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Organizadora:
Regina Marques de Souza Oliveira
203p.: il.;
ISBN: 978-85-5971-093-9
CDD: 155.4
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA
REITOR VICE-REITORA
Silvio Luiz de Oliveira Soglia Georgina Gonçalves dos Santos
DIAGRAMAÇÃO
Superintendência de Educação Aberta e a Distância - SEAD
PREFÁCIO
Este livro é fruto do trabalho realizado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise,
Identidade, Negritude e Sociedade da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e suas
parcerias institucionais com outros centros de desenvolvimento em pesquisa, ensino e exten-
são.
Os textos pertencem a autores já tarimbados no campo do fazer científico e da docência
universitária de centros de pesquisa de diferentes regiões da Bahia e do Brasil: Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS), Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB),
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(UFRB), Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e Universidade Federal do Tocantins (UFT).
Mas antes de falar especificamente destas relações acadêmicas que fomentaram a pro-
dução do livro queremos escrever algumas palavras sobre o núcleo de pesquisa que promove
estas articulações: O NEPPINS.
Nossos trabalhos estão em desenvolvimento desde 2011 no cenário da cidade de Santo
Antônio de Jesus, no Centro de Ciências da Saúde, com os alunos da graduação em Psicologia,
Enfermagem e Nutrição. Posteriormente, nossas atividades passaram também a serem
desenvolvidas com estudantes do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde e Medicina.
Nesta trajetória, o apoio social e político das cidades do entorno da universidade, sempre
nos procuraram ou estiveram atentas às nossas necessidades de parcerias.
Em função disto, nossa preocupação foi de desenvolver metodologias, técnicas e pesquisas
em saúde e educação que priorizassem a divulgação e acesso das pessoas do Recôncavo da
Bahia.
Enquanto pesquisadores, sabíamos da importância da atenção em produções científicas no
contexto nacional e internacional. No entanto, também nos era inquietante atender as necessi-
dades emergentes de formação do profissional de saúde para uma prática e epistemologia
que representasse a população do Recôncavo.
Desde 2011, vivíamos com os pés no ensino, nas discussões em sala de aula e grupos
de estudos com textos de autores clássicos na psicologia, psicanálise e relações raciais,
considerando que nosso núcleo de pesquisa leva por nome a intersecção destes saberes
epistêmicos.
Ao mesmo tempo, promovíamos – professores ligados ao núcleo, profissionais da educação
e saúde vinculados aos municípios do Recôncavo e alunos da graduação – encontros de
caráter científico e extensionista, com o fim de apresentar nossas atividades, pensamentos e
direcionamentos de pesquisas.
Nesta trajetória, todas as nossas ações foram recebidas com grande entusiasmo e sucesso
no contexto do Recôncavo. Por conta disto, nosso núcleo passou a agregar também pessoas
de outras universidades, cujo professores, convidavam-nos para palestras, conferências e nós
também fazíamos o mesmo.
As universidades que marcaram o fortalecimento do núcleo foram a UNEB e a UESB,
principalmente. Estabelecemos parcerias importantes com estas universidades experientes
no trabalho com a população do interior da Bahia. E passamos a integrar o Programa de
Pós-graduação em Relações Étnicas e Contemporaneidade da UESB, um dos mestrados
ícones do país na temática e formalmente parabenizado pelos pareceristas da CAPES.
Nestas experiências, observávamos que a interiorização do ensino superior no país é ainda
um desafio complexo. O qual exige conhecimento, articulação, diálogos constantes e amor
pela igualdade de acesso e oportunidades para jovens e pessoas que habitam ou pertencem
as regiões mais difíceis de desenvolvimento social, técnico e científico do país.
Portanto, a UFRB em seu desafio jovem de multicampi, no interior do Recôncavo, através
de nosso núcleo, nunca desprezou os saberes já trilhados por outras universidades de nosso
estado.
Observamos que nos últimos dez anos o Brasil mudou. O eixo de desenvolvimento do
Estado Nacional tornou-se também o Nordeste.
A Bahia, o nordeste e também o norte cresceram com as novas universidades públicas
federais e as políticas de acesso ao ensino superior.
O Brasil, em sua periferia, demonstra uma aparência melhor cuidada.
As casas da população pobre estão revestidas na cozinha, nos banheiros. Ganharam
pinturas novas, móveis e eletrodomésticos. As crianças vão à escola e estão melhor nutridas.
Isto significa também a dimensão do tratamento que o país deu a população quilombola e
aos quilombos.
Sejam eles urbanos ou rurais, nas periferias ou em transmutações de empoderamento
da juventude negra que em diferentes estados, gosta de adotar a linguagem e estética dos
quilombos a fim de reafirmar sua historicidade de vitórias e resistência.
Este livro se consagra a isto.
Os autores que aqui escrevem nos trazem notícias de pesquisas realizadas em quilombos
e experiências com populações de quilombos.
Eles nos apresentam à escola, seus desenvolvimentos e tecnologias.
Os investimentos importantes que produziram trabalhos pioneiros no âmbito destes ter-
ritórios estigmatizados por preconceitos de todos os tipos e que vencem, a partir do acesso ao
ensino financiado pelo estado nacional muitos entraves.
Também demonstram neste livro as dificuldades ainda existentes no âmbito do fazer
educacional das populações quilombolas e negras.
Porém, os avanços na capacidade de pesquisadores brasileiros de alto nível dedicarem-se
a estes estudos são inegáveis, pois atestam que os investimentos em pesquisas de qualidade
dependem também do interesse das direções políticas de nosso Brasil.
Por tal razão dissemos no início sobre a atuação de nosso núcleo de pesquisa, nossas
inquietações e trabalhos: porque fomos produtos desta nova mentalidade nacional firmada por
uma política de desenvolvimento para o país em sua totalidade. Privilegiando sim, e porque
não assumir isto, a opção pelos mais pobres e historicamente marginalizados.
A pesquisa, os avanços tecnológicos devem servir necessariamente a comunidade e a uni-
versalidade. Mas para isto, há que se focar nos nichos mais precários de desenvolvimento como
um todo, a fim de superar mazelas sociais e reinventar novos alicerces de desenvolvimento.
Os textos do livro Pedagogias e tecnologias em quilombos: conquistas e novos desafios
é escrito por autores que dissertam sobre a escola brasileira: suas bases formativas para
professores que exercem à docência em territórios segregados, como os quilombos em sua
designação histórica e clássica, bem como nos territórios segregados das periferias enquanto
metáforas do quilombo apropriada pela linguagem da juventude negra de ascendência africana
nas periferias do Brasil.
O cenário que eles nos apresentam fala prioritariamente da formação escolar: no quilombo,
no desenvolvimento de metodologias de formação para docentes de escolas quilombolas,
de políticas públicas educacionais para a instituição da educação escolar quilombola, identi-
dade e violência, resistência e conquistas sociais, além de refletir sobre o pragmatismo e os
fundamentos de uma educação científica na realidade quilombola.
O texto inaugural informa sobre o pioneirismo da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia em empreender pela primeira vez no Estado da Bahia uma formação para mais de 100
professores com atuação em escolas quilombolas no Recôncavo e Portal do Sertão.
O texto elabora os caminhos curriculares e pedagógicos que possibilitaram esta arrojada
inserção e convida outros estudiosos compromissados com a necessidade de melhorias para
todo o conjunto populacional do Brasil que reconhece a existência de milhões de quilombos
em sua territorialidade a refletirem e a exercerem o protagonismo de reformularem ou melhor
organizarem outras ações político pedagógicas para estas populações.
O texto é um relato técnico, curricular e pedagógico sobre o curso de formação em educação
escolar quilombola da UFRB, o qual apresenta suas metodologias e produto a fim de que outros
possam não somente também realizar semelhantes trabalhos; mas criar novas possibilidades
de visões e interpretações sobre quilombos, educação, populações negras, quilombolas e sala
de aula.
O segundo texto do professor mestre e quilombola Josemar da Purificação é um relato
científico sobre o famoso quilombo Rio das Rãs. Ele nos mostra a partir de sua escrita a
importância da fala que vem de dentro do quilombo, do que a população do quilombo necessita.
Apresentar o seu texto é para nós uma grande honra, pois atesta mais uma vez que as
políticas de incentivo e desenvolvimento no nosso país necessitam continuar na promoção
do empoderamento dos sujeitos políticos que devem se auto representar. A fim de suprimir
todo tipo de alienação colonialista que fere nossa identidade brasileira galgada no martírio e
massacre de nossa população indígena e negra.
O texto maduro da antropóloga e doutora Sandra Nívia Oliveira, da Universidade Estadual
de Feira de Santana, é também emblemático das importantes epistemologias e tecnologias
educacionais existentes e reinventadas nos quilombos.
Sua sensibilidade na inserção do campo de estudo sobre educação e identidade nos
permite refletir sobre a própria identidade do Brasil em seu conjunto nacional de indígenas,
negros e brancos.
Ao falar de identidade e educação a partir da experiência de um quilombo, a autora nos
aponta uma nova paisagem de pensamentos, a partir do quilombo de Mangal e Barro Vermelho,
como Terra de Santo da padroeira Nossa Senhora do Rosário.
O também doutor e experiente professor Roberto Santos da Universidade Federal do
Tocantins nos traz reflexões e experiências sobre os quilombos do Tocantins. Ele nos apresenta
as diversas possibilidades de desenvolvimento instrumental na formação do professor de
geografia em territórios de quilombos. Instiga-nos a partir da experiência empírica a perceber
que algumas tecnologias e metodologias pedagógicas nos quilombos dos Tocantins necessitam
ser clássicas - como a análise crítica e dialética marxista - para o desenvolvimento do trabalho
nestes territórios, os quais saindo de sua obscuridade devem ser pensados criticamente pelo
professor nele atuante.
A geógrafa e doutora Lourdes Carril, da Universidade Federal de São Carlos, também nos
trará o anúncio sobre a escuta do sujeito da sala de aula. Ela descortina as possibilidades de
reconhecimento e aprendizagem por parte daqueles que supostamente aprendem; revelando
que o desenvolvimento de tecnologias em educação faz-se a partir da crítica aos modelos
pedagógicos em sala de aula, o qual reproduz a hierarquia racista e classista da nação
brasileira, indicando a importância ética do respeito a escrita emblemática destes sujeitos,
os quais são historicamente alijados e violados no não reconhecimento de sua condição de
seres fundantes e construtores de nossa sociedade. Outros sons para se ouvir na própria
universidade.
Para além do ensino da história da África nos currículos das escolas brasileiras, é importante
organizar uma escuta atenta aos dizeres dos sujeitos que protagonizam a cena: eles, sabem e
cantam suas histórias, e o respeito e consideração fiel as suas inquietações são os caminhos
possíveis da transformação ética da educação e comportamento da população brasileira.
O professor Valmir Araújo, físico e pesquisador em tecnologias e robóticas, dialoga sobre a
busca de fundamentos para uma educação científica nas diversidades étnicas dos quilombos.
A importância deste texto nesta obra revela o óbvio que o país teima em não ver e recon-
hecer: há que se buscar e construir paradigmas de pesquisas que sejam afetos especificamente
a nossa realidade. Desafio em trilhar passos de descolonização de saberes.
Edilene Machado e Reinaldo Oliveira trazem em seus distintos textos, os velhos pilares da
sociologia brasileira que avançou nos estudos sobre as relações étnicos-raciais.
Importante mencionar que a dimensão quilombos não é simplesmente categoria de estudo
das relações étnico-raciais, mas enquanto vasto campo ainda a ser desbravado em estudos
e pesquisas, as ciências sociais possui referências fundamentais para melhor compreensão
do campo e traçados de novas incursões em outras disciplinas como no caso, quilombos,
educação e tecnologias.
Sendo assim a Doutora Edilene, pesquisadora com passagem pela Universidade do
Texas (Austin-EUA), PUC/SP, UNESP/Araraquara e pós doutora pela Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia, apresenta juntamente com Marise de Santana, um texto forte para
discutir as conquistas do quilombo urbano Barro Preto na cidade de Jequié e a construção de
identidade da população local.
Reinaldo José de Oliveira, também da Universidade Estadual de Feira de Santana, e
também com currículo alicerçado por experiências em diferentes regiões do país e inserção
internacional (Portugal/Lisboa e França/Paris); desenvolve um ensaio sobre territórios negros e
quilombolas e suas expressivas forças no combate político e na superação da segregação.
A partir de análise social densa, ele resgata a desterritorialização da história e a memória
das populações negra e indígena, as quais são negadas pelo poder público enquanto valorosas
para a construção urbanística e a noção estética da beleza da cidade. Novamente, a análise
que se pauta é, em arguta instância, a dimensão do alicerce da colonização nas Américas que
insiste em tomar por modelos paradigmas e perspectivas que violentam nossa realidade étnica
e racial de negros, quilombolas e indígenas.
Por fim, o que temos a considerar é que este livro para ser compreendido, precisa ser lido,
considerando que os textos e autores aqui representados fazem parte de um perfil e caráter de
produção de pesquisa acadêmica que insiste e teima em considerar a realidade brasileira a
partir de sua população macro e historicamente marginalizada – negros e indígenas.
Construir perspectivas científicas transformadoras, que contestem e procuram buscar a
autonomia dos aspectos de uma colonização perversa (embora em nossa concepção não
exista forma de colonização que não seja violenta e bárbara) é o mote principal para considerar
estudos sobre quilombos, pedagogias libertadoras e emancipatórias, bem como produzir
tecnologias que instrumentalizem estas populações a conduzirem os eixos de seus próprios
desígnios.
Este é o compromisso desta ciência aqui inscrita, pelas mãos e pensamentos destes
mestres e cientistas.
Este avanço conceitual em si, embora trabalho árduo e de longo tempo desenvolvido por
estes oito pesquisadores - todos eles muito experientes e longe do perfil jovem e descompro-
missado politicamente que cada vez mais temos visto no contexto da universidade brasileira
– só é possível ser neste livro reunido em razão do compromisso ético e político de nossa
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. A qual, na pessoa de seu atual reitor, tem a
tarefa de cumprir com esta missão tão difícil no cenário de um Brasil ainda desigual e muito
injusto.
Por esta razão, saudamos a todos estes realizadores e reverenciamos também os setores
institucionais que tornaram possível a realização desta obra (SEAD, Grupo de Mídias, Prof. Dr.
Ariston Cardoso, enfim...todos).
Especial agradecimentos ao Professor Doutor Silvio de Oliveira Soglia, nosso Magnífico
Reitor e sua equipe.
Que sua luz prossiga na consciência de seu tempo e na boa condução das escolhas
políticas de nossa instituição.
Do fim da primavera em Paris para o moderado outono de Cruz das Almas na Bahia, “Terra
de Todos os Santos”, aos 20 de maio de 2016.
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8 OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEG-
REGAÇÃO? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO
RECÔNCAVO DA BAHIA
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Psicóloga, psicanalista, Mestre e Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP e EHESS/Paris. Professora
da UFRB. Desenvolve pesquisa pós-doutoral (Bolsista CAPES) sobre os Impactos psicossociais da violência na
saúde de populações negras e da diáspora africana no Instituto dos Mundos Africanos em Paris da Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais e no Centro Médico e Psicológico Minkowska (França/Paris).
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Sociólogo, Mestre e Doutor em Ciências Sociais (Sociologia), pela PUC/SP, com estágio doutoral em Paris
(CADIS – Centro de Investigação e Intervenção Sociológica, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais –
EHESS- com Michel Wieviorka) e Lisboa (CTE – Centro de Trabalho e Empresa, Universidade de Lisboa, com
Vitor Matias Ferreira. Realizou pós-doutorado pelo Programa Nacional de Pós-Doutorado da Fundação CAPES
na PUC/SP, com a pesquisa Segregação Racial nas Cidade de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Professor
na Universidade Estadual de Feira de Santana/BA.
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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
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da comunidade com o global, o nacional, o regional e o local, e, ao longo das etapas e
modalidades do curso, deve ser capaz de considerar a cultura, as tradições, a oralidade, a
memória, a ancestralidade, o mundo do trabalho, o etnodesenvolvimento, a estética, as lutas
pela terra e pelo território como componentes formativos importantes de seu trabalho em sala
de aula e no contexto da educação em quilombos ou público dele oriundo.
Sob tal circunstância, o papel da universidade é amplo e ao mesmo tempo restrito: amplo
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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
porque pode promover reflexões profundas nos modos de pensar e agir dos atores sociais, no
caso os professores quilombolas e alunos quilombolas; restrito, porque não é a universidade
quem vai protagonizar estas emergências de mudanças, não pode fazê-las e não sabe fazê-las.
Infringir este campo de atuação seria incorrer em grande violência de autonomia e possibilidade
de surgimento de políticas de emancipação.
Porém, ela precisa ser estrita em seu papel, sendo capaz de obedecer metodologias que
possam garantir o acesso instrumentalizado dos sujeitos sociais em seu protagonismo.
Esta responsabilidade é dever formativo de um bom currículo. Por isto, ele é sempre
importante na coluna cervical de uma proposta de curso.
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Foram três encontros entre a equipe de coordenação do curso e os professores que ministraram os com-
ponentes curriculares do curso. Encontros nos quais eram trazidas duvidas, questionamentos, materiais de
apoio para uso com o cursista e fomento de olhares descolonizados do papel da escola e a formação do aluno,
ressignificando posturas e olhares sobre diásporas, Áfricas, quilombos e relações étnicas e raciais.
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que considere a igualdade de direitos e acesso a cidadania para os povos quilombolas e da
diáspora, sensibilizando a escola a partir de seus agentes – o professor, alunos, famílias e
lideranças comunitárias - a transformarem suas condições históricas e culturais vividas em
formas de aprendizagem escolar.
Pensou-se e realizou-se neste curso a capacidade, por parte dos cursistas, de analisar
e/ou produzir material didático e paradidático distribuídos por programas federais e/ou outros, a
fim de que possam selecionar os que são condizentes com suas realidades e/ou organizando
seu próprio currículo e diretrizes de atuação escolar e de aprendizagem, quando não se veem
representados nos materiais que lhes são entregues por programas públicos de educação em
suas diferentes esferas: municipal, estadual, federal.
Sob tal aspecto o currículo do curso presencial de educação escolar quilombola da Univer-
sidade Federal do Recôncavo da Bahia, organizou-se não como um registro desvinculado de
modelos epistemológicos específicos. Mas embora utilizasse algumas premissas norteadoras
– pedagogia de Paulo Freire, epistemologias da história, geografia, psicologia, sociologia,
materialismo histórico dialético, dentre outras – organizou-se primordialmente em fomentar a
interpretação, tradução, observação da realidade do professor e do quilombo para imprimir
uma direção mais efetiva de recursos materiais disponíveis para a organização dos trabalhos.
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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
palmente no que diz respeito aos artigos 34 a 38, Capítulo I do Parecer da Lei de Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, mediado pela constatação da re-
alidade do Recôncavo da Bahia. Realidade extraída do diálogo com as lideranças quilombolas
e profissionais de educação, os quais solicitaram um currículo organizado de forma a contextu-
alizar a sociedade, cultura, regionalidade, territórios das comunidades quilombolas, garantindo
os valores e interesses das comunidades quilombolas. No mesmo sentido, fornecendo ao
educando o direito a conhecer o conceito, a história dos quilombos no Brasil, o protagonismo
do movimento quilombola e do movimento negro, assim como o seu histórico de lutas.
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bleias escolares com os quilombolas) a fim de compreender e organizar o que a comunidade
considera mais marcante a ponto de ser rememorado e comemorado pela escola.
A avaliação constituiu-se como a etapa processual final na qual o cursista foi levado durante
as etapas do curso a pensar seu projeto de intervenção pedagógica, bem como a produção de
seminário temático com a elaboração e um artigo em forma de relato de experiência ou caráter
técnico científico a partir das discussões conceituais obtidas durante as aulas presenciais e
discussões com os professores pesquisadores.
O curso Educação Quilombola foi realizado em três etapas presenciais as quais incluíram:
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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
Durante o curso, foram realizadas orientações de pesquisa aos discentes os quais contaram
com o acompanhamento de professores orientadores a fim de que fossem capazes de produzir
um trabalho final de curso. Neste estágio, os alunos desenvolveram relatos de experiências
a partir de banners os quais foram apresentados no Colóquio “Do Recôncavo ao Sertão:
Educação Escolar Quilombola e UFRB”, realizado em 28 de agosto de 2015 na cidade de
Cachoeira.
PRINCÍPIOS CURRICULARES
Após a realização do curso, é importante esclarecer alguns princípios curriculares por nós
considerados.
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apresentar o trabalho desenvolvido.
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O inciso V da Resolução apresenta um defeito, porque está inscrito como IV, repetidamente, mas observa-se
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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
Seguimos este parâmetro geral em nosso curso, fomentando encontros que traduzissem
algumas características presentes no artigo 51 da resolução específica que constitui os
alicerces de nosso trabalho (Resolução Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Escolar Quilombola, parecer CNE/CEB n.o 16/12).
Nos três seminários formativos propostos e organizados pela coordenação do curso para a
equipe de professores pesquisadores, procuramos disseminar as noções curriculares abaixo
elencadas a partir de vivências, jogos pedagógicos, filmes, momentos de leituras, teatro e
dramatização entre os docentes
PARÂMETROS CURRICULARES
A educação quilombola não segue uma lógica ocidental e linear. No cotidiano social, os
sentidos materiais e subjetivos são elaborados e conectados aos elementos que ligam e dão
consistência aos significados da realidade social dos quilombos. Neste contexto, procuramos
compor os parâmetros curriculares do curso, por meio de atividades que promovam este
encontro com tais realidades – atividades extensionistas, tais como visitas a quilombos e
discussões de experiências vividas por professores pertencentes a estes contextos; bem como
leituras de textos científicos que representassem a ligação com o contexto vivido e presente
nas comunidades presentes no curso.
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e análises de textos, nos ambientes externos e internos da prática presencial, fomentando o
desenvolvimento, a partir da construção, a reflexão e diálogo dos discentes no contexto de
suas realidades.
Fizemos uso nos componentes curriculares de atividades de sala de aula e algumas visitas
técnicas enquanto métodos de ensino e extensão, transmutados e conjugados com um trabalho
de pesquisa a ser construído a partir do envolvimento discente com o campo do conhecimento
quilombola; o qual possui sua epistemologia própria que deve ser valorizada e incluída aos
saberes educacionais formais.
