
com o orgulho de ser quilombola. É inegável que essa nova condição trouxe a esses indivíduos
direitos que possivelmente jamais usufruiriam fora desta. Sair de metricconverterProductID700
metros700 metros de terra – sem direito à caça, à pesca e ao plantio – para oito mil hectares
de terra dos quais são proprietários, é motivo suficiente para que se incorpore uma identidade.
A narrativa de Carlinhos nos mostra de forma significativa a transformação porque passaram
esses indivíduos após o reconhecimento. O tempo agora é o tempo da liberdade, da alegria,
da fartura, da independência:

É. Então era uma coisa... é triste. Agora não, estou alegre [...] você chega na casa
de um (pausa) trabalhador. Cheguei na casa de Barriga, ele me deu um copo de
vitamina (pausa)[...] Tem um velhim que chega assim e fala: – “chegava aqui no
Mangal procurava um ovo, pra cumer e não achava”, tá entendendo! [...] não tinha
condições da gente criar nada, NE?. Então, o exemplo é esse que a gente hoje é...
consquistemos nosso espaço. Nós tem hoje, NE? Se eu quiser é... oferecer um bode,
um carneiro pra você, pra gente amanhã almoçar, eu tenho condições de dar. Graças
a Deus nós tem a nossa criação, NE? (CARLINHOS, 2005 apud OLIVEIRA, 2006,
p.99 )

89
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO

É o tempo deles. Que decidem a hora, o dia, onde, como e para que trabalhar. Agora não
existem mais senhores nem patrão. O trabalho é livre e autônomo. Pelo menos nesse aspecto
é possível considerá-los como sujeitos plenos:

(Antes) Se quisesse cumer tinha que trabalhar... e hoje, não! Você vê, você vai ficar
aqui uma semana, duas semana, você vai vê... Comer o estilo do povo. Tem uns
que num vai; outros fica no bar, em casa deitado, mas... como ta dizendo: “Eu num
vô que aqui é meu”. Se fosse di antes, ele tinha que ir, que ir porque, ele tinha que
trabalhar pra cumer. Como ele ia cumer? (CARLINHOS, 2005 apud OLIVEIRA, 2006,
p. 99)

Os elementos considerados pelo Laudo Antropológico, exigido pela Fundação Palmares a


fim de reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo, sempre existiram
na comunidade tais: sua constituição baseada em laços de parentesco; atividade produtiva
concentrada quase que exclusivamente na agricultura familiar de subsistência e a criação de
animais de pequeno porte; a memória do cativeiro; as festividades que trazem em sua memória
de práticas que remetem a uma origem africana, como a Roda de São Gonçalo e a Marujada;
a convivência entre espaços coletivos, e particulares e um sentido muito forte e solidário de
comunalidade. Sendo assim, o que os fazem diferentes face à nova realidade?

A questão é que a partir da luta pelo reconhecimento, esses elementos ganham sentido
enquanto arma política na construção de uma identidade. Então, “aquilo que é assim porque
sempre foi”,

a tradição cultural serve, por assim dizer, de “porão”, de reservatório onde irão buscar,
à medida das necessidades no novo meio, traços culturais isolados do todo, que
servirão essencialmente como sinais diacríticos para uma identificação étnica. A
tradição cultural seria, assim, manipulada para novos fins, e não uma instância
determinante. (CUNHA, 1985, p. 88)

Esses indivíduos são quilombolas porque assim se identificam, e o prestígio social dessa
nova identidade faz com que assim sejam reconhecidos em seu entorno. É na junção dessas
duas identificações – uma interna, outra externa – que eles, “mangazeiros”, negros feiticeiros
sem menor prestígio se descobrem quilombolas. Descobrem-se mesmo, porque sua identidade
foi soterrada pelo racismo institucional que negou, historicamente, as condições para sua
afirmação.

Esse diferencial está expresso de forma clara nas narrativas que se seguem:

90
Eu tenho maior orgulho. Vem o carro dos quilombolas, como eu vejo na Gamelêra, né,
é em Bom Jesus da Lapa. Vem o carro dos quilombolas. Porque antigamente, nós
nunca teve... hoje nós levemo o nome de quilombo, quilombola, nué?. Eu quando...
a gente chega na Lapa, todo mundo fica olhando, assim...[...]” (CARLINHOS, 2005
apud OLIVEIRA, 2006, p. 100)

A maioria, tudo que ser parente dos mangazeiro. A gente não tem nada, mas temo
ao meno o nome, né? E aí, aí, antigamente não. Ah! Ninguém quer ir no Mangal,
não. Ninguém quer misturar com os nêgo do Mangal não. Ficava separado... Se é do
Mangal e chegasse em Paratinga, algumas pessoas...! Chegava na Lapa do mesmo
jeito. E hoje não, tá tudo muderno [...]. (CHICÃO, 2005 apud OLIVEIRA, 2006, p.
100)

Nesse processo, a inexistência de políticas educacionais voltadas para a valorização da


população negra no processo formativo da sociedade brasileira e, ainda pior, a inferiorização e
até criminalização da cultura afro-brasileira, passando por um “esquecimento voluntário”, do
negro no espaço escolar, contribuíram fortemente para a construção de estereótipos, para a
desvalorização do negro em nossa sociedade, causando prejuízos não apenas para os negros
– as maiores vítimas nesse processo. Mas também para os não negros que, em função do
racismo, do preconceito explícito ou simbólico, por afirmação ou por negação, perderam a
oportunidade de construir uma relação, deferente da existente, com seus negros pares.

CONCLUSÃO

Creio que a discussão sobre identidade quilombola em Mangal pode dar uma contribuição
significativa para pensarmos identidade como categoria política, motivada pelas demandas
do contexto no qual estão inseridos os sujeitos. Esse exercício nos convida a alargarmos
nossas concepções acerca do tema, valorizando os vários modos de construção de quilombos
e quilombolas presentes na história das comunidades negras rurais que, bem mais do que as
populações negras urbanas, ficaram invisíveis aos olhos da sociedade envolvente, impossibili-
tadas de contar suas histórias que, certamente, contribuiriam para enriquecer o debate sobre
a história dos negros escravizados e seus descendentes na diáspora. As histórias e as lutas
das comunidades quilombolas são tantas quantas são estas comunidades. Quilombos que
têm suas histórias enraizadas no confronto direto com a sociedade senhorial; quilombos que
construíram sua resistência na negociação cotidiana com a sociedade escravistas; quilombos
que se organizaram no pós-escravidão e mantiveram vivas as histórias e tradições de seus

91
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO

ancestrais; quilombos do campo, da cidade, os quais praticam cotidianamente quilombagem


que para Clovis Moura,

é um processo social contínuo de protesto que se desenvolve dentro da estrutura


escravista, solapando-a histórica, econômica, étnica, e socialmente a partir de seu
centro, isto é , a produção [...] um continuum que só termina com a abolição do
sistema escravista colonial.” (2001,p.112)

Entretanto, se considerarmos que estas formas diferenciadas de resistência contribuíram,


ao seu modo, para minar a sociedade senhorial – que não se encerra com o fim da escravidão
–, podemos admitir que aí também se praticou a “quilombagem”. As “Terras de Santo” como
Mangal são o resultado de uma resistência negociada que transgride o princípio da sociedade
escravagista em que a prerrogativa da posse da terra era exclusividade do senhor. Nessa
mesma direção, as diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Curricular Quilombola
podem ser consideradas como uma expressão da quilombagem, visto que o fim do regime
de escravidão não significou o fim do racismo e do preconceito racial no Brasil, outras lutas
necessitaram e necessitam ser implementadas cotidianamente pela população negra em busca
de equidade, igualdade e reconhecimento.

O esforço feito nesse trabalho foi no sentido de demonstrar que ampliar a compreensão do
conceito de quilombo, com vistas a dar conta de articular um continuum entre as lutas contra a
escravidão do Brasil, é necessária para atender, inclusive, as demandas por reparação social a
que tem direito a população afro-brasileira. Os artigos 215 e 216 (Da Cultura), da Constituição
Federal do Brasil, tornam legal o que já era de domínio popular ao reconhecer a contribuição
dos negros na construção do patrimônio cultural da nação, além da garantia do exercício dos
direitos culturais afro-brasileiros; entretanto, historicamente, os negros ficaram invisíveis na
sociedade brasileira, apesar de sua maioria absoluta em termos quantitativos na população do
país.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação


Básica são mais um instrumento na luta contra o racismo, contra o preconceito, bem como por
reparação histórica e social. Sua implementação é instrumento potencializador na construção
de uma história diferente para a população brasileira e na construção de uma outra educação
nos quilombos. Para tanto, faz-se necessário a instrumentalização didático pedagógica de
suas escolas, investir na formação dos professores que atuam nessas comunidades e, princi-

92
palmente, criar as condições para a formação de quadros qualificados que estejam enraizados
nos quilombos.

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95
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS
QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS

Roberto de Souza Santos1

O texto tem por objetivo levantar um debate teórico-metodológico sobre o tema educação
quilombola e as práticas pedagógicas no ensino de Geografia a partir de uma pedagogia
libertária e libertadora. Para executar este objetivo começamos pela concepção de educar.
Educar é ensinar, aprender, auxiliar, conviver, ajudar, e, sobretudo, permitir as pessoas fazer
uma leitura do mundo com reflexão e de forma crítica. A permitir a leitura do mundo é uma
forma de compreender o mundo. Paulo Freire com sua célebre frase “a leitura do mundo
precede a leitura da palavra”, com isso, Freire nos ensina que a realidade vivida é a base
para a construção de conhecimento. Com este pressuposto, o educando é compreendido
a partir do seu meio social e cultural. É a partir desta concepção sobre educação de Paulo
Freire que trabalhamos e executamos um projeto de extensão (Educação Escolar Quilombola
- O Uso Pedagógico dos Recursos de Tecnologia Assistiva – território e cultura quilombola)
em educação quilombola no Polo Regional de Porto Nacional-TO entre 2014 e 2015. Este
projeto foi um curso de aperfeiçoamento para comunidades quilombolas na comunidade de
Malhadinha em Brejinho de Nazaré-TO e Ipueiras-TO.
1
Professor Doutor Adjunto IV da Universidade Federal do Tocantins (Campus Porto Nacional) no Mestrado de
Geografia e Curso de Geografia da UFT.

97
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS

Trabalhamos quatro módulos: Território e Cultura de Quilombos (prof. Elizeu Ribeiro


Lira); Abordagens Pedagógicas para a Educação Quilombola (Prof. Vilson Pereira dos San-
tos); Seminário Temático (Professora Maiara Muniz); Metodologias de Pesquisas em Quilom-
bos/Comunidades Remanescentes de Quilombos (Professor Ariel Nascimento) e Construção
de Projetos de Intervenção Pedagógica (prof. José Pedro Cabreira Cabral e professora Fer-
nanda Beirão). As aulas foram auxiliadas com textos e análises que propiciaram a reflexão
acerca do tema abordado. Com isso, criou um ambiente favorável à oferta de mecanismos
e ferramentas para os professores aplicarem em suas disciplinas no cotidiano da sala de
aula. Adotou-se também os seminários temáticos com o objetivo de expor ideias, dúvidas
e colaborações. A proposta do curso foi também estimular a elaboração de projetos para
intervenção nas escolas quilombolas com a finalidade de levar os professores/quilombolas a
criar mecanismos para maior integração entre a escola, comunidade e movimentos sociais
como objetivo de fomentar a participação coletiva onde docentes, gestores/as, pedagogos/as e
estudantes dialoguem com as lideranças quilombolas e pessoas da comunidade.

O curso foi estruturado de forma que garanta a execução dos conteúdos e a metodologia
de ensino usada na formação dos professores e, que possam oportunizar aos cursistas a
elaboração de intervenção didático-pedagógica. Os professores pesquisadores fizeram um
trabalho fecundo para o processo ensino-aprendizagem nas comunidades polos do projeto.
Foram utilizados instrumentos mais eficazes para fomentar o processo ensino-aprendizagem
tais como o data show que pode ilustrar o conteúdo trabalhado de forma compreensível para
os cursistas. Os professores fizeram trabalhos de grupo para estimular e motivar o interesse
dos cursistas para com o conteúdo trabalhado. As manifestações culturais afrodescendentes
foram ilustradas e debatidas através de textos, fotos e vídeos.

Os cursistas foram pessoas da comunidade com curso superior, ensino médio ou com
ensino fundamental. O curso teve 10% das matrículas para líderes comunitários com o
objetivo de aprimorar e instrui-los para o exercício do trabalho comunitário e político para
defender os interesses da comunidade. Tivemos cursista professores que trabalham com
alunos quilombolas na comunidade. A ideia foi aperfeiçoar e aprimorar o conhecimento destes
professores para trabalhar em sua comunidade. Outros cursistas da comunidade que fizeram
o curso são camponeses que trabalham dentro da comunidade. Essa diversidade de perfil

98
de cursistas foi um desafio para nós ministrarmos os módulos. A equipe coordenadora e
pedagógica teve que orientar os tutores e professores para desenvolver os trabalhos ensino-
aprendizagem de forma que fosse capaz que todos os cursistas tivessem compreensão dos
conteúdos ministrados.

Outro desafio foi trabalhar os conteúdos ministrados em uma perspectiva da pedagogia


libertadora e libertaria. Para isso, criamos o módulo com conteúdos voltados para a temática
Educação libertária – a prática do pensar como emancipação social – ministrado pelo professor
Ariel Elias do Nascimento, que procurou abordar sobre o significado de metodologia de
pesquisa. Entendendo que a pesquisa possui um método e, que este seja pensado segundo
as realidades locais de cada comunidade e refletir sobre as variadas formas das realidades das
comunidades quilombolas. Como todo método de pesquisa implica um certo conhecimento
ou pensamento cartesianos, procuramos iniciar as abordagens metodológicas através da
elaboração e discussão de projetos; a ideia não foi apresentar ou conceber projetos científicos,
mas antes de mais nada, fixar o conceito projeto como uma forma de pensar a realidade
vivida, demonstrando como é possível, através do método científico, conceber um projeto
transformador das realidades que se apresentam na dinâmica do sistema endógeno destas
comunidades.

Para trabalhar o conteúdo, os professores e tutores utilizaram várias metodologias para


conduzir o processo ensino-aprendizagem de forma acessível e compreensível. Para ilustrar e
explicar o conteúdo foi utilizados vídeos, fotos, filmes, documentários e as apostilas elaboradas
pela equipe coordenadora e pedagógica. Foi possível colher os frutos previstos na proposta
inicial do projeto. A realidade encontrada pela equipe demonstrou interesse e motivação para
executar e oportunizar o conhecimento teórico e empírico proposto pelo projeto durante toda
a sua execução. Durante o curso, experiências práticas foram confrontadas com o saber
teórico e empírico junto às comunidades envolvidas no projeto. Os professores pesquisadores
procuraram fomentar o debate e esclarecimentos sobre os direitos quilombolas, assegurados na
Constituição Federal Brasileira de 1988, que preconiza o direito à dignidade da pessoa humana,
a cooperação entre os povos e etnias. A participação e motivação dos cursistas nas disciplinas
ministradas foi algo possível constatar. Tivemos que adequar o conteúdo aos nossos objetivos
de prática pedagógica libertaria. Não precisamos definir para os cursistas o que é pedagogia

99
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS

libertaria, mas precisamos adequar o nosso posicionamento político-pedagógico ao trabalhar


os conteúdos pautados. Não tivemos dificuldades quanto aos cursistas compreenderem o
conteúdo trabalhado, pois foi um curso de aperfeiçoamento para os membros das comunidades
sem muito aprofundamento teórico-metodológico das formalidades da academia.

PROBLEMATIZANDO OS MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO DAS CORRENTES

DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO

Para analisar as práticas pedagógicas em escolas quilombolas a partir da ciência geográ-


fica, temos algumas opções metodológicas para realizar este trabalho. Temos a corrente do
pensamento da Geografia Tradicional que procura analisar o espaço a partir de um esboço
teórico-metodológico positivista principalmente se tratando dos ensaios de Ratzel. Esta cor-
rente representa o método do positivismo tradicional que procura ler o espaço geográfico a
partir do olhar metodológico das ciências naturais. O espaço é visto como algo que neces-
sariamente, deve passar por estágios de desenvolvimento. É uma visão do espaço a partir
das influencias da teoria de evolução de Darwin, uma ideia ligada as teses evolucionistas.
Nesta interpretação do espaço, não há entendimento para analisar as contradições sociais
nele existente.

Ainda dentro da corrente da Geografia Tradicional, temos os ensaios teórico-metodológicos


de La la Blache que procura analisar o espaço geográfico a partir da cultura em uma perspectiva
histórica. As ideias de La Blache permitem uma leitura do espaço geográfico levando em
conta os agrupamentos humanos. Este geógrafo não procurou analisar os espaços urbanos
de sua época, sabendo que em sua vivência na França entre 1845 e 1918, já existia grandes
centro urbanos como Londres, Paris, Roma, etc. Não analisou a sociedade de classes do
seu tempo. Ou seja, negligenciou as análises do espaço como um produto das relações
sociais de produção dentro do capitalismo. Seu foco foi construir um esboço teórico sobre
o conceito de região geográfica, mas sem levar em conta o seu vínculo com a política, a
geopolítica e, sobretudo, analisar a região em plano mais global. Suas análises tiveram o
foco de compreender os lugares de forma isolada do contexto social, político e geopolítico do
sistema capitalista. Esta corrente do pensamento geográfico, ao nosso ver, não será muito útil

100
para analisar a realidade social, cultural e política dos territórios quilombolas.

Outra corrente do pensamento geográfico que podemos citar é a Nova Geografia que
baseou toda a sua interpretação do espaço em uma linguagem matemática. Aqui, o espaço
é interpretado e analisado simplesmente a partir de um trabalho de mensuração através de
fórmulas, desvio padrão, medianas. O método de interpretação adotado pela Nova Geografia
foi o que chamamos de neopositivismo que se baseia em leis gerais e acredita no princípio
da neutralidade científica. Enquanto a Geografia Tradicional adotou o positivismo tradicional
ratzeliano como uma linguagem de interpretação para a ciência geográfica pautada nas
ciências naturais, uma mistura dos métodos destas ciências com a ciência geográfica, a Nova
Geografia pautou em atuar em uma linguagem interpretativa na matemática. Esse método de
interpretar reduzido em quantificar a realidade espacial e territorial, não dar conta de fazer uma
análise profunda da complexidade territorial quilombola.

Temos outros métodos de interpretação como o fenomenológico, um instrumento teórico-


metodológico da Geografia Cultural e Humanística que procura analisar o espaço geográfico
partir das dimensões da subjetividade do indivíduo. É uma análise do indivíduo fora da
sociedade classista. O método fenomenológico procura compreender o espaço geográfico
levando em conta as relações do indivíduo com espaço. O foco da Geografia Cultural é a cultura
e suas relações como meio ambiente. Sabemos que cultura dentro da sociedade capitalista é
condicionada pela lógica da sociedade de classes. Esta interpretação teórico-metodológica
adota o princípio de interpretação do espaço pelo viés da Psicologia. Em outras palavras,
podemos dizer que ela se contenta com as análises do indivíduo com o espaço subjetivo, com
as análises do indivíduo e sua percepção do espaço.

Analisa os fenômenos “aqui e agora” sem um embasamento analítico mais crítico do


contexto dos fatos geográficos dentro dos condicionamentos políticos, sociais e econômi-
cos do modo de produção capitalista. Em função deste procedimento teórico-metodológico,
esquece-se de analisar o ser social. Todos nós somos indivíduos no espaço, mas socialmente
somos muitos diferentes, pertencemos classes sociais diferentes. Para analisar os territórios
quilombolas, a fenomenologia é coerente quando se trata da cultura e da percepção dos fenô-
menos, entretanto, quando se trata de um território quilombola inserido em mundo capitalista
que estabelece uma assimetria social muito grande e que a aristocracia agrária estabelece

101
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS

relações de dominação, exploração e fazer uma análise dos membros e pessoas como ser
social que atuam em uma sociedade social e economicamente contraditória, essa análise não
se consubstancia na Geografia Cultural ou Humanística.

Outo método que a ciência geográfica procura fazer posse para analisar o espaço geográ-
fico é o método do materialismo histórico dialético. O materialismo dialético é um método
que coloca os geógrafos em um desafio em fazer uma leitura do espaço e dos territórios de
forma crítica e sempre levantando questionamentos sobre a realidade social estabelecida
no espaço. O espaço e o território para o materialismo histórico dialético devem ser com-
preendidos levando em contas as contradições sociais materializadas pelo modo de produção.
Neste método, a interpretação do espaço começa fazer uma leitura do ser social e procura
compreender o espaço a partir de uma sociedade constituída por classes sociais, em que
o espaço é compreendido a partir da luta de classes e o espaço é visto como resultado de
uma lógica contraditória e desigual. O jogo do poder não ocorre forma de natural, mas há
sim de um jogo de interesses conflitantes de que há uma manutenção do espaço e de sua
construção. Entendemos que este método de interpretação seja mais adequado para fazer
uma análise dos territórios quilombolas que procura compreender as contradições sociais, os
conflitos sociais, a luta de classes presentes no seio social dos quilombos.

PEDAGOGIA LIBERTADORA E LIBERTARIA: UMA ALTERNATIVA PARA A

EDUCAÇÃO QUILOMBOLA

Para se debater sobre uma educação quilombola dentro de uma pedagogia libertária ou
libertadora, é necessário a base de um referencial de interpretação teórico-metodológico que
possibilite uma visão crítica e questionadora dos princípios conservadores da sociedade de
classes onde os territórios quilombolas estão inseridos. O método de interpretação que mais
aproxima desta tese é o materialismo histórico dialético baseado nos ensaios teóricos de Karl
Marx. Em outras palavras, podemos dizer que para se trabalhar a pedagogia libertadora e
libertária, é fundamental fazer esse procedimento analítico a partir do método materialismo
histórico dialético.

Mas para debater sobre o tema educação quilombola dentro de uma perspectiva da

102
pedagogia libertária e libertadora, é necessário termos um entendimento do que é pedagogia
libertaria e pedagogia libertadora. Vários são os pedagogos que trabalham os conceitos
teóricos e metodológicos da pedagogia libertadora e libertária. Entre eles, podemos destacar
José Carlos Libâneo, Moacir Gadotti e Paulo Freire e muitos outros. Segundo Oliveira (2011), as
formas de pedagogias conservadoras, necessariamente, surgem as pedagogias consideradas
críticas, como por exemplo, a pedagogia do oprimido (Paulo Freire), a pedagogia radical
(Giroux), a pedagogia do conflito (Gadotti), a pedagogia libertária (Ferrer). A pedagogia do
oprimido de Paulo Freire trata de uma pedagogia revolucionária que se preocupa em combater
os princípios pedagógicos conservadores trabalhados pela burguesia capitalista.

A pedagogia do conflito levantada pelo professor Moacir Gadotti trata-se de uma pedagogia
que coloca em pauta que o educador acrescenta a consciência da contradição, sua tarefa
é a de quem incomoda e ativa conflitos para a sua superação. Segundo Azevedo (2009, p.
23), essa prática consciente de uma pedagogia é que Gadotti denomina de Pedagogia do
Conflito. A pedagogia do conflito para este autor diz que não existe uma educação neutra. Ou
seja, toda vez que o educador evita a questão política da educação, a vinculação entre o ato
político e o ato educativo está defendendo uma certa política, com isso, camufla ingenuamente
ou conscientemente essa vinculação. A tese de Moacir Gadotti (1985) defende que em
uma sociedade de classes, temos uma educação de classes, isto é, da classe dominante:
da classe economicamente dominante. Para ele, educar em uma sociedade em conflito,
necessariamente, é uma tarefa e uma atitude de optar um partido ou por uma posição político-
ideológica. Devemos estar em sintonia com o momento histórico em que vivemos, caso
contrário, não somos capazes de educar. A partir desta tese podemos afirmar que não
podemos ser “neutro” perante aos conflitos contraditórios da sociedade de classes.

A pedagogia radical de Henry Giroux (1986) em Teoria Crítica e Resistência em Educação:


para além das teorias da reprodução, parte da construção de uma pedagogia radical que
se vincule à prática educacional em que se supõe uma leitura crítica capaz de explicitar a
articulação dialética entre as estruturas de dominação e os atos de resistência e transformação.
Drawin (1987) coloca que do ponto de vista estritamente teórico, isto significa pensar, a partir
das exigências da prática educacional, uma alternativa capaz de superar os impasses de dois
paradigmas conflitantes: o fenomenológico-culturalista e o positivista-estruturalista. Ou seja,

103
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS

não se pode resgatar o sujeito histórico, agente de transformação, senão situando-o na lógica
dos mecanismos estruturais de dominação. A pedagogia radical no mínimo deve adotar um
procedimento teórico-metodológico que questione os paradigmas fenomenológico-cultural e o
positivista-estruturalista, pois, esses paradigmas não procuram desmitificar os princípios da
pedagogia conservadora implantada pelo Estado Moderno, pelo contrário, não questiona este
princípios.

Segundo Gonçalves (2008), o estudo da pedagogia libertária, utilizada pelos anarquistas,


tem sido negligenciada, vítima de preconceitos que remetem à palavra anarquia. O referido
autor coloca que Francisco Ferrer y Guardia2 um educador espanhol teve suas ideias pedagógi-
cas aplicadas em solo brasileiro. As ideias deste pensador representam aspectos educacionais
que são considerados críticos e procuram formar homens e mulheres livres capazes de desve-
lar a ideologia que os circunda. Sua pedagogia usou a escola como instrumento para deter o
poder. Para isso, precisou de uma escola laica e não estatal totalmente contrária à interferência
da Igreja ou do Estado em sua administração, visto que, na sua opinião, a escola como estava
posta, servia ao poder e não libertava o homem. Para Gonçalves (2008), a posição pedagógica
de Ferrer como anarquista era evidente, que trabalhou com obras de pensadores libertários
europeus a fim de formar militantes operários e sindicalistas.