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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
Estes estudos, classicamente, remontam o ano de 1900, ano de “fundação” de tais questões
no contexto acadêmico brasileiro. No currículo organizado, eles foram mediados pela reflexão
expressiva das circunstâncias atuais da realidade dos quilombos no Brasil contemporâneo.
Ou seja:
Neste sentido, tivemos por metodologia curricular manter um ponto de apoio e de refer-
ência (conceitual e teórico) que também se inscrevesse próximo dos discentes (profes-
sores/lideranças/público alvo do curso). O papel da comunicação com o público alvo era
promover o encontro entre os atores que desenvolvem as funções de docentes, a fim de que
este diálogo se reproduza pedagogicamente enquanto produto assimilado substancialmente
– gestualmente – nas relações deste (professor participante do curso) com a população –
crianças, jovens, adolescentes, adultos e idosos – quilombola, no trato e cuidado da educação
a ser construída e fomentada pari passo com a comunidade. Fomos felizes nesta organização,
a qual em diferentes contextos dos municípios que tiveram acesso ao curso estes fatores
ocorreram. Importante considerar que o caráter “gestual” implica em um princípio dinâmico de
formação de identidade, no que concerne a psicologia social materialista histórica: metamor-
fose, vir a ser, transformação. Produzir o gesto, o “movimento do devir”, consistiu em insistir
em novos paradigmas para a relação ensino-aprendizagem e transmissão de conhecimentos
para a educação escolar quilombola.
Nesta perspectiva, nossas aulas, atividades de avaliação, visitas técnicas, deram atenção
às histórias, calendários, ritos, mitos, canções, cantigas, rezas e particularidades do campo
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cultural e social; referendando ao público a ser formado sobre a epistemologia existente nestes
saberes e a necessidade de valorizar e construir instrumentos de registros destes saberes,
para que continuem a fazer parte do acervo e patrimônio imaterial da Humanidade.
Um currículo que promovesse um diálogo ativo e vivo com a pesquisa formal acadêmica,
pois os saberes tradicionais de populações de matrizes africanas são também dignos de
serem traduzidos e preservados a partir das práticas formais do ocidente que é a pesquisa
acadêmica.
A pesquisa cientifica tem papel libertador para a comunidade de humanos e neste sentido
é importante fortalecer um currículo que promova esta articulação com as esferas clássicas da
sociedade instrumentalizada de nosso tempo (a universidade, a linguagem técnica, o exercício
do poder formal válido institucionalmente no mundo ocidental).
Nosso currículo e nossa metodologia tiveram por base as Diretrizes Nacionais para a
Educação Escolar Quilombola (parecer CNE/CEB, 16/12).
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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
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igualdade, do bem estar da vida para todos os iguais e tão diferentes humanos.
No currículo que exercermos no período de setembro de 2014 a agosto de 2015 nas cidades
de Cruz das Almas, Santo Antônio de Jesus, São Felipe, Cachoeira e Feira de Santana, a edu-
cação quilombola não foi só uma educação para as comunidades remanescentes de quilombos
ou territórios negros e quilombolas. A educação quilombola foi, e é, fundamentalmente, uma
educação para a Sociedade Humana, enquanto processo civilizatório.
A logística de carros, ônibus - transportes, enfim – era de difícil resolução e muitas vezes
não foi possível realizar todas as atividades práticas in locu.
Abaixo é possível observar a grade dos componentes curriculares, ementas e carga horária
do curso presencial de Educação Escolar Quilombola realizado pela Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia e Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Inclusão, do Ministério da
Educação do Brasil no período de setembro de 2014 ao mês de agosto do ano de 2015.
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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
Cada ementa representa uma reflexão específica que parte de princípios epistemológicos
de três referencias básicas: a) a síntese dos estudos sobre o negro no Brasil a partir de seu
princípio no contexto da pesquisa formal acadêmica brasileira ( ano de 1900 com Raimundo
Nina Rodrigues) até os nossos dias, b) as noções de identidade e formação e identidade
negra no contexto social e brasileiro através de perspectiva materialista histórica da psicologia
social denominada “Escola de São Paulo”, c) introduzir noções de desenvolvimento emocional
e afetivo a partir de conceitos psicanalíticos de maneira generalizada e interpretados as
realidades da população negra brasileira.
No programa original, esta foi a forma e enquadre adotado para promover a visibilidade da
ementa e as literaturas que sustentam sua concepção.
Obviamente, não se trata de agregar as literaturas dos autores enquanto fonte de citação
especifica enquanto referencias de arguição de texto técnico ou cientifico organizado. Trata-se,
claramente, de forma e enquadre atinente a maneira de apresentação de todo e qualquer curso
de formação regular, dotado de um programa de estudos e componentes conceituais os quais
são denominados “currículo”.
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ensino, pesquisa e extensão (cursos de graduação, cursos de especialização em termos de
pós-graduação e cursos de mestrado e doutorado a nível da pesquisa acadêmica formal).
No nosso caso, não esteve presente, felizmente o jogo de poder que é inerente a dimensão
formativa do currículo que enquanto proposta requer afirmar posições, conceitos, ideologias,
representar classes e interesses constituídos, identidades e determinar ou manter direções.
A dimensão de poder que todo currículo emana, inerentemente a seu papel, não se
constituiu do ponto de vista contraditório.
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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
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3 – LEGISLAÇÃO SOBRE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO RACIAS (15 horas)
Ementa:
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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
Ementa:
Ementa:
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A educação é e será a grande transformação do nosso presente e do nosso futuro. Trabal-
haremos as experiências do universo quilombola e sua relação educativa/pedagógica com o
ambiente social. Considerando principalmente a articulação entre os conhecimentos científicos
e os conhecimentos tradicionais produzidos pelas comunidades quilombolas ao longo do seu
processo histórico, cultural, social, político e econômico.
Ementa:
O componente procura abordar como os modos de vida, língua e literatura afro brasileira
e africana como formas de sociabilidades em comunidades quilombolas. Pois estas estão
intimamente fundadas em aspectos religiosos e linguísticos de diferentes ordens. A emergência
do sagrado nas necessidades da vida, no cotidiano do viver, na superação das dificuldades
fazem com que os ritos religiosos sejam vividos com intensidade e sejam participantes do
cotidiano destas comunidades. Seja através de festas, novenários, rezas, benzimentos,
ligações matrimoniais, batismos, enfim, o entrelaçamento do nascimento, vida, adoecimento
e morte. Elas inscrevem expressões sobre o sagrado nas explicações sobre o cotidiano e
resoluções de demandas: cura de doenças, problemas emocionais, fortalecimento de vínculos
sociais, relações com o trabalho e o sustento do núcleo comunitário. Deste modo, para
participar de uma educação quilombola, faremos reflexões e interpretações das diferentes
religiões, trazendo o conhecimento da linguagem e literatura africana e afro-brasileira como
estruturas de práticas de sociabilidades em comunidades quilombolas. As religiões de matrizes
africanas, afro-brasileira, irmandades católicas, associações sociais, culturais e recreativas,
serão pensadas a partir das manifestações do sagrado presentes na realidade do Recôncavo
da Bahia e das comunidades de atuação dos discentes (professores). Daremos também
atenção aos emergentes conflitos e presença das religiões neopentecostais no universo das
comunidades quilombolas a fim de possibilitar o fomento de uma educação pautada no universo
de vida e compreensão histórica destas comunidades em suas formas de sociabilidades no
contexto local e global dos territórios da diáspora no século XXI.
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1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
Ementa:
A identidade é processo complexo que implica a relação do sujeito com o entorno social
além de suas matrizes históricas familiares e culturais. Neste longo processo de construção
de identidade, processos subjetivos são inerentemente presentes nos contextos sociais e
políticos da vida em comunidade do jovem negro (escola, serviços de saúde, relações de
trabalho, enfim, diferentes instituições). As matrizes culturais do Brasil remontam, no currículo
de formação escolar, pouca visibilidade para o conjunto social deste processo de formação de
identidade do contexto brasileiro. Em geral, a confluência e interpretação deste contexto revela-
se no currículo da escola em ocasiões pontuais: festas, comemorações, datas específicas.
Favorecer o profissional de educação (professores e gestores) e saúde a compreenderem as
relações de formação da identidade brasileira para o contexto unitário da formação do Brasil é
a função deste componente curricular, partindo de experiências empíricas no campo da saúde
e educação em comunidade de quilombos, conjugando a análise conceitual teórica do acervo
histórico social existente em ciências humanas e sociais para a abordagem da questão.
Referências Bibliográficas
Ementa:
38
consideração da arte e da cultura afro-brasileira e africana, o quilombo é forma de consciência
identitária, interação e ação social , emergindo enquanto forma de organização e resistência,
movimentando-se no campo das artes, da cultura e do patrimônio para se transformar em
memória social, poética e política. Estas questões serão abordadas através de documentos,
imagens, objetos que expressem essa condição de reflexão –ação artística do quilombo.
Enquanto elemento artístico e cultura de força, identidade e resistência.
Ementa:
39
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
horária: 50 horas)
Ementa
Esta etapa possui caráter teórico - prático. Nesta etapa os professores do curso estarão
aptos desde o início do curso a promover as orientações necessárias para que os alunos
possam ir construindo ao longo do curso seus projetos pedagógicos de intervenção na escola,
junto à comunidade em que realizam suas atividades profissionais.
Ementa:
Enquanto componente teórico prático, o aluno cursista será levado a construir a partir da
reflexão crítica de seu amadurecimento durante o processo de frequência e discussão no curso
com professores e pares (lideranças, gestores, comunidade escolar quilombola e extensiva),
a sua proposta de intervenção pedagógica na escola. Neste processo, o aluno será capaz
de formular ações importantes para alterar a realidade local a fim de promover as condições
mais adequadas da formação dos alunos e famílias das comunidades remanescentes de
quilombos conforme sua concepção mediada pela realidade e os conhecimentos adquiridos
40
em sua formação. Será incentivado a utilizar os recursos epistemológicos da realidade de sua
comunidade a fim de promover a valorização do contexto e produzir ações que privilegiem o
fortalecimento da identidade quilombola e os saberes das comunidades tradicionais. Promoverá
a construção da proposta a partir de elementos da arte, literatura, língua afro brasileira e
africana dentre outra possibilidades de construção da proposta em sintonia com a realidade
de sua comunidade e as lacunas pelo discente e lideranças observadas. A orientação dos
professores do curso capacitarão os discentes a organizarem as propostas de intervenção.
Referências:
Ementa:
Neste componente, o aluno será levado a produzir artigo técnico científico a partir dos
resultados observados de sua reflexão sobre as experiências vividas em seu contexto de
atuação docente – relatos de experiências – mediados por conceitos que aprimorem estas
reflexões e análises. As propostas de intervenção que foram elaboradas e postas em prática
durante o processo de apropriação do conhecimento vivido e “re-organizado” serão passíveis
de registro nestes artigos. A finalidade deste componente é garantir a produção escrita de
saberes que se inscrevem no âmbito das práticas pedagógicas educacionais quilombolas – sua
problemática, complexidade, desafios e sucessos – que não encontram canais de expressão
e divulgação escrita no contexto de produção técnico científica do mundo acadêmico e da
sociedade produtora de conhecimento e saber em termos de hegemonia de poder. A escrita
do artigo é o empoderamento das pessoas consideradas invisíveis – minorias sociais (negros,
mulheres, indígenas, quilombolas, entre outros). É também a legitimação de sua visibilidade
formal, capaz de promover a alteração social dos contextos em termos de resistência, garantias
de direitos e acesso ao conhecimento formal em níveis de igualdade aos demais seres humanos
41
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
– populações. Tais reflexões serão parte deste componente que mediado pelos professores
orientadores favorecerão o crescimento dos discentes e comunidades quilombolas locais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto procurou trazer ideias para o fomento de iniciativas como esta, que visem
instrumentalizar atores sociais que necessitem de apoio técnico coerente e formal para produzir
novos conhecimentos. Seja por parte de docentes, gestores em educação, seja por parte da
comunidade, associações e outros setores envolvidos.
Não pretendemos com este texto sermos exemplo de como realizar outros cursos. No
entanto, cientes de que somos toda imperfeição inerente aos que pioneiramente realizam,
temos a certeza de que esta experiência rendeu importantes eixos de transformações sociais
e individuais nos contextos em que atuamos.
Cabe agora outros no Brasil fecundo e carente de boas iniciativas emancipatórias, realizar
5
Os estados de Minas Gerais e Mato Grosso foram os pioneiros a realizar estas ações no cenário brasileiro
atraves da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
Nos anos de 2014 e 2015 apenas quatro estados realizavam formação em Educação Escolar Quilombola no
pais: Minas Gerais (UFMG), Mato Grosso (UFMT), Maranhão (CEFET-MA) e Bahia (UFRB). Fonte de dados:
MEC/SECADI (Ministério da Educação / Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Inclusão), durante a Reunião
de Coordenadores de Cursos apoiados pelo MEC em novembro de 2014, em Brasília/DF.
42
novas propostas igualmente ou talvez mais articuladas. Pois esta experiência é um relato do
qual nada sabíamos se daria certo ou não. Não tínhamos certeza de nada. Não sabíamos
nada e possivelmente ainda não saibamos de fato. No entanto, queríamos ver a escrita de
conhecimentos inusitados pelos professores quilombolas, pelas crianças, pela comunidade e
também pela universidade, que em sua história sempre privilegiou o acesso das elites.
Os atores sociais participantes do curso se revelaram satisfeitos em seus relatos. Mas isto
não é plenamente suficiente no contexto do Brasil. Outras estradas devem ser construídas
e agregarem melhores condições ao que foi feito pioneiramente no estado da Bahia pela
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Esta instituição jovem teve a coragem e
responsabilidade de fazer.
Então, neste texto, encerramos parte do que realizamos a partir dos conselhos de Toni
Morrison (1996)6 : Se há um livro que você quer ler, mas ainda não foi escrito, então você deve
escreve-lo.
E ainda:
As pessoas dizem que escrevemos aquilo que sabemos. Eu estou aqui para te dizer:
ninguém quer ler isto. Porque você não sabe de nada. Então escreva sobre algo que não sabe.
E não tenhas medo. Nunca (Morrison, 1996).
A todos os griots7 do mundo negro africano e dos quilombos da Bahia que muito nos
ensinam, nossas mais distintas reverencias.
6
Prêmio Nobel de Literatura em 1993. Escritora negra, seus romances tratam sobre a vida de mulheres
afro-americanas nos Estados Unidos nos séculos 19 e 20. Foi editora da Random House uma das principais
editoras de livros em língua inglesa do mundo. Como editora, Toni Morrison ajudou a tornar a literatura negra
popular nos Estados Unidos, publicando autores como Henry Dumas, Toni Cade Bambara, Angela Davis e Gayl
Jones. Foi professora nas universidades publicas de Nova York e da Universidade Rutgers. Lecionou também na
Howard University, Albany Universty, Yale, Texas e Princeton University onde se aposentou em 2006. Recebeu o
diploma de Doutora Honoris Cause pelas Universidades de Oxford e Rutgers nos Estados Unidos.
7
Ancião das comunidades africanas que transmite aos mais jovens através da poesia, música e canto os
conhecimentos de toda comunidade. Uma biblioteca viva.
43
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
REFERÊNCIAS
GOMES, Nilma Lino (Relatora). Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola – DCNEEQ/MEC/SECADI. Parecer n. 16/2012.
MORRISON, Tony. Discurso durante o recebimento do Prêmio Nobel de Literatura. New York
Times, 1996.
44
ANEXO: REFERÊNCIAS DE LEITURAS DO PROGRAMA DE ESTUDOS EM
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 35. Ed. São
Paulo: Saraiva, 2005.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional. Lei n.o 9.394 de 20 de dezembro de
1996. 3.Ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
45
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.html.>
o
BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial: Lei Federal n. 12.288 de 20 de julho de 2010. São
Paulo: Imprensa Oficial, 2014.
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Paulo: Ed. Kelps, 2008.
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47
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Janeiro: Editora FGV, 2004.
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QUIJANO, Aníbal. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. Estudos Avançados,
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SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – Do pensamento único à consciência universal.
Rio de Janeiro: Record, 2001.
SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo – Globalização e Meio Técnico científico informa-
49
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nador do volume J. Ki Zerbo. São Paulo: Ática (Paris): Unesco, 1982.
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da Universidade de Brasília, 1982.
BASTIDE, Roger. O candomblé na Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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DURKHEIM, Emile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo. Martins Fontes.
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CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia –um vocabulário afro-brasileiro. Rio de
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do Brasil Negro. São Paulo, Selo Negro, 1998.
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OLIVEIRA, A cidade nas franjas do capitalismo: habitar a periferia e ser jovem negro. Revista
da ABPN, vol.4, n.8, outubro, 2012.
51
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
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MACEDO, Aroldo. FAUSTINO, Oswaldo. Luana, a menina que viu o Brasil neném. São Paulo:
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MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita. São Paulo: Ed. Ática, 2000.
CIANNI, Solange Azevedo. Doce Princesa Negra. Rio de Janeiro: Ed. LGE, 2003.
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GERAS, Adele. Carmem ou Aída a Princesa Etíope. São Paulo: Ed. Salamandra, 1999.
BARBOSA, Rogério Andrade. Contos Africanos para crianças brasileiras. São Paulo: Ed.
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MATOS, Rejane Augusto. História e Cultura Afro Brasileira. São Paulo: Ed. Contexto, 2007.
DIDI, Mestre. História de um terreiro nagô. Salvador: Ed. Max Limonad, 2000.
SODRÉ, Lilian Abreu. Música africana na sala de aula. São Paulo: Ed. Duna Dueto, 2004.
52
7 - LINGUAGENS ‘GRIOTS” E SUPERAÇÃO DO RACISMO: CURRÍCULO EM EDUCAÇÃO
QUILOMBOLA E DESCONTRUÇÃO DE PRECONCEITOS (Carga horária: 15 h)
SAMPAIO, Maria Cristina. O currículo vivido e os repertórios culturais negros nas escolas
municipais da matinha dos pretos – BA. Diálogos com a Lei 10.639/03. Dissertação de
Mestrado em Educação. UEFS/BA,2013.
SILVA, Givânia Maria da. Educação como processo de luta política: a experiência de educação
diferenciada do território quilombola de Conceição das Crioulas. Dissertação de Mestrado em
Educação: Políticas Públicas e Gestão da Educação. UNB/DF, 2012.
BRAGA, Maria Lúcia de Santana, SOUZA, Edileuza Penha, PINTO, Ana Flávia Magalhães.
Dimensões da inclusão no ensino médio: mercado de trabalho, religiosidade e educação
quilombola. Brasília/DF, MEC/BID/UNESCO, 2006.
FREIRE, P. Ação Cultural para a Liberdade e Outros Escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976.
FREIRE, P. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia –um vocabulário afro-brasileiro. Rio de
53
1. CURRÍCULO E EDUCAÇÃO QUILOMBOLA NO RECÔNCAVO DA BAHIA
HAMPATÉ BÁ, Amadou. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Casa das Áfricas, 1992.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues Brandão. Identidade e etnia. São Paulo, Brasiliense, 1986.
SILVA, Joana Maria Ferreira da. Centro de Cultura e Arte Negra – Cecan – Coleção Retratos
do Brasil Negro. São Paulo, Selo Negro, 1998.
FRANKLIN, Ricardo. Afro-brasileiro: identidade em construção. São Paulo, selo negro, 1997.
OLIVEIRA, A cidade nas franjas do capitalismo: habitar a periferia e ser jovem negro. Revista
da ABPN, vol.4, n.8, outubro, 2012.
horária: 50 horas)
54
2 – CONSTRUÇÃO DE PROPOSTA DE INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA NA ESCOLA QUILOM-
BOLA (Carga horária: 15horas)
SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2004.
SILVA, Delma Josefa da. Educação quilombola: um direito a ser efetivado. Recife: Centro de
Cultura Luiz Freire, Instituto Samaúma, 2007.
55
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A
RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE INSTITUI A
EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS
57
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS
Oh, mil novecentos e quarenta e quatro não tinha escola. Tinha escola no Pau
Preto e na Batalha. Na Batalha, em casa de família na casa de Dona Carmem.
Mil novecentos e quarenta e quatro tinha escola no Pau Preto e na Batalha. Esse
trecho aqui nunca existiu, aqui [Rio das Rãs] nunca existiu escola (Chico de Helena,
entrevistado por PURIFICAÇÃO, 2007).
Há exemplo de pais que contratavam professora para alfabetizar seus filhos, contudo a
filha, não era contemplada, pois para eles, as mulheres não podiam aprender a ler e escrever;
considerando que isso daria a elas a possibilidade de conseguirem namorados, através de
bilhetes ou conquistariam a independência; atos que para eles, colocariam em risco a sua
autoridade e o controle no ir e vir das filhas, enquanto que para os filhos, não havia nenhuma
restrição.
Desse modo, na História da Educação de Rio das Rãs, destacou-se com relevância o
processo de alfabetização realizada por professoras/es leigas/os no início do século XX; que
58
em suas casas alfabetizavam e iniciavam em regime particular educandos de faixa etária
diversificada, recebendo uma remuneração dos pais. Prática comum no contexto regional,
no qual se destaca Maria Vitalina de Jesus, conhecida como Dona Vitalina, nasceu em 1897,
aprendeu já em idade adulta as primeiras letras, tornando-se alfabetizadora, responsável pela
primeira experiência mestre-escola em Bom Jesus da Lapa/BA. (BARBOSA, 1984).
Segundo Souza & Almeida (1994), o primeiro empreendimento público que veio a beneficiar
o quilombo Rio das Rãs, foi o asfaltamento do trecho da rodovia BA – 160, que liga Bom Jesus
da Lapa à cidade de Malhada; obra realizada na década de 1990. Pelo fato de oferecer acesso
aos quilombos: Lagoa do Peixe, Araçá Cariacá, Bebedouro, Nova Batalhinha, Rio das Rãs e
Pau D’Arco/Parateca; a rodovia é conhecida na região por “via quilombola”.
Nesse contexto, poucas pessoas conseguiam aprender a ler, diante das dificuldades
enfrentadas, e as que conseguiam o aprendizado passavam a ser mais valorizadas pelos
demais, transformavam-se em importantes referências na comunidade. Eram elas que liam
e/ou escreviam as cartas.
Entre as poucas pessoas da época que sabiam ler e escrever duas delas têm seus nomes
emprestados para as denominações das escolas que funcionam nas localidades da Brasileira
e de Rio das Rãs, sendo respectivamente o Sr. Emiliano Joaquim Vilaça e o Sr. Elgino Nunes
de Souza; reverenciados pela comunidade.
59
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS
Hoje eu me acho muito feliz aqui no quilombo de Rio das Rãs, porque eu sou de
1929, conheci esse pedaço de chão aqui de Pau Preto até a Batalhinha [quilombo] e
só tinha cinco pessoas que sabia lê. Era Emiliano, Ergino Nunes de Souza, Mané
Batista, ninguém aqui sabia ler, se alguém mandasse uma carta só tinha mandar ou
Emiliano na Passagem de Areia, ou tio Henrique, ou meu pai ou Ergino, nunca existia
escola, eu mesmo nasci, o maior sofrimento que eu tive na minha vida é porque num
aprendi a ler (Chico de Helena, depoimento Grupo Focal, 2013).
A tristeza exposta por Seu Francisco devido à falta da educação formal e por não saber
ler e não poder escrever, retrata a situação vivenciada por muitas outras pessoas residentes
na comunidade na ocasião da pesquisa de campo. As impossibilidades de acesso aos
aprendizados escolares, possivelmente o levou a buscar e desenvolver outras aprendizagens
para a constituição pessoal da sua leitura de mundo e a representação social dos saberes
disponíveis na educação familiar.
Tinha as pessoa que tinha boa mimória, como é meu pai mermo, era um home
mimorista. Meu pai sabia fazer um balaio, meu pai fazia uma canoa, meu pai fazia
uma rede, meu pai tudo, tudo, fazia uma gamela, meu pai fazia uma imbarcação, tudo
meu pai fazia (Chico de Helena, entrevistado por PURIFICAÇÃO, 2007).
O contexto acima apresentado, não era específico do Quilombo Rio das Rãs; considerando
que outros quilombos, também localizados no Território Velho Chico vivenciaram situações
semelhantes; a citar o Quilombo Araçá Cariacá e o Quilombo Mangal Barro Vermelho. Portanto,
essa estrutura nos remete a um cenário mais abrangente e contemporâneo ao período de
1878, quando foi aprovado um decreto que aproximava oficialmente os negros da realidade
escolar. O Decreto 7031-A permitia o ingresso de negros à escola, contanto que estudassem
em período noturno (BRASIL, 2005, p.7).
Ocorreu que o acesso por esta autorização não se efetivava nem mesmo nos centros
urbanos, ou nas suas proximidades, devido ao contexto político e pelas condições vividas
pelos negros, ainda que livres do escravismo. Xavier (1994 apud OLIVEIRA, 2004) convida a
pensar nas possibilidades ofertadas em 1935, quando apenas 54% das crianças em idade
escolar encontravam-se matriculadas, analisando uma política nacional com dificuldades para
expandir e qualificar o ensino primário.
Difícil imaginar, portanto, como o ensino público chegaria a lugares tão distantes e de
moradas de comunidades negras em situação de isolamento, sob o enfrentamento de ameaças
e tentativas de reescravização.
60
As primeiras iniciativas de construção de prédios escolares na zona rural de Bom Jesus
da Lapa, segundo Barbosa (1996), foram realizadas em 1954, nos dois mais populosos
povoados do município, Favelândia e Sítio do Mato; o segundo elevou-se a município em 1990.
Essas iniciativas com muitas deficiências visavam atender o ensino primário; não dispondo de
abastecimento de água encanada e energia elétrica. Não havia exigência do magistério para o
ofício de professor, realidade que perdurou por muitos anos.
As implantações das escolas no interior do município eram realizadas a partir das relações
dos fazendeiros e/ou representantes das comunidades com o poder político local. Até o
início da década de 1990, as lideranças de Rio das Rãs, não eram reconhecidas, enquanto
representantes comunitários, pelos gestores no município de Bom Jesus da Lapa; e as relações
políticas e comerciais dos ditos donos da Fazenda Rio das Rãs se concentravam nas cidades
de Caetité e Guanambi. Fato que tornava ainda mais distante a possibilidade de investimentos
públicos para a educação em Rio das Rãs.
A professora exercia total autonomia para administrar as ações referentes à “sua” escola e
era considerada a “dona da escola”. A pesquisa de Oliveira (2004) faz uma observação impor-
tante sobre o efeito da autonomia da professora em relação aos conhecimentos ensinados, os
conhecimentos da professora, que neste exercício se torna o conhecimento escolarizado.
Na região do Território Velho Chico, há nomes e experiências que se destacam nesse ofício,
61
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS
a imortalizada Dona Vitalina, citada como precursora na educação em Bom Jesus da Lapa;
e o Senhor José Modesto Santos, natural de Paratinga/BA, “um mulato polido” (que) “já era
professor leigo em sua terra natal, em 1937.” (BARBOSA, 1986. p.26).
Através de Oliveira (2004), vêm um relato de uma moradora, como indicador de uma
segunda experiência escolar em Mangal Barro Vermelho, que retrata o desafio do ensino das
primeiras letras aos quilombolas, ao final da década de 1940, na qual, a perspectiva está
diretamente ligada à formação da professora, a sua vivência naquela comunidade. Esta se dá
sob os moldes de educação apresentados acima, desta vez patrocinada por um fazendeiro,
como diz a senhora Elvina Carmo Santiago, conhecida no Quilombo Mangal/Barro Vermelho
como Dona Pituca, neste relato, refere-se à cidade de Barra, uma das primeiras cidades do
Território Velho Chico, onde aos (09) nove anos de idade, foi morar com o senhor Avelino que
era seu Padrinho.
Aquele tempo usava aquelas cartilhas, do povo [...] Que tinha aquele cinco dedos.
Num sei se vocês alembra, né. Então, tinha o, o alfabeto, todo a, b, c, d, e, f... e eu
cumecei. Saí daqui já dizarnada, num sabe. Chequei lá, continuei e istudei; até o
terceiro ano [...] Aqui tinha uma professora que chamava Arcanja. Era casada, o
marido dela era vaqueiro de seu Avilino [...] A escola era, era na casa... ah, essa casa
já, já, eles dismancharam [...]. Escola de pobre. Tinha as cadeirinha, tudo mundo
levava seu banquim, né. Justamente, essa escola. Foi seu Avilino qui arrumô, cum,
acho com os prefeitos, as pessoas mais ou menos daí da Lapa, e colocô essa [...]
A gente aprendeu um pôco assim, algumas coisinhas assim. Agora, ela não sabia
muita coisa num sabe... era mesmo só pra dizarná, pra não ficá aí tanta gente burro
(entrevistada por OLIVEIRA, 2004, p. 128).
O senhor Florisvaldo Pereira da Silva, liderança do Quilombo Araçá Cariacá, relatou que foi
alfabetizado pela professora Lindaura Lopes dos Santos, nascida em 27 de novembro de 1960,
no Cariacá, alfabetizada aos 08 anos, pela Professora leiga de nome Diolinda, na paragem do
Juazeirão, comunidade rural pertencente ao Município de Bom Jesus da Lapa/BA, localizada a
aproximadamente 8 quilômetros do Araçá Cariacá. Seguindo o exemplo da mestra Diolinda;
a professora Lindaura ensinava o “abc e a cartilha”. Atuou durante (03) três anos, sob uma
“latada” - construção improvisada, elaborada com estrutura rústica, produzida com utilização
de restos e pedaços de madeira; coberta por telhas ou palhas retiradas das árvores - erguida
para esse fim, em sua casa até se casar e deixar de morar no quilombo.
Comecei a lecionar porque não tinha ninguém com disponibilidade. Alguns pais de
alunos foram atrás de mim, mas como era menor de idade, os próprios pais vieram
62
falar com Dr. Anísio juiz da cidade e dono da fazenda que morávamos para ele poder
dá um jeito. Permitindo que eu tirasse meus documentos. O que na época não era
permitido. Isso foi em 1977(...) até 1980. Sai quando casei e vim morar na Lapa para
terminar os estudos (Professora Lindaura, entrevistada por PURIFICAÇÃO, 2013).
Florisvaldo, seu aluno mais ilustre, após a partida da professora da comunidade, prosseguiu
os seus estudos sob a orientação da Professora Maria Benes Lobato, popularmente conhecida
por Benes, 47 anos, graduada no Magistério Superior, que com 15 anos de idade, quando
ainda cursava a quinta série ginasial, atual sexto ano do Ensino Fundamental, diante das
reivindicações dos moradores das localidades de Araçá e Cariacá junto à Prefeitura de Bom
Jesus da Lapa pela instalação de uma escola na comunidade, Benes, que atualmente atua
como diretora na Escola Municipal Araçá Cariacá, se colocou à disposição para compartilhar
os seus conhecimentos à época.
63
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS
imóveis separados que foram ganhando estruturas onde, posteriormente, passaram a funcionar
as escolas públicas.
Quando eu casei, lá em Bom Retiro, não tinha professora, só lá em Rio das Rãs.
Ninguém sabia ler, eu comecei a dar aula particular cobrando uma taxinha, aí fiquei
trabalhando em minha casa. Nas eleições ficavam prometendo professora e nunca
vinha, eu ficava vendo as criancinhas todas sem estudar (Dona Emília, entrevistada
por SILVA, 2004).
Na oportunidade, respondendo sobre sua rotina na realização das aulas quando atuava
como alfabetizadora, a professora Emília comentou acerca dos conteúdos lecionados e expôs
como relacionava a sua prática pedagógica com a vivência no cotidiano da comunidade: “ As
crianças gostam da folia né, da alegria. Acho que ficaria mais fácil, é o jeito daqui mesmo, da
gente”. Dona Emília faz analogia aos novos métodos aplicados na escola, a partir da chegada
da professora “formada” e à sua maneira de atuar.
Na escola tem reza, canto para as crianças, roda de brincadeiras e cantigas trazidas
pela professora. A professora quando chegou veio com os esquemas dela. Eu
passava o alfabeto, ensinava as vogais, às consoantes, depois juntava as letras e
formava as sílabas, chegando ao b-a-bá. Gostava de ensinar a eles lerem soletrando,
depois que eles liam as sílabas eles liam as palavras (Dona Emília entrevistada por
SILVA, 2004).
Este relato de Dona Emília retrata uma fase que marcou o período de transição entre o
ensino informal e o ensino institucionalizado. Na ocasião, já existia uma relação das professoras
com os órgãos do governo; contudo elas prosseguiam com a responsabilidade de direcionar o
ensino. Desse modo, construíam o currículo a partir dos conhecimentos adquiridos em espaços
formais ou nas vivências comunitárias. Cada profissional realizava as atividades escolares
de acordo com seu conhecimento e habilidade, estabelecendo a partir daí os conteúdos e
metodologias a serem desenvolvidos.
64
Eram escolas cujos professores eram reconhecidos ou nomeados pelos órgãos
de governos responsáveis pela instrução e funcionavam em espaços improvisados,
geralmente na casa dos professores, os quais, algumas vezes recebiam uma pequena
ajuda para o pagamento do aluguel. Os alunos ou alunas dirigiam-se para a casa
do mestre ou da mestra e lá permaneciam por algumas horas (FARIA FILHO, 2000.
p.144).
Com esta configuração, a história da educação escolar no Quilombo Rio das Rãs, passa
aos poucos a funcionar, ainda que timidamente sob o patrocínio do Poder Público, que através
do Município passou a contratar os professores/as leigos/as; ainda que estas continuassem a
atuar em suas residências.
DIOS MUNICIPAIS
Na ocasião, Dona Nilza era professora leiga, mesmo não sendo seu sonho, assumiu o
ofício de educadora, que de acordo com seus relatos, aos poucos ela foi se envolvendo e
se apegou à função de instrutora. “Luto para que eles cresçam e para isso trabalhei como
professora leiga até 2003, concluindo o curso Pro-formação (MEC/Governo Municipal) em
julho de 2004, em Caetité.” (Dona Nilza entrevistada por SILVA, 2004).
Com esse propósito Dona Nilza despontou como alfabetizadora reverenciada com grande
importância na história educacional de Rio das Rãs. Seu nome ficou diretamente relacionado
à transição da Escola das Professoras leigas para a Escola Institucional. Como relata Seu
Francisco:
65
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS
Como parte da trajetória de luta que compõe a História do Quilombo Rio das Rãs, logo
após o reconhecimento do território como comunidade quilombola, seus moradores intensi-
ficaram a busca junto aos órgãos públicos pela efetivação dos seus direitos; dentre eles, o
direito à educação escolar e através de muitas ações como abaixo assinados, reuniões e
reivindicações junto às esferas Municipal, Estadual e Federal, foram gradativamente obtendo
resultados. Assim sendo, o quilombo conquistou prédios escolares, equipamentos, contratação
de professores e transporte escolar.
Nesse antigo prédio, atuou cursos de Alfabetização e Ensino Fundamental até 8a série
(atualmente 9o ano). Dispondo de água encanada e energia elétrica. Composta por (03) três
salas de aula, (01) uma cantina, (01) uma secretaria. Dispunha de poucos móveis, em relação
ao número de alunos que frequentava e havia apenas (01) um sanitário para o uso de todos/as.
Devido à falta de cadeiras e mesas para a realização das atividades; muitos/as educandos/as
participavam das aulas, sentados/as ou até mesmo, deitados no chão.
Essa escola ai, eu lembro que Lia Rocha [Maria da Conceição Silva Rocha – Se-
cretária Municipal de Educação à época lembrada] mandou uma pasta pra mim. . .
pra mi ir conhecendo a forma de trabalhar, mandou uma carta pra mim ir numa
66
reunião e, assim meio escondido, era pra mim ir pra Brasília numa reunião mais ela,
mas na verdade ela ia mais a reunião era 200 prefeito que ia tá reunindo lá, ia tá
discutindo essa questão de educação e tale, ai eu fui pra lá, foi aonde colocou mais
cinco escola [...] e foi aprovada e tem assim. . . ai veio o transporte também. . . e hoje
chegou, tá ai e eu tenho esse orgulho de tá participando. É como se fosse assim,
mudou da água pro vim, quer dizer assim que todo aquele sofrimento (Simplício
Arcanjo, depoimento Grupo Focal, 2013).
Esta contava com 214 (duzentos e quatorze) alunos matriculados, no ano letivo 2013, para
cursarem as séries desde a Educação Infantil até o Ensino Fundamental II, contando com
turmas multisseriadas, conforme informação fornecida pela Secretaria Municipal de Educação
de Bom Jesus da Lapa, cadastrados no Censo Escolar EDUCACENSO, coordenado pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira – INEP.
Como parte das primeiras conquistas e diante da necessidade dos moradores da localidade
de Rio das Rãs inserirem suas crianças e adultos no contexto escolar, no ano de 2002, ainda
em uma casa alugada, sem contar com infraestrutura básica, começou a funcionar uma escola
no local, distante 62 quilômetros de Bom Jesus da Lapa/ BA. O espaço foi utilizado até o ano
de 2004, quando através do Programa Dinheiro Direto na Escola Emergencial – PDDEE; foi
67
2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS
construída a Escola Municipal Elgino Nunes de Souza, registrada com o nome de um dos mais
antigos moradores, patriarca de uma das maiores famílias do quilombo.
Devido à falta de espaço suficiente, uma parte dos/as matriculados/as passou a frequentar
as aulas em uma grande sala, cedida pela Associação Comunitária, locada nas proximidades
da escola. Os 02 (dois) locais contavam com água encanada, porém nenhum deles possuía
energia elétrica.
O quadro de docentes em 2013 era formado por 09 (nove) professores/as, a partir do mês
de outubro, do mesmo ano, passou a contar com mais 01 (uma) professora. No tocante ao
nível de formação do corpo docente: 03 (três) professores/as são graduados em História,
Pedagogia e Matemática; 06 (seis) professores/as estão em processo de graduação nas áreas
referentes à Pedagogia, História e Letras Vernáculas e 01 (uma) professora, cursou o Magistério,
tendo como grau de instrução o Ensino Médio. Destes, apenas 03 (três) professores/as são
efetivos/as. Os demais atuam através de contrato por tempo determinado.
Com o novo prédio, a comunidade escolar recebeu equipamentos como máquina copiadora
para xerox e scanner, computadores, câmera digital, aparelho de som, caixa acústica com
amplificador, microfone, televisor e uma sala de leitura pronta para uso, no entanto, ainda não
foi disponibilizada.
68
escola funciona com o Programa Educação Integral e no Ensino Médio com Intermediação
Tecnológica – EMITEC, programa da Secretaria da Educação da Bahia que faz uso de uma
rede de serviços de comunicação multimídia que integra dados, voz e imagem; com 01 (uma)
turma composta por jovens do Quilombo Rio das Rãs, do Quilombo Nova Batalhinha e do
Projeto de Assentamento Batalha.
O seu prédio construído de tijolos, com paredes rebocadas com cimento e pintadas;
composto por 02 (duas) salas e 01 (uma) secretaria; por não dispor de 01 (uma) cozinha para
produzir a merenda escolar, o fogão ficava na casa da merendeira; não havia banheiro. Essa
observação foi realizada em 2004, ainda verificou-se que o número de carteiras eram inferiores
à necessidade dos/as educandos/as, por isso eles/as levavam das suas casas bancos e
cadeiras, alguns escreviam com os cadernos apoiados sobre as pernas.
Em 2007, a estrutura passou por uma reforma, quando o terreno foi cercado com um muro,
foram construídos: o banheiro e a cozinha. Assim como, ocorreu com as escolas já citadas,
em 2010, a comunidade escolar de Enchú, recebeu dos órgãos públicos acessórios como
máquina copiadora para xerox e scanner, computadores, câmera digital, aparelho de som,
caixa acústica com amplificador, microfone e televisor.
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2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS
livros que irão compor a sala de leitura, encontram-se empilhados no espaço onde funciona
a secretaria da escola; por falta de um local apropriado para serem arrumados e acessados
pelos/as alunos/as.
Tanto os professores, quanto os alunos esperam que com a inauguração do novo prédio
construído na localidade, venham mudanças com relação à qualidade do ensino na comu-
nidade.
UM PANORAMA DIDÁTICO-PEDAGÓGICO
70
No processo de institucionalização da educação em Rio das Rãs, os/as professores/as
passaram a participar do planejamento único, da Secretaria de Educação, estipulado para todo
o município. A uniformidade dos planejamentos gerou alguns transtornos, os/as alunos/as
passaram a enfrentar problemas com o calendário escolar que não consideram questões como:
os períodos das lavouras, quando é comum os filhos acompanharem os pais na preparação
da terra, por ocasião das chuvas; os períodos pós-enchentes do Rio São Francisco, quando
plantam na beira do rio (lameiro) e nas ilhas; e ainda o mês de junho, período utilizado para
fazer farinha.
Silva (2004) registrou um elemento importante que foi apresentado por uma professora em
entrevista: no desenho livre os/as alunos/as desenham os/as negros/as tocando tambores, o
reisado, os cavalos enfeitados do reisado, os reis do reisado e Zumbi. No Cantinho da Arte,
os/as alunos/as negros/as, maioria na escola, pintam as crianças e adultos da cor preta nas
gravuras que fazem.
Entrevistadas em 2004, as professoras das três escolas declararam que não havia uma
relação direta da educação escolar com vida cultural da comunidade. As professoras “de fora”
não ficavam na comunidade por ocasião dos eventos, festejos e manifestações e foi quase
unânime nas suas opiniões sobre a não realização de atividades na escola relacionando às
expressões culturais da comunidade, impedidas por mães, pais e professoras evangélicos.
Uma das professoras utiliza como exemplo a Escola Elgino Nunes de Souza, que durante
os anos de 2005-2007, contou com a metade do corpo docente formado por professores
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2. O CAMINHO PARA UMA EDUCAÇÃO PARA A RESISTÊNCIA: A TRAJETÓRIA QUE
INSTITUI A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO QUILOMBO RIO DAS RÃS
nativos, os quais buscavam parceria com a comunidade, através das lideranças e a escola
envolvia alunos/as e professores/as em eventos realizados, como a comemoração do dia 20 de
Novembro – Evento itinerante realizado desde 2003, nos Quilombos do Território Velho Chico,
em reverência ao Dia Nacional da Consciência Negra - abarcando a comunidade, através de
pais, mães e lideranças, nas gincanas organizadas.
As professoras foram unânimes ao afirmar que deve haver formação preparatória para
todos os/as educadores/as que vão trabalhar em quilombos, especialmente, para quem ainda
não conhece a realidade quilombola e suas especificidades. A Professora Juvenice Vieira,
relatou que teve muita dificuldade de entender a vida e a cultura do lugar: “eu não conhecia
nada lá, passei a conhecer com as professoras leigas e as pessoas mais velhas” (entrevistada
por PURIFICAÇÃO, 2007), demonstrando compreender a importância da interação com o
saber comunitário, no entanto, defende a formação específica.
Por informação da SME-BJL, em 2007, metade da equipe docente era formada por pro-
fessores nativos. Os profissionais de limpeza, as merendeiras e os agentes de portaria, são
contratados temporários. Com a realização do concurso público, em 2008, e o fim dos contratos
temporários, o quadro de docentes passou a contar, apenas com o professor Jonas Duque,
aprovado no concurso, como o único professor nascido na comunidade. As outras funções não
incluídas no processo seletivo (concurso) continuaram sendo ocupadas pelos quilombolas. As
diretoras, em 2007, eram todas moradoras da sede do município.
72
Duas vans foram alugadas pela Prefeitura Municipal de Bom Jesus da Lapa, para trans-
portar estudantes e professores, sendo que uma atende à Escola Francisco Xavier e outra
dando suporte à Elgino Nunes, especificamente à noite, para o público residente no Quilombo
Nova Batalhinha e no Assentamento Batalha (comunidades circunvizinhas). Esse recurso
é considerado de muita importância pelos quilombolas devido a considerável distância que
separa as residências das escolas.