Ao desenvolver seu método, Ferrer teve influências do pensamento do filósofo Rousseau,


que se opunha ao processo de aprendizagem aplicado pelos educadores religiosos. “A
Pedagogia ativa” de Rosseau defendia a experiência e descoberta individual na qual o aluno
iria construir seu próprio conhecimento. Os processos educativos, assim como as relações
sociais, têm sempre a noção de liberdade como direito e dever do homem no pensamento
de Rousseau, afirma Gonçalves (2008). Porém, diferentemente da educação dos liberais, a
educação libertária de Ferrer viria a ser de cunho social e coletivo, criticando o capitalismo
um modo de produção que gera desigualdades sociais. Para este pensador a educação deve
formar indivíduos combativos, justos, verídicos, livre de preconceitos, que reivindiquem seus
direitos. Para o referido autor, o plano educacional de Ferrer incluía a todos, independente de
sexo ou classe social, já que na opinião dele, não pode haver um monopólio do conhecimento.

A pedagogia libertária se posiciona contra qualquer tipo de poder ou autoridade. Segundo

2
Ferrer y Guardia, Francisco. The Origin and ideals of the modern school. Palala Press: Hardcover, 2016.

104
Pascal (2016), um dos aspectos relevante da ação anarquista no Brasil foi a pedagogia
libertária. Pascal ressalta que a pedagogia anarquista procura denunciar a escola oficial
como reprodutora dos interesses da Igreja e do Estado enquanto é capaz de promover uma
renovação dos métodos e dos valores. No Brasil, as escolas de educação libertária tem
o objetivo de contestar a pedagogia tradicional (conservadora). A referida autora coloca
que a pedagogia libertária tem como projeto reabilitar a humanidade para uma vida coletiva,
preservando a igualdade de gênero, garantindo o espírito crítico, abrindo caminho para a
transformação social. Esta pedagogia constituiu as raízes da pedagogia social no limiar do
século XX.

A pedagogia libertária adota a autogestão como mecanismo de desenvolver um trabalho


livre da alienação e da dominação impostas pela sociedade burguesa. Isso significa dizer que
a autogestão é um projeto político que se caracteriza enquanto uma relação social. Segundo
Viana (2008, p. 41). “na autogestão não há o controle da atividade de um indivíduo por outro,
como ocorre na alienação, e sim um controle do indivíduo por ele mesmo no interior de uma
coletividade que se autogoverna”. Segundo Oliveira (2011), a autogestão é um ideal para toda
a sociedade e, quando adotada pela educação que acontece em todo o lugar onde se pode
aprender, supõe que a gestão da educação pelos envolvidos no processo educacional; significa
a devolução do processo de aprendizagem às comunidades onde o indivíduo se desenvolve
(bairro, local de trabalho). Este é um procedimento pedagógico que podemos adotar para
colocar em prática pedagógica para a educação quilombola.

A pedagogia conservadora ou a pedagogia oficialmente adotada nas escolas não veem


com bons olhos a pedagogia libertaria. Kassick (2008, p. 137) afirma que “a história oficial da
pedagogia se fez omissa em relação à contribuição do Pensamento Pedagógico Libertário”.
Isso significa dizer que para desenvolver uma pedagogia libertária não é fácil, pois o Estado
reconhece que este procedimento pedagógico questiona a pedagogia estabelecida nos padrões
burgueses, e, perante a esta situação o Estado faz de todas as formas para dificultar a
implantação da pedagogia libertaria. Entretanto, nós professores do ensino superior, médio e
fundamental temos a responsabilidade de preencher esta lacuna desenvolvendo trabalhos e
publicando artigos científicos em revistas, em livros e nos mais diversos canais de divulgação
da informação. Quando refiro a nós professores, estou recomendando a todos os professores

105
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS

seja pedagogos ou não. Nós que somos professores de Geografia temos essa missão.

A pedagogia libertária é uma pedagogia que busca a liberdade dentro do sistema escolar,
em que o ser social é visto como produto social. O papel da escola dentro de uma perspectiva
das doutrinas da pedagogia libertária é o de exercer uma transformação na personalidade dos
alunos num sentido libertário. É uma pedagogia progressista que pretende avançar no debate
educacional e superar as racionalidades da pedagogia conservadora do Estado Moderno.
Pressupõe e indica tendências de uma análise crítica da realidade social vigente visando
a uma escola libertadora. Propõe uma pedagogia que vai além dos limites da pedagogia,
colocando em pauta para discutir também as áreas do campo da economia, da política e das
ciências sociais.

Trabalhamos a pedagogia libertadora dos conteúdos ministrados juntamente com os nos-


sos cursistas, a partir dessa concepção pedagógica descrita nos parágrafos anteriores. O
intuito foi aprimorar os conhecimentos destes cursistas em uma visão pela qual seja possível
discernir que as comunidades quilombolas estão inseridas no contexto da sociedade capitalista
dominadora e recheada de contradições sociais. Entendendo que os espaços quilombolas são
espaços da luta de classes. Por um lado, os quilombos procuram continuar resistindo e ter a
sua continuidade de gerações para gerações, de outro, o capital agrário vem desde o Brasil
colônia constrangendo os territórios quilombolas. O nosso foco é que essa leitura do mundo
seja repassada aos cursistas como nos ensina Paulo Freire.

GEOGRAFIA E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NAS ESCOLAS DE COMUNIDADES

QUILOMBOLAS

Sabemos que a realidade social das escolas quilombolas são muito precárias. Falta
infraestrutura física de laboratórios, de bibliotecas, acesso à internet, psicólogos, médicos,
dentistas e, sobretudo de professores para trabalhar as várias áreas do conhecimento nas
escolas. A distância entre as escolas e os alunos que precisam estudar é um problema muito
sério também para as comunidades quilombolas. Estes problemas e outros das mais variadas
natureza constituem em entraves para desenvolver uma educação cidadã e de qualidade para
as comunidades quilombolas. Este cenário permite que os quilombos tenham dificuldade de

106
acesso à educação. Larchert (2013) cita o relatório de Unicef (2003, p. 15) para revelar a
situação da infância e adolescência brasileira. O relatório revela uma situação inaceitável
sobre as crianças quilombolas no que diz respeito ao acesso à educação. Cerca de 31,5%
das crianças quilombolas de sete anos nunca frequentaram bancos escolares, isso representa
quase um terço das crianças quilombolas nesta faixa etária.

Além dos problemas elencados nos parágrafos anteriores, temos outros talvez mais graves
quando nos referimos aos alunos quilombolas. Se eles não têm acesso à educação devido
à falta de infraestrutura física e de acervo de material didático, surge um problema maior
que é justamente o não conhecimento da sua própria história e da cultura. O conhecimento
de sua própria história e cultura não limita apenas seu meio social no qual ele vive, mas o
conhecimento da matemática, da geografia, das ciências biológicas, da filosofia e todos os
outros campos do saber ficam comprometidos.

O conhecimento sobre história e cultura quilombola infelizmente ainda depende das políti-
cas educacionais do Estado. Mas mesmo nas comunidades que possuem escolas, há os
desafios de colocá-las em sintonia ao universo cultural e social da educação quilombola, isto é,
colocar as políticas educacionais de acordo com as particularidades de cada comunidade nos
programas de aula e nos materiais pedagógicos.

Os professores não são capacitados adequadamente para lidarem com o mundo quilombola.
O número de professores capacitados ainda é insuficiente para atender a demanda. Em muitos
casos, podemos encontrar escolas nas comunidades rurais ou urbanas em que no mesmo
espaço ou na mesma sala de aula, há apenas um único professor ou professora ministrando
aulas para diferentes turmas, seja no que se refere à faixa etária, ou no que se refere ao nível
de escolaridade dos alunos. Este quadro dificulta ainda mais o trabalho do professor que tem
que atender as várias turmas ao mesmo tempo.

O reduzido número de professores capacitados que atuam nas escolas é um desafio a


ser resolvido. Entretanto, temos outro desafio desta mesma natureza para refletirmos a re-
speito, que é a formação de professores especificamente para lidarem e desenvolver trabalhos
pedagógicos nas escolas quilombolas. Os professores que trabalham com os grupos sociais de
quilombos além de ter um conhecimento da sua área de atuação, por exemplo, em matemática
ou português, devem ter também a sensibilidade intelectual, didática e de espontaneidade para

107
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS

lidar com as diferentes culturas presente em nossa sociedade contemporânea. Devem con-
hecer a regulamentação da Educação Escolar Quilombola nos sistemas de ensino de acordo
com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Considerar os
aspectos gerais apontados nas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica,
bem como a realidade das comunidades quilombolas explicitadas nas Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Quilombola DCNEEQ.

É necessário pensar e refletir sobre as práticas político-pedagógicas nas comunidades


quilombolas no sentido de se construir mecanismos e alternativas que permitam a autonomia e
a emancipação das comunidades quilombolas. A reflexão sobre as práticas pedagógicas devem
estar à frente das discussões da comunidade e o caminho para este processo advém dos
vários tipos de educação que não necessariamente, da educação formal. As práticas político-
pedagógicas deverão ser consolidadas em nível nacional e seguir orientações curriculares
gerais da Educação Básica e, ao mesmo tempo, garantir a especificidade das vivências,
realidades e histórias das comunidades quilombolas de todo o país. Para isso, é necessário
colocar em prática a legislação da Lei 10.639/2003 que garante que seja trabalhada a história
e cultura afro-brasileira em todas as escolas de ensino médio e fundamental.

Portanto, as condições legais já existem para que os educadores, educadoras, supervisores


pedagógicos e diretores das escolas desenvolvam um trabalho pedagógico do processo
ensino-aprendizagem com respaldo legal. Santos (2015) diz que após a promulgação da
Lei 10.639/2003, outros dispositivos legais foram criados ou promulgados em prol da defesa
do negro no Brasil. Entretanto, não podemos esquecer que quem abriu o espaço para o
reconhecimento e amparo legal e constitucional para os povos quilombolas foi a Constituição
Federal de 1988 que assegura em seu Art. 68: “Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. A criação de outras leis e diretrizes que tratam
diretamente com a educação quilombola a partir da aprovação da Lei 10.639/2003 é um fato
muito desejável e necessário para atender a educação das comunidades quilombolas no Brasil.

As leis e diretrizes que garantem a introdução dos conteúdos sobre a história e cultura dos
povos quilombolas na grade curricular das escolas de ensino fundamental e médio instituídas
neste século são fundamentais para aprimoramento da educação quilombola de acordo

108
com o seu universo cultural e social. A formação e a capacitação de professores para
trabalharem nas escolas, seja nas comunidades quilombolas ou nas escolas de uma forma
geral, também é um passo à frente para desenvolver as práticas pedagógicas conforme o
universo cultural e social destas comunidades. Entretanto, estes condicionamentos por si
só não é o bastante, temos que adotar uma posição político-pedagógica com expomos no
item Pedagogia libertadora e libertaria: uma alternativa para a Educação quilombola, ou seja,
temos que procurar desenvolver uma pedagogia libertadora e libertária que seja capaz de criar
uma massa crítica e consciente de pessoas, líderes, membro da comunidade e, sobretudo
de alunos com essa postura. A partir deste pressuposto, a prática docente, sustentada pelas
relações étnico-raciais, é o espaço privilegiado para a realização de uma educação antirracista,
no sentido de romper com os conceitos e o modo de ler o mundo a partir da história oficial.

Os parágrafos anteriores descritos nos chamam atenção para os desafios das escolas
quilombolas no país. É a partir deste contexto que precisamos encarar as escolas quilombolas
quando almejamos trabalhar os conteúdos de geografia em estas unidades escolares. A
intenção do texto não é definir uma série ou um ciclo do ensino básico ou médio para se
trabalhar e executar práticas pedagógicas no ensino de Geografia nas escolas de quilombos
a partir de uma pedagogia libertária e transformadora, mas é uma tentativa de levantar um
debate teórico-metodológico sobre esta temática. Para desenvolver este procedimento, é
necessário adotar o método do materialismo histórico dialético que é um dos condicionamentos
necessários para se construir e trabalhar os pressupostos fundamentais da pedagogia libertária
e libertadora. Para isso, o professor que queira engajar um trabalho pedagógico desta natureza,
necessariamente, deve conhecer de forma profunda o método do materialismo histórico
dialético elaborado, teorizado e aplicado pela dupla Marx e Engels.

O método materialismo histórico dialético procura analisar a sociedade capitalista a partir


de suas contradições sociais e da lógica contraditória do modo de produção capitalista. A
dialética materialista não aceita a lógica metafisica, por si só, ela vai além desta lógica. O
princípio deste método é a sua a postura teórica questionadora da realidade social, política,
religiosa e ideológica das classes burguesas. Para isso, segundo Netto (2011), as investigações
científicas de Marx, resultam de uma demorada investigação. É um processo que se aplica a
partir da análise e questionamento da tese, depois forma-se antítese e posteriormente tem-se

109
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS

a síntese. Com isso, as investigações científicas a partir do método histórico dialético é sempre
um processo de continuadas pesquisas da realidade. Outro elemento deste método é a relação
sujeito-objeto. Netto (2011, p. 21), diz que “a teoria para Marx, é a reprodução do ideal do
movimento real do objeto pelo sujeito: pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento
a estrutura e a dinâmica do objeto de pesquisa”. Esta teoria tem como foco de análise a
realidade objeto de pesquisa que é o social.

Os críticos do materialismo histórico dialético afirmam que este método pauta fortemente
no fator econômico como condicionante da dinâmica social. Mas sabemos que na teoria de
Marx, o fator econômico não é o único elemento analisado como o determinante. A teoria de
Marx vai além desta afirmação. A teoria de Marx não se reduz ao fator econômico. Trabalha
com conceitos de ideologia que inclui as ideias, cultura, a política e, sobretudo a superestrutura
(Estado) e a infraestrutura (modo de produção, no caso o capitalista). Todas essas dimensões
da realidade são analisadas, trabalhadas e interpretadas a partir do real pelo sujeito. Netto
(2011) afirma que “(...) Para Marx o ideal não é mais do que o material transporto para a
cabeça do ser humano e por ele interpretado”. (p. 21). E diz ainda que (...) “O sujeito interpreta
o real, a teoria é o movimento real do objeto transporto para o cérebro do pesquisador - é
o real reproduzido e interpretado no plano ideal (do pensamento)” (p 21). Este real que é o
objeto de pesquisa de Marx (a sociedade burguesa). Para Netto (2011, p. 22), “o objeto de
pesquisa tem existência objetiva, independente da consciência do pesquisador”.

No que diz respeito à ciência geográfica, temos a denominada Geografia Crítica que
trabalha com o método histórico dialético. Esta corrente do pensamento geográfico procura
analisar o espaço nas suas dimensões sociais e políticas a partir de uma interpretação crítica
e questionadora da formação do espaço geográfico. O foco da análise e da interpretação do
espaço é, sobretudo, as formas de apropriação do modo de produção capitalista. A construção
do espaço geográfico no seio do capitalismo se materializa de forma contraditória e combinada
a partir de um processo de desenvolvimento desigual. Esta forma de compreender o espaço
geográfico é compartilhada por muitos geógrafos. Dentre eles podemos destacar o geógrafo
Milton Santos em sua obra Por uma geografia nova - da crítica da Geografia a uma Geografia
Crítica, publicada nos anos de 1970, procura implantar na academia brasileira um debate
teórico-metodológico e, sobretudo compreender o espaço geográfico pelo viés do materialismo

110
histórico dialético.

O geógrafo Yves Lacoste em sua abra A Geografia - isso serve, em primeiro lugar, para
fazer a guerra, procurou levantar um debate teórico sobre a “Geografia dos Professores” que
segundo ele, esta Geografia tem o discurso ideológico de mistificação do espaço, de “cortina
de fumaça” para escamotear a importância estratégica de saber pensar o espaço e nele se
organizar. Para o referido geógrafo, é necessário conhecer o espaço para se organizar. Nesta
obra, o autor chama a atenção dos geógrafos-professores para assumir uma posição militante
contra a instrumentalização da Geografia pelo Estado e empresas privadas, isto é, o professor
precisa decifrar as estratégias e ideologias por estes atores (Estado e as multinacionais)
quando se trata da construção do seu espaço.

É a partir desta perspectiva que a Geografia Crítica aponta que o professor de Geografia
deve portar o seu trabalho pedagógico enquanto educador no sentido de compreender a
construção do espaço por uma sociedade de classes burguesa. A ideia é desmitificar e analisar
os instrumentos político-ideológicos de dominação e de alienação das instituições burguesas
como a escola, a igreja, os meios de comunicação comercial (mídia comercial), o Estado e os
aparelhos ideológicos e, sobretudo a ideologia burguesa. Os aparelhos ideológicos de Estado é
um tema debatido pelo filosofo Louis Althusser que correspondem à religião, educação, família,
sindicato, a imprensa, os meios culturais e todas as instituições que representam os interesses
burgueses. O Aparelho Ideológico de Estado funciona a partir da ideologia. Os aparelhos
ideológicos de Estado trabalham no sentido de reproduzir os pressupostos ideológicos da
burguesia capitalista.

Bernardino (2010, p. 53) diz que para entendermos a denominação dos aparelhos ide-
ológicos de Estado, primeiro temos que ter uma noção do que é ideologia na concepção de
Louis Althusser. Para este, a ideologia é um sistema de representações, sejam imagens,
mitos, ideias ou conceitos. “Mas a ideologia não é apenas uma ideia, ela tem uma existência
material no momento em que se transforma em um sistema de relações entre as condições
reais de existência dos indivíduos e suas representações”. A ideologia é uma representação
do real. Dentre as instituições que compõe o aparelho ideológico de Estado que nos interessa
neste debate sobre educação quilombola e Geografia é a escola. Bernardino (2010) diz que
as instituições educacionais desempenham um papel de distribuidoras do conhecimento e

111
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS

não como espaços de sua construção. O papel da escola na produção de indivíduos, com a
finalidade de servir às necessidades do setor econômico da sociedade capitalista é visível.

O professor de Geografia deve conhecer bem a própria disciplina que é uma condição
fundamental e adotar e conhecer o materialismo histórico dialético, mas não é o suficiente
para desenvolver o ensino-aprendizagem para a formação de sujeitos conscientes e críticos.
Precisa ter capacidade intelectual, didática para abordar os conteúdos de forma que os alunos
aprendam. Os recém-professores licenciados em Geografia ainda não tem uma experiência
madura para lidar com o ensino. Eles precisam de conviver com essa prática nas escolas
para que seja possível adquirir as competências e habilidade de um professor-educador. O
professor-educador necessariamente compartilhará com o aluno as suas intenções, para
construir juntos os rumos da ação educativa. Se o professor não tiver a intenção construir este
entendimento certamente o aprendizado não acontecera de forma objetiva.

Acreditamos que as práticas pedagógicas no ensino de Geografia nas escolas quilombolas


podem ser trilhadas, por este posicionamento pedagógico e político do professor, para que seja
possível a realização de um processo ensino-aprendizagem que procure formar lideranças
e sujeitos sociais capazes de refletir e compreender o espaço social no qual vivem. Para
Cavalcante (2014), as contribuições da Geografia para uma educação quilombola tratam da
relação escola e comunidade quilombola que envolve duas realidades, tanto o contexto das
tensões curriculares do ensino-aprendizagem, quanto os conflitos e contradições resultantes
das questões étnico-raciais em um território quilombola urbanizado. O referido autor coloca as
comunidades urbanizadas, mas acreditamos que as comunidades rurais também deve-se levar
em conta este pressuposto. Com as contribuições da ciência geográfica para uma educação
quilombola, é possível que se promova e fortaleça a identidade territorial e étnico-cultural das
comunidades rurais.

O referido autor afirma que a análise geográfica dentro dos conteúdos ministrados, é
necessária envolver todos os elementos a fim de guiar uma leitura atenta dos desafios encon-
trados para uma educação diferenciada de consolidação quilombola a partir de uma análise
social e espacial e de um diálogo interdisciplinar na escola. O contexto do ensino de Geografia
como disciplina escolar nas comunidades, deve conduzir a uma ferramenta pedagógica para
a compreensão do território quilombola. A partir deste raciocínio, as práticas pedagógicas

112
trabalhadas devem envolver a discussão de todo um contexto do território quilombo e o papel
da comunidade no cenário político, socioeconômico, antropológico, jurídico, cultural e espacial.
A Geografia como uma disciplina componente curricular da escola, constitui uma ferramenta
teórico-metodológica que procura entender as relações espaciais e suas reflexões sobre a
sociedade humana, afirma Cavalcante (2014). A nossa proposta é de que com o trabalho desta
ferramenta é possível se construir pressupostos curriculares a partir da pedagogia libertária e
libertadora.

Dentre os temas ligados a Geografia, Santos (2011, p. 14) sugere trabalhar:

O ensino sobre África, marcado hoje pela influência das narrativas eurocentradas. Os
marcos estruturantes do que se fala sobre África (referenciais espaciais e temporais,
regionalização e periodização) são todos remetidos ao contato com a Europa –
o mesmo se aplica às Américas e Ásia, quando a recíproca não é verdadeira: a
colonização só é definidora do que são os continentes periféricos, mas o papel
dela para as revoluções industriais econômicas, sociais e políticas na Europa não é
abordada. Desconstruir e reconstruir a ideia de totalidade-mundo e fazer o mesmo
para África é, portanto, um exercício fundamental. África é retratada no ensino sempre
através de seus aspectos pejorativos, tragédias sociais, associação a estereótipos
degradantes (primitivismo, p.ex.), enfim, uma abordagem que referencia num quadro
social adverso de África o quadro de inserção social subalternizado e inferiorizado
dos descendentes de africanos na experiência da diáspora.

O autor sugere a necessidade de inclusão dos conteúdos sobre o processo de colonização


do continente africano e os referenciais espaciais e temporais, regionalização da África no
ensino de geografia na educação quilombola. Entretanto, a abordagem deste conteúdo deve-
se levar em conta que o processo de colonização da África não é o mesmo estabelecido
nos demais continentes. Os conteúdos trabalhados no ensino de Geografia nas escolas
quilombolas devem retratar e revelar a linda África não como um espaço da seca, da tragédia,
da pobreza, mas da sua beleza cultural e organização social e política real.

A segregação sócio-espacial nos meios urbanos (...) Desde a construção de imag-


inários sociais que associam negritude a espaços pobres (com uma linha de con-
tinuidade histórico-espacial entre quilombo e favela) (...) à concretude da desigual-
dade racial espacializada do acesso a bens de consumo coletivo (...), esta prob-
lemática deve ser abordada no ensino de Geografia. Espacialização de dados sobre
desigualdades raciais, em diferentes escalas, além do urbano (...), fazendo análises
em escala estadual, intra e inter-regional e nacional, com rico material cartográfico, e
que pode ser utilizado nas aulas de Geografia da População. (SANTOS, 2011, p. 14).

O autor sugere ainda que a Geografia que devemos trabalhar é Geografia das lutas
históricas, isto é “As Comunidades Remanescentes de Quilombos – que são, hoje, milhares

113
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS

catalogadas em quase todos os estados do país. Elas são marcas espaciais (rugosidades, no
dizer de Milton Santos) das resistências dos negros à escravidão, portanto, uma Geografia de
lutas históricas” (SANTOS, 2011, p. 15). As colocações de Santos (2011) reforçam a adoção
de propostas pedagógicas que podem ser trabalhadas a partir do ensino da Geografia nas
escolas das comunidades quilombolas rurais ou urbanas. Os temas levantados pelo autor são
importantes para se trabalhar a partir da ciência geográfica em sala de aula. Trabalhar as
influências do processo de ocidentalização nas comunidades quilombolas de forma que os
alunos e membros da comunidade reflitam sobre esse processo de forma crítica.

Outros temas genuinamente da Geografia como segregação socioespacial é fundamental


para debater e compreender as contradições socioespaciais resultante do modo de produção
capitalista. O autor aponta como conteúdo a segregação socioespacial nos meios urbanos.
Debater sobre a construção dos espaços de quilombos e das favelas e sobre a concretude da
desigualdade racial espacializada no que diz respeito ao acesso a bens de consumo coletivo.
Mas podemos trabalhar também as contradições sociais no espaço agrário como concentração
fundiária, os conflitos sociais agrários, abordar sobre as forças políticas oligopolistas contra
as demarcações de terra quilombolas, e, sobretudo as condições sociais dos quilombos no
campo. Estas problemáticas devem ser abordadas no ensino de Geografia nas escolas das
comunidades quilombolas em uma perspectiva da pedagogia libertária e libertadora.

Outro ponto importante a considerar é trabalhar a Lei 10.639/03 e o ensino de geografia nas
escolas de comunidades quilombolas como um ponto de partida para implementar conteúdos
de natureza geográfica. Já existem trabalhos científicos que debatem teoricamente esta
proposta. O artigo de Renato Emerson dos Santos A Lei 10.639/03 e o Ensino de Geografia:
Construindo uma agenda de pesquisa-ação, é um texto que levanta um debate sobre o ensino
de Geografia a partir das propostas estabelecidas pela Lei 10.639. O autor defende a ideia de
que o ensino de Geografia pode ser instrumento de uma educação para debater a igualdade
racial.

Estes conteúdos que delineamos nos parágrafos anteriores é uma proposta curricular
que possa ser útil para trabalhar nas escolas quilombolas para os professores de Geografia.
É uma forma de colocar o conhecimento geográfico ao exercício de cidadania das comu-
nidades quilombolas. Procuramos ministrar os conteúdos de Geografia no curso de forma

114
interdisciplinar com o objetivo de intercalar os temas abordados de acordo com os interesses
e realidade dos cursistas da região. O Tocantins é uma região de grandes conflitos de terra
principalmente nas terras dos camponeses de quilombos e indígenas. Para isso, um dos temas
abordados foi sobre a Educação libertária – a prática do pensar como emancipação social com
o intuito de criar uma compreensão crítica e questionadora da realidade social dos territórios
quilombolas tocantinenses. Ou seja, desenvolver um espírito crítico de luta política em defesa
da demarcação das terras quilombolas e, sobretudo da construção da cidadania plena como
assegura a legislação constitucional vigente.