Estes aspectos demonstram quanto o processo educacional em Rio das Rãs tem evoluído,
no entanto, perduram aspectos importantes que evidenciam a necessidade de avaliação, no
sentido de buscar caminhos para a promoção de uma diferenciação no processo ensino-
aprendizagem, na construção de uma escolarização que contemple a identidade e os valores
da comunidade.
Gerar uma educação de qualidade, protegida pela garantia dos direitos, consiste em um
grande desafio que requer compromisso e reflexão por parte dos atores sociais envolvidos no
que tange as práticas institucionais. Em relação à Educação Escolar Quilombola, observei as
ações desenvolvidas pelo poder público e os profissionais da educação, não obstante, creio
que estas iniciativas e práticas necessitam de qualificação e o alinhamento das concepções de
entendimento entre o saber popular e o saber instituído.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Antônio. Bom Jesus da Lapa: antes do Monsenhor Turíbio, no tempo do Monsen-
hor Turíbio, depois do Monsenhor Turíbio. Rio de Janeiro: Jotanesi Edições, 1996.
BRASIL. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal no 10.639/03/ Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Brasília: MEC, SECAD. 2005.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Instrução elementar no Século XIX In. LOPES, Eliane
Marta Teixeira, FARIA FILHO, Luciano Mendes VEIGA, Cynthia Greive (orgs). 500 Anos de
73
REFERÊNCIAS
SILVA, Ana Célia da. Educação formal e informal nas comunidades negras rurais de Rio
das Rãs, município de Bom Jesus da Lapa. Salvador: Relatório de pesquisa, Digitado, 2004.
74
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO
ESCOLAR QUILOMBOLA: CONTRIBUIÇÕES A PARTIR
DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO
75
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO
repente não sabiam o que ensinar e nem como ensinar aos mesmos alunos. Uma fala em
especial chamou a minha atenção: “professora, agora que eles viraram quilombolas, estou
confusa.” Creio que este conflito não seja de uma professora em particular; por esta razão,
me senti desafiada a construir um texto que possa auxiliar esses professores e professoras
na compreensão do que seja quilombo e do que autoriza uma comunidade a ser reconhecida
como quilombola e, assim, identificar-se. As reflexões as quais me proponho a fazer estão
ancoradas na pesquisa, que culminou com minha dissertação de mestrado, e nas Diretrizes
Curriculares para a Educação Nacional Quilombola cuja aprovação data de 2012, seis anos
depois da defesa do mestrado.
76
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE QUILOMBO E QUILOMBO CON-
TEMPORÂNEO
A Constituição Federal de 1988, com a conquista do Artigo 68 dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias – a qual afirma que aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” –, revela a necessidade de repensar o conceito de
quilombo a partir da diversidade de comunidades negras. Como afirma Oliveira, utilizando-se
das palavras de Santos Silva (1997),
77
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO
o que se compreende por quilombo neste momento, para poder reconhecer seus
remanescentes. Mais uma vez, será no campo da política que o sentido/conceito de
quilombo será redefinido. (2006, p.84)
A luta das comunidades negras pela conquista da terra difere da luta de outros setores
rurais, porque a terra que essas comunidades reivindicam traz consigo uma ancestralidade
que a faz mais que terra, fundindo-se à própria história do indivíduo, quase uma extensão
de seu corpo. Essas comunidades não apenas produzem na terra, mas produzem a terra
cotidianamente, tornando-a particular, única; uma terra que sempre foi de alguém, que eu
conheço, de quem herdei toda a referência de uma terra impregnada de uma historicidade que
a particulariza, porque,
As pressões desses grupos negros rurais, fortalecidos com a luta organizada do Movimento
Negro, tornaram inevitável o seu reconhecimento, por parte do Estado Brasileiro, enquanto
remanescentes de quilombos e, consequentemente, a titulação de suas terras (embora muitas
comunidades ainda hoje lutem pelo reconhecimento), sendo pioneira a comunidade de Frechal,
no Pará, em 1992.
78
o direito das comunidades remanescentes de quilombos ao reconhecimento da terra que, in-
discutivelmente, lhes pertence. A inclusão desse artigo foi, sem dúvida, um ganho significativo
para a história e a luta dos afrodescendentes, pois é crucial assegurar a legalidade da terra,
e é de valor inestimável, o reconhecimento da ancestralidade dessas comunidades e de sua
produção cultural.
Com a inclusão dos artigos 215 e 216 (Da Cultura) da Constituição Federal do Brasil de
1988, que reconhece oficialmente a contribuição de grupos negros ao patrimônio cultural,
as comunidades negras rurais percebem, de modo mais palpável, a possibilidade de obter,
legalmente, o que já lhes pertencia de forma legítima: a terra onde vivem. É nesse cenário de
luta por condições de vida que a resistência negra vai se constituindo nos espaços urbano e
rural, quer seja pelos caminhos da negociação, quer seja pela via do conflito, de forma cada
vez mais organizada.
79
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO
Diante desse cenário, no estudo dessa comunidade, a memória a ser valorizada não é se o
grupo em questão tem ou não alguma relação com as formações que se encaixam na definição
tradicional de quilombos, que tem em Palmares sua principal referência, outros elementos
precisam ser considerados, especialmente se pensarmos em quilombo como uma categoria
que se justifica para além da definição de um espaço físico, se justifica como um modo de se
portar no mundo diante da experiência da escravidão e da discriminação. Quilombo, nessa
perspectiva, é o lugar da resistência, e resistência não se dá de uma mesma forma em
territórios e contextos diferentes, muito menos entre sujeitos diferentes. Não reconhecer essa
complexidade é desconsiderar a dialética das relações entre os sujeitos e seus contextos e
entre si.
Fora dessa perspectiva, Mangal jamais poderia ser reconhecido como quilombo, pois
mesmo o termo quilombola era desconhecido na Comunidade, como podemos observar na
fala de um dos moradores: “[...] o senhor desculpa as minhas expressão, a minha ingnorança,
o que... que é quilombo? Porque o quilombo que, que... que eu entendo é quilometrage, é
midição”. A fala de Senhorzinho, diante do representante do INCRA, em 1997, deixa claro que
nem sempre se foi quilombola em Mangal/Barro Vermelho e, portanto, Mangal nem sempre foi
quilombo a partir de uma concepção tradicional.
A primeira vez que eu fui assim numa reunião assim que falara sobre o negro, aí
eu acho que nós debatemos sobre isso aqui, o que é ser negro? Como é a relação
entre negros e brancos? E como os negros se relacionam entre si? [...] Só que eu
não lembro mais assim como foi, e daí porque eles me falaram que aqui tinha tudo
80
para ser quilombo, mas só que eu cheguei aqui, tava nessa reunião. Eu mesmo
não falei nada pra ninguém não, porque o pessoal também não ia se interessar,
bem... É, até com isso, acho que eles achava eu não ia chegar ao ponto que chegou.
(GUILHERMINA, 2005, Apud OLIVEIRA,2006. p 77)
O modo como Mangal garantiu a sobrevivência dos elementos destacados por eles como
fundantes na construção da identidade, tem como cenário um pedaço de terra às margens do
Rio São Francisco, que é o lugar onde se desenvolveram mitos, ritos, fazeres e saberes que,
para eles, dão suporte à identidade do grupo ou à identidade de cada um, faz dele quilombo,
compreendido como lugar de resistência e de transgressão.
Dessa forma, discutir o que é quilombo e a identidade quilombola são necessidades política
e pedagógica, especialmente a partir da aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, a qual tem provocado movimentos políticos
e pedagógicos no interior dessas instituições escolares, muitas vezes por desconhecimento
de seu significado histórico e de sua amplitude. Nesse sentido, contar a história de Mangal e
Barro Vermelho contribui para fortalecer a compreensão do processo histórico de identificação
e reconhecimento das diversas comunidades quilombolas presentes em nosso território.
81
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO
atuais de suas existências, que a história do Mangal torna-se uma referência para outras
realidades.
Mangal reivindicou a identidade quilombola no bojo da luta pela terra, a qual, posterior-
mente, se desdobrou num processo de retomada de sua história e identidade. Foi assim
que a comunidade em pouco mais de dois anos passou de mangazeira a quilombola ao ser
reconhecida como “remanescente” de quilombo em 1998, inclusive pelo reconhecimento de
que não se tornariam quilombolas se não fossem mangazeiros.
O povo do Mangal está arraigado naquelas terras, segundo a tradição oral, às margens
do Rio São Francisco, no Município de Sítio do Mato-Estado da Bahia, desde o século XVIII,
onde construíram a experiência histórica de se reproduzirem, de produzirem as condições
de sua existência e de reproduzirem a cultura de seus ancestrais, nem sempre do mesmo
jeito, mas no jogo da vivência e sobrevivência, conservando e/ou reformulando significados.
Segundo os relatos orais, a comunidade surge a partir da escravaria de certo Capitão João,
que teria se apaixonado por uma escrava e que, a pedido dela, teria doado a terra a Nossa
Senhora do Rosário. Desde então, os negros da fazenda passaram a morar no Mangal, lugar
onde se soltava o gado. Na negociação com seu entorno, durante muito tempo, a comunidade
– de origem escrava e adepta a práticas religiosas de matriz africana –, negou sua crença,
tomando a Nossa Senhora do Rosário como padroeira. Ser Mangazeiro era ser reconhecido
pelo entorno como negros feiticeiros.
Muitas histórias à beira do Rio São Francisco foram construídas em torno do que chamo
de hetero-identidade, pois, eles eram reconhecidos pelo outro como mangazeiros, mas não
se auto-reconheciam. Ao contrário, negavam. Nos anos metricconverterProductID90, a90,
a possibilidade de perda da terra, que lhes pertenciam legitimamente, mas não legalmente,
possibilitou a esses negros e negras a (re) conhecerem suas histórias quando, mais uma vez
um outro lhes dizem que são, agora, quilombolas. A partir de então, a comunidade faz um
movimento de retomada de sua história e de suas histórias e, para se tornarem quilombolas,
82
retomam e ressiginificam a identidade mangazeira. Assim, Mangazeiros, que até então não
sabiam o que era quilombo, tornam-se quilombolas.
O existir humano está inserido num contexto marcado por relações de poder que vão
influenciar nas estratégias de luta dos grupos sociais a fim de impor seus interesses e, nesse
sentido, garantir a construção de referências que darão ao grupo condições de sobrevivência,
produção, reprodução e ressignificação das realidades, necessárias enquanto tecidos que
construirão a identidade, que não se baseia na “ficção idealizadora” (APPIAH, 1997), mas na
construção possível dos atores sociais a partir da experiência adquirida na luta constante para
manter-se vivo e, com ele, os elementos constitutivos do EU e do NÓS.
O medo de falar da escravidão como forma de evitar com que esta se repita e o silêncio
sobre a questão que desemboca na ignorância das gerações mais jovens sobre o assunto
são evidências do quanto este tema é relevante para se pensar a identidade na comunidade.
Mesmo porque, embora institucionalmente a escravidão tenha sido abolida no Brasil, em
Mangal ainda é atual o seu medo desta, como demonstra Senhorzinho em depoimento: “[...]
fico procupado com essa geração, porque se num souber fazer..., a escravidão, ela pode
83
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO
tornar a vim; e, se ela vim agora, ela vem mais feia, porque ela num cabou, civilizou.” (Apud
OLIVEIRA, 2006, p.91) É importante atentar para as reflexões de Senhorzinho ao se referir
à escravidão. No trecho em que demonstra sua preocupação com o retorno da escravidão,
está evidente que ele não fala da escravidão do passado, mas fica subentendida uma crítica
às condições de vida e trabalho a que são submetidos os negros no Brasil, ao frisar que “[...]
ela num cabou, civilizou” ( Idem). Uma referência explícita às condições de desigualdades, nas
quais estão submetidos os negros.
84
Nessa perspectiva, a tradição – pensada como “uma forma de comunicação no tempo”
(SODRÉ, 1999, p.103) – assume papel relevante na medida em que se configura numa
experiência partilhada e ressignificada em contextos marcados por esta comunicação entre o
tempo passado e o tempo presente. Nesse sentido, a memória dos mais velhos teve papel
relevante na transmissão e ressignificação de conhecimentos, saberes e valores que fizeram
da Comunidade única, mesmo partilhando características gerais com outras comunidades
negras rurais. A singularidade dela é construída na atualização da experiência que impossibilita
a reprodução fiel do vivido que ganha sentido único no contexto em que se insere, posto que
“a temporal, no mínimo, pode levar a cristalização de valores absolutamente extemporâneos
em relação às características e demandas da contemporaneidade” (MATTOS, 2001, p.230).
A terra para a comunidade de Mangal é território para além de espaço físico, é também
espaço político no qual são implementadas ações e negociações que possibilitam ao grupo a
manutenção de valores comunitários que, certamente, garantiram a sobrevivência do grupo em
meio a todos os conflitos vividos. Nesse contexto, “o território aparece assim como um dado
necessário à formação da identidade grupal/individual, ao reconhecimento de si por outros”
(SODRÉ, 1999, p.15).
Em Mangal, as casas são muito próximas umas das outras, mas nem sempre foi assim;
o território por onde poderiam transitar e explorar, antes do conflito, lhes possibilitavam um
85
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO
O espaço aparece aí como o resultado do morar. Morar por sua vez não se define como um
mero efeito de um fazer comunitário, mas como algo que indica a própria identidade do grupo.
O que dá identidade a um grupo são as marcas que ele imprime na terra, nas árvores, nos rios
[...] A idéia de território coloca de fato a questão da identidade, por referir-se à demarcação
de um espaço na diferença com outros. Conhecer a exclusividade ou a pertinência de um
determinado grupo implica também localizá-lo territorialmente. (SODRÉ, 1999, p. 22-23)
Da terra eles tiram o sustento desde os tempos em que a memória coletiva aponta como o
marco da origem da Comunidade. Segundo essas memórias, o marco delimitador do tempo
originário daquele povo em suas terras é o tempo do cativeiro, tempo do Capitão João. Desde
aquela época, a prática por meio da qual esses indivíduos viabilizavam seu sustento era a lida
na terra. Dona Clara relata como os mais velhos tiravam o sustento, evidenciando a origem
camponesa: “na roça e a inchada na mão, feijão de corda, feijão de arranca, milho, melencia,
abóbora...”.
86
Na roça e a inchada na mão, feijão de corda, feijão de arranca, milho, melencia,
abóbora..., quando dicia, chega dicia, ói, cabeça baixa, pá vender abóbora. Todos
cumia. [...] levar pá rua, pá vender. Pá comprar café, rapadura, era nem açúcar, de
primeiro num usava açúcar, era só rapadura. [...] Só vendia em Paratinga. Na Lapa,
não. (Dona Clara, 2005, Apud OLIVEIRA, 2006, p.95)
A vazante sempre foi o lugar do plantio. A memória dos ancestrais também está enraizada
no modo de produzir materialmente a vida. Ainda hoje, no Mangal, coexistem, de forma
harmoniosa, espaços coletivos e espaços privados. Praticamente não existem cercas no
espaço interno de Mangal, a não ser as que delimitam a antiga sede da fazenda, hoje sede
da Associação Agro-Pastoril Quilombola de Mangal/Barro Vermelho, transformada em espaço
coletivo. Nem mesmo na vazante, onde cada família cultiva seu “pedacinho”, são verificadas
cercas.
Algumas poucas casas possuem uma frágil e pequena cerca para proteger algumas
hortaliças e plantas ornamentais dos animais domésticos, que vagam pelo quilombo compondo
o cenário em meio às atividades cotidianas de homens, mulheres e crianças. São porcos,
galinhas, sacuês, bodes, cabras, cachorros, vacas e bois que dividem o espaço de forma
organizada e perfeitamente coerente com a relação que a Comunidade estabelece com os
elementos que definem aquele território como seu.
A luta por essa terra é, sem dúvida, o elemento principal na construção da identidade
quilombola dos moradores do Mangal. Em 1997, quando os moradores do Mangal iniciam o
confronto com o Grupo Aliança, com o intuito de conquistar a posse da terra, eles eram sim-
plesmente os negros do Mangal. Alguns deles, hoje lideranças, como Senhorzinho, Carlinhos e
Caboje, (os dois primeiros já não moravam na comunidade há algum tempo) buscavam junto a
outros trabalhadores reivindicar um pedaço de terra de onde pudessem tirar o sustento. A luta
inicial foi por um pedaço de terra na Fazenda Vale Verde, juntamente com outros trabalhadores
rurais.
Eu tinha um colega que falava nesse negoço de quilombo, mas ele não explicava o
87
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO
que é que significava quilombo, isso era nessa faixa aí de 80, por aí. Aí, eu fiquei
pensando assim, quilombola... Só que ele disse que o processo ia ser lento, mas vale
a pena. Eu disse: – Rapaz, sei não!. Lá na hora da reunião também num dei opinião,
fiquei quieto. Quando foi um dia, cheguei em casa e falei: – E esse negoço que irmã
Míria falou que aqui é remanescente de quilombo, num demora muito não? Já que a
gente tá na luta pra ter um coisa agora, esse trem demora. Hum! Eu acho que eu
sou contra esse trem. Eu acho que sou contra (risos). Antes ser assentamento de
reforma agrária, diz que anda mais ligeiro. Ele disse: “ – Moço, uns diz que é bom”! –
Moço, mas isso demora demais. Aí disse: “ Não, nós vamos ter que esperar”. Aí um
dia a CPT me chamou e me disse: “ – Não, é assim, assim, assim, vale a pena você
esperar”. Já que vale a pena esperar... Ele falou que a gente ia receber uma terra, e
aí não ia comprar a terra de ninguém, ia receber uma coisa que era nossa, que foi
nossa, dos antepassados, que foi tomado; então, nós vamos mostrar ter esse direito.
Aí pense: “– Já que é assim, então... o jeito é esperar”. Aí a gente, já tava animado
e a gente começou a animar mais, aí a irmã Míria diz: “– Já que aconteceu isso, o
certo agora é encaminhar o negoço, ser remanescente de quilombo”. Quando foi com
poucos dias, o pessoal do INCRA, vêi pra fazer o relatório e falou; “– Rapaz, ela vai
ser desapropriada. Vocês tá com tudo nas mãos”. (CABOJE, 2005 apud OLIVEIRA,
2006, p.96)
Se para conquistar a terra, era preciso tornar-se quilombola, isso seria feito, embora os
moradores não tivessem noção alguma do que viria a ser quilombo. Até mesmo a professora da
comunidade confessa sua ignorância no tema: “[...] pra lhe dizer a verdade, eu num sabia nem
o que era quilombo”. Entretanto, considerando que as identidades são políticas e atendem uma
demanda da contemporaneidade, podemos afirmar que a identidade quilombola do Mangal é
legítima. Foram as demandas concretas do contexto social, econômico, político e cultural no
qual estavam inseridos que impulsionaram esses indivíduos, tanto a assumir como a negar
uma identidade. Não se pode perder de vista que durante muito tempo, em função de uma
outra demanda, os moradores do mangal rejeitaram ser “mangazeiros” e, por conseguinte,
toda a carga histórico-cultural que dava significado ao termo:
[...] quando eu viajei daqui pra Juazeiro mais minha mãe de vapor (pausa), ela me
falou: “Se alguém perguntar de onde você é, você fala que é de Paratinga, não é do
Mangal não, você não é do Mangal” Puxa! E eu nunca perguntei ela porquê, mais
depois que eu vim saber porque era. [...] Porque dizia que o Mangal era feiticeiro, o
povo era, tá entendendo? (CARLINHOS,2005 apud OLIVEIRA, 2006, p. 97)
Tornar-se quilombola, a partir de uma necessidade imediata, para fazer valer um direito
constitucional de acesso à terra, é absolutamente coerente com os preceitos da modernidade.
Nada mais é do que uma estratégia que garantirá o cumprimento de uma promessa. Nesse
sentido,
88
A política de realização praticada pelos descendentes dos escravos exige, como fez
Delany, que a sociedade civil burguesa cumpra as promessas de sua própria retórica.
[...] Ela é imanente à modernidade e um elemento de seu contradiscurso valioso
demais para ser sistematicamente ignorado. (GILROY, 2001, p. 96)
A identidade quilombola utilizada como instrumento para a posse da terra vai possibilitar a
esses indivíduos repensarem, inclusive, a negação da identidade “mangazeira” e ressignificá-la,
e o que antes era motivo de vergonha, é hoje razão suficiente para se orgulhar:
Eu não gostava não, quando eu saía daqui pra outro lugar, eu não falava que eu
era daqui. Aí, oh! Hoje eu tenho o maior orgulho de falar: olha! Eu sou do Mangal,
sou de lá do quilombo, a terra dos negros. Eu tenho mesmo, muito, eu tenho, mas
antigamente eu não gostava não. (FARIA, Guilhermina, 2005 apud OLIVEIRA, 2006,
p. 98)
Isso só é possível porque no plano prático a identidade quilombola devolveu àqueles negros
não apenas a terra a que tinham direito, mas com ela veio a dignidade, a liberdade e o trabalho,
elementos suficientes para que possam se colocar em pé de igualdade com o seu entorno,
agora dentro de um espaço que, embora eles sempre tenham sentido como seu, não podiam,
até então, usufruir.
Os benefícios trazidos pela nova condição de proprietários da terra caminham lado a lado
com o orgulho de ser quilombola. É inegável que essa nova condição trouxe a esses indivíduos
direitos que possivelmente jamais usufruiriam fora desta. Sair de metricconverterProductID700
metros700 metros de terra – sem direito à caça, à pesca e ao plantio – para oito mil hectares
de terra dos quais são proprietários, é motivo suficiente para que se incorpore uma identidade.
A narrativa de Carlinhos nos mostra de forma significativa a transformação porque passaram
esses indivíduos após o reconhecimento. O tempo agora é o tempo da liberdade, da alegria,
da fartura, da independência:
É. Então era uma coisa... é triste. Agora não, estou alegre [...] você chega na casa
de um (pausa) trabalhador. Cheguei na casa de Barriga, ele me deu um copo de
vitamina (pausa)[...] Tem um velhim que chega assim e fala: – “chegava aqui no
Mangal procurava um ovo, pra cumer e não achava”, tá entendendo! [...] não tinha
condições da gente criar nada, NE?. Então, o exemplo é esse que a gente hoje é...
consquistemos nosso espaço. Nós tem hoje, NE? Se eu quiser é... oferecer um bode,
um carneiro pra você, pra gente amanhã almoçar, eu tenho condições de dar. Graças
a Deus nós tem a nossa criação, NE? (CARLINHOS, 2005 apud OLIVEIRA, 2006,
p.99 )
89
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO
É o tempo deles. Que decidem a hora, o dia, onde, como e para que trabalhar. Agora não
existem mais senhores nem patrão. O trabalho é livre e autônomo. Pelo menos nesse aspecto
é possível considerá-los como sujeitos plenos:
(Antes) Se quisesse cumer tinha que trabalhar... e hoje, não! Você vê, você vai ficar
aqui uma semana, duas semana, você vai vê... Comer o estilo do povo. Tem uns
que num vai; outros fica no bar, em casa deitado, mas... como ta dizendo: “Eu num
vô que aqui é meu”. Se fosse di antes, ele tinha que ir, que ir porque, ele tinha que
trabalhar pra cumer. Como ele ia cumer? (CARLINHOS, 2005 apud OLIVEIRA, 2006,
p. 99)
A questão é que a partir da luta pelo reconhecimento, esses elementos ganham sentido
enquanto arma política na construção de uma identidade. Então, “aquilo que é assim porque
sempre foi”,
a tradição cultural serve, por assim dizer, de “porão”, de reservatório onde irão buscar,
à medida das necessidades no novo meio, traços culturais isolados do todo, que
servirão essencialmente como sinais diacríticos para uma identificação étnica. A
tradição cultural seria, assim, manipulada para novos fins, e não uma instância
determinante. (CUNHA, 1985, p. 88)
Esses indivíduos são quilombolas porque assim se identificam, e o prestígio social dessa
nova identidade faz com que assim sejam reconhecidos em seu entorno. É na junção dessas
duas identificações – uma interna, outra externa – que eles, “mangazeiros”, negros feiticeiros
sem menor prestígio se descobrem quilombolas. Descobrem-se mesmo, porque sua identidade
foi soterrada pelo racismo institucional que negou, historicamente, as condições para sua
afirmação.
Esse diferencial está expresso de forma clara nas narrativas que se seguem:
90
Eu tenho maior orgulho. Vem o carro dos quilombolas, como eu vejo na Gamelêra, né,
é em Bom Jesus da Lapa. Vem o carro dos quilombolas. Porque antigamente, nós
nunca teve... hoje nós levemo o nome de quilombo, quilombola, nué?. Eu quando...
a gente chega na Lapa, todo mundo fica olhando, assim...[...]” (CARLINHOS, 2005
apud OLIVEIRA, 2006, p. 100)
A maioria, tudo que ser parente dos mangazeiro. A gente não tem nada, mas temo
ao meno o nome, né? E aí, aí, antigamente não. Ah! Ninguém quer ir no Mangal,
não. Ninguém quer misturar com os nêgo do Mangal não. Ficava separado... Se é do
Mangal e chegasse em Paratinga, algumas pessoas...! Chegava na Lapa do mesmo
jeito. E hoje não, tá tudo muderno [...]. (CHICÃO, 2005 apud OLIVEIRA, 2006, p.
100)
CONCLUSÃO
Creio que a discussão sobre identidade quilombola em Mangal pode dar uma contribuição
significativa para pensarmos identidade como categoria política, motivada pelas demandas
do contexto no qual estão inseridos os sujeitos. Esse exercício nos convida a alargarmos
nossas concepções acerca do tema, valorizando os vários modos de construção de quilombos
e quilombolas presentes na história das comunidades negras rurais que, bem mais do que as
populações negras urbanas, ficaram invisíveis aos olhos da sociedade envolvente, impossibili-
tadas de contar suas histórias que, certamente, contribuiriam para enriquecer o debate sobre
a história dos negros escravizados e seus descendentes na diáspora. As histórias e as lutas
das comunidades quilombolas são tantas quantas são estas comunidades. Quilombos que
têm suas histórias enraizadas no confronto direto com a sociedade senhorial; quilombos que
construíram sua resistência na negociação cotidiana com a sociedade escravistas; quilombos
que se organizaram no pós-escravidão e mantiveram vivas as histórias e tradições de seus
91
3. IDENTIDADE QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA:
CONTRIBUIÇÕES A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBO
O esforço feito nesse trabalho foi no sentido de demonstrar que ampliar a compreensão do
conceito de quilombo, com vistas a dar conta de articular um continuum entre as lutas contra a
escravidão do Brasil, é necessária para atender, inclusive, as demandas por reparação social a
que tem direito a população afro-brasileira. Os artigos 215 e 216 (Da Cultura), da Constituição
Federal do Brasil, tornam legal o que já era de domínio popular ao reconhecer a contribuição
dos negros na construção do patrimônio cultural da nação, além da garantia do exercício dos
direitos culturais afro-brasileiros; entretanto, historicamente, os negros ficaram invisíveis na
sociedade brasileira, apesar de sua maioria absoluta em termos quantitativos na população do
país.
92
palmente, criar as condições para a formação de quadros qualificados que estejam enraizados
nos quilombos.
REFERÊNCIAS
APPIAH, Kweme Anthony. Na Casa de meu Pai: A África na Filosofia da Cultura; Trad. Vera
Ribeiro; Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
BRASIL, Constituição (1988) – Artigo 68. Das Disposições Nacionais Transitórias - do direito à
terra e à titulação aos herdeiros da resistência ao regime de escravidão no Brasil, Brasília, DF,
Senado.1988. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/
legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao1988> Acesso em: 25 jun. de
2015.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Negros, Estrangeiros - Os Escravos libertos e sua volta à
África.São Paulo: Brasiliense, 1985.
93
REFERÊNCIAS
DERALDO DOS SANTOS (Caboje). Entrevista concedida à pesquisadora Sandra Nivia Soares
de Oliveira. Sítio do Mato – Bahia, 2005
GIRAUDO, José Eduardo Fernandes. Poética da Memória: Uma leitura em Toni Morrison.
Porto Alegre: ed. Universidade/UFRS, 1997.
94
_______. Dialética radical do Brasil negro.São Paulo: Editora Anita, 1994.
REIS, João José. Resistência Escrava na Bahia: poderemos brincar, folgar e cantar... “O
protesto escravo na América. Revista Afro-Ásia, Salvador: CEAO/EDUFBA, 1983.
SANTOS SILVA, Valdélio. Do Mucambo do Pau Preto a Rio das rãs, Liberdade e Es-
cravidão na Cosntrução da Identidade Negra de um Quilombo Contemporâneo. Sal-
vador: digitado, 1997.
SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e mídia no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes,
1999.
95
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS
QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS
O texto tem por objetivo levantar um debate teórico-metodológico sobre o tema educação
quilombola e as práticas pedagógicas no ensino de Geografia a partir de uma pedagogia
libertária e libertadora. Para executar este objetivo começamos pela concepção de educar.
Educar é ensinar, aprender, auxiliar, conviver, ajudar, e, sobretudo, permitir as pessoas fazer
uma leitura do mundo com reflexão e de forma crítica. A permitir a leitura do mundo é uma
forma de compreender o mundo. Paulo Freire com sua célebre frase “a leitura do mundo
precede a leitura da palavra”, com isso, Freire nos ensina que a realidade vivida é a base
para a construção de conhecimento. Com este pressuposto, o educando é compreendido
a partir do seu meio social e cultural. É a partir desta concepção sobre educação de Paulo
Freire que trabalhamos e executamos um projeto de extensão (Educação Escolar Quilombola
- O Uso Pedagógico dos Recursos de Tecnologia Assistiva – território e cultura quilombola)
em educação quilombola no Polo Regional de Porto Nacional-TO entre 2014 e 2015. Este
projeto foi um curso de aperfeiçoamento para comunidades quilombolas na comunidade de
Malhadinha em Brejinho de Nazaré-TO e Ipueiras-TO.
1
Professor Doutor Adjunto IV da Universidade Federal do Tocantins (Campus Porto Nacional) no Mestrado de
Geografia e Curso de Geografia da UFT.
97
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS
O curso foi estruturado de forma que garanta a execução dos conteúdos e a metodologia
de ensino usada na formação dos professores e, que possam oportunizar aos cursistas a
elaboração de intervenção didático-pedagógica. Os professores pesquisadores fizeram um
trabalho fecundo para o processo ensino-aprendizagem nas comunidades polos do projeto.
Foram utilizados instrumentos mais eficazes para fomentar o processo ensino-aprendizagem
tais como o data show que pode ilustrar o conteúdo trabalhado de forma compreensível para
os cursistas. Os professores fizeram trabalhos de grupo para estimular e motivar o interesse
dos cursistas para com o conteúdo trabalhado. As manifestações culturais afrodescendentes
foram ilustradas e debatidas através de textos, fotos e vídeos.
Os cursistas foram pessoas da comunidade com curso superior, ensino médio ou com
ensino fundamental. O curso teve 10% das matrículas para líderes comunitários com o
objetivo de aprimorar e instrui-los para o exercício do trabalho comunitário e político para
defender os interesses da comunidade. Tivemos cursista professores que trabalham com
alunos quilombolas na comunidade. A ideia foi aperfeiçoar e aprimorar o conhecimento destes
professores para trabalhar em sua comunidade. Outros cursistas da comunidade que fizeram
o curso são camponeses que trabalham dentro da comunidade. Essa diversidade de perfil
98
de cursistas foi um desafio para nós ministrarmos os módulos. A equipe coordenadora e
pedagógica teve que orientar os tutores e professores para desenvolver os trabalhos ensino-
aprendizagem de forma que fosse capaz que todos os cursistas tivessem compreensão dos
conteúdos ministrados.
99
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS
DO PENSAMENTO GEOGRÁFICO
100
para analisar a realidade social, cultural e política dos territórios quilombolas.
Outra corrente do pensamento geográfico que podemos citar é a Nova Geografia que
baseou toda a sua interpretação do espaço em uma linguagem matemática. Aqui, o espaço
é interpretado e analisado simplesmente a partir de um trabalho de mensuração através de
fórmulas, desvio padrão, medianas. O método de interpretação adotado pela Nova Geografia
foi o que chamamos de neopositivismo que se baseia em leis gerais e acredita no princípio
da neutralidade científica. Enquanto a Geografia Tradicional adotou o positivismo tradicional
ratzeliano como uma linguagem de interpretação para a ciência geográfica pautada nas
ciências naturais, uma mistura dos métodos destas ciências com a ciência geográfica, a Nova
Geografia pautou em atuar em uma linguagem interpretativa na matemática. Esse método de
interpretar reduzido em quantificar a realidade espacial e territorial, não dar conta de fazer uma
análise profunda da complexidade territorial quilombola.
101
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS
relações de dominação, exploração e fazer uma análise dos membros e pessoas como ser
social que atuam em uma sociedade social e economicamente contraditória, essa análise não
se consubstancia na Geografia Cultural ou Humanística.
Outo método que a ciência geográfica procura fazer posse para analisar o espaço geográ-
fico é o método do materialismo histórico dialético. O materialismo dialético é um método
que coloca os geógrafos em um desafio em fazer uma leitura do espaço e dos territórios de
forma crítica e sempre levantando questionamentos sobre a realidade social estabelecida
no espaço. O espaço e o território para o materialismo histórico dialético devem ser com-
preendidos levando em contas as contradições sociais materializadas pelo modo de produção.
Neste método, a interpretação do espaço começa fazer uma leitura do ser social e procura
compreender o espaço a partir de uma sociedade constituída por classes sociais, em que
o espaço é compreendido a partir da luta de classes e o espaço é visto como resultado de
uma lógica contraditória e desigual. O jogo do poder não ocorre forma de natural, mas há
sim de um jogo de interesses conflitantes de que há uma manutenção do espaço e de sua
construção. Entendemos que este método de interpretação seja mais adequado para fazer
uma análise dos territórios quilombolas que procura compreender as contradições sociais, os
conflitos sociais, a luta de classes presentes no seio social dos quilombos.
EDUCAÇÃO QUILOMBOLA
Para se debater sobre uma educação quilombola dentro de uma pedagogia libertária ou
libertadora, é necessário a base de um referencial de interpretação teórico-metodológico que
possibilite uma visão crítica e questionadora dos princípios conservadores da sociedade de
classes onde os territórios quilombolas estão inseridos. O método de interpretação que mais
aproxima desta tese é o materialismo histórico dialético baseado nos ensaios teóricos de Karl
Marx. Em outras palavras, podemos dizer que para se trabalhar a pedagogia libertadora e
libertária, é fundamental fazer esse procedimento analítico a partir do método materialismo
histórico dialético.
Mas para debater sobre o tema educação quilombola dentro de uma perspectiva da
102
pedagogia libertária e libertadora, é necessário termos um entendimento do que é pedagogia
libertaria e pedagogia libertadora. Vários são os pedagogos que trabalham os conceitos
teóricos e metodológicos da pedagogia libertadora e libertária. Entre eles, podemos destacar
José Carlos Libâneo, Moacir Gadotti e Paulo Freire e muitos outros. Segundo Oliveira (2011), as
formas de pedagogias conservadoras, necessariamente, surgem as pedagogias consideradas
críticas, como por exemplo, a pedagogia do oprimido (Paulo Freire), a pedagogia radical
(Giroux), a pedagogia do conflito (Gadotti), a pedagogia libertária (Ferrer). A pedagogia do
oprimido de Paulo Freire trata de uma pedagogia revolucionária que se preocupa em combater
os princípios pedagógicos conservadores trabalhados pela burguesia capitalista.
A pedagogia do conflito levantada pelo professor Moacir Gadotti trata-se de uma pedagogia
que coloca em pauta que o educador acrescenta a consciência da contradição, sua tarefa
é a de quem incomoda e ativa conflitos para a sua superação. Segundo Azevedo (2009, p.
23), essa prática consciente de uma pedagogia é que Gadotti denomina de Pedagogia do
Conflito. A pedagogia do conflito para este autor diz que não existe uma educação neutra. Ou
seja, toda vez que o educador evita a questão política da educação, a vinculação entre o ato
político e o ato educativo está defendendo uma certa política, com isso, camufla ingenuamente
ou conscientemente essa vinculação. A tese de Moacir Gadotti (1985) defende que em
uma sociedade de classes, temos uma educação de classes, isto é, da classe dominante:
da classe economicamente dominante. Para ele, educar em uma sociedade em conflito,
necessariamente, é uma tarefa e uma atitude de optar um partido ou por uma posição político-
ideológica. Devemos estar em sintonia com o momento histórico em que vivemos, caso
contrário, não somos capazes de educar. A partir desta tese podemos afirmar que não
podemos ser “neutro” perante aos conflitos contraditórios da sociedade de classes.
103
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS
não se pode resgatar o sujeito histórico, agente de transformação, senão situando-o na lógica
dos mecanismos estruturais de dominação. A pedagogia radical no mínimo deve adotar um
procedimento teórico-metodológico que questione os paradigmas fenomenológico-cultural e o
positivista-estruturalista, pois, esses paradigmas não procuram desmitificar os princípios da
pedagogia conservadora implantada pelo Estado Moderno, pelo contrário, não questiona este
princípios.
2
Ferrer y Guardia, Francisco. The Origin and ideals of the modern school. Palala Press: Hardcover, 2016.
104
Pascal (2016), um dos aspectos relevante da ação anarquista no Brasil foi a pedagogia
libertária. Pascal ressalta que a pedagogia anarquista procura denunciar a escola oficial
como reprodutora dos interesses da Igreja e do Estado enquanto é capaz de promover uma
renovação dos métodos e dos valores. No Brasil, as escolas de educação libertária tem
o objetivo de contestar a pedagogia tradicional (conservadora). A referida autora coloca
que a pedagogia libertária tem como projeto reabilitar a humanidade para uma vida coletiva,
preservando a igualdade de gênero, garantindo o espírito crítico, abrindo caminho para a
transformação social. Esta pedagogia constituiu as raízes da pedagogia social no limiar do
século XX.
105
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS
seja pedagogos ou não. Nós que somos professores de Geografia temos essa missão.
A pedagogia libertária é uma pedagogia que busca a liberdade dentro do sistema escolar,
em que o ser social é visto como produto social. O papel da escola dentro de uma perspectiva
das doutrinas da pedagogia libertária é o de exercer uma transformação na personalidade dos
alunos num sentido libertário. É uma pedagogia progressista que pretende avançar no debate
educacional e superar as racionalidades da pedagogia conservadora do Estado Moderno.
Pressupõe e indica tendências de uma análise crítica da realidade social vigente visando
a uma escola libertadora. Propõe uma pedagogia que vai além dos limites da pedagogia,
colocando em pauta para discutir também as áreas do campo da economia, da política e das
ciências sociais.
QUILOMBOLAS
Sabemos que a realidade social das escolas quilombolas são muito precárias. Falta
infraestrutura física de laboratórios, de bibliotecas, acesso à internet, psicólogos, médicos,
dentistas e, sobretudo de professores para trabalhar as várias áreas do conhecimento nas
escolas. A distância entre as escolas e os alunos que precisam estudar é um problema muito
sério também para as comunidades quilombolas. Estes problemas e outros das mais variadas
natureza constituem em entraves para desenvolver uma educação cidadã e de qualidade para
as comunidades quilombolas. Este cenário permite que os quilombos tenham dificuldade de
106
acesso à educação. Larchert (2013) cita o relatório de Unicef (2003, p. 15) para revelar a
situação da infância e adolescência brasileira. O relatório revela uma situação inaceitável
sobre as crianças quilombolas no que diz respeito ao acesso à educação. Cerca de 31,5%
das crianças quilombolas de sete anos nunca frequentaram bancos escolares, isso representa
quase um terço das crianças quilombolas nesta faixa etária.
Além dos problemas elencados nos parágrafos anteriores, temos outros talvez mais graves
quando nos referimos aos alunos quilombolas. Se eles não têm acesso à educação devido
à falta de infraestrutura física e de acervo de material didático, surge um problema maior
que é justamente o não conhecimento da sua própria história e da cultura. O conhecimento
de sua própria história e cultura não limita apenas seu meio social no qual ele vive, mas o
conhecimento da matemática, da geografia, das ciências biológicas, da filosofia e todos os
outros campos do saber ficam comprometidos.
O conhecimento sobre história e cultura quilombola infelizmente ainda depende das políti-
cas educacionais do Estado. Mas mesmo nas comunidades que possuem escolas, há os
desafios de colocá-las em sintonia ao universo cultural e social da educação quilombola, isto é,
colocar as políticas educacionais de acordo com as particularidades de cada comunidade nos
programas de aula e nos materiais pedagógicos.
Os professores não são capacitados adequadamente para lidarem com o mundo quilombola.
O número de professores capacitados ainda é insuficiente para atender a demanda. Em muitos
casos, podemos encontrar escolas nas comunidades rurais ou urbanas em que no mesmo
espaço ou na mesma sala de aula, há apenas um único professor ou professora ministrando
aulas para diferentes turmas, seja no que se refere à faixa etária, ou no que se refere ao nível
de escolaridade dos alunos. Este quadro dificulta ainda mais o trabalho do professor que tem
que atender as várias turmas ao mesmo tempo.
107
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS
lidar com as diferentes culturas presente em nossa sociedade contemporânea. Devem con-
hecer a regulamentação da Educação Escolar Quilombola nos sistemas de ensino de acordo
com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Considerar os
aspectos gerais apontados nas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica,
bem como a realidade das comunidades quilombolas explicitadas nas Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Quilombola DCNEEQ.
As leis e diretrizes que garantem a introdução dos conteúdos sobre a história e cultura dos
povos quilombolas na grade curricular das escolas de ensino fundamental e médio instituídas
neste século são fundamentais para aprimoramento da educação quilombola de acordo
108
com o seu universo cultural e social. A formação e a capacitação de professores para
trabalharem nas escolas, seja nas comunidades quilombolas ou nas escolas de uma forma
geral, também é um passo à frente para desenvolver as práticas pedagógicas conforme o
universo cultural e social destas comunidades. Entretanto, estes condicionamentos por si
só não é o bastante, temos que adotar uma posição político-pedagógica com expomos no
item Pedagogia libertadora e libertaria: uma alternativa para a Educação quilombola, ou seja,
temos que procurar desenvolver uma pedagogia libertadora e libertária que seja capaz de criar
uma massa crítica e consciente de pessoas, líderes, membro da comunidade e, sobretudo
de alunos com essa postura. A partir deste pressuposto, a prática docente, sustentada pelas
relações étnico-raciais, é o espaço privilegiado para a realização de uma educação antirracista,
no sentido de romper com os conceitos e o modo de ler o mundo a partir da história oficial.
Os parágrafos anteriores descritos nos chamam atenção para os desafios das escolas
quilombolas no país. É a partir deste contexto que precisamos encarar as escolas quilombolas
quando almejamos trabalhar os conteúdos de geografia em estas unidades escolares. A
intenção do texto não é definir uma série ou um ciclo do ensino básico ou médio para se
trabalhar e executar práticas pedagógicas no ensino de Geografia nas escolas de quilombos
a partir de uma pedagogia libertária e transformadora, mas é uma tentativa de levantar um
debate teórico-metodológico sobre esta temática. Para desenvolver este procedimento, é
necessário adotar o método do materialismo histórico dialético que é um dos condicionamentos
necessários para se construir e trabalhar os pressupostos fundamentais da pedagogia libertária
e libertadora. Para isso, o professor que queira engajar um trabalho pedagógico desta natureza,
necessariamente, deve conhecer de forma profunda o método do materialismo histórico
dialético elaborado, teorizado e aplicado pela dupla Marx e Engels.
109
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS
a síntese. Com isso, as investigações científicas a partir do método histórico dialético é sempre
um processo de continuadas pesquisas da realidade. Outro elemento deste método é a relação
sujeito-objeto. Netto (2011, p. 21), diz que “a teoria para Marx, é a reprodução do ideal do
movimento real do objeto pelo sujeito: pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento
a estrutura e a dinâmica do objeto de pesquisa”. Esta teoria tem como foco de análise a
realidade objeto de pesquisa que é o social.