Outro tema abordado foi sobre a cultura e pesquisa em comunidades quilombolas do


Tocantins, ministrado em concordância com a Lei 10.639/03, que visa à difusão da história e
da cultura afro-brasileira nas escolas da educação básica, tornando necessária a formação
e aperfeiçoamento de professores, líderes e gestores de comunidades e escolas. Em um
primeiro momento, discutiu-se o conteúdo sob a luz de Tompson (2015), sobre o que é cultura e
o que são costumes, de modo a elucidar também o interesse atual nas manifestações culturais
das comunidades tradicionais, ligado a uma busca de sentido na sociedade contemporânea
não relacionado apenas à economia, mas também ao respeito ao ambiente e às tradições.
Outro conceito abordado no texto é o catolicismo popular, em virtude do caráter religioso
de muitas das festas realizadas entre os quilombolas no Tocantins. Estes temas foram bem
recebidos pelos cursistas.

Desenvolvemos também estudos sobre projetos sociais para a produção na comunidade


quilombola de Malhadinha- Brejinho de Nazaré –TO com o intuito de abordar sobre a im-
plementação de projetos sociais com foco no apoio à produção no meio rural que tem sido
tratada nos últimos anos como uma forma de apoiar o desenvolvimento local nas diversas
regiões do país, particularmente e com maior ênfase, quando essas regiões se encontram no
Norte e Nordeste do Brasil, caracterizada por uma forte e marcada situação de vulnerabilidade
social. Sabemos que tanto no eixo governamental - em suas diversas esferas - como no meio
acadêmico não se travou ainda o debate que questione a efetividade de um emaranhado
de projetos sociais financiados por diversas instituições. Tanto na Comunidade Malhadinha
como na maioria das comunidades remanescentes de quilombo do Estado de Tocantins, (até
2014, eram 29 comunidades reconhecidas pela Fundação Palmares no Estado) realizaram-se

115
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS

inúmeras ações, programas e projetos com o viés de contribuir com a melhoria da produção e
qualidade de vida de seus integrantes. Nestes conteúdos, nossos cursistas assimilaram muito
bem os temas abordados. Nestes projetos sociais foi colocado em pauta o princípio básico da
pedagogia libertária que é a autogestão.

Desenvolvemos o tema Abordagens Pedagógicas para a Educação Quilombola com o


objetivo de fazer um relato sobre as experiências, discussões, avaliações e debates sobre
abordagens pedagógicas para a educação quilombola. Foi abordado temas transversais
que constam na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (10.639/03) e nos PCNs,
confrontando com as realidades diárias das escolas e o cotidiano dos professores da rede
pública de ensino. Teve como objetivo compreender a Educação Escolar Quilombola a partir
do diálogo entre os conhecimentos tradicionais da comunicação com global, nacional, regional
e o local, considerando a cultura, religiosidade, tradições, oralidade, memória, a ancestralidade,
mundo do trabalho, o etno-desenvolvimento, a estética, as lutas pela terra e território. Os
temas como escravidão do negro no Brasil e a formação dos quilombos históricos e, mais
recentemente, os conflitos e questões fundiárias envolvendo as comunidades remanescentes
de quilombos foram abordados e trabalhados com ilustrações de filmes, documentários, vídeos
e textos.

Estes temas foram abordados em uma perspectiva da geografia de lutas como propõe
os geógrafos materialistas. Em se tratando de uma região como o Tocantins pertencente à
Região Amazônica onde os conflitos de terra são muito presentes em função da concentração
fundiária, da forte presença de violência no campo e, sobretudo, da insegurança jurídica sobre
as terras quilombolas e indígenas, é necessário que levantamos um debate sobre a geografia
das lutas para compreender melhor estas contradições sociais no espaço regional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os cursistas gostaram muito do curso. Percebemos que o curso correspondeu às ex-


pectativas dos cursistas. Foi um trabalho muito produtivo para nós da equipe pedagógica e
coordenadora. Entretanto, nem tudo é maravilha, a princípio, pensamos deslocar os cursistas
para o polo de Porto Nacional -TO, mas por falta de apoio financeiro foi necessário que profes-

116
sores e tutores fossem deslocados até a comunidade de Malhadinha e no polo de Ipueiras -TO.
Esta dificuldade foi superada.

Percebemos que na comunidade de Malhadinha há uma escola municipal que atende o


1o e 2o ciclo para atender as crianças da localidade passa por dificuldades. Nesta unidade
escolar, falta infraestrutura física e laboratório e de professores preparados para a missão
educadora que os quilombos merecem. Observamos também que os conteúdos abordados
nas escolas das comunidades ainda não estão de acordo com a plenitude das exigências da
Lei 10.639/2003 e, sobretudo na escola local.

São muitos os desafios para implantação de uma pedagogia libertária e libertadora no


ensino de Geografia nas escolas das comunidades quilombolas. Primeiro nós, professores de
Geografia, precisamos tomar uma posição política-pedagógica para trabalhar e ministrar os
conteúdos da disciplina. Segundo, adotar o materialismo histórico dialético é uma questão de
escolha de qualquer professor ou educador que tem como missão desempenhar um trabalho
que desmitifique os mecanismos de dominação e dos processos de alienação dos sujeitos
sociais. Terceiro é que até mesmo as propostas pedagógicas e curriculares da Lei 10.639/2003
ainda não é praticada na sua plenitude nas escolas quilombolas, por falta de conhecimento,
falta de políticas educacionais do poder público direcionadas as escolas em comunidades
quilombolas. As nossas experiências com o curso Educação Escolar Quilombola - O Uso
Pedagógico dos Recursos de Tecnologia Assistiva – território e cultura quilombola no Polo
Regional de Porto Nacional-TO percebemos que esta lei ainda não é praticada de forma
desejável pela Secretaria Estadual de Educação e Cultura nas escolas das comunidades de
quilombolas da região.

A prática de uma pedagogia libertadora quanto ao trabalho dos conteúdos em uma per-
spectiva de se construir o ensino-aprendizagem a partir de uma leitura de mundo, nos pareceu
muito tranquila perante as aulas com os cursistas. Este procedimento pedagógico desperta a
atenção dos educandos pelo fato de colocar o processo ensino-aprendizagem a partir do seu
mundo vivido e não pretendido ou o que deve ser. Os educandos sentem parte do processo,
conseguem ver como sujeitos sociais construtores do seu espaço. É um aprendizado sem os
chavões do formalismo, da simplificação do ser, da padronização do conhecimento formal e
conservador. Pensando por este viés, tivemos bons frutos ao encerrar os trabalhos do curso.

117
REFERÊNCIAS

REFERÊNCIAS

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120
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS
NEGROS NA SALA DE AULA

Lourdes Carril1

Sim. A nossa escola sempre é cara


O tempo é rei
Disso eu sei
O relógio não para, Cara... ferida sara mais na alma
não tem cura
Na sua arrogância ou na sua humildade pura
Se segura o que te ofereço é muito bom. É força e
poder, dom através do som
Eu digo cada degrau a gente aprende a sofrer viver,
morrer, sorrir e a chorar
Chorar pelo passado
Pagar pelos pecados
Contando cada sombra no seu sonho atormentado
Acorrentado sei lá
Drogado se pá

(That’s My Way , Mano Brown & Edi Rocky, 2013).

1
Doutora em Geografia. Professora Adjunta da Universidade Federal de São Carlos. Autora do livro Quilombos,
Favelas e Periferia. Ed. Ana Blume, São Paulo, 2007.

121
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA

No Brasil, observamos um modelo de educação que perpetua visões hegemônicas de


sujeitos, desconsiderando suas experiências. A obrigatoriedade do ensino da História da
Cultura Afro-brasileira e Africana na Sala de Aula é um importante reconhecimento étnico
que pode pluralizar o currículo e permitir que os afrodescendentes sejam vistos com outros
olhos, que não a do dominador. Mas em que medida tratar o tema em conteúdos apenas pode
deixar de unir os sujeitos à sua cultura? Iniciamos esse texto com o rap My Way como uma
canção que fala dos caminhos que passam ao largo da escola, das dores e sofrimentos que
são curados pela música, do choro das memórias e de sonhos cantados sobre o tempo da
espera do acolhimento.

O currículo ao privilegiar conteúdos padronizados recusa o acolhimento necessário às


vidas dos sujeitos, impedindo a formação da identidade coletiva e o fracasso continuará sendo
atribuído a si pelos próprios jovens negros. A introjeção de uma autoimagem negativa tem
acarretado, segundo Henriques (2001), um sentimento de insuficiência que restringe a poucos
negros as condições de lutar pela igualdade social e racial.

Neste trabalho, consideramos a escola como um espaço de possibilidades para os sujeitos


se reconhecerem e agirem sobre as determinações sociais impostas. No capitalismo, são
produzidos papéis e identidades, produzindo fraturas e a alienação social, que atingem os
níveis psíquicos sociais e culturais, causando o aparecimento de resistências pautadas por
identidades próprias. Nesse contexto, em que se debate teoricamente a transição do sujeito
moderno ao sujeito pós-moderno, é útil nos perguntar sobre o terreno em que se assentam
essas discussões no Brasil. A questão é suscitada a partir dos movimentos mais particulariza-
dos de caráter de gênero, raça, cultura e de sexualidade que demandam novos paradigmas
curriculares receptivos a tais expressões de singularidades.

Os movimentos de contracultura, desde a década de 1960, se contrapuseram ao status quo


enquanto portador de padrões sociais hegemônicos, nas sociedades centrais, e se difundiram
pelo mundo, construindo, assim, novos referenciais distintos dos tradicionais em que a classe
social aparecia como norteadora das lutas de emancipação. Com o avanço da reorganização
social de caráter neoliberal que representa o capitalismo das últimas décadas, cada vez mais
se entrelaçam tais expressões reivindicatórias a elementos de individualismo que carecem de
laços sociais e universais. Individualismo que é também alicerçado pela lógica do mercado,

122
em que o consumo, não somente das mercadorias, mas da cultura, constrói outros significados
às diferenças sócio culturais.

Esse debate nos impõe a reflexão sobre essas novas formas de desalienação referendadas
por movimentos que se apresentam nas diversas matrizes culturais a respeito do contexto
brasileiro em que os direitos mais básicos do indivíduo moderno ainda não estão consolidados.
Tal problemática aponta para a análise de que as reivindicações de reconhecimento das
diferenças encontram-se nesse cerne de refletir sobre as realidades em seus contextos.
Segundo Touraine (2006), é importante discutir a noção utilitarista do sujeito racional fabricado
pelas ideologias neoliberais e repensar a dicotomia entre sujeito e indivíduo, que surge dessa
conjuntura social, econômica e política. O autor a define na seguinte questão:

O indivíduo não passa então de uma tela pela qual se projetam desejos, necessidades,
mundos imaginários fabricados pelas novas indústrias da comunicação. Esta imagem
de indivíduo que já não é mais definido por grupos de pertença, que é cada vez mais
enfraquecida e que não encontra garantia de sua identidade em si mesmo, pois já
não é mais um princípio de unidade e é obscuramente dirigido por aquilo que escapa
sua consciência, serviu muitas vezes para definir a modernidade. (TOURAINE, 2006,
p. 119)

Segundo o autor, contudo, é somente através do voltar-se a si mesmo que se torna possível
a libertação da prisão em que todos se encontram. É desse ângulo que o autor propõe a noção
de que:

Só nos tornamos plenamente sujeitos quando aceitamos como nosso ideal reconhecer-
nos – e fazer-nos reconhecer enquanto indivíduos – como seres individuados, que
defendem e constroem sua singularidade, e dando, através de nossos atos de re-
sistência, um sentido à nossa existência. (TOURAINE, 2006, p. 123)

Nessa proposição, a presença do conflito é permanente para destacar as lutas pela


subjetivação presentes e a reformulação das consciências e práticas sociais.

Outro autor, Martucelli elabora a questão a partir do debate que envolve a universalização
dos direitos nas sociedades democráticas, em que se designam direitos pertinentes à cidada-
nia identificada com a liberdade e a igualdade. As questões da identidade, nesse caso, são
assimiladas ao universal, representadas na sociedade como totalidade em prol de um conceito
genérico de indivíduo, membro de uma sociedade e sempre universalizado. Políticas multicul-
turais vêm questionando o princípio democrático da igualdade, uma vez que reivindicações
particularistas demandam por indagar os limites institucionais fixados anteriormente.

123
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA

Trata-se, assim, de uma crise da visão da igualdade social sob influência de uma
concepção totalizante da sociedade em sua formulação clássica, a igualdade en-
fatiza os elementos comuns aos indivíduos genéricos e não suas diferenças, seus
particularismos coletivos, ela remete sempre a uma concepção global e comum da
sociedade. É diferente o que se dá com a noção de “equidade” que reconhece a pert-
inência política das especificidades culturais dos indivíduos e dos grupos, aceitando
a ideia de um tratamento diferenciado dos membros dessas coletividades. A origem
dessa mudança de direção no interior da matriz democrática deve ser buscada no
processo de racionalização e, mais precisamente, no desenvolvimento de um saber
social sobre as razões das desigualdades e sobre os resultados das políticas sociais
igualitaristas (MARTUCELLI, 1996, p. 21).

No Brasil, segmentos extensos de pessoas não brancas vivenciam uma inserção precária
no mercado de trabalho, na escola, nas universidades, alcançando direitos básicos lentamente,
tornando mais complexa a questão das diferenças.

A cultura escolar brasileira tem resistido a abarcar mudanças que diminuam essas de-
sigualdades. Ainda hoje, são priorizados currículos tradicionais e empobrecidos pautados por
conteúdos que refletem pouco a vida dos indivíduos. Nesse sentido, os processos escolares
têm perpetuado o papel reprodutor das hierarquias sociais fazendo com que o olhar do domi-
nador se fortaleça no interior dos dominados. O silêncio sobre as outras vozes constituem ainda
déficits democráticos fundamentais, levando, historicamente, ao desencontro entre sujeito e
escola, identidades e história.

Paulo Freire propôs um olhar sobre a escola como espaço que comporta o movimento
dialético do processo histórico de produção do sujeito, entendendo a educação em seu caráter
antropológico e não somente destinado à formação instrumental para o mercado de trabalho.
Nesse caminho, a consciência seria aquilo que permite a subjetivação e a objetivação, sendo
presença e distância do mundo numa unidade sintética da consciência como consciência do
mundo. É na objetivação que o sujeito se descobre responsável historicamente e se reconhece
como autor de sua própria história, num fazer e refletir interminável:

Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente, em reconhecer a desuman-


ização, não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica. É,
também, e, talvez, sobretudo, a partir desta dolorosa constatação, que os homens se
perguntam sobre a outra viabilidade – a de sua humanização. Ambas, na raiz de sua
inconclusão, que os inscreve num permanente movimento de busca. Humanização e
desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são pos-
sibilidades dos homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão
(FREIRE, 1979, p. 30)

A partir de tais pressupostos, este texto se debruça sobre as contradições presentes

124
no projeto de universalização da educação no interior da qual permaneceram mecanismos
perversos de exclusão étnica e racial. Buscamos pensar os processos que recuperem os
sentidos de pertencimento social alterando os mecanismos que produzem o vazio existencial,
desconstruindo a autoimagem negativa dos jovens negros alienados de sua própria história. O
avanço da política pública que dispôs trabalhar com o ensino da História da África e Cultura
Afro-brasileira envolvendo, também, a cultura indígena, implica a necessidade de se repensar
os currículos com base em projetos pedagógicos críticos e a necessidade de construir uma
consciência política e histórica a partir dos sujeitos. Nessa perspectiva, apontamos o potencial
contido na estética hip hop, relatando experiência realizada com jovens negros periféricos do
Capão Redondo, distrito de São Paulo, entre 2011 e 2012.

A EDUCAÇÃO BRASILEIRA E A EXCLUSÃO ÉTNICA E RACIAL

As transformações que ocorreram após a abolição não eliminaram os estigmas sobre os


negros, identificados com a malandragem, doenças e vícios. Fernandes (1978), explica que
o negro viu-se no abandono após a abolição, sendo relegado à desorganização social e a
condições anômicas de existência, mantendo-se preservada a herança cultural da época da
escravidão, em que as desigualdades econômicas, sociais e políticas existentes entre brancos
e negros exerciam a função de manter a distância social e o padrão das estruturas sociais
arcaicas. O negro não foi afastado declaradamente pelas elites e tampouco por força de leis,
mas também não foi abertamente aceito como demandava a sua nova condição jurídico-política
de cidadão liberto.

Hilsdorf (2003) analisa que o processo de organização escolar construído pelo regime
republicano mostrou-se favorável à educação como necessidade para a sociedade alcançar
os mais altos graus civilizatórios, mas continha mecanismos de contenção à participação
ampla das camadas populares. Nesse sentido, reservava a escola às elites e os trabalhadores
brancos nacionais ou estrangeiros direcionavam seus filhos para as escolas particulares e
de trabalhadores. O aumento do número de escolas públicas e particulares ficou, assim,
inacessível aos negros que encontravam dificuldades em ingressar nessas escolas, por uma
série de fatores que vão do déficit econômico da família negra à discriminação racial presente
no espaço escolar. Não obstante, houve formação de escolas por parte de associações e movi-

125
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA

mentos negros e a própria Frente Negra Brasileira constituiu iniciativas para a escolarização
dos filhos dos segmentos negros (MACHADO, 2009).

A estrutura de dominação racial na sociedade de classes se mantém nas mentalidades


e no projeto de nação que ainda pode ser notado no pensamento educacional atual quando
se deprecia o ensino público no país. No processo histórico, a escola como direito universal,
vagarosamente, passou a exercer papel preponderante na construção da cidadania, na medida
em que a maioria da população encontra-se matriculada, hoje. Mas ainda pesam as grandes
diferenças entre sistemas escolares, e apesar da alfabetização ser mais elevada, acompanham
índices, também, altos de analfabetismo funcional.

Segundo Souza (2015), existiu um temor pela sua entrada do negro na escola como
continuidade do imaginário das revoltas que marcaram constantemente a sociedade escravista
e, sobretudo, no momento em que o sistema desmoronava. O alargamento dessa percepção
se deu pela concentração de pobres e negros que se encontraram em situação de pobreza
e marginalização, passando a ser vistos como inadequados ao trabalho, impróprios para a
escolarização, errantes porque partiam para as cidades. Para a autora, a ideia que perpas-
sava o projeto ambíguo da escolarização, indicava impossibilidades do desenvolvimento da
autonomia das camadas populares, o que incluía os segmentos afrodescendentes:

A enunciação de raciocínios contraditórios – alfabetizados eram aqueles que pode-


riam se tornar perigosos porque não comprometidos com a propriedade, como dizia
Saraiva, e também aqueles que, ao se alfabetizarem, seriam manipulados, como sofis-
mava Nabuco – produzia conclusões similares, orquestrando-se assim esvaziamento
a priori da instituição escolar, incrustado no embaraço da República nascente em
conviver com a ideia de ampliar a cidadania para aqueles que foram durantes séculos
institucionalmente alijados não só da cidadania como da humanidade... (SOUZA,
2015, p. 268).

Nesse aspecto, também, Machado (2009) analisa as promessas dos republicanos acerca
da chegada da escola a todos os lugares, o que, realmente, não ocorreu, pois na realidade,
90% da população chegava analfabeta ao final do século XIX. As reformas educacionais
realizadas entre o final do século XIX e início do século XX, sob o signo da universalização,
democratização e gratuidade do ensino, não foram acompanhadas de mudanças efetivas
nas condições socioeconômicas para que os recém-libertos obtivessem acesso efetivo à
escolarização.

126
A contradição, a nosso ver, não se resolveu e não pode ser analisada apenas pela democ-
ratização do acesso à escola, devendo se processar pela consideração da questão étnica e
racial como central nos currículos e nos projetos pedagógicos. O cotidiano escolar se encontra
marcado pela distância para com a realidade vivida dos estudantes afrodescendentes e a
vivência do preconceito racial no ambiente escolar ainda ocorre sob uma aparente naturalidade
acarretando prejuízo à autoimagem dos jovens. Os currículos são pouco reveladores da
identidade brasileira, pois mais próximos da cultura hegemônica de base eurocêntrica, se
revelando na distância do sujeito de sua cultura.

RELAÇÕES RACIAIS E OPRESSÃO NO BRASIL

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de


torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista (O
Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro, 1995, p.19).

Tomando esse trecho de O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, vemos a importância de


pensar a base formativa da nação brasileira sobre a constituição da presença do dominador
nos dominados. Não acreditamos que está em jogo somente a implantação de conteúdos da
História da África e da Cultura Afrobrasileiras nos currículos, mas também, a necessidade de
pensar a condição do negro como fundante dessa sociedade, sendo central trabalhá-la na
perspectiva escolar, principalmente, nas periferias das cidades brasileiras, onde se concentra
a maioria dos afrodescendentes.

Enquanto buscavam a sua própria identidade e se ampliavam os laços nacionais, os


povos brasileiros se redescobriram viver numa sociedade altamente hierárquica oculta numa
autoimagem benevolente e conciliatória que só se descortina quando a violência extrema é
exercida para manter o equilíbrio dos antagonismos sociais e culturais. O branqueamento
como solução para apagar o passado escravista intentou negar o racismo e apagar a presença
indesejável do negro na sociedade, pela via da assimilação, mantendo as condições de
exploração e de preconceito. A desigualdade fundamental desse processo formativo carrega,
também, em meio às questões históricas e sociais, uma oposição racial relativamente à
presença do negro, implicando a consideração de que é uma particularidade da sociedade de
classes, cuja consideração propõe a diferença na desigualdade.

127
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA

Remetendo-nos à afirmação de Ribeiro de que “A única saída possível para essa estrutura
autoperpetuante de opressão é o surgimento e a expansão do movimento operário” (RIBEIRO,
1995, p. 219), é possível ponderar de que as desigualdades no país não têm se mostrado
centralmente nas diferenças entre classes sociais, revelando que o racismo brasileiro, embora
não se separe da questão social e econômica, apresenta dinâmicas próprias. Segundo
Guimarães:

As perspectivas começaram a mudar apenas quando a segregação racial foi des-


mantelada nos Estados Unidos em consequência do movimento dos direitos civis.
Somente então as desigualdades raciais passaram a ser claramente atribuídas à
operação de mecanismos sociais mais sutis - a educação escolar, a seletividade no
mercado de trabalho, a pobreza, a organização familiar; etc. A mudança de percepção
da discriminação racial nos Estados Unidos alterou tanto a percepção do Brasil pelos
anglo-americanos quanto o programa político antirracismo. Desde então a denúncia
das desigualdades raciais mascaradas em termos de classe social ou de status
passaram a ser um item importante na pauta antirracista. “Os racismos brasileiros e
norte americano tinham se tornado mais parecidos entre si.” (GUIMARÃES, 1995,
p.29)

O argumento acima nos recomenda a repensar as formas de mudança social considerando


a cultura crucial para entender a formação da consciência, não como “conscientização”, mas
como o despertar e emancipar, na perspectiva da libertação do poder do opressor. Tal como
se apresenta na questão formulada por Freire: “O grande problema está em como poderão
os oprimidos, que ‘hospedam’ ao opressor em si, participar da elaboração de seres duplos,
inautênticos, da pedagogia de sua libertação” (FREIRE, 1979, p. 32).

Tudo isso demonstra que as transformações culturais da dominação compreendem a


análise de que a realidade opressora se legitima na ordem social pela sua instrumentalização
no próprio opressor. Em Fanon, as determinações sociais concretas se estendem para além
das relações contraditórias entre classes sociais e acabam por se processar mediante outras
dimensões, como a racial e a psicossocial. A realização da sociedade se faz pelas formas que
operam na consciência dos sujeitos, estes que se perdem nas teias de suas próprias relações
vivenciadas. A mentalidade dominante assim é pensada em termos estruturantes da relação
estabelecida entre dominador e cultura dominada:

Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de
inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural — toma posição
diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana (FANON,
2008, p. 34).

128
Verificamos ambivalências produzidas nessa relação, no sentido de que o negro se pensa a
partir da cultura hegemônica, não como uma escolha individualizada, mas por contingência dos
fatores da educação e da cultura que envolve os signos existentes do que é existir socialmente.

Quanto a esses processos, podemos analisar a corrente ideia de que os negros desejam
ser brancos, de que se a questão social econômica se torna favorável, e há mecanismos
que proporcionam a ascensão social, o negro vislumbra se tornar mais branco. Sabe-se que
a sociedade brasileira hierarquiza a cor, tornando mais prestigioso o indivíduo tanto quanto
mais branco for, sendo que o olhar do preconceito recai fortemente sobre as características
fenotípicas:

Meu pai era negro e minha mãe é branquinha de olhos verdes, lindos, maravilhosos!
E eu sou meio caminho lá: sou uma morena clara de cabelo meio indefinido, não se
sabe se é liso, se é crespo, se é... mas isso, agora, porque quando eu era pequena
tinha o cabelo muito ruim (REIS, 2002, p. 41).

Reis coletou narrativas que demonstram a ambivalência na auto identificação presente


na sociedade brasileira. A autora buscou entender os processos psicossociais envolvidos na
identidade étnica do mulato entre “ser um e outro e, ao mesmo tempo, não ser um nem outro”
(2002, p. 35).

Bento (2002) nos indaga sobre os processos de organização política de caráter libertador
das ações discriminatórias, no Brasil. Para ela, existe um “pacto narcísico” construído a
partir das relações entre brancos e negros que mascara o racismo brasileiro, deixando o
afrodescendente à mercê da análise do chamado “problema negro”, uma herança do passado
escravista que acarreta pesadas determinações sociais e raciais na sociedade pós-escravidão.
Segundo a autora, o “pacto narcísico” assegura o silenciamento sobre o racismo engendrado
no processo histórico e se estrutura no padrão universal de identidade baseado na “brancura”.
Nessa convenção, as apropriações simbólicas são vistas como relativas ao modo de agir
da população negra e os brancos que, mesmo tendo consciência dessas desigualdades,
reproduzem uma cultura em que não se veem partícipes.

A reafirmação do ideal de “branquitude” compõe uma dinâmica narcísica em que aspectos


positivos são reforçados nos brancos e projetados os negativos nos negros, tais como os
vícios, a pobreza, a criminalidade e a marginalização. Esse processo impede a análise das

129
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA

identidades étnicas e raciais como componentes das ideologias, políticas econômicas e sociais
e simbólicas que colaboram a explicar a questão do racismo enquanto parte das relações
sociais na medida em que a construção da identidade se vincula sempre em relação aos outros
numa relação de alteridade.

O conceito de narcisismo se remete às explicações da psicanálise sobre a construção


do eu em estreita dependência com o outro. Freud (1914/1996) designa o narcisismo como
uma etapa importante do processo de constituição do ego, caracterizando-o como o amor
de si mesmo. Sendo inscrita no caminho do desenvolvimento libidinal, entre o autoerotismo,
característico do bebê e o amor objetal, essa fase é fundamental para a constituição do amor
por si mesmo. A saída dela ocorre ao se formarem laços com os outros na experiência social,
mantendo ainda parte da libido investida em si mesmo, que não é totalmente direcionada ao
objeto. Seria, dessa maneira, que se constituem as subjetividades, numa relação entre o eu
e o outro, entre perda e incorporação e reformulação do ser na medida em que ao sujeito
o mundo externo se torna “real”. Renunciamos às identificações primordiais para construir
narrativas próprias. Mas, o retorno do abandonado será sempre um algo a ver pelo caminho.
Por isso, o sofrimento é algo que aparecerá como o universal na medida em que buscamo-nos
nos outros.

Bento observa que na psique de massa, se reafirma essa dinâmica de identificação:

Kaes nos mostra que os produtos do recalque e os conteúdos do recalcado são con-
stituídos por alianças, pactos e contratos inconscientes, por meio dos quais se ligam
uns aos outros e ao conjunto grupal, por motivos e interesses superdeterminados.
Esse acordo inconsciente ordena que não se dará atenção a um certo número de
coisas: elas devem ser recalcadas, rejeitadas, abolidas, depositadas ou apagadas.
Mas, enfatiza que, ao possuir um ar de falsidade, elas possibilitam um espaço onde o
possível pode ser inventado. (BENTO, 2002, p. 46).

Analisando o pacto edípico e o pacto social brasileiro, Hélio Pelegrino analisa a violência
crescente entre jovens nas grandes cidades como reveladoras das relações assimétricas no
país. A ruptura com o pacto social explica a cisão, no nível do inconsciente, com o pacto edípico.
Segundo o autor, a volta do recalcado se manifesta no que ficou reprimido ou suprimido, vindo
à tona sob a forma de conduta delinquente e antissocial: “Os migrantes, os paus-de-arara, os
bóias-frias, os 40 milhões de brasileiros reduzidos à pobreza absoluta, esses não têm nada –
absolutamente nada – que os levem a respeitar e prezar a sociedade brasileira” (PELEGRINO,

130
1993).

As relações sociais norteiam o comportamento dos indivíduos e refletem uma carga


simbólica e os lugares na estrutura do sistema. Quanto à relação entre a classe social e a
ordem simbólica, analisa Bourdieu (2013) que à distribuição desigual de bens acompanha
um sistema simbólico percebido nas práticas sociais como marcas distintivas de valoração
dos atributos, como o belo, o feio, a posse de bens materiais e de estilos de vida ou ainda as
localizações das propriedades.

Nesse sentido, Ab’Saber (2007) define algumas correspondências entre a mentalidade das
elites brasileiras atuais e estruturas sociais do passado, partindo da teoria da constituição do
sujeito formulada pela Psicanálise, nascida no século XIX. O autor analisa a impossibilidade
do estabelecimento de uma “solução de compromisso” no ambiente de formação das elites
senhoriais. A escravidão subvertendo a impessoalidade e a liberdade dos sujeitos teria
construído relações que transgrediram os limites da construção do indivíduo moderno forjada
pela não interdição sobre os desejos e o seu consequente recalque, que, no âmbito da cultura,
significaria entrar no pacto social.

Diferentemente do capitalismo e da formação da burguesia europeia em que a existência do


assalariado simboliza uma espécie de barramento ao acesso e ao gozo primitivos, a sociedade
brasileira, imersa nas relações escravistas, patriarcais e autoritárias, cria um “desvio do sujeito”
ao não estabelecer a alteridade como fundante das relações sociais (AB’SABER, 2007, p.
270). Na constituição da ordem burguesa e do homem iluminista, a “solução de compromisso”
institui um pacto social de individuação, nele o trabalhador moderno será livre para vender a
sua força de trabalho ao proprietário da empresa.

Na ordem social brasileira, constitui-se, assim, uma contradição por meio de uma “cisão”
entre a herança colonial e os misteres de modernização: uma espécie de imperativo do gozo,
que o autor explica da seguinte forma: “Tal estranho sistema se caracterizaria pela pesquisa
heterônoma do baixo sadismo ilustrado, noção de difícil nomeação, fantasia subjetivante
periférica, de base histórica material, que se revela no fundo da volubilidade geral, fixada pela
escravidão” (2007, p. 280).

Se esse imperativo do gozo carente de signos de alteridade tem sido parte do imaginário
social e culturalmente vivenciado, as mudanças passam, principalmente, pela desconstrução

131
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA

dos meios que o reproduz mediante o conhecimento e modificações de práticas sociais que
subjazem às dependências psicossociais, econômicas e culturais. Hill (2015) analisa, nesse
sentido, a importância de trabalharmos as memórias coletivas como narrativas escolares
que possibilitariam delimitar e produzir o conhecimento sobre o presente e o passado e que
podem permitir a constituição das identidades. Nesse sentido, tais narrativas impulsionariam a
crítica sobre as ideologias constituintes da consciência dos estudantes abrindo caminhos de
emancipação das teias de repetição das dominações, dores e sofrimentos.

DESCONSTRUINDO O OPRESSOR DENTRO DE SI NA SALA DE AULA

A partir da década de 1930, a preocupação pela definição do caráter nacional brasileiro


deslocou as narrativas tradicionais deterministas sobre a “raça” e passou a privilegiar outras
referências. A partir de teorias raciais do século XIX, as elites intelectuais produziram um
pensamento próprio que apontou para o embranquecimento gradativo da população por via
da miscigenação, contrariando os fundamentos de que esta miscigenação levaria sempre à
degeneração. Partindo-se desse caldo teórico, promoveu-se a entrada maciça de imigrantes
europeus, como solução para o problema do final da escravidão e da entrada do país na
modernidade, construindo as bases de práticas sociais que tornariam invisíveis os elementos
étnicos fundantes da sociedade brasileira (SCHWARCZ, 2012, p. 38).

Um olhar mais otimista se estabeleceu com a formulação do “mito das três raças” cujas
bases teóricas renovadoras tomam a mestiçagem como uma questão cultural. O conjunto da
obra de Gilberto Freyre apresenta, nesse contexto, a noção de via de mão de dupla ao procurar
afirmar a contribuição cultural do negro na construção da nação brasileira, uma intepretação
sobre a interpenetração cultural que valoriza elementos de africanidade na formação social,
como a culinária, a língua, a música, o carnaval, entre outros caracteres. Freyre, no entanto,
deixa incólumes as questões da superioridade e da inferioridade, na medida em que sua teoria
indica uma espécie de amálgama sociocultural criando a imagem de uma “democracia racial”.
O que é importante atentar com essa mudança em curso na política nacional é a busca por
construir bases para a criação de um novo status que defina o Brasil mais unitário, homogêneo
e democrático.

132
Tratava-se, segundo Schwarcz de criar novos símbolos que permitiriam a identificação
da cultura popular e mestiça como “ícones desse país”. A culinária, a música, o samba e a
capoeira, reprimidos no final do século XIX, além de datas comemorativas que passam a exaltar
figuras de religiosidade próximas às dos negros, anteriormente, rejeitadas pelo catolicismo
dominante, é transformada em elementos culturais brasileiros.

A autora identifica nesse projeto de democracia algumas ambiguidades, pois, ao mesmo


tempo em que a musicalidade, a dança e o futebol se transformam em símbolos culturais,
verifica limites bem definidos nos ideais democráticos, uma vez que tais expressões culturais
vão sendo permeadas pelos gostos dominantes e tornadas ponte para atravessar as barreiras
sociais: “... já que só se atravessava essa fronteira sob certas condições: tal como ocorria
na casa de Tia Ciata, apenas a elite “dos bambas” e seus convidados – gente de prestígio
econômico e social no Rio de Janeiro – podiam, de fato, tomar parte ativa no samba” (2012, p.
64)

Sodré considera a música negra como espaço de liberdade para a construção da resistência
e, ao mesmo tempo, de enfrentamento das barreiras sociais no Brasil. Para ele, a aceitação de
ritmos originários das camadas populares socialmente excluídas sempre implicou em criação
de formas culturais possíveis para a inserção dos grupos negros, e mesmo a indústria cultural
se tornará o espaço da criação de filtros do que é ou não assimilável pelo conjunto social.
Segundo Sodré:

O lundu, por exemplo, tinha uma forma mais ‘branda’ e uma ‘forma mais selvagem’ (o
lundu-chorado). Chorar significava, no jogo do pôquer, acentuar ou destacar alguma
coisa. No lundu-chorado, acentuavam-se o meneio dos quadris, o jogo do corpo, o
movimento sensual das mãos (1998, p. 31)

O autor analisa que as expressões culturais negras são resistências à assimilação cultural
e sobrevivência numa sociedade altamente hierarquizada. Para ele, suas formas originais se
modificam em face da necessidade dos grupos de adotarem novas táticas de preservação e
continuidade da cultura negra. Emblemática seria a casa de Tia Ciata, citada como exemplo
de território estrategicamente dividido em função das relações travadas com a sociedade
para abarcar as diferentes modalidades de expressão musical: “... tinha seis cômodos, um
corredor e um terreiro (quintal). Na sala de visitas, realizavam-se bailes (polcas, lundus, etc);
na parte dos fundos, samba de partido-alto ou samba-raiado; no terreiro, batucadas” (SODRE,

133
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA

1998, p. 15). Nesse sentido, o samba se tornaria, mais do que um instrumento de um grupo
marginalizado ou exemplo de assimilação, passando a demonstrar uma forma dialética de
afirmação étnica e racial no ambiente urbano brasileiro.

Gilroy (2001) analisa as manifestações artísticas e musicais negras sob a ótica das mu-
danças que a modernidade impulsiona nas estéticas, culturas e identidades. Questiona as
interpretações essencialistas que buscam traços de africanidade comuns aos artistas negros,
em termos de autenticidade. Essa discussão procuraria pensar as questões de identidade e
cultura com o surgimento cada vez maior de estilos e gêneros e analisar como tais estilos se
relacionam com as raízes diaspóricas do povo negro, no mundo da tecnologia, da indústria
cultural e segundo seus artistas. Esse processo tem sido entendido, por uns, como diluição e,
por outros, como inautenticidade:

Ambas as posições são representadas nas discussões contemporâneas sobre a


música negra e ambas contribuem para preparar um diálogo entre os que encaram a
música como um meio básico para explorar criticamente e reproduzir politicamente a
essência étnica necessária da negritude e aqueles que contestariam a existência de
tal fenômeno orgânico unificador (2001, p. 205).

O autor chama a atenção para a importância de pensar essas expressões a partir das
relações sociais que a suscitam, entendendo que há uma complexa dinâmica que transforma a
noção de comunidade no desenvolvimento do mundo moderno desde o fim da escravidão. A
indústria cultural, o espaço das totalidades nacionais, o avanço das tecnologias e as conexões
globais acarretaram mudanças quanto às formas e os conteúdos das novas produções artísti-
cas e da musicalidade, nos quais, os artistas negros procuram se inserir. Essas considerações
dão suporte à crítica de Gilroy (2001) às visões sobre a permanência de essências imutáveis
baseadas na africanidade ou numa identidade negra absoluta. A questão mais importante
seria a relação entre as gramáticas de poder sobre o corpo dos indivíduos e a experiência dos
contextos da modernidade. Os deslocamentos contínuos dos centros culturais, identitários e os
impactos da discriminação racial, implicam na construção de novos sentidos possíveis à noção,
inclusive, de comunidade frente às formas de dominação estabelecidas sobre os grupos.

Esses distintos quadros teóricos contribuem à compreensão das estéticas culturais expres-
sas pelos sujeitos no interior das relações sociais e pensar tais estéticas como fundamentais
para a crítica de processos formativos homogêneos. A educação formal, ao deixar as ex-

134
periências vivenciadas pelos estudantes fora dos muros da escola, reduz as possibilidades
do encontro entre sujeito e história. Nesse sentido, a valorização da cultura afro-brasileira
a partir da reunião de elementos sociais e culturais justapostos, constitui reconhecimento e
fortalecimento dos sujeitos frente aos mecanismos de opressão.

Acreditamos que o rap contém potencialidades de trabalho na sala de aula pelos conteúdos
críticos que apresentam nas narrativas dos jovens periféricos negros sobre si mesmos. No
caso brasileiro, assim como o samba e o funk, o rap tem adesão do público da periferia e
sofre processo de marginalidade. Essas estéticas musicais também têm entrado no mercado,
mas, também, se realizam de forma irreverente mesclando-se a diferentes estilos musicais
populares, tais como a embolada e os repentes nordestinos, ao mesmo tempo em que recebem
influência dos rappers norte-americanos. Podem ser analisadas como práticas culturais de
representação de um território de exclusão e também de um território de criação, à medida que
os grupos buscam uma identidade de periférico pobre e negro, ganhando visibilidade (CARRIL,
2006).

Béthune(2003) acredita que, no hip-hop, a escrita deixando de ser referência absoluta


passa a ser apenas mais um modelo, promovendo-se, assim, uma verdadeira transgressão na
cultura tradicional, pois convida a uma mútua contaminação/fusão entre a oralidade e a escrita.
Nesse sentido, suas concepções de cultura apontam para o sentido inverso do que prevalece
na cultura escolar que insiste em manter as dimensões orais e escritas rigidamente separadas.

O rap Antigamente Quilombo Hoje Periferia, dos rappers Z’Àfrica Brasil chama a atenção
pela atribuição de quilombo às periferias. Qual a pertinência dessa reivindicação? Que
processos identificam o quilombo com a condição de jovens periféricos negros nos bolsões de
pobreza urbana?

Aqui sentindo flores prometeram um mundo novo


Favela viela morro tem de tudo um pouco
Tentam alterar o DNA da maioria, Rei Zumbi.
Antigamente Quilombos Hoje Periferia
Levante as caravelas aqui não daremos tréguas não, não,
Então que venha a guerra
Zulu Z’Africa Zumbi aqui não daremos tréguas não, não

135
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA

Então que venha a guerra


(Antigamente Quilombo, Hoje Periferia. Z’África Brasil, 2002).

Esse rap foi trabalhado com jovens da periferia de Capão Redondo, em São Paulo, a
partir de oficinas semanais, na ONG Casa do Zezinho. Durante o ano de 2012, buscamos
construir conhecimentos sobre a relação dos estudantes com a cidade de São Paulo e a história
brasileira. A letra foi escolhida por aludir à ideia de um novo mundo produzido pela ocupação e
exploração da terra brasileira. Nele, os colonizadores trouxeram escravos confinando-os às
senzalas; a abolição foi uma nova promessa, mas acabou seguida pela formação das periferias,
favelas, vielas e morros que concentra grande parte dos negros até hoje. Chama a guerra para
construir um novo quilombo, território de liberdade organizado pelos africanos escravizados e
que permanece como imaginário de luta e igualdade.

Dentro do projeto Rappers, os novos mensageiros urbanos na periferia de São Paulo: a


contestação estético-musical que emancipa e educa, foram realizadas discussões sobre temas
urbanos a partir do cotidiano vivenciado pelos jovens, além de suas narrativas, pesquisamos
filmes, música, o hip hop, fotografias e jornais, com o objetivo de analisar as imagens, infor-
mações e conhecimentos anteriores sobre estes jovens. Partindo das relações familiares,
vizinhança, amizades e trabalho, realizamos visita ao bairro, levantamento das relações com
a escola e o restante da cidade e outras regiões de origem das famílias dos estudantes.
A importância do trabalho foi a de fomentar parâmetros pedagógicos com os princípios da
pedagogia crítica e da pedagogia culturalmente relevante construindo análises da realidade
por meio da música.

Foi possível pensar sobre a invisibilidade da cultura afro-brasileira no processo de metropoliza-


ção de São Paulo que levou à fragmentação dos lugares de sociabilidade e à separação entre
espaço e memória negra. A Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos é, ainda,
hoje, uma referência fundamental, tendo sido construída no início do século XVIII, em 1725 e
após ter sido transferida para outro local, finalizada, em 1904. Localizada no Largo do Pais-
sandu e construída pelos escravos, hoje, não é frequentada pelos negros devido à distância
do centro em relação às periferias da cidade. A cidade de São Paulo, de 1881, era ainda
concentrada, e quando ocorre a sua expansão, perdem-se locais de referência da presença
afro-brasileira, como: o Quilombo do Saracura (no atual bairro do Bexiga), a Procissão da

136
Alma de Captura de Negros, o mercado de rua, onde se vendiam comida e ervas africanas, as
Irmandades, o Pelourinho e o caminho dos escravos fugidos para o Quilombo do Jabaquara. A
expansão urbana levou as famílias negras para longe, propiciando a fragmentação cultural, a
perda da cidade e da memória. Observa-se a concentração de negros nas bordas periféricas
da cidade, em 2003, enquanto a região central sudoeste é quase branca.

O desenho do corpo dos estudantes, também, foi relacionado com a cidade e conversado
com eles sobre tais vínculos. P., um dos meninos, de 14 anos, lembrou-se do trabalho do mapa
e respondeu que a importância do desenho do corpo se deve ao mesmo ser o endereço de
cada um, e a identidade também. Daí foi discutida a relação entre periferia e quilombo no que
tem a ver com liberdade e identidade. Alguns descreveram a periferia como um lugar em que
os pobres moravam e o quilombo, um lugar de refúgio de escravos fugitivos. Perguntaram se
o quilombo poderia ser considerado como uma pessoa, outros responderam que não, pois
se tratava de uma comunidade. Então, perguntamos por que o Z’África Brasil denominava a
Periferia como Quilombo? Responderam que não era um quilombo, mas a periferia poderia
ser um refúgio, local em que não se paga pela água e nem luz elétrica. Falamos que o Mano
Brown explica que “periferia é igual em todo o lugar” e os meninos falaram que sim, pois são
os pobres que não podem pagar por uma casa em outros bairros.

Convidamos o Sr. V. para conversar com os alunos sobre a capoeira, então, eles disseram
que estavam surpresos que o “tiozinho da câmera” fosse também mestre da capoeira. Todos
muito animados se reuniram em torno do V., sendo que alguns foram buscar instrumentos para
acompanhar a cantoria. O Mestre começou a chamá-los: “E então, galera, vamos cantar sobre
o quilombo, que foi a reunião de vários ex-escravos que conquistaram a liberdade, fugindo
da escravidão”, daí iniciou com uma canção sobre o quilombo e os quilombolas. Foi muito
bonito!! Todos cantaram, sendo acompanhados pelo atabaque, por um pandeiro e o berimbau.
Várias canções foram entoadas de forma entusiasmada pelos meninos que batiam palmas e
cantavam.

137
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pensamento de Freire sobre o que definiu a "cultura do silêncio” deixou um legado


filosófico de envergadura para a escola contemporânea. Sua interpretação dos mecanismos
de dominação é acompanhada de uma proposta de ação a partir da problematização dos
conteúdos em face da cultura dos sujeitos em sala de aula. Essa pedagogia crítica influenciou
pensadores de outros países, que apresentam reflexões voltadas aos jovens negros em
situação de pobreza e marginalização urbana, nos EUA e Canadá, como Henry Giroux, Peter
Mclaren, Hill, Billings. Nota-se presente nesses autores a noção de que o currículo e pedagogia
adotados fariam mais sentido para os jovens caracterizando-se como culturalmente relevante,
na medida em que apelariam para as suas experiências e visão de mundo, desconstruindo,
assim, a rejeição às suas comunidades e a necessidade de se esquivar delas.

Billings (2008) a respeito de uma pedagogia culturalmente relevante analisa que esta
poderia contribuir no processo de ensino e aprendizagem, havendo um ponto crucial de
concordância com as nossas ponderações neste trabalho sobre o fato de que a educação
escolar não deve se limitar a incutir informações nas crianças. A autora define a pedagogia
culturalmente relevante sob três pilares: o desempenho escolar, a competência cultural e
a consciência sociopolítica. Resumidamente, trata-se de não aceitarmos que as crianças
frequentem a escola diariamente e não aprendam nada, mais ainda do que aprender, significa
o desenvolvimento de um aprendizado crítico, que as fariam questionar sobre o que e por que
estão aprendendo tais conteúdos.

No segundo pilar, o princípio é o da construção da capacidade das crianças entenderem


quem elas são de onde vêm e porque essas estratégias pedagógicas são importantes para
ajudá-las na aprendizagem. Nesse sentido, entende-se que a educação é o centro da difusão
de uma cultura homogênea, mas num universo constituído de diversidade.

Por fim, o terceiro pilar parte da contribuição do pensamento de Paulo Freire sobre a
educação como consciência social e realidade vivida, o que permite compreender que a
questão do sucesso escolar não depende apenas do indivíduo e não se esgota nele, ao
contrário, é elemento social e constrói cidadania A consciência sociopolítica serve para fazer
com que eles entendam que os estudos que fazem na escola e o que aprendem aí têm um
objetivo social maior.

138
Assim, a música como instrumento didático exerce grande poder ao fomentar a abrangência
da cultura e das manifestações artísticas, possibilitando o encontro da literatura oral e a escrita
junto aos saberes e às subjetividades dos envolvidos, bem como o conhecimento das técnicas
musicais e as expressões contemporâneas e passadas de estilos. Nas práticas pedagógicas,
destaca-se a importância do processo como facilitador da aprendizagem, da experiência que a
musicalidade poderia oferecer para a expressão de sentimentos, ideias, valores culturais e o
desenvolvimento de habilidades comunicacionais. Contudo, observa-se que esse processo
deve refletir a presença dos sujeitos e partir de suas experiências para o encontro entre sujeito
e história.

Nessas possibilidades, consideramos a presença dos sons negros que, historicamente,


não são reconhecidos nas presenças de seus sujeitos, pois foram marginalizados, em vários
momentos, assim, como tudo que dizia respeito à cultura africana e afro-brasileira. As formas
de fortalecimento das identidades negras reconhecidamente passaram pela música, sendo
muito rica e extensa essa produção.

Como diz Hill (2009), a tendência tradicional escolar é representar as ideias e interesses
dos grupos dominantes e conservadores. A história que conhecemos sobre o mundo e sobre o
passado revela muitas informações a respeito de nós mesmos, do que acreditamos e do que
encontramos como verdade. É preciso deixar evidente que a linguagem histórica, transmitida
por meio de diversos meios, incute certa interpretação carregada de determinados valores que
colaboram para imprimir formas de opressão sobre as pessoas. O autor oferece a ideia de
que o trabalho do docente pode ser comparado a um “curador de feridas”, ao compartilhar
narrativas de dor e sofrimento, como as expressas nas letras de rap que são muito próximas
do cotidiano dos jovens negros nas periferias.

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141
6. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE
ÉTNICOCULTURAL: EM BUSCA DE FUNDAMENTOS

Valmir Henrique de Araújo1

NOS PASSOS DE UM PROJETO HISTÓRICO

A tese de uma alfabetização científica (CHASSOT, 2001) com vistas à diversidade étnica e
cultural, trata do esboço de uma pedagogia para as séries iniciais do ensino fundamental nas
comunidades quilombolas com a inserção das temáticas relacionadas à física. Os conceitos
de física devem ser conciliados aos saberes locais dos aprendizes para que se possa tentar
uma construção/reconstrução de identidade étnica e cultural das crianças a partir dos saberes
da tradição e dos saberes locais (MORIN, 2004).

As hipóteses em que se apoia a proposta é a de que é possível a conciliação entre o


conhecimento científico e os saberes da tradição e os saberes locais e o respeito ao educando,
aprendiz de ciência (ARAÚJO, 2009). Esta última é a postulação fundamental com base na
concepção do educar de Paulo Freire:

O desrespeito à leitura de mundo do educando revela o gosto elitista, portanto,


antidemocrático, do educador que, desta forma, não escutando o educando, com ele
não fala. Nele deposita seus comunicados. Há ainda algo de real importância a ser
discutido na reflexão sobre a recusa ou ao respeito à leitura de mundo do educando
por parte do educador. A leitura de mundo revela, evidentemente, a inteligência do
mundo que vem cultural e socialmente se constituindo. Revela também o trabalho
1
Professor Doutor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia no Programa de Mestrado em Relaçoes
Etnicas e Contemporaneidade e nos cursos de Fisica e Engenharia da mesma universidade.

143
6. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE ÉTNICOCULTURAL: EM BUSCA DE
FUNDAMENTOS

individual de cada sujeito no próprio processo de assimilação da inteligência do


mundo (FREIRE, 1998, p. 139 grifo nosso).

É esta postulação que tem servido de diretriz para muito pesquisadores da educação:

Acreditamos ainda que o conhecimento que o aluno já possui como ser social e seu
desenvolvimento intelectual devem ser respeitados e aproveitados como elementos do
processo ensino/aprendizagem. Tais preocupações estão relacionadas não apenas
com proposições didático-pedagógicas, mas também com a visão de ciências que
julgamos adequada para a formação do jovem que frequenta a escola de ensino
fundamental. (TRIVELATO, 2000, p. 253)

Para tanto, a ideia é evidenciar os valores étnicoculturais como artefatos mediadores do


conhecimento (ARAÚJO, 2009), para construir tanto o conhecimento científico nas escolas
e ambientes educativos em conciliação com os saberes da tradição ou local, quanto a iden-
tidade étnica dos aprendizes de ciência, à medida que estes constroem um conhecimento.
Vislumbra-se um projeto educacional que se discuta conceitos científicos e tecnológicos in-
tegrados aos saberes dos educandos em uma aprendizagem colaborativa e que se insira na
tendência educacional de formação cidadã, haja vista as necessidades advindas do processo
de reestruturação social.