Os críticos do materialismo histórico dialético afirmam que este método pauta fortemente
no fator econômico como condicionante da dinâmica social. Mas sabemos que na teoria de
Marx, o fator econômico não é o único elemento analisado como o determinante. A teoria de
Marx vai além desta afirmação. A teoria de Marx não se reduz ao fator econômico. Trabalha
com conceitos de ideologia que inclui as ideias, cultura, a política e, sobretudo a superestrutura
(Estado) e a infraestrutura (modo de produção, no caso o capitalista). Todas essas dimensões
da realidade são analisadas, trabalhadas e interpretadas a partir do real pelo sujeito. Netto
(2011) afirma que “(...) Para Marx o ideal não é mais do que o material transporto para a
cabeça do ser humano e por ele interpretado”. (p. 21). E diz ainda que (...) “O sujeito interpreta
o real, a teoria é o movimento real do objeto transporto para o cérebro do pesquisador - é
o real reproduzido e interpretado no plano ideal (do pensamento)” (p 21). Este real que é o
objeto de pesquisa de Marx (a sociedade burguesa). Para Netto (2011, p. 22), “o objeto de
pesquisa tem existência objetiva, independente da consciência do pesquisador”.
No que diz respeito à ciência geográfica, temos a denominada Geografia Crítica que
trabalha com o método histórico dialético. Esta corrente do pensamento geográfico procura
analisar o espaço nas suas dimensões sociais e políticas a partir de uma interpretação crítica
e questionadora da formação do espaço geográfico. O foco da análise e da interpretação do
espaço é, sobretudo, as formas de apropriação do modo de produção capitalista. A construção
do espaço geográfico no seio do capitalismo se materializa de forma contraditória e combinada
a partir de um processo de desenvolvimento desigual. Esta forma de compreender o espaço
geográfico é compartilhada por muitos geógrafos. Dentre eles podemos destacar o geógrafo
Milton Santos em sua obra Por uma geografia nova - da crítica da Geografia a uma Geografia
Crítica, publicada nos anos de 1970, procura implantar na academia brasileira um debate
teórico-metodológico e, sobretudo compreender o espaço geográfico pelo viés do materialismo
110
histórico dialético.
O geógrafo Yves Lacoste em sua abra A Geografia - isso serve, em primeiro lugar, para
fazer a guerra, procurou levantar um debate teórico sobre a “Geografia dos Professores” que
segundo ele, esta Geografia tem o discurso ideológico de mistificação do espaço, de “cortina
de fumaça” para escamotear a importância estratégica de saber pensar o espaço e nele se
organizar. Para o referido geógrafo, é necessário conhecer o espaço para se organizar. Nesta
obra, o autor chama a atenção dos geógrafos-professores para assumir uma posição militante
contra a instrumentalização da Geografia pelo Estado e empresas privadas, isto é, o professor
precisa decifrar as estratégias e ideologias por estes atores (Estado e as multinacionais)
quando se trata da construção do seu espaço.
É a partir desta perspectiva que a Geografia Crítica aponta que o professor de Geografia
deve portar o seu trabalho pedagógico enquanto educador no sentido de compreender a
construção do espaço por uma sociedade de classes burguesa. A ideia é desmitificar e analisar
os instrumentos político-ideológicos de dominação e de alienação das instituições burguesas
como a escola, a igreja, os meios de comunicação comercial (mídia comercial), o Estado e os
aparelhos ideológicos e, sobretudo a ideologia burguesa. Os aparelhos ideológicos de Estado é
um tema debatido pelo filosofo Louis Althusser que correspondem à religião, educação, família,
sindicato, a imprensa, os meios culturais e todas as instituições que representam os interesses
burgueses. O Aparelho Ideológico de Estado funciona a partir da ideologia. Os aparelhos
ideológicos de Estado trabalham no sentido de reproduzir os pressupostos ideológicos da
burguesia capitalista.
Bernardino (2010, p. 53) diz que para entendermos a denominação dos aparelhos ide-
ológicos de Estado, primeiro temos que ter uma noção do que é ideologia na concepção de
Louis Althusser. Para este, a ideologia é um sistema de representações, sejam imagens,
mitos, ideias ou conceitos. “Mas a ideologia não é apenas uma ideia, ela tem uma existência
material no momento em que se transforma em um sistema de relações entre as condições
reais de existência dos indivíduos e suas representações”. A ideologia é uma representação
do real. Dentre as instituições que compõe o aparelho ideológico de Estado que nos interessa
neste debate sobre educação quilombola e Geografia é a escola. Bernardino (2010) diz que
as instituições educacionais desempenham um papel de distribuidoras do conhecimento e
111
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS
não como espaços de sua construção. O papel da escola na produção de indivíduos, com a
finalidade de servir às necessidades do setor econômico da sociedade capitalista é visível.
O professor de Geografia deve conhecer bem a própria disciplina que é uma condição
fundamental e adotar e conhecer o materialismo histórico dialético, mas não é o suficiente
para desenvolver o ensino-aprendizagem para a formação de sujeitos conscientes e críticos.
Precisa ter capacidade intelectual, didática para abordar os conteúdos de forma que os alunos
aprendam. Os recém-professores licenciados em Geografia ainda não tem uma experiência
madura para lidar com o ensino. Eles precisam de conviver com essa prática nas escolas
para que seja possível adquirir as competências e habilidade de um professor-educador. O
professor-educador necessariamente compartilhará com o aluno as suas intenções, para
construir juntos os rumos da ação educativa. Se o professor não tiver a intenção construir este
entendimento certamente o aprendizado não acontecera de forma objetiva.
O referido autor afirma que a análise geográfica dentro dos conteúdos ministrados, é
necessária envolver todos os elementos a fim de guiar uma leitura atenta dos desafios encon-
trados para uma educação diferenciada de consolidação quilombola a partir de uma análise
social e espacial e de um diálogo interdisciplinar na escola. O contexto do ensino de Geografia
como disciplina escolar nas comunidades, deve conduzir a uma ferramenta pedagógica para
a compreensão do território quilombola. A partir deste raciocínio, as práticas pedagógicas
112
trabalhadas devem envolver a discussão de todo um contexto do território quilombo e o papel
da comunidade no cenário político, socioeconômico, antropológico, jurídico, cultural e espacial.
A Geografia como uma disciplina componente curricular da escola, constitui uma ferramenta
teórico-metodológica que procura entender as relações espaciais e suas reflexões sobre a
sociedade humana, afirma Cavalcante (2014). A nossa proposta é de que com o trabalho desta
ferramenta é possível se construir pressupostos curriculares a partir da pedagogia libertária e
libertadora.
O ensino sobre África, marcado hoje pela influência das narrativas eurocentradas. Os
marcos estruturantes do que se fala sobre África (referenciais espaciais e temporais,
regionalização e periodização) são todos remetidos ao contato com a Europa –
o mesmo se aplica às Américas e Ásia, quando a recíproca não é verdadeira: a
colonização só é definidora do que são os continentes periféricos, mas o papel
dela para as revoluções industriais econômicas, sociais e políticas na Europa não é
abordada. Desconstruir e reconstruir a ideia de totalidade-mundo e fazer o mesmo
para África é, portanto, um exercício fundamental. África é retratada no ensino sempre
através de seus aspectos pejorativos, tragédias sociais, associação a estereótipos
degradantes (primitivismo, p.ex.), enfim, uma abordagem que referencia num quadro
social adverso de África o quadro de inserção social subalternizado e inferiorizado
dos descendentes de africanos na experiência da diáspora.
O autor sugere ainda que a Geografia que devemos trabalhar é Geografia das lutas
históricas, isto é “As Comunidades Remanescentes de Quilombos – que são, hoje, milhares
113
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS
catalogadas em quase todos os estados do país. Elas são marcas espaciais (rugosidades, no
dizer de Milton Santos) das resistências dos negros à escravidão, portanto, uma Geografia de
lutas históricas” (SANTOS, 2011, p. 15). As colocações de Santos (2011) reforçam a adoção
de propostas pedagógicas que podem ser trabalhadas a partir do ensino da Geografia nas
escolas das comunidades quilombolas rurais ou urbanas. Os temas levantados pelo autor são
importantes para se trabalhar a partir da ciência geográfica em sala de aula. Trabalhar as
influências do processo de ocidentalização nas comunidades quilombolas de forma que os
alunos e membros da comunidade reflitam sobre esse processo de forma crítica.
Outro ponto importante a considerar é trabalhar a Lei 10.639/03 e o ensino de geografia nas
escolas de comunidades quilombolas como um ponto de partida para implementar conteúdos
de natureza geográfica. Já existem trabalhos científicos que debatem teoricamente esta
proposta. O artigo de Renato Emerson dos Santos A Lei 10.639/03 e o Ensino de Geografia:
Construindo uma agenda de pesquisa-ação, é um texto que levanta um debate sobre o ensino
de Geografia a partir das propostas estabelecidas pela Lei 10.639. O autor defende a ideia de
que o ensino de Geografia pode ser instrumento de uma educação para debater a igualdade
racial.
Estes conteúdos que delineamos nos parágrafos anteriores é uma proposta curricular
que possa ser útil para trabalhar nas escolas quilombolas para os professores de Geografia.
É uma forma de colocar o conhecimento geográfico ao exercício de cidadania das comu-
nidades quilombolas. Procuramos ministrar os conteúdos de Geografia no curso de forma
114
interdisciplinar com o objetivo de intercalar os temas abordados de acordo com os interesses
e realidade dos cursistas da região. O Tocantins é uma região de grandes conflitos de terra
principalmente nas terras dos camponeses de quilombos e indígenas. Para isso, um dos temas
abordados foi sobre a Educação libertária – a prática do pensar como emancipação social com
o intuito de criar uma compreensão crítica e questionadora da realidade social dos territórios
quilombolas tocantinenses. Ou seja, desenvolver um espírito crítico de luta política em defesa
da demarcação das terras quilombolas e, sobretudo da construção da cidadania plena como
assegura a legislação constitucional vigente.
115
4. O ENSINO DA GEOGRAFIA EM ESCOLAS QUILOMBOLAS: APORTES CONCEITUAIS
DESENVOLVIDOS NO ESTADO DO TOCANTINS
inúmeras ações, programas e projetos com o viés de contribuir com a melhoria da produção e
qualidade de vida de seus integrantes. Nestes conteúdos, nossos cursistas assimilaram muito
bem os temas abordados. Nestes projetos sociais foi colocado em pauta o princípio básico da
pedagogia libertária que é a autogestão.
Estes temas foram abordados em uma perspectiva da geografia de lutas como propõe
os geógrafos materialistas. Em se tratando de uma região como o Tocantins pertencente à
Região Amazônica onde os conflitos de terra são muito presentes em função da concentração
fundiária, da forte presença de violência no campo e, sobretudo, da insegurança jurídica sobre
as terras quilombolas e indígenas, é necessário que levantamos um debate sobre a geografia
das lutas para compreender melhor estas contradições sociais no espaço regional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
116
sores e tutores fossem deslocados até a comunidade de Malhadinha e no polo de Ipueiras -TO.
Esta dificuldade foi superada.
A prática de uma pedagogia libertadora quanto ao trabalho dos conteúdos em uma per-
spectiva de se construir o ensino-aprendizagem a partir de uma leitura de mundo, nos pareceu
muito tranquila perante as aulas com os cursistas. Este procedimento pedagógico desperta a
atenção dos educandos pelo fato de colocar o processo ensino-aprendizagem a partir do seu
mundo vivido e não pretendido ou o que deve ser. Os educandos sentem parte do processo,
conseguem ver como sujeitos sociais construtores do seu espaço. É um aprendizado sem os
chavões do formalismo, da simplificação do ser, da padronização do conhecimento formal e
conservador. Pensando por este viés, tivemos bons frutos ao encerrar os trabalhos do curso.
117
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras de preto no Maranhão: quebrando o mito do
isolamento. São Luís: SMDH: CCN-MA: PVN, 2002. (Coleção Negra Cosme, v.3.).
FUNES, Eurípedes A. Nasci nas matas, nunca tive senhor. História e memória dos mocambos
do baixo Amazonas. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio.
História dos quilombos do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
GIROUX, Henry A. Teoria Critica e resistência em educação: para além das teorias de
118
reprodução. São Paulo: Vozes, 1986.
Lecoste, Yves, A geografia - Isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Yves Lacoste;
tradução: Maria Cecilia França – 4’ ed.- Campinas, SP – Papirus, 1997
NETTO, José Paulo. Introdução ao estudo do método de Marx. Expressão Popular. São
Paulo: 2011.
OLIVEIRA, Kathlen Luana de. Tendência Pedagógica Progressista Libertária – Uma breve
apresentação. Revista do Espaço Acadêmico, no 125, outubro de 2011
OLIVEIRA, Maria Waldenez de; LARCHERT, Jeanes Martins. Panorama da educação quilom-
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RAMOS Donald. O quilombo e o sistema escravista em Minas gerais do século XVII. In: REIS,
João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio. História dos quilombos do
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996
REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
119
REFERÊNCIAS
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ed. Primeira reimpressão. São Paulo: Editora Hucitec, 1990.
SANTOS, Vilson Pereira. Abordagens Pedagógicas para a Educação Quilombola. IN: SANTOS,
Roberto de Souza. Educação, Território e cultura quilombola no Tocantins: debates,
experiências e pesquisa. Goiânia –GO: Kelps, 2015.
TOMPSON, E.P. Estudos em Comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Ed. Cia das Letras, 2015.
120
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS
NEGROS NA SALA DE AULA
Lourdes Carril1
1
Doutora em Geografia. Professora Adjunta da Universidade Federal de São Carlos. Autora do livro Quilombos,
Favelas e Periferia. Ed. Ana Blume, São Paulo, 2007.
121
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA
122
em que o consumo, não somente das mercadorias, mas da cultura, constrói outros significados
às diferenças sócio culturais.
Esse debate nos impõe a reflexão sobre essas novas formas de desalienação referendadas
por movimentos que se apresentam nas diversas matrizes culturais a respeito do contexto
brasileiro em que os direitos mais básicos do indivíduo moderno ainda não estão consolidados.
Tal problemática aponta para a análise de que as reivindicações de reconhecimento das
diferenças encontram-se nesse cerne de refletir sobre as realidades em seus contextos.
Segundo Touraine (2006), é importante discutir a noção utilitarista do sujeito racional fabricado
pelas ideologias neoliberais e repensar a dicotomia entre sujeito e indivíduo, que surge dessa
conjuntura social, econômica e política. O autor a define na seguinte questão:
O indivíduo não passa então de uma tela pela qual se projetam desejos, necessidades,
mundos imaginários fabricados pelas novas indústrias da comunicação. Esta imagem
de indivíduo que já não é mais definido por grupos de pertença, que é cada vez mais
enfraquecida e que não encontra garantia de sua identidade em si mesmo, pois já
não é mais um princípio de unidade e é obscuramente dirigido por aquilo que escapa
sua consciência, serviu muitas vezes para definir a modernidade. (TOURAINE, 2006,
p. 119)
Segundo o autor, contudo, é somente através do voltar-se a si mesmo que se torna possível
a libertação da prisão em que todos se encontram. É desse ângulo que o autor propõe a noção
de que:
Só nos tornamos plenamente sujeitos quando aceitamos como nosso ideal reconhecer-
nos – e fazer-nos reconhecer enquanto indivíduos – como seres individuados, que
defendem e constroem sua singularidade, e dando, através de nossos atos de re-
sistência, um sentido à nossa existência. (TOURAINE, 2006, p. 123)
Outro autor, Martucelli elabora a questão a partir do debate que envolve a universalização
dos direitos nas sociedades democráticas, em que se designam direitos pertinentes à cidada-
nia identificada com a liberdade e a igualdade. As questões da identidade, nesse caso, são
assimiladas ao universal, representadas na sociedade como totalidade em prol de um conceito
genérico de indivíduo, membro de uma sociedade e sempre universalizado. Políticas multicul-
turais vêm questionando o princípio democrático da igualdade, uma vez que reivindicações
particularistas demandam por indagar os limites institucionais fixados anteriormente.
123
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA
Trata-se, assim, de uma crise da visão da igualdade social sob influência de uma
concepção totalizante da sociedade em sua formulação clássica, a igualdade en-
fatiza os elementos comuns aos indivíduos genéricos e não suas diferenças, seus
particularismos coletivos, ela remete sempre a uma concepção global e comum da
sociedade. É diferente o que se dá com a noção de “equidade” que reconhece a pert-
inência política das especificidades culturais dos indivíduos e dos grupos, aceitando
a ideia de um tratamento diferenciado dos membros dessas coletividades. A origem
dessa mudança de direção no interior da matriz democrática deve ser buscada no
processo de racionalização e, mais precisamente, no desenvolvimento de um saber
social sobre as razões das desigualdades e sobre os resultados das políticas sociais
igualitaristas (MARTUCELLI, 1996, p. 21).
No Brasil, segmentos extensos de pessoas não brancas vivenciam uma inserção precária
no mercado de trabalho, na escola, nas universidades, alcançando direitos básicos lentamente,
tornando mais complexa a questão das diferenças.
A cultura escolar brasileira tem resistido a abarcar mudanças que diminuam essas de-
sigualdades. Ainda hoje, são priorizados currículos tradicionais e empobrecidos pautados por
conteúdos que refletem pouco a vida dos indivíduos. Nesse sentido, os processos escolares
têm perpetuado o papel reprodutor das hierarquias sociais fazendo com que o olhar do domi-
nador se fortaleça no interior dos dominados. O silêncio sobre as outras vozes constituem ainda
déficits democráticos fundamentais, levando, historicamente, ao desencontro entre sujeito e
escola, identidades e história.
Paulo Freire propôs um olhar sobre a escola como espaço que comporta o movimento
dialético do processo histórico de produção do sujeito, entendendo a educação em seu caráter
antropológico e não somente destinado à formação instrumental para o mercado de trabalho.
Nesse caminho, a consciência seria aquilo que permite a subjetivação e a objetivação, sendo
presença e distância do mundo numa unidade sintética da consciência como consciência do
mundo. É na objetivação que o sujeito se descobre responsável historicamente e se reconhece
como autor de sua própria história, num fazer e refletir interminável:
124
no projeto de universalização da educação no interior da qual permaneceram mecanismos
perversos de exclusão étnica e racial. Buscamos pensar os processos que recuperem os
sentidos de pertencimento social alterando os mecanismos que produzem o vazio existencial,
desconstruindo a autoimagem negativa dos jovens negros alienados de sua própria história. O
avanço da política pública que dispôs trabalhar com o ensino da História da África e Cultura
Afro-brasileira envolvendo, também, a cultura indígena, implica a necessidade de se repensar
os currículos com base em projetos pedagógicos críticos e a necessidade de construir uma
consciência política e histórica a partir dos sujeitos. Nessa perspectiva, apontamos o potencial
contido na estética hip hop, relatando experiência realizada com jovens negros periféricos do
Capão Redondo, distrito de São Paulo, entre 2011 e 2012.
Hilsdorf (2003) analisa que o processo de organização escolar construído pelo regime
republicano mostrou-se favorável à educação como necessidade para a sociedade alcançar
os mais altos graus civilizatórios, mas continha mecanismos de contenção à participação
ampla das camadas populares. Nesse sentido, reservava a escola às elites e os trabalhadores
brancos nacionais ou estrangeiros direcionavam seus filhos para as escolas particulares e
de trabalhadores. O aumento do número de escolas públicas e particulares ficou, assim,
inacessível aos negros que encontravam dificuldades em ingressar nessas escolas, por uma
série de fatores que vão do déficit econômico da família negra à discriminação racial presente
no espaço escolar. Não obstante, houve formação de escolas por parte de associações e movi-
125
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA
mentos negros e a própria Frente Negra Brasileira constituiu iniciativas para a escolarização
dos filhos dos segmentos negros (MACHADO, 2009).
Segundo Souza (2015), existiu um temor pela sua entrada do negro na escola como
continuidade do imaginário das revoltas que marcaram constantemente a sociedade escravista
e, sobretudo, no momento em que o sistema desmoronava. O alargamento dessa percepção
se deu pela concentração de pobres e negros que se encontraram em situação de pobreza
e marginalização, passando a ser vistos como inadequados ao trabalho, impróprios para a
escolarização, errantes porque partiam para as cidades. Para a autora, a ideia que perpas-
sava o projeto ambíguo da escolarização, indicava impossibilidades do desenvolvimento da
autonomia das camadas populares, o que incluía os segmentos afrodescendentes:
Nesse aspecto, também, Machado (2009) analisa as promessas dos republicanos acerca
da chegada da escola a todos os lugares, o que, realmente, não ocorreu, pois na realidade,
90% da população chegava analfabeta ao final do século XIX. As reformas educacionais
realizadas entre o final do século XIX e início do século XX, sob o signo da universalização,
democratização e gratuidade do ensino, não foram acompanhadas de mudanças efetivas
nas condições socioeconômicas para que os recém-libertos obtivessem acesso efetivo à
escolarização.
126
A contradição, a nosso ver, não se resolveu e não pode ser analisada apenas pela democ-
ratização do acesso à escola, devendo se processar pela consideração da questão étnica e
racial como central nos currículos e nos projetos pedagógicos. O cotidiano escolar se encontra
marcado pela distância para com a realidade vivida dos estudantes afrodescendentes e a
vivência do preconceito racial no ambiente escolar ainda ocorre sob uma aparente naturalidade
acarretando prejuízo à autoimagem dos jovens. Os currículos são pouco reveladores da
identidade brasileira, pois mais próximos da cultura hegemônica de base eurocêntrica, se
revelando na distância do sujeito de sua cultura.
127
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA
Remetendo-nos à afirmação de Ribeiro de que “A única saída possível para essa estrutura
autoperpetuante de opressão é o surgimento e a expansão do movimento operário” (RIBEIRO,
1995, p. 219), é possível ponderar de que as desigualdades no país não têm se mostrado
centralmente nas diferenças entre classes sociais, revelando que o racismo brasileiro, embora
não se separe da questão social e econômica, apresenta dinâmicas próprias. Segundo
Guimarães:
Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de
inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural — toma posição
diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana (FANON,
2008, p. 34).