Nesse panorama é que a educação científica surge como um direito dos estudantes e uma
exigência do século XXI para a formação da cidadania. Essa proposta exige uma educação
para além da mera memorização ou aplicação tecnológica do conhecimento. Dessa forma,
está então anunciada a postulação de uma educação integral em que se considere a cognição,
a afetividade e a contemplação da diversidade étnica e cultural de nossa sociedade para que
a aprendizagem faça sentido para os aprendizes de ciência, os novos leitores do mundo, a
ciência como uma componente da sua vida cultural. Na perspectiva dessa educação, aquele
que aprende os conceitos científicos busca formar também a sua identidade; aquele que
aprende se enraíza em sua comunidade local e sabe conectar-se à comunidade global; aquele
que aprende procura relacionar o aprendizado com sua história e seu cotidiano e se sente
parte da humanidade na elevação de sua autoestima; aquele que aprende situa o aprendizado
como acervo da humanidade.

Um princípio norteador da proposta é que a formação dessas identidades sócio-histórico-


culturais cidadãs e democráticas, só podem ser possíveis se o ensino contemplar que o

144
estudante seja um sujeito ativo na produção de seu conhecimento em um ambiente colaborativo,
e que esse conhecimento seja percebido a partir de seu referencial ou de seu acervo cultural
(ROMÃO, 2001, p. 166). E é nessa perspectiva que a Educação Científica para Quilombolas,
com a inserção do ensino da física, passa a inserir a robótica educacional e a narrativa
poética da ciência no ensino fundamental e busca proporcionar uma aprendizagem em que a
construção do conhecimento seja mediada pelos sistemas simbólicos e pelas experiências
científico-pedagógicas de uma ciência que é considerada universal e pode se relacionar ao
contexto cultural local aos saberes socialmente construídos na vivência de cada indivíduo em
sua comunidade.

Com essa perspectiva, é que procuro discutir alguns fundamentos teóricos para uma
alfabetização científica com foco na diversidade étnico-cultural em sala de aula, em especial,
do ensino fundamental, tão marcante na região do Sudoeste da Bahia e com tão pouca
visibilidade. Nesta região, diferentemente de outras regiões do país, as escolas públicas do
ensino fundamental lidam com uma especificidade bem própria: uma diversidade étnica racial
sem visibilidade, orientada por um ensino com forte tendência ideológica de homogeneização
do conhecimento.

A alfabetização científica aqui proposta é parte de um amplo projeto histórico que tem
discutido a criação de uma educação quilombola no Brasil com objetivo de resgatar os valores
locais com respeito a diversidade étnica e cultural (VALENTE, 2003; GOMES, 2003; MATTOS,
2003; DOMINGUES, 2009; PARÉ, OLIVEIRA, VELLOSO, 2007). Esta educação almeja um
largo horizonte e coloca como ponto de partida a construção de princípios educacionais que
podem nortear um novo modelo de sociedade – esta que oscila em face das constantes mu-
danças impostas pela globalização (GIDDENS, 2000; HALL, 2005) –, calcada na solidariedade
e respeito mútuos, transformando as pessoas e levando-as a se empenharem a serem constru-
toras e reconstrutoras de suas identidades (NASCIMENTO, 2001; ROMÃO, 2001) bem como
em detentoras de alta autoestima (ROMÃO, 2001).

Tal educação é aqui aventada como um dos horizontes do século XXI. Dentre os desafios
apontados,

O ensino das disciplinas científicas tem-se alterado nas últimas décadas. Se há


anos atrás o principal objetivo era fornecer informações atualizadas, hoje espera-se
que esses campos do conhecimento contribuam para formar cidadãos capazes de

145
6. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE ÉTNICOCULTURAL: EM BUSCA DE
FUNDAMENTOS

compreender a sociedade, fortemente influenciada pela ciência e pela tecnologia


(TRIVELATO, 2000, p. 252).

Há algum tempo seria impensável ensinar física, em qualquer nível de educação, que não
fosse na perspectiva de difundir as verdades postuladas e testadas pelos cientistas.

Por muito tempo o ensino fundamental também teve a meta de fazer com que os alunos
e as alunas aprendessem a ler, a escrever e a calcular. Esses ainda são investimentos
mínimos exigidos nas aprendizagens básicas e necessárias para que os estudantes possam
ingressar, enquanto sujeitos sócios-históricos-culturais, no dinâmico processo de conhecer do
mundo letrado e globalizado, e acessar conhecimentos cujo domínio é um dos símbolos de
inclusão social. Com o tempo, a escola começou a exigir mais. Passou a investir na superação
de ser mera reprodutora de conhecimentos e costumes, e tem procurado ampliar os seus
horizontes de responsabilidades ao tentar atuar na perspectiva de formar amplamente para
a cidadania. Entenda-se amplamente como uma perspectiva para além da já difícil adoção
das diretrizes curriculares presentes nos PCNs, esta que indica a formação de cidadãos
cientificamente letrados (CHAVES, SHELLARD, 2005, p. 201). Entretanto, a constituição da
cidadania necessita de uma mudança no sistema de ensino e o sistema de ensino exige uma
mudança de mentalidade. Uma mudança está na dependência da outra sem que se saiba qual
das duas é a que deve ser a primeira a ser iniciada. Há que se começar por algum lugar, pois
na formação da cidadania se faz mister o domínio de categorias e conceitos que permitam
compreender e intervir no mundo.

Apesar deste ensino se pautar nas referências formais, de veicular os conhecimentos


universais difundido por todo o planeta, segundo as reflexões de Paré, Oliveira e Velloso (2007,
p. 222), esses conhecimentos, mesmo considerados essenciais para população quilombola,
tem pouca ligação com o entorno imediato, com o que pode dar sentido à construção de
um conhecimento aproximado. Um grande problema tem sido o de confundir o conteúdo do
conhecimento estabelecido com o método de veiculação. Isso porque, pelo menos no que
tange ao ensino de ciências, na maioria de nossas escolas são ensinadas em seus aspectos
catequéticos, falocráticos, universalista e do que se entende por “orientação eurocêntrica”
(DOMINGUES, 2009, p. 980). Dessa forma, o conhecimento veiculado é inquestionável,
produzido pelo gênero masculino, e por ser universal vale para as pessoas de todas as

146
nações e culturas. Essa forma de ensino tem propagado o valor das classes dominantes e é
considerada natural nos cursos de formação das áreas exatas. Como o conhecimento científico
é considerado universal, o ensino de ciências tem como objetivo transmitir um conhecimento
considerado verdadeiro e na avaliação desse conhecimento se exige a sua reprodução tal qual
se transmitiu. Esse modelo que nós professores acatamos tacitamente tem a crítica de Hall
(2006, p. 334) que se coloca contra uma noção particular de conteúdo, entendido como um
sentido fixo e homogeneizado, que pode ser analisado em termos de transmissão do emissor
para o receptor.

A perspectiva da educação quilombola aqui esboçada inclui um ensino de ciência para


a cidadania como parte da necessidade de aproximar as duas culturas (SNOW, 1995), clas-
sicamente cindidas em grandes áreas disciplinares e incomunicáveis, a cultura científica e
a cultura das humanidades. E aqui acrescento a essa aproximação as culturas locais e da
tradição, bem como considerar o acervo cultural de cada indivíduo aprendiz de ciência para
um sujeito implicado na experiência de viver e construir o conhecimento e se propor a ser
um transformador da sociedade. E nessa ideologia temos Paulo Freire (1998, p. 71), que
postula a necessidade do respeito à dignidade e identidade dos educandos, levando-se em
consideração as condições em que eles vêm existindo, reconhecendo-se a importância dos
conhecimentos que trazem para a escola.

BREVE REFLEXÃO DE UMA ESTRATÉGIA METODOLÓGICA

O roteiro preliminar sugere fazer um breve inventário dos saberes da comunidade (ARAÚJO,
2016) e investigar as potencialidades de alguns desses saberes e, a partir daí, que se possa
traçar uma estratégia que proporcione ao sujeito, aprendiz de ciência, um pertencimento
científico ligado às suas raízes e atribua a este aprendiz o papel de agente no processo de
construção de sua identidade étnica em religação (MORIN, 1998, 2003, 2004, 2005) ao seu
ambiente-território.

Na pedagogia aqui em desenvolvimento, o foco – diferentemente dessa transmissão linear


presente na maioria das escolas – o processo de construção do conhecimento (BORGES, 2008,
p. 25-33; CERRI ; TOMAZELLO, 2008, p. 71-79; SANTOS, 2009, p. 128) será mediado por

147
6. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE ÉTNICOCULTURAL: EM BUSCA DE
FUNDAMENTOS

experiências simples e de fácil execução com artefatos didáticos. Avaliaremos esse processo
tanto pela observação do modo com que as crianças possam interagir nos grupos (VIGOTSKY,
1993, p. 71-102) quanto pela reelaboração dos conceitos da física envolvidos nas experiências,
segundo um modo bem particular das crianças perceberem. Esse modo bem particular está
em consonância com as ideias de Hall (2006, p. 342) para quem “sempre existirão discursos
na sociedade que são os meios pelos quais as pessoas tornam significativo o mundo, dão
sentido ao mundo”. Conhecer é, assim, reelaboração de atores sociais, pois

Você não pode fugir do fato de que dizer algo significa desmontar uma configuração
de sentido existente e começar a esboçar uma nova. (...) não existe um significado
fixo único e, consequentemente, nunca poderá existir uma leitura fixa, baseada na
noção de um conjunto de posições ideais-típicas (HALL, 2006, p. 349).

No entanto, apesar da multiplicidade de leitura que tanto um texto quanto uma experiência
física ou mental possa suscitar, admite-se que a representação matemática seja a linguagem
universal da ciência e que deve ser lida sem ambiguidade. A princípio, diante de uma equação
matemática a leitura deve ser unânime. Talvez por isso, quando se inicia o ensino formal
de física no final do ensino fundamental, para Damásio e Steffani (2008, p. 4503-1), “o
conteúdo, que quase sempre é ensinado é mecânica, em geral, restringe-se ao estudo da
cinemática, com uma linguagem puramente formal”. O foco desse ensino tem sido, na maioria
das escolas, uma preparação para a abordagem da física no ensino médio e este, por sua
vez, tem o aspecto de transmissão de informações e operacionalidade por meio de equações
matemáticas (VILLANI, 1981; 1984). Esse início de estudo da física se dá apenas no nono
ano do Ensino Fundamental II ou oitava série, apesar de Schroeder (2007, p. 89) considerar a
física como “o mais básico dos ramos da ciência”. E é por esta consideração que é proposto,
em concordância com outros autores, a inserção da física nas séries iniciais. Contudo, admito
que “a intenção de ensinar física para crianças das séries iniciais poderia soar estranha para
alguns educadores” (DAMASIO ; STEFFANI, 2008, p. 4503). Para estes autores, a física
é introduzida sem ser identificada com precisão nas séries iniciais na disciplina ciências.
Por isso, a proposta de elaborar/implementar uma pedagógica interétnica colaborativa na
alfabetização científica (CHASSOT, 2001), com a inserção da Física nas primeiras séries do
ensino fundamental ao adotar uma perspectiva mais ampla a respeito dos propósitos do ensino.
Nestes propósitos, poderemos identificar uma oportunidade singular apoiada em Schroeder

148
(2007, p. 89) para que as crianças desenvolvam seu capital simbólico (DOMINGUES, 2009,
p. 982) através da vivência de situações ao mesmo tempo desafiadora e prazerosa, tendo
em conta as especificidades culturais da comunidade quilombola e as exigências postas à
educação nesse novo século (HAMBURGUER ; MATOS, 2000). Nesse desafio Moreira, citado
por Damásio e Steffani (2008, p. 4503), chama a atenção para o fato de que “o ensino de física
deve promover a compreensão do mundo e não iniciar a formação de um cientista”. Pois está
em jogo a ludicidade de aprender a aprender, o papel do prazer e da alegria no processo de
aprendizagem. Ainda assim, a ludicidade não significa mera diversão, pois as crianças devem
trabalhar com significados físicos, discutir os significados e propor soluções. Para Damásio e
Steffani (2008, p. 4503-03) são muitos os problemas de física que a criança não consegue
explicar, por isso se deve testar quais estariam ao alcance de seu estágio cognitivo. E não só,
mas tentar conhecer como esses aprendizes de ciência “percebem e compreendem o mundo
físico que os cercam (...), como eles veem e explicam os fenômenos fundamentais e qual é
a lógica usada por eles” (CARVALHO, 1989, p. 3) na recepção dos conceitos. Essa é uma
das razões de fundamentarmos teoricamente até mesmo o uso de artefatos nas experiências,
e não utilizá-los como adereços lúdicos de baixo custo para estimular e sim, para que as
experiências estejam ao alcance de quem as realize (ARRIBAS, 1987) para desafiá-las a
resolver os problemas (CARVALHO, 1989, p. 61) por meio de tentativas e diálogos de maneira
colaborativa.

Para Schroeder (2007, p. 90), aprender ciência está para além da racionalidade cognitiva,
mas inclui desenvolver “seus valores pessoais, a capacidade de perseverar, de lidar com
frustrações (autocontrole) e refletir sobre suas ações e expectativas, ou seja, desenvolver
suas habilidades afetivas, uma vez que o aprendizado necessita de um motivador”. Segundo
Ferreira (2010, p. 220), esse tipo de abordagem não foi apreciado a contento nos Parâmetros
Curriculares Nacionais em 1997 e não se pode deixar “passar despercebidas as limitações
com que a temática étnico-racial é tratada por tais “parâmetros”. Em sintonia com esta vertente,
Parré, Oliveira e Velloso (2007, p. 230) defendem que “a escola brasileira precisa estudar
melhor os esquemas de pensamento do seu alunado e, sobretudo, as dimensões da expressão
afrocultural dos afrodescendentes, a fim de que se possa, realmente, discutir a existência de
um ensino democrático, inclusivo e emancipatório no Brasil”. Nessa perspectiva é que Eugênio
(2010, p. 199-200) indica que apesar da legislação brasileira estar permeada de dispositivos

149
6. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE ÉTNICOCULTURAL: EM BUSCA DE
FUNDAMENTOS

legais que procuram contemplar a diversidade cultural no espaço da educação é “impossível


falar em qualidade de ensino sem falar da formação do professor (...) das transformações
sociais que irão gerar transformações no ensino”. Dentre os problemas enfrentados no fazer
pedagógico, Eugênio (2010, p. 202) reflete acerca das “dificuldades enfrentadas pelos docentes
para lidar com a diversidade e, ao mesmo tempo, com possibilidades inventivas de trabalho
com a diversidade etnicorracial...”.

A transmissão de conhecimento como método de ensino de um conhecimento universal,


tem merecido crítica, sendo atribuída a denominação de “ensino tradicional” (VILLANI, 1984,
p. 76-96) como uma de suas marcas. Para Eugênio (2010, p. 203), esse tipo de ensino é
um dos modelos, em que há um conteúdo que o professor deve transmitir. Por outro lado, a
nossa proposta de um pedagogia interétnica colaborativa, contudo, está inserida no modelo da
perspectiva de reconstrução social que valoriza o trabalho com a diversidade.

Em face da importância da escola em ser um ambiente educativo por excelência, e não


mero reprodutor de conhecimento, é que essa pedagogia se propõe a promover a autoestima
da criança (PARÉ, OLIVEIRA, VELLOSO, 2007, p. 225 ; SCHROEDER, 2007, p. 89), e
a capacidade de aprender para além dos aspectos utilitários (SCHROEDER, 2007, p. 89).
Admitimos que a temática étnico-racial seja dicotomicamente antiga e atual. E é pela sua
antiguidade histórica e atualidade que

Parece absurdo, mas a coexistência entre negros e brancos, de forma pacífica e


respeitosa, ainda é um tabu em muitos espaços sociais. Quando o espaço em
questão é a escola, um lugar, em tese, despido de qualquer tipo de discriminação,
a situação se torna ainda mais preocupante. Existe um racismo velado no espaço
escolar, muitas vezes disfarçado de brincadeiras, mas tão carregado de perversidade
quanto qualquer manifestação explícita de intolerância, e a maioria dos educadores
ainda mantém uma postura passiva ante a questão (MONTANHA ; RIBEIRO, 2010).

Montanha e Ribeiro (2010) comentam acerca do II Simpósio de relações étnico-raciais


e Educação e III Seminário de Mulheres Negras que “admitir e discutir o problema parece
ser o caminho mais acertado na busca por soluções”. Esse é um dos pontos relevante
dessa educação para quilombolas, na tentativa de contribuir no campo das relações étnico-
raciais. Como um tema recebe novas leituras por parte dos pesquisadores da academia, o
pesquisador Eugênio, em entrevista à Montanha e Ribeiro, ressaltou a urgência de se aumentar
as pesquisas no campo das relações étnico-raciais, inclusive na UESB, mesmo que já existam

150
muitos professores, dos três campi, trabalhando com essa temática, além de alunos
que também estão investigando as relações étnicorraciais, mas ainda é necessário
aprofundar o debate e as discussões. Daí a necessidade de eventos como esse, para
que a gente possa levar à população os resultados das pesquisas que estão sendo
realizadas aqui dentro (MONTANHA, RIBEIRO, 2010).

Apesar de termos planejado uma prática pedagógica na forma de Oficinas para tentar
estudar o processo de recepção de conceitos da física, enfatizamos que será necessário
reelaborar essas Oficinas em função do conhecimento local. Isso com base nas reflexões
de Eugênio (2010, p. 204) que indica que para atingir uma educação de qualidade social, o
pesquisador deve assentar sua formação no enfrentamento das dificuldades que se apresentam
na prática do cotidiano, dentre essas dificuldades uma com a qual não somos contemplados
ainda nos currículos, que é lidar com a diversidade de culturas em igualdade de direito, pelo
fato de não termos uma preparação para o trabalho com a diversidade étnica.

Para a nossa proposta não cabe conhecer para transmitir. A nossa preocupação é no
conhecer a especificidade da escola na comunidade quilombola, e nela tentar reconhecer
as diferenças raciais e culturais existente no cotidiano escolar e poder respeitar tais valores
para integrá-los ao processo de construção de conhecimento. Por isso nossa proposta se
insere numa perspectiva extra-curricular para não ter de esperar que a diversidade seja
valorizada quando surgir “uma reformulação nos currículos escolares” (EUGÊNIO, 2010, p.
206) que possa exigir práticas pedagógicas, por meio de decretos, dirigidas às diferenças
raciais, culturais, sociais e outras formas. Por fim, podemos dizer que

Pensar em diversidade pressupõe falar na questão das desigualdades. Um olhar mais


atento para os grupos excluídos do processo de escolarização no Brasil nos aponta
para as mulheres, os pobres, os indígenas e os afro-brasileiros. Dados mostram
que a maioria de desempregados no Brasil é de negros, assim como o índice mais
baixo de escolaridades e a menor renda per capita que está entre os não brancos.
(...) a exclusão social se dá de forma multifacetada, o que nos impele a olhar o
oprimido tomando como foco as questões de gênero, raça, orientação sexual, classe,
nacionalidades, limitação física e intelectual, geração, dentre outras (EUGÊNIO, 2010,
p. 210, grifo nosso).

Na perspectiva de promover a autoestima e o desenvolvimento de outras potencialidades,


além das cognitivas, avaliaremos a recepção dos conceitos da física pelas crianças por meio
das narrativas poéticas da ciência. Estas narrativas que inicialmente foram concebidas como
estratégia de aprendizagem (ARAÚJO, 2009, p. 8), passam a consistir em um instrumento

151
6. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE ÉTNICOCULTURAL: EM BUSCA DE
FUNDAMENTOS

de observação etnográfica (SCHMITT; TURATTI; CARVALHO, 2002, p. 4). As narrativas,


diferentemente da catequese irrefletida da operacionalização matemática em sala de aula, não
reproduzirão o conhecimento tácito. Elas se tornam um veículo para dar visibilidade a uma
cultura ao mostrar uma nova configuração do imaginário das crianças, enquanto sujeitos étnico-
culturais pertencentes a uma comunidade quilombola. Essa impossibilidade na reprodução
de conhecimento pelas narrativas deve-se ao envolvimento ativo do “sujeito implicado na
construção do conhecimento” (ARAÚJO, 2009, p. 60), e encontra ressonância na teoria da
recepção (HALL, 2006, p. 333-381), pois “o mundo real não está fora do discurso; não está
fora da significação”. Pois “cada significado é um ato de produção” (HALL, 2006, p. 342). Será,
então, pela leitura das relações semânticas (POWELL; BAIRRAL, 2006, p. 60) estabelecidas
pelas narrativas, estas como um tipo de organização discursiva usado para agir no mundo
social (MOITA LOPES, 2002, p. 57-84), e enquanto instrumento cultural (VIGOTSKY, 2001) que
torna possível a construção de identidades e emergência de traços étnico-raciais e culturais da
comunidade quilombola, posto que as leituras que se faz do mundo, para Hall (2003, p. 357),
“surgem da família em que você foi criado, dos lugares em que trabalha, das instituições a que
pertence, das suas outras práticas”.

Paré, Oliveira e Velloso (2007, p. 216) enfatizam que a diversidade étnica e cultural do Brasil
tem sido focalizada nos estudos sociais e educacionais. Portanto, manter a difusão de uma
monocultura nas escolas da Bahia deve ser posto em questão. Apesar da nossa proposta em
focalizar a física, considerada uma ciência exata, e as leis físicas serem naturais e possuirem
um status de universalidade, observamos que elas foram criadas, inventadas ou descobertas,
em sua maioria na sociedade europeia e norte-americana, consideramos o fazer científico, o
conceber a ciência como leitura de mundo dependente das características culturais. Por isso,
temos de abrir uma fenda “nesse conhecimento ocidentalizado, eurocêntrico, presente nas
escolas formais” (PARÉ, OLIVEIRA, VELLOSO, 2007, p. 217). E a narrativa poética da ciência
ao proporcionar aos aprendizes expressarem os seus costumes, a sua vivência, os possíveis
traços étnico-raciais e étnico-culturais que tornam possíveis uma maneira de visibilidade de
um processo de identidade na diversidade étnica-cultural, pode vir a ser esta abertura no
desenvolvimento de uma leitura bem particular do conhecimento. Particularidade presente na
indissociabilidade entre cultura e desenvolvimento defendido na Unesco pelo Brasil (MIGUEZ,
2005, p. 21).

152
Dentre alguns pontos relevantes da proposta assinalamos, o papel das narrativas em
contribuir na afirmação das crianças enquanto sujeitos de sua própria história a partir da
construção do conhecimento. Nesta construção ao inserir a territorialidade e valorizar seus
traços culturais, dialogicamente aflui e reflui na valorização do sujeito ao referir-se ao local em
que mantém ou mantiveram autonomia cultural.

E é a partir dessa posição historicamente desfavorável no que diz respeito às relações


de poder, que comunidades quilombolas vêm lutando pelo direito de serem
agentes de sua própria história. Em tal situação de desigualdade, os grupos
minoritários passam a valorar positivamente seus traços culturais diacríticos e suas
relações coletivas como forma de ajustar-se às pressões sofridas, e é neste contexto
social que constróem sua relação com a terra, tornando-a um território impregnado
de significações relacionadas à resistência cultural. Não é qualquer terra, mas a
terra na qual mantiveram alguma autonomia cultural, social e, conseqüentemente, a
auto-estima (SCHMITT; TURATTI; CARVALHO, 2002, p. 7 grifo nosso).

A importância da proposta encontra-se, dentre outros parâmetros, no desafio de na


emergência de construção do conhecimento proporcionada pelas narrativas: para estas
afluem os traços étnico-culturais, enquanto sentimentos de pertença e refluem uma identidade
étnica-racial temporal e espacial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em linhas gerais, a importância da proposta pode ser entendida como o atendimento a


uma necessidade e exigência históricas de uma educação científica voltada para a diversidade
étnica-cultural e a superação de um déficit curricular com a inserção da física nas séries
iniciais do ensino fundamental. Pois, apesar dos avanços tecnológicos proporcionados pela
física, as citadas séries não abordam os conteúdos e quando o fazem é de forma apenas
disciplinar e não transdisciplinar. Eis, então, que a relevância do projeto está na tentativa
de que se possa contemplar no processo de construção do conhecimento da criança uma
maneira de aprendizagem em meio à vivência de uma cultura, e não em momentos imperativos
na imposição de conhecimentos universais que devem ser transmitidos para, em seguida,
ser testado de forma conclusiva. Para tanto, esse projeto vai necessitar de planejamento de
estratégia metodológica (MORIN, 1998, p. 191; 2004, p. 11) para dar significado ao resgate
valores culturais e fazer emergir os elementos constitutivos de uma cultura como uma forma

153
REFERÊNCIAS

de organização coletiva internalizada pelo sujeito. Tal empreendimento educativo ao tentar


contemplar as especificidades regional e cultural é um problema ainda em curso.

Portanto, encerra-se a reflexão nesse ponto com ênfase na importância da construção do


conhecimento como condição necessária para a construção da identidade étnica e cidadã
de uma pedagogia interétnica colaborativa em que o estudante possa: a) se reconhecer
autor do próprio conhecimento; b) se reconhecer ator social de uma cultura produtora de
conhecimento e, consequentemente, c) poder tentar construir sua identidade em um processo
de aprendizagem e valorizar o sujeito em sua subjetividade plena (cultural, étnica e racial).

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159
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO
QUILOMBO BARRO PRETO E A RESISTÊNCIA PARA A
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

Edilene Machado Pereira1

Marise de Santana2

[. . . ] nós dizemos que ‘Selma’ é agora, porque a luta por justiça é agora. Nós sabemos que os
direitos pelos quais eles lutaram 50 anos, 100 anos atrás estão sendo comprometidos agora
mesmo, neste país. Nós sabemos que, exatamente agora, a luta por liberdade e justiça é real
e continua nos EUA e no Brasil.

(John Legend, 2015)

Sabe-se por meio de estudos realizados por pesquisadores como: Mattoso (2003); Reis
(1989.); Prado (2001), entre outros, que os negros chegaram ao Brasil como escravizados e
por mais de 300 anos essa população foi submetida a rigorosas e desumanas condições de
trabalho e moradia. Foram eles que sustentaram a base econômica brasileira, ao contrário do
que foi propalado e ensinado nos livros didáticos, esses escravizados não foram passivos e
acomodados com a sua condição de escravizados e seus sofrimentos, muito pelo contrário,
sempre foram resistentes à condição.
1
Doutora em Ciências Sociais (UNESP). Pos-Doutorado em Ciências Sociais Antropologicas (UESB/Jequié).
Bolsista PNPD/CAPES 2015.
2
Doutora em Antropologia (PUC/SP). Coordenadora do Mestrado em Relações Etnicas e Contemporaneidade
da UESB/Jequié.

161
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO PRETO E A
RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

Coube a cada um desses negros criar estratégias de sobrevivência, portanto, em toda


região que existiu escravizado, existiu luta, resistência seja pelo suicídio, seja pelas guerras,
seja pelas fugas, feitiçarias, insurreições e organizações de quilombos Moura (1986- 2010);
Chiavenato (1987).

Ao final da escravatura o governo brasileiro não se preocupou com a condição dos escrav-
izados, abandonando essa população a sua própria sorte, como sabiamente relata Florestan
Fernandes:

A desagregação do regime escravocrata e senhorial operou-se, no Brasil, sem que


se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência
e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os
senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos lib-
ertos, sem que o Estado, a Igreja ou outra qualquer instituição assumissem encargos
especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da
vida e do trabalho. O liberto viu-se convertido, sumária e abruptamente, em senhor de
si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora
não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros
de uma economia competitiva.” (1978, p. 15).

A Lei Áurea teve apoio, segundo Dagoberto Fonseca (2009), de todas lideranças negras
do período, entretanto não foi o suficiente para proporcionar nenhuma garantia institucional e
podemos dizer nenhuma garantia territorial, pois,

O próximo passo após a abolição deveria se a concessão de terras e moradia aos


ex-escravizados. A terra era a única maneira de os africanos e seus descendentes
participarem da sociedade e tomarem parte do sistema educacional, na saúde, etc
(FONSECA, 2009, pg. 67).

As comunidades negras estiveram presentes no território brasileiro antes e depois da Lei


Áurea. Muitos para fugir da escravidão e outros para fugir do preconceito sofrido por ser
ex-escravizado. Procuraram se unir para garantir o direito às terras. A constituição de 1988
reconheceu o direito às terras ocupadas pelas comunidades quilombolas, sendo o Estado
obrigado a emitir-lhes títulos de proprietários (Silva, 2011).

De acordo com a história brasileira, quilombo, palavra originária dos povos de línguas bantu
(kilombo), era definido como locais de refúgio dos escravizados africanos e afrodescendentes
em todo continente americano. Eram aldeias que ficavam escondidas nas matas, em lugares
preferencialmente inacessíveis, como o alto das montanhas e grutas, e era onde então os
escravizados se reuniam e conseguiam levar uma vida livre.

162
As pequenas aldeias eram também chamadas mocambos, e tanto eles como os quilom-
bos duraram todo o período da escravidão no Brasil. Esses quilombos brasileiros segundo
Kabengele Munanga (2006) apresentam muitas similaridades com o kilombo africano, que se
desenvolveu em Angola entre os séculos XVI e XVII, pela forma de resistência e autonomia.

Os quilombos eram entendidos pelo governo português em 1740, respondendo ao Conselho


Ultramarino como toda habitação de negros fugidos, que passe de cinco, ainda que não tenham
ranchos levantados em parte despovoada nem se achem pilões neles (MOURA, 1986, p. 16).

Eles foram localizados em locais de refúgio dos escravos africanos e afrodescendentes


no Brasil, no Suriname e em toda a América espanhola. Eram formados em lugares de difícil
acesso e de visibilização como morros, montanhas, cavernas. Eram organizados internamente,
geralmente, também recebiam índios e/ou brancos.

Segundo Vera Rodrigues (2012, p.19),

São múltiplas as designações na América Latina e Caribe que nomeiam sujeitos e


formatos de organização social no contexto da diáspora africana. Essa multiplicidade
forjada em processos socioculturais, contextos históricos, expressões identitárias e
mesmo no “poder de nomear” exercido no âmbito da opressão nomearam as cate-
gorias de quilombolas, quilombos e/ou mocambos (Brasil), palenqueros, Palenques,
Cimarron e Cumbes (Colômbia, Cuba e Venezuela), Maroons (Haiti, Jamaica e outras
ilhas caribenhas), conforme apontam autores como Souza (2008) e M’Bokolo (2009).

Nomeiam-se quilombolas os habitantes dos quilombos, são descendentes de africanos


escravizados que mantêm tradições culturais, de subsistência e religiosas ao longo dos séculos.

Quilombos Contemporâneos como comunidades negras rurais habitadas por descen-


dentes de africanos escravizados, que mantêm laços de parentesco e vivem, em
sua maioria, de culturas de subsistência, em terra doada, comprada ou ocupada
secularmente pelo grupo. (MOURA, 2007, p. 03)

Atualmente, as comunidades quilombolas passam por um processo de reconhecimento


legal de sua existência por parte dos governos nacionais e das organizações internacionais.
Um dos quilombos mais famosos foi o Quilombo dos Palmares, que ficava na então capitania
de Pernambuco, atualmente o estado brasileiro de Alagoas. Esse quilombo recebeu esse
nome pois um escravo chamado Zumbi foi o grande líder da aldeia.

A constituição de 1988 aprova o pedido de ativistas negros pelo reconhecimento do direito à


terra que os negros seus descendentes ocupam desde o período escravocrata, possibilitando a

163
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO PRETO E A
RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

esses quilombolas o direito à terra que eles têm ocupam historicamente. O Artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias é claro quanto ao assunto: “Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Também segundo o artigo 2o do Decreto 4887/2003, “consideram-se remanescentes das


comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo
critérios de auto atribuição com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão
histórica sofrida”.

O conceito de quilombo se expandiu bastante na atualidade, perpassando seu significado


histórico. Se reconhece essa comunidade pelas suas características antropológicas e terri-
toriais, sua relação com a cultura de matriz africana, definirão sua pertença ou não. Vale
ressaltarmos que nos quilombos existiam negros, negras e também índios e eventualmente
brancos socialmente desprivilegiados (PRIOSTE e BARRETO, 2012, p. 06).

Sendo assim, é a própria comunidade que se auto reconhece “remanescente de quilombo”.


O amparo legal é dado pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, cujas
determinações foram incorporadas à legislação brasileira pelo Decreto Legislativo 143/2002 e
Decreto No 5.051/2004. Entretanto, a luta ainda é severa e árdua pelos direitos territoriais e
permanência para a maioria das comunidades quilombolas no território brasileiro devido aos
interesses do poder público e privado que retardam a titulação dessas terras.

Ao falarmos de quilombos automaticamente nos vem à mente a figura do homem guerreiro


e destemido, entretanto não podemos insistir no erro de apagar a figura feminina. Segundo
Zelinda Barros (2016),

essas mulheres foram ao longo da história invizibilizadas, dificultando mediar as


participação na luta pela construção e preservação desse território, sendo assim é
necessário resistido ao processo de apagamento da nossa memória, que nos impede
de conhecer histórias de mulheres como a de Zeferina, de Aqualtune e Dandara, em
Palmares; de Tereza, do quilombo Quariterê, no Mato Grosso; de Mariano Pará; além
de outras tantas mulheres negras anônimas (p.17).

Essas mulheres foram e são alicerce dessa sociedade, realizando seu cotidiano diário sob
a edificação de uma dinâmica própria baseada em sua própria história, e de uma vivencia

164
coletiva, são mulheres da casa, do trabalho, da luta e da família de onde se fortificam e
alicerçam sua consciência indenitária.

Até o ano de 2003, a competência para titulação territorial (identificação e delimitação dos
territórios), na esfera federal, era da Fundação Cultural Palmares. Por força do Decreto 4.887
de 2003, essa competência passou a ser do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA). Segundo a Fundação Palmares, até o início de 2016, foram certificadas 2474
comunidades quilombolas.

QUILOMBO URBANO E QUILOMBO RURAL

A invisibilização dos quilombolas seja ele urbano ou rural é histórica e perversa, portanto
acreditamos ser necessário reconhecer o silêncio a que foram submetidos. Admitir e com-
partilhar os conhecimentos advindos deste povo é tarefa de todo cidadão, principalmente
dos educadores e dos educandos, como sempre afirma Hélio Santos (2001), quilombo é um
espaço de resistência e de perpetuação de memorias ancestrais.

Para que o espaço físico seja reconhecido como quilombo é necessário que exata uma
memória ancestral negra, legado africano e um número de negros, não é imprescindível que
sejam todos negros, porém sem a memória ancestral negra não é possível que o antropólogo
reconheça essa localidade como quilombo.

A comunidade que vai ser avaliada/identificada pelo INCRA, necessita ter engajamento
político com seu pertencimento étnico é de suma a importância essa identificação. No quilombo,
podemos encontrar o negro, o indígena, o árabe, o branco. Porém o que certifica esse quilombo
é a presença do legado cultural africano. Essa certificação faz parte de outras políticas de
ações afirmativas como por exemplo cotas para negros e indígenas, a fim de responsabilizar a
dívida que o Brasil tem com esses remanescentes de escravizados e indígenas.

Os povos remanescentes de quilombos rurais se identificam desde sempre como quilom-


bolas, por meio de um posicionamento político, entretanto isso não os livra de continuar
enfrentando dificuldades pertinentes a conservação do seu território, visto que seus hectares
sofrem grilagens de terras, avanços de obras urbanas, seus direitos territoriais são desrespeita-
dos continuamente. Questão que se agravam devido à falta de titulação das terras e quando

165
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO PRETO E A
RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

ocorrem é de forma muito lenta, pois a elite rural é o seu grande adversário. Essa população
desde sempre se reconhecem como quilombolas.

Já os quilombos urbanos vivem inseridos implantados nos espaços urbanos e convivem


com toda a complexidade que acarreta essa convivência, que são a realidade da periferia, os
espaços marginalizados pelas autoridades e a segregação a eles impostas, eles enfrentam
também o problema do reconhecimento de sua identidade fora da ruralidade. Buscam assim
como os quilombos rurais segurança jurídica e a proteção governamental.

São desprovidos de políticas públicas, essa desproteção resulta em muitos moradores o


desejo de não serem reconhecidos como quilombola, pelos motivos já citados no início desse
texto que é o sentimento de inferioridade e de marginalização, por morarem na periferia. É uma
população onde encontramos negros e não negros empobrecidos (OLIVEIRA & D’ABADIA,
2015).

Esses quilombos urbanos nos chamou atenção, visto que são pouco mencionados e
visibilizados social e nos livros didáticos, apesar de sermos um país multicultural e portanto
necessitar procurar conviver de forma harmoniosa com as diferenças raciais, culturais e
territoriais.

MULTICULTURA BRASILEIRA

Somos um país onde a diversidade cultural é notória, visto que território brasileiro é
composto de três raças sociais, que são elas o negro, que aqui chegou como escravizados, ao
qual foi negado desde sua chegada, a liberdade e a vivência com sua cultura africana; o índio
que encontramos nas terras brasileiras, os verdadeiros donos, os quais desde o “descobrimento”
do brasil sofrem um processo de extermínio e invisibilização cultural e territorial e o branco que
como colonizados ignorou os “donos da terra, resultando no aniquilamento de várias tribos
indígenas.

Para modificar esse quadro de exclusão e de extermínio, nas ultimas década novos
movimentos sociais se mobilizaram no sentido de denunciar a exclusão sofrida pelos grupos
minoritários, almejando que suas demandas culturas, sociais, religiosas, raciais, sexuais, de
gênero sejam respeitadas, tendo como base a universalização das culturas existentes no

166
território brasileiro e o reconhecimento das diferenças. Entra então em sena o multiculturalismo,
que para Stuart Hall (2003. p.22)

Multicultural é um termo qualitativo. Descreve as características sociais e os prob-


lemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual, diferentes
comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo
tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. Em contrapartida, o termo
“multiculturalismo” é substantivo. Refere-se às estratégias e políticas adotadas para
governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas
sociedades multiculturais.

Dentro dessas estratégias governamentais ou políticas afirmativas o discurso multicultural-


ista visa amparar e reconhecer o quilombo como elemento constitucional brasileiro, possibili-
tando a essa população a propriedade das suas terras, reconhecimento da sua importância
cultural, indenitária étnica e racial, procurando reparar anos de humilhação e exclusão dentro
de uma sociedade tão múltipla como a brasileira.

Conquista essa que devemos ao movimento negro e a todos que são envolvidos com essa
bandeira, de resgate a negritude como um processo de autoestima e valorização da cultura
afrodescendente, na batalha pelo acordar da consciência negra de homens e mulheres em
todo o território brasileiro e respeito das comunidades quilombolas.

Segundo Reis (1996), muitos quilombos formaram-se a partir de fugas coletivas. Entretanto
existem aqueles surgidos a partir de fugitivos individuais unindo-se na continuação a outras
pessoas fugitivas, formando assim outro quilombo, tema por décadas desprezado e invisível
no ensino da história brasileira.

O ENSINO DA HISTÓRIA DOS NEGROS

O Ensino da história da população negra foi um dos valiosos ganhos para a população
afrodescendente em geral e em particular para os remanescentes de quilombos, que foram
reconhecidos como respeitáveis marcos da luta pela liberdade num passado escravocrata e
sua importância na atualidade para a sociedade brasileira e autoestima dos descendentes dos
quilombolas, rescrevendo a “história” que foi contada ano após anos.

A história narrada nas escolas brasileiras é branca, a inteligência e a beleza mostradas pela
mídia também o são. Os fatos são apresentados por todos na sociedade como se houvesse

167
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO PRETO E A
RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

uma preponderância absoluta, uma supremacia definitiva dos brancos sobre os negros. Assim
o que se mostra é que o lado bom da vida não é nem pode ser negro. Aliás, a palavra negro,
além de designar o indivíduo deste grupo étnico-racial, pode significar sujo, lúgubre, funesto,
sinistro, maldito, perverso, triste, nefando, etc. (Hélio Santos, 2001).

O negro no território brasileiro desde sua chegada foi visto como um estrangeiro indesejável,
segundo a pesquisadora Lilia Schwarcz (2005), citada por Pereira (2015). Ele servia para o
trabalho braçal e escravocrata, porém suas cultura e modos de vida eram símbolos de atraso.
Essa ideia tão difundida ainda na sociedade brasileira sempre nos incomodou, a ponto de
procurarmos nos enriquecer de conhecimento histórico sobre nossos antepassados para, entre
outras coisas, elevar nossa autoestima.

Portanto, tudo que se refere ao negro é visto como inferior e feio. O estudo da história
do continente africano e dos negros da diáspora e seus remanescentes é fundamental para
reverter esse quadro de racismo e preconceito que se perpetua ao longo da história brasileira.

Durante anos os livros de história do Brasil, quando o tema contemplava a população


negra ou a cultura afro-brasileira e africana, o foco era sempre a escravidão, o negro como
escravo submisso, preguiçoso e incapaz. Era logo de início, uma forma equivocada de se
descrever a trajetória desse grupo populacional, visto que os africanos que aqui chegara
não eram escravos, era escravizados, ou seja, não de forma passiva e submissa, e sim
de forma indesejada e involuntária. Infelizmente, ano após ano, noções de submissão e
comodismo foram passadas como verdades cristalizadas, convencendo, inclusive, os próprios
descendentes de escravizados no território brasileiro.

QUILOMBO URBANO BARRO PRETO – SUA ORIGEM

Iniciei a pesquisa de campo nesse quilombo urbano a partir de meus estudo de pós-
doutorado no ODERE (Órgão de Educação e Relações Étnicas) com a supervisão da Profes-
sora Doutora Marise Santana. Ao chegar nessa comunidade, tive a surpresa de encontrar um
quilombo totalmente diferente do que eu idealizava a respeito de um quilombo urbano. Porém,
instigava-me novos conhecimentos e quebras de paradigmas, no tocante a essa população
que sobreviveu nos arredores das grandes cidades de forma excludente como no quilombo

168
que pesquisamos.

O Quilombo barro preto é localizado no município de Jequié, no sudoeste da Bahia, com


a estimativa populacional do IBGE em 2015 de 151,528, milhões de habitantes. Segundo
os moradores entre os anos de 1860 e 1880, Jequié era um pequeno povoado, denominado
“Boca do Sertão”, às margens do Rio das contas, que servia de transporte para produtos de
sustentos. Os tropeiros chegavam de várias cidades carregando em cima dos burros suas
mercadorias para serem comercializadas nas feiras.

Esse quilombo é originário da comunidade Barro Preto, que surgiu a partir do século XX,
devido a chegada da estrada de ferro, segundo alguns dos moradores entrevistados. Eles
informam que com o tempo a cidade ganhou ruas modernas e amplas, em substituição as
pequenas avenidas. Vale ressaltar que essas informações são informações obtidas por meio
da história oral. Fomos informados também que nesse período Jequié recebeu um contingente
de aproximadamente 500 garimpeiros, provenientes de maracas.

O Bairro recebeu esse nome, segundo os antigos moradores, pelo fato da terra ser preta
devido as cinzas oriundas da estrada de ferro. Outros acreditam que o motivo foi o número de
negros com suas famílias que habitavam nessa localidade que viviam ali com suas famílias.
Os moradores entrevistados informaram que a população jequieense foi formada pela mistura
étnica/racial de índios, negros, italianos e àrabes.

A partir desses relatos, segundo Tiago Henrique (jornalista), foi encaminhado para a
Ministra Matilde Ribeiro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e
para a Fundação Palmares, um pedido de apoio para indicação dos passos a serem seguidos
para o devido reconhecimento.

Foi dada a resposta de que era imprescindível que a população da localidade se recon-
hecesse como quilombolas. Para isso foi fundada a comunidade de nome “Comunidade Barro
Preto”. Foi indicada a contratação de técnico com conhecimento no processo para atuar no
município viabilizando tal mudança. Por fim, o BARRO PRETO recebeu a certidão de auto
reconhecimento, passando assim a ser considerado efetivamente “Quilombo Urbano”, na
perspectiva de garantir a reprodução física, social, econômica e cultural, abrangendo todas
as terras ocupadas e utilizadas para a subsistência das famílias e na luta por uma sociedade
mais justa e igualitária.

169
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO PRETO E A
RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

Figura 7.1: Mapa de Jequié.

O processo de titulação foi feito de cima para baixo, depois do reconhecimento foi que
os idealizadores partiram para o estudo junto ao antropólogo, estudo esse que ainda não foi
concluído, portanto o quilombo urbano barro Preto ainda não possui titulação. Entretanto com
o reconhecimento muita coisa vem mudando para melhor: a violência diminuiu consideravel-
mente, a escola quilombola Milton Santos é referência para Jequié, tendo até disputa para obter
uma vaga. Após a presença do quilombo, surgiram mercados, jardins, campo de futebol, posto
de saúde, creches, benefícios que antes eram impossíveis. Enfim, a infraestrutura melhorou
muito, segundo os entrevistados; após a presença do quilombo.

Em meio a todo esse avanço, ainda tem moradores do quilombo que ainda tem vergonha
de ser identificado como quilombola, porque se perpétua na mente de parte dessa popu-
lação, dessas pessoas, a visão estereotipada no tocante aos quilombolas como preguiçosos,
sujos, incapazes, etc. Políticas públicas têm proporcionado a esses quilombolas condições
de vencerem essa barreira e isso tem surtido efeito como nos informa um dos moradores
entrevistados.

Não moro perto da escola, porém dentro da comunidade quilombola. Me identifico racial-
mente como negro. Tem quatro anos que moro aqui na Bahia e antes eu me considerava
pardo, eu morava em São Paulo (Ricardo Dantas, estudante do Colégio Milton Santos, Escola
quilombola no Barro Preto).

170
Este estudante, depois que veio para Jequié começou a aprender um pouco mais, pois,
conforme ele, em São Paulo, não existia ensino da cultura afro brasileira. Na Bahia ele começou
a se interessar pelo assunto e hoje se reconhece como um jovem negro.

Um conjunto de coisas que valorizam e elevam sua autoestima entraram na minha


cabeça, resultando minha mudança em relação a minha identidade racial. Estudar
em um colégio quilombola, resulta em muito azaramento, dizendo que o colégio não
é de qualidade e que eu não conseguirem entrar em um colégio de qualidade, por
exemplo o colégio modelo que aqui é considerado o colégio tope de linha. Ele fica no
centro da cidade, em um bairro nobre. (Ricardo Dantas, estudante do Colégio Milton
Santos, Escola quilombola no Barro Preto).

Retornar ao seu lugar de origem e encontrar um local acolhedor fez uma grande diferença
na vida desse jovem,

Estudar aqui no começo não foi agradável, por eu não me reconhecer como quilom-
bola. Hoje eu tenho orgulho de estudar aqui, de dizer com orgulho que eu sou negro e
quilombola. Tenho descendentes africanos, angolanos, não tenho vergonha de dizer
isso para mim estudar em uma escola quilombola é mostrar pertença do que você
realmente é. Eu tenho uma irmã, ela não estuda aqui ainda porque ela é do ensino
das series iniciais, e nós não temos ainda uma escola quilombola que acolha essas
crianças das series iniciais. Ela estuda em uma escola pública é louca de vontade
de estudar aqui na escola quilombola. (Ricardo Dantas, estudante do Colégio Milton
Santos, Escola quilombola no Barro Preto).

Sempre que este jovem está em outro ambiente fora do Colégio Milton Santos, encontra
pessoas que falam mal da escola, pessoas que nem estudam ou estudaram na mesma, então
como esse jovem vem sendo orientado e sua estima está em alta, ele aproveita a oportunidade
para apontar as qualidades do seu ambiente escolar:

Nossa escola é completamente climatizada, com quadra de esporte coberta, a única


reclamação que tenho é de uma sala exclusiva para a biblioteca. Ela divide espaço
com a sala de informática. Falo das viagens que a escola faz, os eventos das escolas.
A gente recebe aqui visitas de órgãos fortes na política. Recebemos por exemplo o
secretário da educação, a visita do governador Rui Costa (Ricardo Dantas, estudante
do Colégio Milton Santos, Escola quilombola no Barro Preto).

A vergonha deu lugar ao orgulho da sua origem e comunidade, com a afirmação do legado
histórico e da história oral. Afastando o complexo de inferioridade, possibilitando um novo
desenvolvimento nos estudos e na sua vida cotidiana.

171
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO PRETO E A
RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

Para mim, estudar na escola quilombola é ter um sentimento de pertença, porém,


alguns ainda estão aqui porque são obrigados pela mãe e pelo pai, não estão aqui
por vontade própria ou pertencimento, apesar do assunto identidade não ser discutido
em sua casa. Minha mãe e meu pai não tocam muito nesse assunto de identidade
racial, porem eu creio que todo mundo lá em casa se identificam como negros, apesar
de meu pai ter a pele mais clara. Aqui no colégio não tem exclusão por raça ou
situação social. Aqui na escola todo mundo se respeita. Ser quilombola para mim é
viver as raízes negras, não desenvolver atitudes racistas. O trabalho realizado aqui
me devolveu a auto estima, e assim eu me sinto muito bem comigo mesmo, gosto
do que eu vejo no espelho. Meus olhos abriram para o mundo, porque eu sei agora
quem eu sou, e isso acaba ajudando a outros negros a se identificarem com sua
raça. Dentre os moradores encontramos, descendentes de alemães, ingleses, é
descendentes de escravizados. (Ricardo Dantas, estudante do Colégio Milton Santos,
Escola quilombola no Barro Preto).

O nosso objetivo era investigar como se dão, nesses espaços, processos de empodera-
mento e equidade, “buscando capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação
entre dois ou mais eixos da subordinação” (CRENSHAW, 2002, p, 177). Apresentando algumas
definições do conceito de identidade, partindo da investigação da origem do quilombo urbano
e a construção indentitária dessa população, suas expectativas e desafios.

Relatos como os de Ricardo, mostram que estamos indo no caminho certo na inclusão
dos quilombolas, valorização da sua cultura, destaque do seu legado étnico/racial/ cultural,
quebrando paradigmas e promovendo a valorização da identidade quilombola. Para o jovem
reconhecer que estuda em uma escola que goza do amparo governamental, e que ela tem
bons professores, bons profissionais, boa merenda, favorece e garante a valorização formal e
afetiva dessa população.

Importante considerar que a maioria dos funcionários moram dentro do bairro, isso ajuda
muito no tocante ao trabalho de construir a identidade quilombola nos alunos.

Outro relato vem de uma senhora de nome fictício Maria do Rosário, moradora do bairro,
ela é branca e durante muito tempo lutou e se ressentiu ao ser chamada de quilombola.

Essa ideia de transformar nosso bairro em quilombola, não foi discutida com a
comunidade, foi algo imposto. Para mim quilombo era o refúgio dos negros fugitivos
das senzalas, preguiçosos e com pouco caráter; portanto eu não queria fazer parte
desse grupo. Sempre fui uma líder aqui na comunidade e me senti desrespeitada.
Porém com as atividades que são oferecidas na comunidade e na escola quilombola,
e os ensinamentos, mudei meu conceito de quilombo e quilombola.

Quando partimos para entrevistar mulheres negras idosas (anciãs denominadas griôts)
observamos o quanto a história oral, sua ancestralidade, identidade étnica, racial e de gênero

172
é importante e fundamental para preservar sua identidade e do grupo ao qual pertencem,
mesmo sofrendo duas ou mais manifestações de subordinação. Crenshaw (2002, p. 177)
chama esta circunstância de interseccionalidade, na qual o sujeito utiliza seus saberes para
fugir da posição de subalternidade.