128
Verificamos ambivalências produzidas nessa relação, no sentido de que o negro se pensa a
partir da cultura hegemônica, não como uma escolha individualizada, mas por contingência dos
fatores da educação e da cultura que envolve os signos existentes do que é existir socialmente.
Quanto a esses processos, podemos analisar a corrente ideia de que os negros desejam
ser brancos, de que se a questão social econômica se torna favorável, e há mecanismos
que proporcionam a ascensão social, o negro vislumbra se tornar mais branco. Sabe-se que
a sociedade brasileira hierarquiza a cor, tornando mais prestigioso o indivíduo tanto quanto
mais branco for, sendo que o olhar do preconceito recai fortemente sobre as características
fenotípicas:
Meu pai era negro e minha mãe é branquinha de olhos verdes, lindos, maravilhosos!
E eu sou meio caminho lá: sou uma morena clara de cabelo meio indefinido, não se
sabe se é liso, se é crespo, se é... mas isso, agora, porque quando eu era pequena
tinha o cabelo muito ruim (REIS, 2002, p. 41).
Bento (2002) nos indaga sobre os processos de organização política de caráter libertador
das ações discriminatórias, no Brasil. Para ela, existe um “pacto narcísico” construído a
partir das relações entre brancos e negros que mascara o racismo brasileiro, deixando o
afrodescendente à mercê da análise do chamado “problema negro”, uma herança do passado
escravista que acarreta pesadas determinações sociais e raciais na sociedade pós-escravidão.
Segundo a autora, o “pacto narcísico” assegura o silenciamento sobre o racismo engendrado
no processo histórico e se estrutura no padrão universal de identidade baseado na “brancura”.
Nessa convenção, as apropriações simbólicas são vistas como relativas ao modo de agir
da população negra e os brancos que, mesmo tendo consciência dessas desigualdades,
reproduzem uma cultura em que não se veem partícipes.
129
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA
identidades étnicas e raciais como componentes das ideologias, políticas econômicas e sociais
e simbólicas que colaboram a explicar a questão do racismo enquanto parte das relações
sociais na medida em que a construção da identidade se vincula sempre em relação aos outros
numa relação de alteridade.
Kaes nos mostra que os produtos do recalque e os conteúdos do recalcado são con-
stituídos por alianças, pactos e contratos inconscientes, por meio dos quais se ligam
uns aos outros e ao conjunto grupal, por motivos e interesses superdeterminados.
Esse acordo inconsciente ordena que não se dará atenção a um certo número de
coisas: elas devem ser recalcadas, rejeitadas, abolidas, depositadas ou apagadas.
Mas, enfatiza que, ao possuir um ar de falsidade, elas possibilitam um espaço onde o
possível pode ser inventado. (BENTO, 2002, p. 46).
Analisando o pacto edípico e o pacto social brasileiro, Hélio Pelegrino analisa a violência
crescente entre jovens nas grandes cidades como reveladoras das relações assimétricas no
país. A ruptura com o pacto social explica a cisão, no nível do inconsciente, com o pacto edípico.
Segundo o autor, a volta do recalcado se manifesta no que ficou reprimido ou suprimido, vindo
à tona sob a forma de conduta delinquente e antissocial: “Os migrantes, os paus-de-arara, os
bóias-frias, os 40 milhões de brasileiros reduzidos à pobreza absoluta, esses não têm nada –
absolutamente nada – que os levem a respeitar e prezar a sociedade brasileira” (PELEGRINO,
130
1993).
Nesse sentido, Ab’Saber (2007) define algumas correspondências entre a mentalidade das
elites brasileiras atuais e estruturas sociais do passado, partindo da teoria da constituição do
sujeito formulada pela Psicanálise, nascida no século XIX. O autor analisa a impossibilidade
do estabelecimento de uma “solução de compromisso” no ambiente de formação das elites
senhoriais. A escravidão subvertendo a impessoalidade e a liberdade dos sujeitos teria
construído relações que transgrediram os limites da construção do indivíduo moderno forjada
pela não interdição sobre os desejos e o seu consequente recalque, que, no âmbito da cultura,
significaria entrar no pacto social.
Na ordem social brasileira, constitui-se, assim, uma contradição por meio de uma “cisão”
entre a herança colonial e os misteres de modernização: uma espécie de imperativo do gozo,
que o autor explica da seguinte forma: “Tal estranho sistema se caracterizaria pela pesquisa
heterônoma do baixo sadismo ilustrado, noção de difícil nomeação, fantasia subjetivante
periférica, de base histórica material, que se revela no fundo da volubilidade geral, fixada pela
escravidão” (2007, p. 280).
Se esse imperativo do gozo carente de signos de alteridade tem sido parte do imaginário
social e culturalmente vivenciado, as mudanças passam, principalmente, pela desconstrução
131
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA
dos meios que o reproduz mediante o conhecimento e modificações de práticas sociais que
subjazem às dependências psicossociais, econômicas e culturais. Hill (2015) analisa, nesse
sentido, a importância de trabalharmos as memórias coletivas como narrativas escolares
que possibilitariam delimitar e produzir o conhecimento sobre o presente e o passado e que
podem permitir a constituição das identidades. Nesse sentido, tais narrativas impulsionariam a
crítica sobre as ideologias constituintes da consciência dos estudantes abrindo caminhos de
emancipação das teias de repetição das dominações, dores e sofrimentos.
Um olhar mais otimista se estabeleceu com a formulação do “mito das três raças” cujas
bases teóricas renovadoras tomam a mestiçagem como uma questão cultural. O conjunto da
obra de Gilberto Freyre apresenta, nesse contexto, a noção de via de mão de dupla ao procurar
afirmar a contribuição cultural do negro na construção da nação brasileira, uma intepretação
sobre a interpenetração cultural que valoriza elementos de africanidade na formação social,
como a culinária, a língua, a música, o carnaval, entre outros caracteres. Freyre, no entanto,
deixa incólumes as questões da superioridade e da inferioridade, na medida em que sua teoria
indica uma espécie de amálgama sociocultural criando a imagem de uma “democracia racial”.
O que é importante atentar com essa mudança em curso na política nacional é a busca por
construir bases para a criação de um novo status que defina o Brasil mais unitário, homogêneo
e democrático.
132
Tratava-se, segundo Schwarcz de criar novos símbolos que permitiriam a identificação
da cultura popular e mestiça como “ícones desse país”. A culinária, a música, o samba e a
capoeira, reprimidos no final do século XIX, além de datas comemorativas que passam a exaltar
figuras de religiosidade próximas às dos negros, anteriormente, rejeitadas pelo catolicismo
dominante, é transformada em elementos culturais brasileiros.
Sodré considera a música negra como espaço de liberdade para a construção da resistência
e, ao mesmo tempo, de enfrentamento das barreiras sociais no Brasil. Para ele, a aceitação de
ritmos originários das camadas populares socialmente excluídas sempre implicou em criação
de formas culturais possíveis para a inserção dos grupos negros, e mesmo a indústria cultural
se tornará o espaço da criação de filtros do que é ou não assimilável pelo conjunto social.
Segundo Sodré:
O lundu, por exemplo, tinha uma forma mais ‘branda’ e uma ‘forma mais selvagem’ (o
lundu-chorado). Chorar significava, no jogo do pôquer, acentuar ou destacar alguma
coisa. No lundu-chorado, acentuavam-se o meneio dos quadris, o jogo do corpo, o
movimento sensual das mãos (1998, p. 31)
O autor analisa que as expressões culturais negras são resistências à assimilação cultural
e sobrevivência numa sociedade altamente hierarquizada. Para ele, suas formas originais se
modificam em face da necessidade dos grupos de adotarem novas táticas de preservação e
continuidade da cultura negra. Emblemática seria a casa de Tia Ciata, citada como exemplo
de território estrategicamente dividido em função das relações travadas com a sociedade
para abarcar as diferentes modalidades de expressão musical: “... tinha seis cômodos, um
corredor e um terreiro (quintal). Na sala de visitas, realizavam-se bailes (polcas, lundus, etc);
na parte dos fundos, samba de partido-alto ou samba-raiado; no terreiro, batucadas” (SODRE,
133
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA
1998, p. 15). Nesse sentido, o samba se tornaria, mais do que um instrumento de um grupo
marginalizado ou exemplo de assimilação, passando a demonstrar uma forma dialética de
afirmação étnica e racial no ambiente urbano brasileiro.
Gilroy (2001) analisa as manifestações artísticas e musicais negras sob a ótica das mu-
danças que a modernidade impulsiona nas estéticas, culturas e identidades. Questiona as
interpretações essencialistas que buscam traços de africanidade comuns aos artistas negros,
em termos de autenticidade. Essa discussão procuraria pensar as questões de identidade e
cultura com o surgimento cada vez maior de estilos e gêneros e analisar como tais estilos se
relacionam com as raízes diaspóricas do povo negro, no mundo da tecnologia, da indústria
cultural e segundo seus artistas. Esse processo tem sido entendido, por uns, como diluição e,
por outros, como inautenticidade:
O autor chama a atenção para a importância de pensar essas expressões a partir das
relações sociais que a suscitam, entendendo que há uma complexa dinâmica que transforma a
noção de comunidade no desenvolvimento do mundo moderno desde o fim da escravidão. A
indústria cultural, o espaço das totalidades nacionais, o avanço das tecnologias e as conexões
globais acarretaram mudanças quanto às formas e os conteúdos das novas produções artísti-
cas e da musicalidade, nos quais, os artistas negros procuram se inserir. Essas considerações
dão suporte à crítica de Gilroy (2001) às visões sobre a permanência de essências imutáveis
baseadas na africanidade ou numa identidade negra absoluta. A questão mais importante
seria a relação entre as gramáticas de poder sobre o corpo dos indivíduos e a experiência dos
contextos da modernidade. Os deslocamentos contínuos dos centros culturais, identitários e os
impactos da discriminação racial, implicam na construção de novos sentidos possíveis à noção,
inclusive, de comunidade frente às formas de dominação estabelecidas sobre os grupos.
Esses distintos quadros teóricos contribuem à compreensão das estéticas culturais expres-
sas pelos sujeitos no interior das relações sociais e pensar tais estéticas como fundamentais
para a crítica de processos formativos homogêneos. A educação formal, ao deixar as ex-
134
periências vivenciadas pelos estudantes fora dos muros da escola, reduz as possibilidades
do encontro entre sujeito e história. Nesse sentido, a valorização da cultura afro-brasileira
a partir da reunião de elementos sociais e culturais justapostos, constitui reconhecimento e
fortalecimento dos sujeitos frente aos mecanismos de opressão.
Acreditamos que o rap contém potencialidades de trabalho na sala de aula pelos conteúdos
críticos que apresentam nas narrativas dos jovens periféricos negros sobre si mesmos. No
caso brasileiro, assim como o samba e o funk, o rap tem adesão do público da periferia e
sofre processo de marginalidade. Essas estéticas musicais também têm entrado no mercado,
mas, também, se realizam de forma irreverente mesclando-se a diferentes estilos musicais
populares, tais como a embolada e os repentes nordestinos, ao mesmo tempo em que recebem
influência dos rappers norte-americanos. Podem ser analisadas como práticas culturais de
representação de um território de exclusão e também de um território de criação, à medida que
os grupos buscam uma identidade de periférico pobre e negro, ganhando visibilidade (CARRIL,
2006).
O rap Antigamente Quilombo Hoje Periferia, dos rappers Z’Àfrica Brasil chama a atenção
pela atribuição de quilombo às periferias. Qual a pertinência dessa reivindicação? Que
processos identificam o quilombo com a condição de jovens periféricos negros nos bolsões de
pobreza urbana?
135
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA
Esse rap foi trabalhado com jovens da periferia de Capão Redondo, em São Paulo, a
partir de oficinas semanais, na ONG Casa do Zezinho. Durante o ano de 2012, buscamos
construir conhecimentos sobre a relação dos estudantes com a cidade de São Paulo e a história
brasileira. A letra foi escolhida por aludir à ideia de um novo mundo produzido pela ocupação e
exploração da terra brasileira. Nele, os colonizadores trouxeram escravos confinando-os às
senzalas; a abolição foi uma nova promessa, mas acabou seguida pela formação das periferias,
favelas, vielas e morros que concentra grande parte dos negros até hoje. Chama a guerra para
construir um novo quilombo, território de liberdade organizado pelos africanos escravizados e
que permanece como imaginário de luta e igualdade.
136
Alma de Captura de Negros, o mercado de rua, onde se vendiam comida e ervas africanas, as
Irmandades, o Pelourinho e o caminho dos escravos fugidos para o Quilombo do Jabaquara. A
expansão urbana levou as famílias negras para longe, propiciando a fragmentação cultural, a
perda da cidade e da memória. Observa-se a concentração de negros nas bordas periféricas
da cidade, em 2003, enquanto a região central sudoeste é quase branca.
O desenho do corpo dos estudantes, também, foi relacionado com a cidade e conversado
com eles sobre tais vínculos. P., um dos meninos, de 14 anos, lembrou-se do trabalho do mapa
e respondeu que a importância do desenho do corpo se deve ao mesmo ser o endereço de
cada um, e a identidade também. Daí foi discutida a relação entre periferia e quilombo no que
tem a ver com liberdade e identidade. Alguns descreveram a periferia como um lugar em que
os pobres moravam e o quilombo, um lugar de refúgio de escravos fugitivos. Perguntaram se
o quilombo poderia ser considerado como uma pessoa, outros responderam que não, pois
se tratava de uma comunidade. Então, perguntamos por que o Z’África Brasil denominava a
Periferia como Quilombo? Responderam que não era um quilombo, mas a periferia poderia
ser um refúgio, local em que não se paga pela água e nem luz elétrica. Falamos que o Mano
Brown explica que “periferia é igual em todo o lugar” e os meninos falaram que sim, pois são
os pobres que não podem pagar por uma casa em outros bairros.
Convidamos o Sr. V. para conversar com os alunos sobre a capoeira, então, eles disseram
que estavam surpresos que o “tiozinho da câmera” fosse também mestre da capoeira. Todos
muito animados se reuniram em torno do V., sendo que alguns foram buscar instrumentos para
acompanhar a cantoria. O Mestre começou a chamá-los: “E então, galera, vamos cantar sobre
o quilombo, que foi a reunião de vários ex-escravos que conquistaram a liberdade, fugindo
da escravidão”, daí iniciou com uma canção sobre o quilombo e os quilombolas. Foi muito
bonito!! Todos cantaram, sendo acompanhados pelo atabaque, por um pandeiro e o berimbau.
Várias canções foram entoadas de forma entusiasmada pelos meninos que batiam palmas e
cantavam.
137
5. ENCONTRO ENTRE O SUJEITO E HISTÓRIA: SONS NEGROS NA SALA DE AULA
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Billings (2008) a respeito de uma pedagogia culturalmente relevante analisa que esta
poderia contribuir no processo de ensino e aprendizagem, havendo um ponto crucial de
concordância com as nossas ponderações neste trabalho sobre o fato de que a educação
escolar não deve se limitar a incutir informações nas crianças. A autora define a pedagogia
culturalmente relevante sob três pilares: o desempenho escolar, a competência cultural e
a consciência sociopolítica. Resumidamente, trata-se de não aceitarmos que as crianças
frequentem a escola diariamente e não aprendam nada, mais ainda do que aprender, significa
o desenvolvimento de um aprendizado crítico, que as fariam questionar sobre o que e por que
estão aprendendo tais conteúdos.
Por fim, o terceiro pilar parte da contribuição do pensamento de Paulo Freire sobre a
educação como consciência social e realidade vivida, o que permite compreender que a
questão do sucesso escolar não depende apenas do indivíduo e não se esgota nele, ao
contrário, é elemento social e constrói cidadania A consciência sociopolítica serve para fazer
com que eles entendam que os estudos que fazem na escola e o que aprendem aí têm um
objetivo social maior.
138
Assim, a música como instrumento didático exerce grande poder ao fomentar a abrangência
da cultura e das manifestações artísticas, possibilitando o encontro da literatura oral e a escrita
junto aos saberes e às subjetividades dos envolvidos, bem como o conhecimento das técnicas
musicais e as expressões contemporâneas e passadas de estilos. Nas práticas pedagógicas,
destaca-se a importância do processo como facilitador da aprendizagem, da experiência que a
musicalidade poderia oferecer para a expressão de sentimentos, ideias, valores culturais e o
desenvolvimento de habilidades comunicacionais. Contudo, observa-se que esse processo
deve refletir a presença dos sujeitos e partir de suas experiências para o encontro entre sujeito
e história.
Como diz Hill (2009), a tendência tradicional escolar é representar as ideias e interesses
dos grupos dominantes e conservadores. A história que conhecemos sobre o mundo e sobre o
passado revela muitas informações a respeito de nós mesmos, do que acreditamos e do que
encontramos como verdade. É preciso deixar evidente que a linguagem histórica, transmitida
por meio de diversos meios, incute certa interpretação carregada de determinados valores que
colaboram para imprimir formas de opressão sobre as pessoas. O autor oferece a ideia de
que o trabalho do docente pode ser comparado a um “curador de feridas”, ao compartilhar
narrativas de dor e sofrimento, como as expressas nas letras de rap que são muito próximas
do cotidiano dos jovens negros nas periferias.
REFERÊNCIAS
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139
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SCHWARCZ, L. M.. Nem preto nem branco muito pelo contrário - cor e raça na sociabilidade
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141
6. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE
ÉTNICOCULTURAL: EM BUSCA DE FUNDAMENTOS
A tese de uma alfabetização científica (CHASSOT, 2001) com vistas à diversidade étnica e
cultural, trata do esboço de uma pedagogia para as séries iniciais do ensino fundamental nas
comunidades quilombolas com a inserção das temáticas relacionadas à física. Os conceitos
de física devem ser conciliados aos saberes locais dos aprendizes para que se possa tentar
uma construção/reconstrução de identidade étnica e cultural das crianças a partir dos saberes
da tradição e dos saberes locais (MORIN, 2004).
143
6. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE ÉTNICOCULTURAL: EM BUSCA DE
FUNDAMENTOS
É esta postulação que tem servido de diretriz para muito pesquisadores da educação:
Acreditamos ainda que o conhecimento que o aluno já possui como ser social e seu
desenvolvimento intelectual devem ser respeitados e aproveitados como elementos do
processo ensino/aprendizagem. Tais preocupações estão relacionadas não apenas
com proposições didático-pedagógicas, mas também com a visão de ciências que
julgamos adequada para a formação do jovem que frequenta a escola de ensino
fundamental. (TRIVELATO, 2000, p. 253)
Nesse panorama é que a educação científica surge como um direito dos estudantes e uma
exigência do século XXI para a formação da cidadania. Essa proposta exige uma educação
para além da mera memorização ou aplicação tecnológica do conhecimento. Dessa forma,
está então anunciada a postulação de uma educação integral em que se considere a cognição,
a afetividade e a contemplação da diversidade étnica e cultural de nossa sociedade para que
a aprendizagem faça sentido para os aprendizes de ciência, os novos leitores do mundo, a
ciência como uma componente da sua vida cultural. Na perspectiva dessa educação, aquele
que aprende os conceitos científicos busca formar também a sua identidade; aquele que
aprende se enraíza em sua comunidade local e sabe conectar-se à comunidade global; aquele
que aprende procura relacionar o aprendizado com sua história e seu cotidiano e se sente
parte da humanidade na elevação de sua autoestima; aquele que aprende situa o aprendizado
como acervo da humanidade.
144
estudante seja um sujeito ativo na produção de seu conhecimento em um ambiente colaborativo,
e que esse conhecimento seja percebido a partir de seu referencial ou de seu acervo cultural
(ROMÃO, 2001, p. 166). E é nessa perspectiva que a Educação Científica para Quilombolas,
com a inserção do ensino da física, passa a inserir a robótica educacional e a narrativa
poética da ciência no ensino fundamental e busca proporcionar uma aprendizagem em que a
construção do conhecimento seja mediada pelos sistemas simbólicos e pelas experiências
científico-pedagógicas de uma ciência que é considerada universal e pode se relacionar ao
contexto cultural local aos saberes socialmente construídos na vivência de cada indivíduo em
sua comunidade.
Com essa perspectiva, é que procuro discutir alguns fundamentos teóricos para uma
alfabetização científica com foco na diversidade étnico-cultural em sala de aula, em especial,
do ensino fundamental, tão marcante na região do Sudoeste da Bahia e com tão pouca
visibilidade. Nesta região, diferentemente de outras regiões do país, as escolas públicas do
ensino fundamental lidam com uma especificidade bem própria: uma diversidade étnica racial
sem visibilidade, orientada por um ensino com forte tendência ideológica de homogeneização
do conhecimento.
A alfabetização científica aqui proposta é parte de um amplo projeto histórico que tem
discutido a criação de uma educação quilombola no Brasil com objetivo de resgatar os valores
locais com respeito a diversidade étnica e cultural (VALENTE, 2003; GOMES, 2003; MATTOS,
2003; DOMINGUES, 2009; PARÉ, OLIVEIRA, VELLOSO, 2007). Esta educação almeja um
largo horizonte e coloca como ponto de partida a construção de princípios educacionais que
podem nortear um novo modelo de sociedade – esta que oscila em face das constantes mu-
danças impostas pela globalização (GIDDENS, 2000; HALL, 2005) –, calcada na solidariedade
e respeito mútuos, transformando as pessoas e levando-as a se empenharem a serem constru-
toras e reconstrutoras de suas identidades (NASCIMENTO, 2001; ROMÃO, 2001) bem como
em detentoras de alta autoestima (ROMÃO, 2001).
Tal educação é aqui aventada como um dos horizontes do século XXI. Dentre os desafios
apontados,
145
6. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE ÉTNICOCULTURAL: EM BUSCA DE
FUNDAMENTOS
Há algum tempo seria impensável ensinar física, em qualquer nível de educação, que não
fosse na perspectiva de difundir as verdades postuladas e testadas pelos cientistas.