Sou chefe de família, assumo responsabilidade de sustentar filhos e as vezes o marido


desempregado, sou discriminada muitas vezes pelas próprias mulheres, porém, sei
do meu papel importante na minha comunidade, isso me fortalece (Maria do Rosario).

De fato, muitas mulheres das comunidades quilombolas correspondem à chefes de família,


assumindo a responsabilidade pelo sustento dos filhos e do marido desempregado ou que
recebe um salário inferior ao dela. Entretanto, apesar de quase todas essas comunidades apre-
sentarem fortes traços matriarcais, em muitos casos, as mulheres são submetidas a violências
simbólicas. Ainda assim elas são presença fundamental na construção e desenvolvimento do
quilombo.

Comum a todas essas mulheres é a perspectiva de que não é possível entender a sub-
ordinação das mulheres negras sem levar em conta a raça, a etnia, classe, o gênero e a
sexualidade. E como estes elementos interagem na produção das desigualdades. Por isso é
importante entender e intervir na realidade de exclusão em que se encontram as mulheres
negras brasileiras, conforme assegura Ribeiro:

As mulheres negras, conscientes da importância de seu papel na história, visam


a desmascarar situações de conflito e exclusão. Com isso, não só contribuíram
para a conquista de visibilidade como sujeitos políticos, perante esses movimentos
e a sociedade, como também construíram um curso próprio através da constituição
do movimento autônomo de mulheres negras. Com isso, lutaram e lutam para
garantir a subsistência, direitos sociais e políticos, e qualidade de vida para si, seus
familiares e para a comunidade. Explicitamente, a agenda política das mulheres
negras transcende as questões de gênero, abarcando o combate ao racismo, à
discriminação e ao preconceito racial (2006, p. 5).

Portanto, as mulheres brancas, indígenas e negras que convivem no quilombo Barro


Preto têm consciência das suas lutas individuais e coletivas. O pluralismo precisa existir
para assim ser possivel analisar de forma radical, pela ótica da distribuição do sofrimento
social e psicológico imposto às mulheres brasileiras, principalmente em termos de como essas
mulheres elaboram estratégias individuais e coletivas para lidar com a onipresença da exclusão

173
REFERÊNCIAS

e do sexismo3 e saírem vitoriosas em todos os espaços até mesmo nos quilombos.

CONSIDERAÇÕES

Fazer um trabalho etnográfico é lento e minucioso, exige ir além dos textos atuais e
entender o processo histórico de exclusão perversa da qual a população africana foi submetida.
Necessário se faz ampliar o entendimento à determinada realidade social. Conforme Geertz
(2012) é fundamental observar o que os seus praticantes fazem: a etnografia é um esforço
elaborado para uma “descrição densa”. Portanto aqui com os dados preliminares da pesquisa
em andamento, apresentamos uma síntese dos dados coletados e avaliados no tocante ao
quilombo e em particular ao quilombo urbano do Barro Preto: suas nuances e o papel das
mulheres nesse cenário.

Este estudo é uma amostra parcial de nossa pesquisa e aproveitamos para reafirmar que
trabalhar com quilombos é uma atividade lenta. Alguns entrevistados se auto reconhecem como
negros e mencionam as vitórias alcançadas. Ainda existe um grande número de descendentes
de escravizados que não conseguem identificar-se como quilombolas. A discriminação social
e racial está impregnada e estigmatizada no contexto de vida delas há anos.

Em contrapartida, as mulheres que foram entrevistadas mostram por meio das questões
pontuadas e respondidas que têm uma expressiva participação na comunidade onde vivem.
Elas denotam a forma como se colocam diante dos assuntos da comunidade e que embora
estejam expostas a inúmeras formas de invisibilidades e subordinações, estas mulheres são
protagonistas da história de suas comunidades e peças fundamentais na engrenagem do
quilombo.

REFERÊNCIAS

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Cachoeira, 2016: UFRB. Coletivo Ângela Davis, 2016.

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176
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO
VENCER A SEGREGAÇÃO?

Os quilombos e as territorialidades negras cresceram e se desenvolveram, porque sempre


andaram de mãos dadas, eles são irmãos, existe um laço consanguíneo e simbólico que os
une e fortalece o chão dos territórios. Na Bahia, foi assim: com a Revolta dos Malês que
viviam nas áreas centrais, no entorno e em suas cercanias.

Reinaldo José de Oliveira1

Após 127 anos do fim da sociedade escravocrata, as questões políticas, econômicas,


sociais e culturais, em geral, não viabilizaram a igualdade na estrutura socioeconômica entre
brancos e negros.

Após o 13 de maio de 1888, nas cidades brasileiras a população negra foi segregada nos
meios urbano e rural (COSTA, 2007; OLIVEIRA, 2013). A segregação significou, gradualmente,
o contínuo processo de desenvolvimento das desigualdades e do racismo, separando e
subrepresentando a população negra nas principais áreas da sociedade.

Carlos Hasenbalg (2005) e Antônio Sergio Alfredo Guimarães (1995; 2002) afirmam que o
racismo e o acúmulo das desigualdades se processou no transcorrer do século XX, favorecendo,

1
Doutor em Ciências Sociais. Pós-Doutorado pelo Programa Nacional da Fundação Capes em Sociologia
Urbana. Professor na Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS/Bahia.

177
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?

de um lado, os privilégios da população branca em toda a estrutura socioeconômica e, de outro


lado, a população negra foi deixada em plena sub-representação nos cenários do urbano e do
rural.

No século passado e nesta primeira década do século XXI, a segregação persiste em


nossa sociedade. Aqui, não se arquitetou uma política formal defendida pelo Estado, como nos
Estados Unidos e na África do Sul. Em nossa sociedade, a segregação da população negra
foi sendo generalizada no contexto das desigualdades e da marginalidade social em nossas
cidades.

Em nosso cenário, a segregação se constituiu com as referências do mito da democracia


racial, sobretudo com as ideias de Gilberto Freyre (2005), a respeito da inexistência de barreias
socioeconômicas e espaciais entre brancos e negros no país.

Conforme Henrique Cunha (2016), João Vargas (2013) e Reinaldo José de Oliveira (2013),
as áreas de produção de conhecimento ligadas à cidade, em sua grande maioria, se orientaram
e organizaram o espaço das cidades brasileiras sem tomar a devida atenção das histórias,
memórias, identidades e o acervo histórico e civilizatório das populações negra e indígena. Por
exemplo, os cursos de arquitetura e urbanismo, engenharias e as áreas das ciências humanas
e sociais, veem a produção de conhecimento de forma generalizada, compartilhando com os
ideais de modernização do pensamento europeu e norte americano; com a implantação das
políticas de limpeza e embelezamento, o realce dos centros com a criação de parques, praças
e grandes avenidas (boulevares), além do ininterrupto projeto de abertura de vias expressas,
privilegiando o trânsito do capital e da mão de obra (FELDMAN, 2005).

Em geral, o urbanístico que se expressou no país, francês e norte-americano, propôs


a sociedade moderna e bela, negando e desterritorializando a história e a memória das
populações negra e indígena (FELDMAN, 2005).

É diante deste cenário da população negra, que aqui buscaremos delinear o papel, as
ações e as políticas dos territórios negros e quilombolas para viabilizar a luta contra as práticas
de segregação, racismo e violência.

O texto foi construído a partir de experiências sobre as vivências da população negra nas
cidades brasileiras, em especial, o protagonismo de territórios negros e quilombolas. Dentre

178
as experiências sobre o assunto, o curso de Educação Escolar Quilombola UFRB/SECADI
(2014/2015), através dos debates e trocas entre alunos e professores, proporcionou algumas
reflexões contidas no presente estudo.

Dentre as forças e políticas capazes de vencer a luta contra a segregação, a educação é


um instrumento fundamental para a produção de uma pedagogia que privilegie a diversidade
(MUNANGA, 1994; 2010). A construção de uma pedagogia da diversidade tem como centro
o espaço da educação, local e sede para pensar as diferenças, a alteridade, a igualdade
e o processo de construção da cidadania. Assim como a escola, os espaços das cidades
também são lugares e referências para a elaboração de práticas e saberes tendo em vista a
diversidade.

A escola e a cidade são fenômenos sociais imprescindíveis para a construção de uma


pedagogia da diversidade, diferente da realidade em que vivemos. Hoje, a segregação impede
o encontro, a troca e a promoção de oportunidades materiais e simbólicas de todos nos
ambientes do espaço, do conhecimento e da vida.

Precisamos pensar e estruturar as cidades e a educação orientadas para uma pedagogia


da diversidade. Acreditamos que este é um dos caminhos para vencer a segregação neste
século XXI.

Por mais de quatro séculos de desenvolvimento, de lutas, conflitos e revoltas, os territórios


negros e os quilombos, caminharam juntos, de mãos dadas.

Buscaremos, a partir das referências históricas, socioeconômicas, políticas e espaciais, re-


fletir as ações, os instrumentos e as lutas travadas por intermédio dos territórios negros e
quilombolas.

O curso de Educação Escolar Quilombola realizado nos anos de 2014 e 2015 (doze meses),
sob a coordenação da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, ofertado nas cidades de
Feira de Santana, Cruz das Almas, São Felipe e Santo Antônio de Jesus, alcançou a formação
de 125 professores das escolas públicas.

A prática pedagógica desenvolveu referências importantes, para todos nós, professores


e alunos, em demarcar uma construção teórica em diferentes campos do conhecimento, em
específico, nossas reflexões sobre os espaços e lugares negros nas cidades brasileiras, com o

179
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?

intuito de refletir políticas de eliminação da segregação, do racismo e das desigualdades.

No decorrer do texto, procuraremos melhor delinear as questões em torno do território,


territorialidade e quilombo. Nossa abordagem tem como subsídio a literatura sobre o assunto e
as experiências adquiridas em sala de aula com os professores do ensino básico (fundamental
e médio) que foram nossos alunos no curso de Educação Escolar Quilombola. Para melhor
estruturação do texto, organizamos nossa reflexão em quatro seções: a primeira, abordamos
o conceito histórico e sociológico sobre quilombo; a segunda, desenvolvemos a construção
da categoria território e territorialidade; a terceira, por intermédio do auxílio de cartografias da
população negra, analisamos os avanços das políticas públicas; por último, nas considerações
finais, interpretamos que de 1988 aos dias de hoje, inúmeras conquistas foram alcançadas
nos campos da educação, mercado de trabalho, a titulação de comunidades quilombolas e
a construção de uma pedagogia da diversidade. Portanto, nossa sociedade, parcialmente,
obteve importantes conquistas, mas ainda temos um longo percurso para transformar ple-
namente a sociedade brasileira. A transformação dependerá de um amplo leque de ações
socioeconômicas, políticas e culturais, direcionado aos dos territórios negros e quilombolas.

BREVES REFERÊNCIAS SOBRE QUILOMBOS NO BRASIL

Na história do país, o sentido e a palavra quilombo recebeu diferentes interpretações.


Inicialmente, no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2010), a palavra quilombo apresenta
as seguintes classificações: 1. A origem advém das línguas dos grupos étnicos que para
cá vieram escravizados (quicongos, quimbundo e umbundo). Corresponde aos espaços de
esconderijo, aldeias, cidades ou conjunto de populações em que se abrigavam escravos
fugidos. 2. Estado de tipo africano formado nos sertões brasileiros por escravos fugidos. 3.
A definição expressa o Quilombo de Palmares, constituído de negros fugidos, os quais, no
século XVII, se estabeleceram no interior do estado de Alagoas.

A palavra quilombo, conforme as definições do Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa


(2010), permanece com um olhar pejorativa em relação ao espaço e a população africana e
afro-brasileira. No dicionário, as definições se limitam a afirmar que a população dos quilombos
se resume a escravos fugidos. Ao não apresentar outra interpretação que provoque o conflito,

180
esta interpretação valoriza e torna central a história dos vencedores, ou seja, daqueles que
permaneceram com os mesmos privilégios na história passada e na etapa atual.

A palavra fuga não condiz com o contexto de escravidão, e sim a concepção de busca da
liberdade.

Diferentemente da opinião acima, a história dos quilombos no Brasil, em geral, está


articulada com a constante busca em torno da liberdade, de quebrar as correntes da sociedade
escravocrata. Nas regiões do país, os quilombos inscreveram suas histórias conforme os
embates, os conflitos, as revoltas e perante as etapas do desenvolvimento socioeconômico.
Diretamente, os quilombos e os quilombolas, atuaram para pôr fim ao sistema escravocrata
que perdurou por mais de três séculos (MOURA, 1987). Portanto, o contexto histórico, político
e socioeconômica dos quilombos no Brasil é de extrema riqueza, força e expressão cultural,
mas o conhecimento formal persiste em considera-lo como um espaço de negros fugidos.

Na América como um todo, nosso país foi o último a abolir a escravidão. Em países como
os Estados Unidos, Haiti e parte do Caribe, a luta pela abolição ocorreu em uma conjuntura de
transformações no mundo como a Revolução Francesa que inaugurou o ideal de igualdade,
fraternidade e liberdade e a Revolução Industrial na Inglaterra, que se expandiu pelo mundo.
As grandes transformações ocorreram em diferentes momentos e lugares, mas o cenário
da abolição foi marcado com a luta dos quilombos, das revoltas e embates da população
escravizada.

Nas Américas, principalmente nos Estados Unidos, no Caribe e no Brasil, a população


escravizada, em diferentes tempos e espaços, organizou estratégias e lutas, tendo em vista
a busca da liberdade. Na América do Sul, especialmente o Estado brasileiro, recebeu o
maior número de africanos escravizados. Aqui, houve o espalhamento de línguas, culturas,
tecnologias, saberes e práticas que foram fermentando às identidades do país.

Na travessia do Atlântico e em solo brasileiro, os territórios étnicos e culturais foram se


organizando frente à economia escravocrata. Em momentos diversos, como nas relações
entre a casa grande e a senzala, as territorialidades foram tecendo, além de forças políticas,
identidades sociais para a edificação dos quilombos.

No passado e nos dias de hoje, por meio de estudos históricos, sociológicos e antropológi-

181
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?

cos, temos territórios de quilombos por todo o país, de norte a sul da realidade nacional. Nesta
confluência de espaço e tempo dos quilombos no Brasil, outras interpretações nos auxiliam a
melhor compreender a sua origem e o seu desenvolvimento.

Do século XVII ao final do século XIX, a estrutura e a organização compreendiam espaciali-


dades de pequeno, médio e grande portes. Na história dos Quilombos no Brasil, Palmares é
tida como a principal referência de organização social e política de combate a sociedade es-
cravocrata. Clóvis Moura (1987) destaca que os principais quilombos no país, se organizavam
para fins de defesa, de ataque e para fins de sobrevivência (de forma física, social, cultural e
política).

Nos grandes centros em desenvolvimento dos séculos XVII, XVIII e XIX, como nas cidades
de Salvador, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, os quilombos intensificaram suas lutas
para além de sua territorialidade, em direção aos centros de desenvolvimento socioeconômico.
É exatamente nas áreas urbanas, centro e sede do desenvolvimento e do comércio, que
os quilombos foram se aproximando e promovendo pequenas revoltas, insurreições e/ou
desestabilizando a estrutura da sociedade escravocrata.

Segundo João José Reis (2003), nos idos de 1835, os africanos escravizados, saídos
da região do Recôncavo rumaram em direção a Salvador com o objetivo de tombar o poder
imperial e pôr fim ao trabalho escravo. Na época, a maioria da população que vivia no meio
urbano e rural era de africanos e afro-brasileiros. Segundo o autor, os africanos islamizados
protagonizaram todo o processo de insurreição em Salvador. Diante do processo de rebelião
se juntaram ao movimento os negros que habitavam as áreas centrais e intermediárias, por
pouco, a revolta não se concretizou no Brasil.

Na história da Rebelião Escrava no Brasil, o movimento foi composto por escravizados,


forros, libertos e quilombolas. Os quilombos, as territorialidades e as espacialidades negras
potencializaram uma expressão de força para derrubar a estrutura da casa grande em relação
a senzala.

A obra “Quilombo de Palmares”, escrita por Edison Carneiro é de extrema importância


para a literatura contemporânea. Em razão, não apenas das poucas referências da história,
da sociologia e da antropologia sobre o assunto, ela é central porque houve a promoção de
desdobramentos sociais e políticos. Gradativamente, proporcionou o ensino, a pesquisa, a

182
extensão e as ações dos movimentos sociais negros, no decorrer do século XX.

O livro “Os Quilombos e a Rebelião Negra”, de Clóvis Moura, publicado no ano de 1987,
um ano antes da Constituição Federal, também tem e merece o seu reconhecimento.

Moura (1987) organiza seu escrito sobre os quilombos no Brasil, debruçando-se sobre vasta
informação de documentos, mapas e de literatura pertinente sobre a temática; a organização
e a economia interna dos quilombos, a força de enfrentamento e resistência, as insurreições
urbanas em associação com as forças quilombolas e a luta pela abolição. Além de analisar o
processo de organização e enfrentamento político, Moura traz um mapeamento dos quilombos
nos estados da Bahia, São Paulo, Sergipe, Maranhão e a região Amazonense.

É importante observar, conforme o mapeamento do autor, o desenvolvimento dos territórios


de quilombos no país. Acreditamos que o avanço das territorialidades de quilombos, apontado
por Moura nos anos de 1980, está relacionado com as ações dos movimentos sociais negros,
sobretudo a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que traz no plano formal
direitos relacionados a população negra, como o reconhecimento das terras quilombolas e o
crime de racismo.

Ambos, Edison Carneiro e Clóvis Moura, devem e precisam ser lidos e interpretados nos
estudos e pesquisas sobre a história dos Quilombos no Brasil. As obras dos autores, mesmo
diante das grandes mudanças do tempo e do espaço, são imprescindíveis para os estudos
contemporâneos, desde a formação de professores da educação básica, a graduação e a
pós-graduação.

Até o momento, interpretamos que a história dos Quilombos no Brasil não é a história
contada pelos vencedores. A história dos quilombos no Brasil contempla o universo socioe-
conômico e político de africanos e afro-brasileiros, protagonistas por cimentar as bases do
desenvolvimento e do capitalismo em solo nacional.

Em 1850, com a implantação de Lei de Terras, o Estado brasileiro já estabelecia, no plano


formal, as bases iniciais da segregação negra no país. Antes e na pós-abolição, os quilombos
e a população negra foram segregados, no quadro socioeconômico e na hierarquia de poder
(COSTA, 2007). A sociedade do período republicano demarca, além dos inúmeros processos
de desenvolvimento, compreende um amplo quadro de direitos, que percorre desde o direito à

183
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?

terra, à saúde, à educação e as referências básicas, essenciais para o exercício da vida social.

Nos territórios negros e quilombolas, a segregação teve efeito devastador, como por
exemplo, impediu a população negra e pobre de se tornar empreendedora, de ter a posse e
poder desenvolver e viver da produção da agricultura, da criação e comercialização de animais,
e de forma estrutural, o mito da democracia racial inviabilizou a população negra quanto a
conscientização étnica racial, de organizar revoltas e protagonismos para pôr fim ao quadro de
sub-representação na sociedade brasileira.

No urbano, os quilombos e as territorialidades foram substituídas pela força de trabalho


do imigrante, branco e europeu. Nas áreas onde houve mínima entrada de imigrantes, a
população negra permaneceu nas mesmas posições e lugares. Nos universos rural e urbano,
a mobilidade socioeconômica e espacial não apresentou grandes transformações para os
territórios de quilombos.

Para a professora Ilka Boaventura Leite (2000) falar dos quilombos e dos quilombolas
no cenário atual, é, portanto, proferir uma luta política, que não para e está em constante
construção.

Segundo a autora que cita Munanga (1999), o quilombo brasileiro é uma cópia do quilombo
africano, reconstruído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela
implantação de uma outra estrutura política na qual se encontravam todos os oprimidos.

Leite (2000) afirma que o quilombo, frente a uma leitura histórica, sociológica e antropológ-
ica, proporciona o aparecimento de novos atores sociais, ampliando e renovando os modos de
ver e viver a identidade negra em contínuas formas de apoio e organização com os segmentos
sociais no Brasil, como os territórios negros do meio urbano que lutam contra o racismo e a
segregação, os povos indígenas, as comunidades rurais e ribeirinhas, enfim, os atores que no
dia a dia buscam subverter a ordem e as estratégias da segregação.

Em outra perspectiva, Leite (2008) declara que o quilombo após passar por diferentes fases,
da resistência, do enfrentamento e da organização, hoje, trem trilhado a organização em torno
do direito à terra, a produção de territorialidades e identidades e, nas últimas três décadas
do século XX, a busca por direitos que foram sistematicamente negados. Os direitos dos
quilombolas, dos ambientes urbano e rural, em mais de três séculos, foram sistematicamente

184
negados; as materialidades que envolvem a terra e a sua transformação por intermédio do
trabalho social, produz e reproduz o ambiente construído até as questões não materiais e
subjetivas, por exemplo, a participação na história da cidade, do ambiente construído e do
processo pedagógico de construção de conhecimento.

Petrônio Domingos e Flavio Gomes (2013) fazem um brilhante levantamento da produção


histórica a respeito dos Quilombos no Brasil. Para os autores, o quilombo adquiriu diversos
sentidos: de resistência e liberdade; rebeldia e solidariedade; esperança e insurgência por
uma sociedade igualitária, frente a perspectiva da população negra e das culturas e povos
marginalizados em solo brasileiro. Segundo os autores, conforme o transcorrer dos quilombos
é singular as referências materiais e subjetivas, como a terra, a subjetividade, a cultura e a
memória africana e afro-brasileira. Para os setores da educação e da cultura, é necessário
dialogar, ouvir e perceber, a história e a cultura dessas comunidades, que correspondem às
identidades, histórias e ao patrimônio multicultural da população brasileira.

Os estudos do antropólogo Kabengele Munanga (2010), direta e indiretamente, contribui


com importantes referências para pensar a questão dos quilombos no século XX, sobretudo
nas últimas décadas do século passado. Segundo o autor, os conceitos de raça e etnia,
também subsidiam o melhor delineamento a respeito do quilombo.

A crescente territorialidade de quilombos e da população negra está relacionada com a


realidade social, das lembranças e da memória coletiva que se articulam do passado e o tempo
presente dos grupos historicamente marginalizados. A identificação de negros e quilombolas é
uma categoria política construída no decorrer do espaço e do tempo, portanto, no caso dos
quilombolas, a identificação está intrinsecamente relacionada a um processo de construção da
identidade social intermediada em meio aos conflitos, das lutas, como o reconhecimento social
e a busca de titulação da terra.

De 1988 para cá, ocorreu um movimento crescente de reconhecimento de comunidades


quilombolas. Os territórios de quilombos passam a ocupar a cena pública nacional com uma
agenda política, em torno de direitos que lhe foram negados nos últimos quatro séculos.

A partir da leitura e observação do Mapa 1 - Territórios de Quilombos no Brasil (2015),


elaborado pela Comissão Pró-Índio, existiam 1.619 comunidades quilombolas, espalhadas por
todo o território nacional. Não é um dado fechado, porque no dia a dia, a tendência tem sido

185
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?

a constante transformação com o reconhecimento social e identitário de novas comunidades


quilombolas.

Figura 8.1: Mapa 1. Territórios de Quilombos no Brasil, Comissão Pró-Índio, 2015.

Conforme o mapa acima, no ano de 2015, eram 157 comunidades quilombolas que haviam
conquistado a titulação de suas terras na justiça. Nesse campo do direito à terra, é uma luta
árdua, diante do enfrentamento com os grandes latifundiários, empresários da agroindústria,

186
do mercado nacional e global, do meio político e da hierarquia do Estado. O espaço físico não
é um fenômeno exclusivo da produção identitária dos territórios de quilombos, é a história, a
memória e a vida social tecida e empreendida no chão dos quilombos. É a terra, enquanto
construção social e os elementos subjetivos que definem a identificação dos sujeitos ao
quilombo.

Na cartografia acima, são 1.462 terras quilombolas em processo de titulação. Reiteramos,


a titulação das terras quilombolas é uma luta com os grandes representantes do poder socioe-
conômico e político. Nesse diálogo que buscamos estabelecer, o que significa a conquista da
titulação das terras quilombolas?

Observando atentamente a distribuição das comunidades quilombolas no mapa acima,


temos o reflexo da distribuição da população negra na realidade nacional no mapa sobre quilom-
bos. Segundo o Censo do IBGE, 2010, a população brasileira correspondia a 190.755.799
indivíduos, em dados relativos eram 51% de negros e 47,51% de brancos. Os quilombos estão
distribuídos de forma semelhante a ocupação da população negra nos estados e municípios.
Não temos um número de quantas pessoas vivem e fazem os territórios quilombolas, mas a
concentração é igual ao quadro de participação de população negra, inicialmente nas regiões
norte e nordeste, centro oeste, sudeste e sul.

A distribuição da população negra e quilombola está relacionada ao processo de sed-


imentação e desenvolvimento das bases do capitalismo nacional. A leitura e observação
do mapa subsidia a melhor compreender a segregação da população negra nos ambientes
urbano e rural. A segregação não garantiu a posse da terra para os africanos e afro-brasileiros,
para eles, persistiu a constante luta em torno do direito à terra e a ida aos extremos das
periferias. As forças e os instrumentos de segregação, relegaram aos negros e quilombolas
o percurso da senzala, a terra ilegal, os mocambos, os cortiços, as favelas, as periferias e
a autoconstrução versus a casa grande, os sobrados, a terra legal, a habitação vertical e
horizontal, os condomínios fechados e as extensas áreas de terra para plantio, pastagem e
valorização imobiliária e agrícola.

No mapa acima, os estados de Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Pernambuco, Pará, Mato
Grosso e Rio Grande do Sul, estão em evidência com o alto número de terras em processo
de titulação. É importante uma breve reflexão, por exemplo: Mato Grosso é um dos territórios

187
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?

com grande participação na produção de grãos voltados para agro-industria, é de impressionar


dentre as 69 comunidades rurais, nenhuma conseguiu a titulação; outro caso parecido é o Rio
Grande do Sul, talvez seja o principal produtor de vinho no país e de extensas áreas para o
comércio de bovinos que serve o mercado interno e externo, ali se encontram 88 comunidades
quilombolas em processo de titulação, apenas 4 que garantiram a posse da terra. Este é um
breve quadro, a respeito da situação das comunidades quilombolas no país, no que diz respeito
ao processo de titulação e a luta por direitos. A luta pela titulação das terras, na dinâmica dos
territórios de quilombos é um tema central frente a agenda política. É essencial o direito à
terra, o direito à saúde, o apoio e difusão de tecnologias sustentáveis, a educação pública e
de qualidade ao alcance das crianças, jovens e adolescentes quilombolas, e que os mesmos
possam aprender os saberes e praticas, sobretudo àqueles que pertencem ao universo da
terra, da vida social e de suas identidades.

Conforme o Mapa 2 Territórios Quilombolas na Bahia, tendo a SEPROMI como a instituição


responsável pelo levantamento e caracterização da cartografia (o geoprocessamento das
comunidades tituladas e georeferenciadas), temos a melhor configuração em destaque nas
seguintes direções: 1. Os Territórios de Identidades classificados na Região Metropolitana de
Salvador, o Baixo Sul, o Litoral Norte/Agreste Baiano, Recôncavo e Portal do Sertão, aqui, os
territórios se destacam em razão da aproximação das áreas de maior grau de urbanização,
das territorialidades negras que estão nas áreas urbanizadas e pelo legado do universo social,
cultural e político dos atores sociais negros, como, por exemplo, o legado da Revolta dos Malês
que lutam pelo direito à cidade e em prol dos direitos; 2. Na Bacia do Jacuípe; 3. No Sertão
Produtivo e na Região do Velho Chico; 4. Na Região da Chapada e 5. Na região do Piemonte
Norte de Itapicuru.

Frente a territorialidade de quilombos no país, o Estado da Bahia se constitui como um


locus importante no contexto da organização política, socioeconômica, cultural e territorial, não
pelo simples aspecto demográfico frente ao quadro nacional, mas por sua participação em
todas as etapas da economia nacional, de um lado, o abastecimento com a mão de obra as
principais etapas do desenvolvimento de exploração e, de outro lado, fortalecendo as insubor-
dinações e insurreições negras, de forma interna e externa aos cenários da territorialização,
desterritorialização e reterritorialização (HAESBAERT, 2006; OLIVEIRA, 2008).

188
Segundo Rogério Haesbaert (2006) o cenário da territorialidade, desterritorialidade e
reterritorialidade contempla movimentos contínuos do sujeito e seu grupo social no contexto
espacial e temporal frente às construções, desconstruções e reconstruções, materiais e
subjetivas que incidem sobre as necessidades objetivas e não objetivas dos grupos humanos
que disputam os lugares e posições na vida social.

As territorialidades negras e quilombolas apresentam os movimentos em torno da con-


strução, desconstrução e reconstrução, além de preservar o estado de origem, as forças
sociais e políticas vão se transmutando em busca da conquista de direitos, omitidos na história
do país.

Durante o processo de espraiamento interno e externo, a territorialidade, a desterritorializa-


ção e a reterritorialização se processou, ora com o desenvolvimento de s espaços, lugares e
as ações dos movimentos sociais negros: todas as entidades, de qualquer natureza, e todas
as ações, de qualquer tempo (aí compreendidas mesmo aquelas que visavam à autodefesa
física e cultural do negro), fundadas e promovidas por pretos e negros; entidades religiosas,
como terreiros de candomblé e umbanda; assistenciais, como as confrarias e irmandades;
recreativas, por exemplo, os clubes de negros e mulheres, para fins de atividades sociais e de
apoio material; artística e cultural, orientadas pelos grupos de dança, capoeira, teatro, cordões
e escolas de samba, poesia e musicalidade; e o universo da política, tendo como protagonista
os movimentos Sociais negros (BOTELHO, 2015). Os movimentos sociais negros são uma
força importante para a estruturação das territorialidades negras, no caso dos quilombos, as
praticas e saberes poderá proporcionar melhor delineamento de políticas para a eliminação
da segregação. Diferente do contexto acima, ora o movimento da territorialidade, desterrito-
rialidade e reterritorialidade se orientou por intermédio das forças do capitalismo nacional e
internacional, do mito da democracia racial e do acúmulo das desigualdades e do racismo em
nossa sociedade.

Conforme os mapas 1 e 2 acima, a titulação das terras e o reconhecimento das comu-


nidades quilombolas são conquistas que foram construídas pelo protagonismo dos movimentos
sociais negros, por meio da mobilização social e o enfrentamento da realidade. No caso da
educação, as políticas com vista à construção de uma pedagogia da diversidade, como o
Curso de Educação Escolar Quilombola e a história e cultura africana e afro-brasileira, é parte

189
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?

da edificação e solidificação de contínuos territórios de cidadania.

Figura 8.2: Mapa 2 – Territórios Quilombolas do Estado da Bahia – SEPROMI, 2012.

190
Uma breve observação e interpretação dos mapas 2 e 3, a respeito da cartografia de
quilombos na Bahia, sobretudo a elaboração de Clóvis Moura, chama-nos atenção que a
territorialidade antecede a discussão da Constituição Federal de 1988. A cartografia levada à
frente por Moura, na época e nos dias de hoje, é um marco inicial do processo de organização
da territorialidade quilombola na Bahia e no cenário brasileiro.

No estado da Bahia, a cartografia de quilombos reforça a importância e o valor que o autor


defendeu em sua produção teórica e pratica sobre a temática da população negra.

Figura 8.3: Mapa 3 - Cartografia dos Quilombos Baianos, Clóvis Moura, 1987.

Conforme o mapa 3, o avanço e desenvolvimento dos territórios de quilombos na Bahia,


se deve aos protagonistas negros, das cidades e das zonas rurais, de amplos e diferentes
segmentos.

A afirmação acima, reitera a reflexão dos mapas, porque comprovam o percurso da ideia de
quilombo aqui desenvolvida; a resistência física e social, o enfrentamento político e a produção
de identidades, são fatores fortes e imprescindíveis no tema abordado.

É importante destacar que a territorialidade de quilombos, desde a sociedade escravocrata


aos nossos dias, está entrelaçada com as forças, a energia e o processo de luta com os
atores que vivem e lutam nos territórios negros das cidades brasileiras. Os quilombos e as
territorialidades negras cresceram e se desenvolveram, porque sempre andaram de mãos
dadas, eles são irmãos, existe um laço consanguíneo e simbólico que os une e fortalece o

191
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?

chão dos territórios. Na Bahia, foi assim: com a Revolta dos Malês que viviam nas áreas
centrais, no entorno e em suas cercanias.

Constatamos, a partir dos estudos, pesquisas, cursos de extensão e as ações sociais sobre
a produção das Relações Étnicas e Raciais, em especifico, o Curso de Educação Escolar
Quilombola da UFRB, que as territorialidades negras e os quilombos, em todas as etapas da
história do Brasil, eles se fortaleceram quando somaram forças e caminharam de mãos dadas.

Posterior ao quadro da abolição, na sociedade republicana e do trabalho livre, a organi-


zação mutua persistiu. No processo da aprovação da Constituição Federal, a organização e
persistência de ambos também prevaleceu com a apresentação e defesa de questões que
tocam o direito à terra das comunidades quilombolas, a legislação que pune os culpados por
crime de racismo, são proposições políticas que foram ganhando forma, mas em razão das
lutas diante do cenário que se mantem favorável aos privilégios dos segmentos brancos de
todas as classes sociais, daqueles que se mantem na estrutura socioeconômica e política do
país.

ALGUMAS INTERPRETAÇÕES SOBRE TERRITORIO E TERRITORIALIDADE

O tema sobre território e territorialidade abrange uma área interdisciplinar, no entanto, as


ciências humanas e sociais é quem tem mais se dedicado às interpretações. Por exemplo,
a geografia tem contribuído com questionamentos, leituras e observações a respeito da
genealogia do termo e a sua correspondência no decorrer do século XX e na etapa atual.

Para um dos principais geógrafos do Brasil, Milton Santos (2001), o território é resultado
da construção e intervenção do homem, via trabalho social, diante da história da civilização
humana, artificializando, desenvolvendo e impondo novos instrumentos no tempo e no espaço
das sociedades. Santos descreve que o território é resultado do desenvolvimento do meio
técnico científico informacional.

O território, conforme Santos, representa as faces da perversidade e da enganação,


perverso porque ele impõe ao mundo, em especial, aos países, culturas e povos vulneráveis
às ordens do capital internacional. A face da enganação, a partir do consumo desenfreado,
das tecnologias e do sistema de informação que nos faz acreditar que este é um momento em

192
que todos podem usufruir e viver as territorialidades dos cenários local e global. Na realidade,
a perversidade e a enganação, estão no cotidiano das sociedades, das cidades do mundo
e do Brasil; elas são mercadorias, ideologias, fetiches e poder político que são impostos por
estados e pequenos grupos de pessoas em relação aos países em desenvolvimento e em
pleno estado de pobreza.

A esperança existe? Compartilhamos com a ideia de Santos, o território e a territorialidade


de esperanças estão se inscrevendo por todo o globo, no cenário brasileiro e em diversas
regiões do mundo. O território de esperança corresponde às praticas, saberes e ações,
elaboradas no dia a dia, de forma espontânea pelas classes de menor poder aquisitivo, como
os operários, a juventude, os homens e as mulheres que se organizam em instituições e
movimentos de defesa do campo e da cidade, enfim, a esperança se inscreve no território e
nas territorialidades, provando que sim, é possível uma outra sociedade diferente desta que
está aí.

Os territórios negros e os quilombos no Brasil também representam forças materiais e


subjetivas de uma outra globalização. Negros e quilombolas, mulheres, “sem terras” e “sem
casa”, protagonistas de diversos setores sociais, todos estão lutando por uma causa, o direito
às oportunidades e por uma sociedade justa, igualitária e que respeite o direito às diferenças.

No curso de Educação Escolar Quilombola, trabalhamos o território a partir das principais


referências, que tocam na produção e reprodução de materialidades e subjetividades de poder.
Durante o curso, fomos apresentando os autores e suas interpretações sobre o território, dentre
eles, Milton Santos, Michel Foucault, Renato Ortiz, Marc Augé, Frederik Bart, Philipe Belbari e
Félix Guatarri.

No decorrer, por intermédio de textos, filmes, matérias de jornal e o tema em questão,


os alunos/professores evidenciaram suas experiências do universo social, como a escola,
a cidade e o mundo do trabalho. A forma de apresentação foi organizada, em princípio, a
apresentação oral e dialogada referente ao tema território. Posteriormente, solicitamos a
elaboração individual ou coletiva sobre a seguinte questão: O que é um território negro?

Obtivemos ótimos resultados, a respeito do quadro teórico metodológico sobre o território e


a territorialidade negra. No final, após o diálogo, recebemos questionamentos que contribuem
para o melhor desenvolvimento da centralidade territórios e territorialidades negras em ensino,

193
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?

pesquisa e extensão.

A partir do diálogo dos alunos e de nossa base em ensino, pesquisa, extensão e movimento
social, delineamos nossas observações, ideias, saberes e praticas sobre território e territoriali-
dades negras: espaços e lugares cravados pela memória dos mais velhos (da ancestralidade),
como a casa e o ambiente onde estão depositadas as lembranças e os marcos iniciais das
identidades; o lugar do não racismo, onde as identidades se processam com a valorização das
representações materiais e subjetivas; são os espaços culturais e subjetivos, voltados para
a pratica social, recreativa e cultural, como o universo do samba e suas variações conforme
a região e o lugar do país; as religiosidades defendidas e representadas pela população
negra, haja vista os terreiros de candomblé e umbanda, as irmandades religiosas em devoção
aos santos negros (Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, nossa Senhora da Aparecida,
dentre outras); os grupos sociais que se articulam para fins de resistência, enfrentamento
e de proposições políticas para eliminação das desigualdades, de luta por direitos e de re-
conhecimentos; o corpo de homens e mulheres negras, desde a origem, desenvolvimento
e transformações, são espaço de produção e reprodução da territorialidade negra, é o lugar
onde recebem, trocam e multiplicam as referências identintárias, históricas, culturais, enfim,
o corpo é o espaço depositário das inscrições negras, portanto, das territorialidades negras
diante de todos os processos de desterritorialização e reterritorialização.

Abdias Nascimento (1977), em sua obra Genocídio do Negro no Brasil, nos auxilia e reitera
nossas reflexões. O genocídio, de forma física, cultural e simbólica, em nossa interpretação,
diz respeito ao contexto de constantes processos de construção, desconstrução e reconstrução
das referências da história e cultura africana e afro-brasileira em nosso país.

O genocídio da população negra sempre foi corrente, desde a sociedade escravocrata até
o presente momento, do meio técnico científico informacional. Conforme o Mapa da Violência
no Brasil, a territorialidade de homicídios concentrada na população pobre, masculina, negra
e jovem é o quadro atual do genocídio da população negra. Neste cenário do genocídio,
devemos acrescentar a questão de gênero, são as mulheres negras o alvo mais vulnerável
da violência, do racismo e das desigualdades. O genocídio das mulheres negras tem se
apresentado às territorialidades nas formas de agressão, assédio, estupro, homicídios, na
ausência e/ou deficiência de políticas públicas nas áreas de saúde, mercado de trabalho e

194
educação.

A territorialidade de homicídios e violência com incidência nas mulheres negras no Brasil,


sobretudo nos grandes centros, a maior incidência tem se apresentado na cidade fora da lei,
ou seja, nos espaços e lugares construídos fora dos padrões da lei e do urbanismo (ROLNIK,
1998).

A cidade enquanto fenômeno histórico e contemporâneo precisa ser vista e considerada


para além de sua compreensão socioeconômica. No caso das cidades brasileiras, em nosso
território existem inscrições materiais e simbólicas que são faces da estrutura do poder, da
violência e do racismo. É essencial a construção de pensamentos que problematizem o
direito à cidade, como o ambiente das desigualdades socioeconômicas em intersecção com as
desigualdades étnicos raciais, de gênero, de faixa etária. Portanto, é preciso problematizar e
pensar a cidade a partir da estrutura de poder que desterritorializa e separa os grupos sociais
e culturais.

Em estudo de Oliveira (2008), constatamos que a tentativa de eliminação da violência foi e


é uma luta continua protagonizada pelos movimentos sociais negros.

Os movimentos sociais negros que perfazem as territorialidades negras e quilombolas


são forças materiais, subjetivas e simbólicas que mantem, resistem, enfrentam e subsidiam a
organização em torno da construção, desconstrução e reconstrução das praticas e saberes
dos valores inscritos no chão dos territórios.

No início do texto até o presente momento, apresentamos algumas considerações sobre


territórios negros e quilombos. A partir das referências apontadas no decorrer do texto, elabo-
ramos a seguinte pergunta: Territórios negros e quilombos são termos históricos, sociológicos
e antropológicos iguais ou diferentes?

Reiteramos que território não é uma construção pronta, é um termo inacabado e em


constante construção. Os atores sociais dos territórios negros e quilombolas, no decorrer do
tempo e do espaço, conforme as dinâmicas e demandas do quadro interno e externo, foram
inscrevendo simbologias, histórias, identidades, formas de agir, sentir e se perceber fora e
dentro do lugar, portanto, território é um fenômeno inacabado e interdisciplinar de elaboração
humana e social.

195
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?

Território e quilombo são semelhantes, por exemplo, quando os atores que vivem, trabalham
e transformam a terra para fins de resistência física e simbólica, enfrentamento político e a
construção, desconstrução e reconstrução dos valores históricos e civilizatórios de determinado
grupo social.

Carril (2006) e Oliveira (2008), em estudos sobre a população negra na cidade de São
Paulo, especialmente das periferias, identificaram que os jovens negros do movimento hip hop
passaram a adotar a palavra quilombo para se referir ao lugar ou pedaço do bairro em que
viviam, a partir das expressões que correspondem a resistência e as forças que elaboraram
identidades e representações que valorizam a história e o cotidiano social e cultural. Portanto,
o termo quilombo foi adotado pela juventude em razão do aspecto social e político.

Nos mapas 1,2 e 3, temos as cartografias de territórios de quilombos, portanto, Entendemos


que quilombo é um território negro, conforme as inscrições dos atores e do grupo social que
fazem e vivem o lugar histórico e identitário.

Território e quilombo são diferentes, conforme os usos, sentidos e funções. Mediante


nossas considerações é possível descrever os territórios e territorialidades de negros, de
quilombolas, de violência, do poder e do capital, no entanto, não é possível utilizar a palavra
quilombo em associação as inúmeras situações da vida social, por exemplo, não é adequado
utilizarmos o termo quilombo de territórios, quilombo de violência, quilombo de capital.

A palavra território, por ser um termo em construção e de inúmeras áreas de elaboração,


compreende a conjugação de territórios negros e quilombolas. O inverso não é possível, porque
a palavra quilombo não contempla diferentes interlocuções, cenários e atores. Conforme
descrevemos no texto, quilombo é uma construção histórica, sociológica e antropológica que
remete a resistência física e cultural, a construção de identidades e, em nossa atualidade, as
comunidades quilombolas estão encaminhando e lutando por direitos, pelo direito à terra, à
educação, à saúde e ao reconhecimento político.

Reconhecemos que a identificação, quem determina são os atores sociais que estão ligados ao
espaço histórico e social. Eles, no urbano ou no rural, se reconhecem enquanto quilombolas,
comunidades de terreiros, movimentos sociais sem-terra e sem-teto, ribeirinhas, comunidades
de mulheres, enfim, são os atores dos territórios e dos quilombos que definem a palavra de
reconhecimento (MUNANGA, 2010).

196
Nossas experiências, especialmente a produção sobre espaço e população negra, tem
procurado fazer a distinção entre territórios negros e quilombos. Especialmente aqui, adotamos
a distinção dos termos, em razão da palavra território e territorialidade dialogar com diferentes
frentes do conhecimento, que incidem em usos, funções e sentidos.

POLITICAS PUBLICAS

Conforme os Mapas acimas, as cartografias dos territórios negros e quilombolas se in-


tensificaram dos anos de 1980 aos nossos dias, principalmente no período mais recente,
com a aprovação de políticas públicas com ênfase étnico racial: a lei 10.639/2003 que torna
obrigatório a história e a cultura africana e a afro-brasileira no ensino básico (nas instituições
públicas e privadas); a lei que torna obrigatório a história e a cultura indígena no ensino
básico, o Estatuto da Igualdade Racial, que corresponde um conjunto de políticas de âmbito
socioeconômico, político e cultural, como, por exemplo, nas áreas de saúde, educação, cultura,
geração de emprego e renda e o acesso à terra, sobretudo a titulação e educação voltada
para a população de comunidades quilombolas; no quadro da saúde, a elaboração de política
que alcance a formação e desenvolvimento de saberes e práticas voltados para a saúde da
população negra.

As políticas mais recentes, de ação afirmativa e com ênfase nas populações historicamente
excluídas e marginalizadas, foram sendo construídas no decorrer do século XX a partir das
referências dos movimentos sociais negros.

Segundo Alberti e Pereira (2010), da pós abolição aos dias de hoje, as políticas públicas
para a população negra foram sendo elaboradas pelos atores que sofrem a segregação e o
racismo, haja vista as propostas e ações dos movimentos sociais negros: no início do século
XX, a Frente Negra Brasileira e as organizações sociais e culturais que se organizavam para
combater o racismo e propor alternativas ao quadro de segregação material e subjetiva; o
Teatro Experimental do Negro no Rio de Janeiro, propôs a formação social e cultural para fins
de mobilidade socioeconômica e política da população negra, especialmente os homens e
mulheres que pertenciam aos lugares e posições de menor expressão social; gradualmente,
dos anos de 1970, com o processo de redemocratização e abertura política, ocorreu a reorgani-

197
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?

zação dos movimento sociais negros, a partir do legado de enfrentamento, denunciaram o mito
da democracia racial e as práticas racismo e preconceito do cenário nacional que esconde,
camufla e torna invisível as relações entre brancos e negros, especialmente a marginalização
da população negra.

Nos últimos 50 anos, os movimentos sociais negros conquistaram importantes avanços,


em razão do histórico de omissão, marginalização e segregação da população na história do
país.

Durante a sociedade escravocrata, as políticas e as leis não favoreceram a população


negra. As conquistas, como a abolição, vieram em meio aos processos de luta dos territórios
negros e quilombolas. Nas últimas décadas da sociedade escravocrata, o quadro permaneceu
o mesmo, avanço não houve, aconteceu a o contrário com a implantação de políticas públicas
para o embranquecimento da população brasileira, a partir do financiamento da imigração
para as regiões sudeste e sul, que contou com o transporte do local de origem para o Brasil,
em seguida o local de habitação e, gradualmente, a imigração estrangeira foi substituindo a
população negra no mercado de trabalho da sociedade urbana industrial, como nas fábricas,
nos serviços públicos e nos postos e lugares de reconhecimento social e político, portanto, nas
primeiras décadas do século XX, as políticas públicas implantadas tiveram um recorte étnico e
racial, especialmente o imigrante estrangeiro branco, estes receberam privilégios no mercado
de trabalho, no ambiente da casa e da cidade, o acesso à terra e ao empreendedorismo,
enfim, para estes grupos sociais e culturais, a segregação não lhes impediu de alcançar
desenvolvimento na hierarquia socioeconômica.

As políticas públicas mais recentes, com ênfase na população negra, todas vieram com
a herança das lutas e a organização dos movimentos sociais que se organizavam desde
o início do século XX, portanto, são ações que buscam a eliminação da segregação e das
desigualdades acumuladas no decorrer do século passado e o momento contemporâneo.

As políticas ditas universais não alcançaram a eliminação da segregação e o racismo, em


áreas importantes, como a educação e o mercado de trabalho, a população negra se manteve
ausente durante décadas no acesso ao ensino superior e aos postos que exigem conhecimento,
qualificação e investimento tecnológico. A participação da população negra nestas áreas foram
sendo construídas nas últimas décadas a partir da política de ações afirmativas do início do

198
século XXI. Particularmente, a política de cotas, estabelece a oportunidade de estudantes
de escolas públicas, negros e indígenas, conforme o peso relativo de participação negra e
indígena no quadro regional, portanto esta política oportunizou a transformação do quadro da
segregação no ensino superior brasileiro, com a entrada de estudantes negros, indígenas e
brancos de escolas públicas nas instituições de ensino superior (federais e estaduais).

No quadro dos territórios negos e quilombolas, neste momento e para as próximas décadas,
a somatória de forças terá que ser mais pontual, crítica e abrangente, tendo em vista a
eliminação gradual e integral do quadro da segregação e do racismo.

Conforme Cunha (2016), os movimentos sociais negros terão que buscar conhecimento,
saberes e práticas para atuações no cenário do espaço (urbano e rural), sobretudo nos lugares
e posições da sobre-representação negra. Será necessário maior participação em políticas e
lugares ainda incipientes, como as políticas para a cidade, o meio ambiente, a agricultura, o
mercado de trabalho, enfim, em áreas e posições historicamente omitidas e negligenciadas
pelo Estado brasileiro.

Para o momento presente e futuro, os territórios negros e quilombolas terão que pensar,
estruturar e agir em torno de políticas públicas no que tange ao espaço e relações étnicas
raciais. Retomando a leitura dos mapas acima, esta reflexão passa direta e indiretamente pela
titulação de todas as terras de comunidades quilombolas registradas no país, da formação
e promoção de uma pedagogia da diversidade que retrate a história e a cultura africana,
afro-brasileira e indígena, como, por exemplo, a educação escolar quilombola, portanto, a
eliminação da segregação e do racismo, terá que responder às demandas das cartográficas dos
mapas apresentados acima e, em especial, da transformação da hierarquia socioeconômica e
política que separa brancos e negros na sociedade brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aqui, nossa interpretação delineou a questão dos territórios negros e quilombolas frente a
perspectiva de ações, saberes e práticas para fins de eliminação da segregação, do racismo e
das desigualdades.

Na história do Brasil e em nossa contemporaneidade, os territórios negros e quilombolas

199
REFERÊNCIAS

(dos cenários urbano e rural) veem avançando na busca por direitos materiais e subjetivos.
Observamos que nos momentos de conflitos, resistência, reconhecimento e desenvolvimento,
a união e a somatória de forças é primordial para manter as referências dos territórios negros
e quilombolas.

Os territórios negros e quilombolas, do passado e dos nossos dias, estão avançando suas
lutas e conquistas para fins da eliminação da segregação. O percurso não foi plenamente
alcançado, porém, as conquistas, enfrentamentos, reconhecimentos e direitos, vão transformar
as cartografias de poderes inscritos na estrutura socioeconômica e política do Estado brasileiro.

Dentre as grandes conquistas, das territorialidades negras e quilombolas, alcançar o maior


número de terras quilombolas tituladas, significará avançar na eliminação da segregação racial.

Conforme os mapas apresentados, um dos enfrentamentos que temos pela frente, princi-
palmente no estado da Bahia, diz respeito ao processo de produção e desenvolvimento de
uma pedagogia da diversidade, sobretudo das territorialidades negras e quilombolas.

A Bahia é o estado de maior contingente populacional negro do pais (IBGE, 2010) e é


também o maior território povoado de quilombos. Por isso é fundamental que as politicas de
desenvolvimento para territorialidades negras e quilombolas devem ser primordiais para este
estado.

O direito à terra e à educação são lutas e marcos essenciais para fortalecer o território,
as territorialidades e os quilombos no Brasil. O curso de educação escolar quilombola da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia pautou reflexões nesse quadro. De um lado, a
questão da segregação da população negra, e, de outro lado, as bases materiais e subjetivas
para pensar o século XXI. Portas que foram abertas sob olhares atentos para promover a
transformação e justiça social de nosso pais.

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