Por muito tempo o ensino fundamental também teve a meta de fazer com que os alunos
e as alunas aprendessem a ler, a escrever e a calcular. Esses ainda são investimentos
mínimos exigidos nas aprendizagens básicas e necessárias para que os estudantes possam
ingressar, enquanto sujeitos sócios-históricos-culturais, no dinâmico processo de conhecer do
mundo letrado e globalizado, e acessar conhecimentos cujo domínio é um dos símbolos de
inclusão social. Com o tempo, a escola começou a exigir mais. Passou a investir na superação
de ser mera reprodutora de conhecimentos e costumes, e tem procurado ampliar os seus
horizontes de responsabilidades ao tentar atuar na perspectiva de formar amplamente para
a cidadania. Entenda-se amplamente como uma perspectiva para além da já difícil adoção
das diretrizes curriculares presentes nos PCNs, esta que indica a formação de cidadãos
cientificamente letrados (CHAVES, SHELLARD, 2005, p. 201). Entretanto, a constituição da
cidadania necessita de uma mudança no sistema de ensino e o sistema de ensino exige uma
mudança de mentalidade. Uma mudança está na dependência da outra sem que se saiba qual
das duas é a que deve ser a primeira a ser iniciada. Há que se começar por algum lugar, pois
na formação da cidadania se faz mister o domínio de categorias e conceitos que permitam
compreender e intervir no mundo.
146
nações e culturas. Essa forma de ensino tem propagado o valor das classes dominantes e é
considerada natural nos cursos de formação das áreas exatas. Como o conhecimento científico
é considerado universal, o ensino de ciências tem como objetivo transmitir um conhecimento
considerado verdadeiro e na avaliação desse conhecimento se exige a sua reprodução tal qual
se transmitiu. Esse modelo que nós professores acatamos tacitamente tem a crítica de Hall
(2006, p. 334) que se coloca contra uma noção particular de conteúdo, entendido como um
sentido fixo e homogeneizado, que pode ser analisado em termos de transmissão do emissor
para o receptor.
O roteiro preliminar sugere fazer um breve inventário dos saberes da comunidade (ARAÚJO,
2016) e investigar as potencialidades de alguns desses saberes e, a partir daí, que se possa
traçar uma estratégia que proporcione ao sujeito, aprendiz de ciência, um pertencimento
científico ligado às suas raízes e atribua a este aprendiz o papel de agente no processo de
construção de sua identidade étnica em religação (MORIN, 1998, 2003, 2004, 2005) ao seu
ambiente-território.
147
6. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE ÉTNICOCULTURAL: EM BUSCA DE
FUNDAMENTOS
experiências simples e de fácil execução com artefatos didáticos. Avaliaremos esse processo
tanto pela observação do modo com que as crianças possam interagir nos grupos (VIGOTSKY,
1993, p. 71-102) quanto pela reelaboração dos conceitos da física envolvidos nas experiências,
segundo um modo bem particular das crianças perceberem. Esse modo bem particular está
em consonância com as ideias de Hall (2006, p. 342) para quem “sempre existirão discursos
na sociedade que são os meios pelos quais as pessoas tornam significativo o mundo, dão
sentido ao mundo”. Conhecer é, assim, reelaboração de atores sociais, pois
Você não pode fugir do fato de que dizer algo significa desmontar uma configuração
de sentido existente e começar a esboçar uma nova. (...) não existe um significado
fixo único e, consequentemente, nunca poderá existir uma leitura fixa, baseada na
noção de um conjunto de posições ideais-típicas (HALL, 2006, p. 349).
No entanto, apesar da multiplicidade de leitura que tanto um texto quanto uma experiência
física ou mental possa suscitar, admite-se que a representação matemática seja a linguagem
universal da ciência e que deve ser lida sem ambiguidade. A princípio, diante de uma equação
matemática a leitura deve ser unânime. Talvez por isso, quando se inicia o ensino formal
de física no final do ensino fundamental, para Damásio e Steffani (2008, p. 4503-1), “o
conteúdo, que quase sempre é ensinado é mecânica, em geral, restringe-se ao estudo da
cinemática, com uma linguagem puramente formal”. O foco desse ensino tem sido, na maioria
das escolas, uma preparação para a abordagem da física no ensino médio e este, por sua
vez, tem o aspecto de transmissão de informações e operacionalidade por meio de equações
matemáticas (VILLANI, 1981; 1984). Esse início de estudo da física se dá apenas no nono
ano do Ensino Fundamental II ou oitava série, apesar de Schroeder (2007, p. 89) considerar a
física como “o mais básico dos ramos da ciência”. E é por esta consideração que é proposto,
em concordância com outros autores, a inserção da física nas séries iniciais. Contudo, admito
que “a intenção de ensinar física para crianças das séries iniciais poderia soar estranha para
alguns educadores” (DAMASIO ; STEFFANI, 2008, p. 4503). Para estes autores, a física
é introduzida sem ser identificada com precisão nas séries iniciais na disciplina ciências.
Por isso, a proposta de elaborar/implementar uma pedagógica interétnica colaborativa na
alfabetização científica (CHASSOT, 2001), com a inserção da Física nas primeiras séries do
ensino fundamental ao adotar uma perspectiva mais ampla a respeito dos propósitos do ensino.
Nestes propósitos, poderemos identificar uma oportunidade singular apoiada em Schroeder
148
(2007, p. 89) para que as crianças desenvolvam seu capital simbólico (DOMINGUES, 2009,
p. 982) através da vivência de situações ao mesmo tempo desafiadora e prazerosa, tendo
em conta as especificidades culturais da comunidade quilombola e as exigências postas à
educação nesse novo século (HAMBURGUER ; MATOS, 2000). Nesse desafio Moreira, citado
por Damásio e Steffani (2008, p. 4503), chama a atenção para o fato de que “o ensino de física
deve promover a compreensão do mundo e não iniciar a formação de um cientista”. Pois está
em jogo a ludicidade de aprender a aprender, o papel do prazer e da alegria no processo de
aprendizagem. Ainda assim, a ludicidade não significa mera diversão, pois as crianças devem
trabalhar com significados físicos, discutir os significados e propor soluções. Para Damásio e
Steffani (2008, p. 4503-03) são muitos os problemas de física que a criança não consegue
explicar, por isso se deve testar quais estariam ao alcance de seu estágio cognitivo. E não só,
mas tentar conhecer como esses aprendizes de ciência “percebem e compreendem o mundo
físico que os cercam (...), como eles veem e explicam os fenômenos fundamentais e qual é
a lógica usada por eles” (CARVALHO, 1989, p. 3) na recepção dos conceitos. Essa é uma
das razões de fundamentarmos teoricamente até mesmo o uso de artefatos nas experiências,
e não utilizá-los como adereços lúdicos de baixo custo para estimular e sim, para que as
experiências estejam ao alcance de quem as realize (ARRIBAS, 1987) para desafiá-las a
resolver os problemas (CARVALHO, 1989, p. 61) por meio de tentativas e diálogos de maneira
colaborativa.
Para Schroeder (2007, p. 90), aprender ciência está para além da racionalidade cognitiva,
mas inclui desenvolver “seus valores pessoais, a capacidade de perseverar, de lidar com
frustrações (autocontrole) e refletir sobre suas ações e expectativas, ou seja, desenvolver
suas habilidades afetivas, uma vez que o aprendizado necessita de um motivador”. Segundo
Ferreira (2010, p. 220), esse tipo de abordagem não foi apreciado a contento nos Parâmetros
Curriculares Nacionais em 1997 e não se pode deixar “passar despercebidas as limitações
com que a temática étnico-racial é tratada por tais “parâmetros”. Em sintonia com esta vertente,
Parré, Oliveira e Velloso (2007, p. 230) defendem que “a escola brasileira precisa estudar
melhor os esquemas de pensamento do seu alunado e, sobretudo, as dimensões da expressão
afrocultural dos afrodescendentes, a fim de que se possa, realmente, discutir a existência de
um ensino democrático, inclusivo e emancipatório no Brasil”. Nessa perspectiva é que Eugênio
(2010, p. 199-200) indica que apesar da legislação brasileira estar permeada de dispositivos
149
6. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE ÉTNICOCULTURAL: EM BUSCA DE
FUNDAMENTOS
150
muitos professores, dos três campi, trabalhando com essa temática, além de alunos
que também estão investigando as relações étnicorraciais, mas ainda é necessário
aprofundar o debate e as discussões. Daí a necessidade de eventos como esse, para
que a gente possa levar à população os resultados das pesquisas que estão sendo
realizadas aqui dentro (MONTANHA, RIBEIRO, 2010).
Apesar de termos planejado uma prática pedagógica na forma de Oficinas para tentar
estudar o processo de recepção de conceitos da física, enfatizamos que será necessário
reelaborar essas Oficinas em função do conhecimento local. Isso com base nas reflexões
de Eugênio (2010, p. 204) que indica que para atingir uma educação de qualidade social, o
pesquisador deve assentar sua formação no enfrentamento das dificuldades que se apresentam
na prática do cotidiano, dentre essas dificuldades uma com a qual não somos contemplados
ainda nos currículos, que é lidar com a diversidade de culturas em igualdade de direito, pelo
fato de não termos uma preparação para o trabalho com a diversidade étnica.
Para a nossa proposta não cabe conhecer para transmitir. A nossa preocupação é no
conhecer a especificidade da escola na comunidade quilombola, e nela tentar reconhecer
as diferenças raciais e culturais existente no cotidiano escolar e poder respeitar tais valores
para integrá-los ao processo de construção de conhecimento. Por isso nossa proposta se
insere numa perspectiva extra-curricular para não ter de esperar que a diversidade seja
valorizada quando surgir “uma reformulação nos currículos escolares” (EUGÊNIO, 2010, p.
206) que possa exigir práticas pedagógicas, por meio de decretos, dirigidas às diferenças
raciais, culturais, sociais e outras formas. Por fim, podemos dizer que
151
6. EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E DIVERSIDADE ÉTNICOCULTURAL: EM BUSCA DE
FUNDAMENTOS
Paré, Oliveira e Velloso (2007, p. 216) enfatizam que a diversidade étnica e cultural do Brasil
tem sido focalizada nos estudos sociais e educacionais. Portanto, manter a difusão de uma
monocultura nas escolas da Bahia deve ser posto em questão. Apesar da nossa proposta em
focalizar a física, considerada uma ciência exata, e as leis físicas serem naturais e possuirem
um status de universalidade, observamos que elas foram criadas, inventadas ou descobertas,
em sua maioria na sociedade europeia e norte-americana, consideramos o fazer científico, o
conceber a ciência como leitura de mundo dependente das características culturais. Por isso,
temos de abrir uma fenda “nesse conhecimento ocidentalizado, eurocêntrico, presente nas
escolas formais” (PARÉ, OLIVEIRA, VELLOSO, 2007, p. 217). E a narrativa poética da ciência
ao proporcionar aos aprendizes expressarem os seus costumes, a sua vivência, os possíveis
traços étnico-raciais e étnico-culturais que tornam possíveis uma maneira de visibilidade de
um processo de identidade na diversidade étnica-cultural, pode vir a ser esta abertura no
desenvolvimento de uma leitura bem particular do conhecimento. Particularidade presente na
indissociabilidade entre cultura e desenvolvimento defendido na Unesco pelo Brasil (MIGUEZ,
2005, p. 21).
152
Dentre alguns pontos relevantes da proposta assinalamos, o papel das narrativas em
contribuir na afirmação das crianças enquanto sujeitos de sua própria história a partir da
construção do conhecimento. Nesta construção ao inserir a territorialidade e valorizar seus
traços culturais, dialogicamente aflui e reflui na valorização do sujeito ao referir-se ao local em
que mantém ou mantiveram autonomia cultural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
153
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159
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO
QUILOMBO BARRO PRETO E A RESISTÊNCIA PARA A
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
Marise de Santana2
[. . . ] nós dizemos que ‘Selma’ é agora, porque a luta por justiça é agora. Nós sabemos que os
direitos pelos quais eles lutaram 50 anos, 100 anos atrás estão sendo comprometidos agora
mesmo, neste país. Nós sabemos que, exatamente agora, a luta por liberdade e justiça é real
e continua nos EUA e no Brasil.
Sabe-se por meio de estudos realizados por pesquisadores como: Mattoso (2003); Reis
(1989.); Prado (2001), entre outros, que os negros chegaram ao Brasil como escravizados e
por mais de 300 anos essa população foi submetida a rigorosas e desumanas condições de
trabalho e moradia. Foram eles que sustentaram a base econômica brasileira, ao contrário do
que foi propalado e ensinado nos livros didáticos, esses escravizados não foram passivos e
acomodados com a sua condição de escravizados e seus sofrimentos, muito pelo contrário,
sempre foram resistentes à condição.
1
Doutora em Ciências Sociais (UNESP). Pos-Doutorado em Ciências Sociais Antropologicas (UESB/Jequié).
Bolsista PNPD/CAPES 2015.
2
Doutora em Antropologia (PUC/SP). Coordenadora do Mestrado em Relações Etnicas e Contemporaneidade
da UESB/Jequié.
161
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO PRETO E A
RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
Ao final da escravatura o governo brasileiro não se preocupou com a condição dos escrav-
izados, abandonando essa população a sua própria sorte, como sabiamente relata Florestan
Fernandes:
A Lei Áurea teve apoio, segundo Dagoberto Fonseca (2009), de todas lideranças negras
do período, entretanto não foi o suficiente para proporcionar nenhuma garantia institucional e
podemos dizer nenhuma garantia territorial, pois,
De acordo com a história brasileira, quilombo, palavra originária dos povos de línguas bantu
(kilombo), era definido como locais de refúgio dos escravizados africanos e afrodescendentes
em todo continente americano. Eram aldeias que ficavam escondidas nas matas, em lugares
preferencialmente inacessíveis, como o alto das montanhas e grutas, e era onde então os
escravizados se reuniam e conseguiam levar uma vida livre.
162
As pequenas aldeias eram também chamadas mocambos, e tanto eles como os quilom-
bos duraram todo o período da escravidão no Brasil. Esses quilombos brasileiros segundo
Kabengele Munanga (2006) apresentam muitas similaridades com o kilombo africano, que se
desenvolveu em Angola entre os séculos XVI e XVII, pela forma de resistência e autonomia.
163
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO PRETO E A
RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
esses quilombolas o direito à terra que eles têm ocupam historicamente. O Artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias é claro quanto ao assunto: “Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Essas mulheres foram e são alicerce dessa sociedade, realizando seu cotidiano diário sob
a edificação de uma dinâmica própria baseada em sua própria história, e de uma vivencia
164
coletiva, são mulheres da casa, do trabalho, da luta e da família de onde se fortificam e
alicerçam sua consciência indenitária.
Até o ano de 2003, a competência para titulação territorial (identificação e delimitação dos
territórios), na esfera federal, era da Fundação Cultural Palmares. Por força do Decreto 4.887
de 2003, essa competência passou a ser do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA). Segundo a Fundação Palmares, até o início de 2016, foram certificadas 2474
comunidades quilombolas.
A invisibilização dos quilombolas seja ele urbano ou rural é histórica e perversa, portanto
acreditamos ser necessário reconhecer o silêncio a que foram submetidos. Admitir e com-
partilhar os conhecimentos advindos deste povo é tarefa de todo cidadão, principalmente
dos educadores e dos educandos, como sempre afirma Hélio Santos (2001), quilombo é um
espaço de resistência e de perpetuação de memorias ancestrais.
Para que o espaço físico seja reconhecido como quilombo é necessário que exata uma
memória ancestral negra, legado africano e um número de negros, não é imprescindível que
sejam todos negros, porém sem a memória ancestral negra não é possível que o antropólogo
reconheça essa localidade como quilombo.
A comunidade que vai ser avaliada/identificada pelo INCRA, necessita ter engajamento
político com seu pertencimento étnico é de suma a importância essa identificação. No quilombo,
podemos encontrar o negro, o indígena, o árabe, o branco. Porém o que certifica esse quilombo
é a presença do legado cultural africano. Essa certificação faz parte de outras políticas de
ações afirmativas como por exemplo cotas para negros e indígenas, a fim de responsabilizar a
dívida que o Brasil tem com esses remanescentes de escravizados e indígenas.
165
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO PRETO E A
RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
ocorrem é de forma muito lenta, pois a elite rural é o seu grande adversário. Essa população
desde sempre se reconhecem como quilombolas.
Esses quilombos urbanos nos chamou atenção, visto que são pouco mencionados e
visibilizados social e nos livros didáticos, apesar de sermos um país multicultural e portanto
necessitar procurar conviver de forma harmoniosa com as diferenças raciais, culturais e
territoriais.
MULTICULTURA BRASILEIRA
Somos um país onde a diversidade cultural é notória, visto que território brasileiro é
composto de três raças sociais, que são elas o negro, que aqui chegou como escravizados, ao
qual foi negado desde sua chegada, a liberdade e a vivência com sua cultura africana; o índio
que encontramos nas terras brasileiras, os verdadeiros donos, os quais desde o “descobrimento”
do brasil sofrem um processo de extermínio e invisibilização cultural e territorial e o branco que
como colonizados ignorou os “donos da terra, resultando no aniquilamento de várias tribos
indígenas.
Para modificar esse quadro de exclusão e de extermínio, nas ultimas década novos
movimentos sociais se mobilizaram no sentido de denunciar a exclusão sofrida pelos grupos
minoritários, almejando que suas demandas culturas, sociais, religiosas, raciais, sexuais, de
gênero sejam respeitadas, tendo como base a universalização das culturas existentes no
166
território brasileiro e o reconhecimento das diferenças. Entra então em sena o multiculturalismo,
que para Stuart Hall (2003. p.22)
Conquista essa que devemos ao movimento negro e a todos que são envolvidos com essa
bandeira, de resgate a negritude como um processo de autoestima e valorização da cultura
afrodescendente, na batalha pelo acordar da consciência negra de homens e mulheres em
todo o território brasileiro e respeito das comunidades quilombolas.
Segundo Reis (1996), muitos quilombos formaram-se a partir de fugas coletivas. Entretanto
existem aqueles surgidos a partir de fugitivos individuais unindo-se na continuação a outras
pessoas fugitivas, formando assim outro quilombo, tema por décadas desprezado e invisível
no ensino da história brasileira.
O Ensino da história da população negra foi um dos valiosos ganhos para a população
afrodescendente em geral e em particular para os remanescentes de quilombos, que foram
reconhecidos como respeitáveis marcos da luta pela liberdade num passado escravocrata e
sua importância na atualidade para a sociedade brasileira e autoestima dos descendentes dos
quilombolas, rescrevendo a “história” que foi contada ano após anos.
A história narrada nas escolas brasileiras é branca, a inteligência e a beleza mostradas pela
mídia também o são. Os fatos são apresentados por todos na sociedade como se houvesse
167
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO PRETO E A
RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
uma preponderância absoluta, uma supremacia definitiva dos brancos sobre os negros. Assim
o que se mostra é que o lado bom da vida não é nem pode ser negro. Aliás, a palavra negro,
além de designar o indivíduo deste grupo étnico-racial, pode significar sujo, lúgubre, funesto,
sinistro, maldito, perverso, triste, nefando, etc. (Hélio Santos, 2001).
O negro no território brasileiro desde sua chegada foi visto como um estrangeiro indesejável,
segundo a pesquisadora Lilia Schwarcz (2005), citada por Pereira (2015). Ele servia para o
trabalho braçal e escravocrata, porém suas cultura e modos de vida eram símbolos de atraso.
Essa ideia tão difundida ainda na sociedade brasileira sempre nos incomodou, a ponto de
procurarmos nos enriquecer de conhecimento histórico sobre nossos antepassados para, entre
outras coisas, elevar nossa autoestima.
Portanto, tudo que se refere ao negro é visto como inferior e feio. O estudo da história
do continente africano e dos negros da diáspora e seus remanescentes é fundamental para
reverter esse quadro de racismo e preconceito que se perpetua ao longo da história brasileira.
Iniciei a pesquisa de campo nesse quilombo urbano a partir de meus estudo de pós-
doutorado no ODERE (Órgão de Educação e Relações Étnicas) com a supervisão da Profes-
sora Doutora Marise Santana. Ao chegar nessa comunidade, tive a surpresa de encontrar um
quilombo totalmente diferente do que eu idealizava a respeito de um quilombo urbano. Porém,
instigava-me novos conhecimentos e quebras de paradigmas, no tocante a essa população
que sobreviveu nos arredores das grandes cidades de forma excludente como no quilombo
168
que pesquisamos.
Esse quilombo é originário da comunidade Barro Preto, que surgiu a partir do século XX,
devido a chegada da estrada de ferro, segundo alguns dos moradores entrevistados. Eles
informam que com o tempo a cidade ganhou ruas modernas e amplas, em substituição as
pequenas avenidas. Vale ressaltar que essas informações são informações obtidas por meio
da história oral. Fomos informados também que nesse período Jequié recebeu um contingente
de aproximadamente 500 garimpeiros, provenientes de maracas.
O Bairro recebeu esse nome, segundo os antigos moradores, pelo fato da terra ser preta
devido as cinzas oriundas da estrada de ferro. Outros acreditam que o motivo foi o número de
negros com suas famílias que habitavam nessa localidade que viviam ali com suas famílias.
Os moradores entrevistados informaram que a população jequieense foi formada pela mistura
étnica/racial de índios, negros, italianos e àrabes.
A partir desses relatos, segundo Tiago Henrique (jornalista), foi encaminhado para a
Ministra Matilde Ribeiro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e
para a Fundação Palmares, um pedido de apoio para indicação dos passos a serem seguidos
para o devido reconhecimento.
Foi dada a resposta de que era imprescindível que a população da localidade se recon-
hecesse como quilombolas. Para isso foi fundada a comunidade de nome “Comunidade Barro
Preto”. Foi indicada a contratação de técnico com conhecimento no processo para atuar no
município viabilizando tal mudança. Por fim, o BARRO PRETO recebeu a certidão de auto
reconhecimento, passando assim a ser considerado efetivamente “Quilombo Urbano”, na
perspectiva de garantir a reprodução física, social, econômica e cultural, abrangendo todas
as terras ocupadas e utilizadas para a subsistência das famílias e na luta por uma sociedade
mais justa e igualitária.
169
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO PRETO E A
RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
O processo de titulação foi feito de cima para baixo, depois do reconhecimento foi que
os idealizadores partiram para o estudo junto ao antropólogo, estudo esse que ainda não foi
concluído, portanto o quilombo urbano barro Preto ainda não possui titulação. Entretanto com
o reconhecimento muita coisa vem mudando para melhor: a violência diminuiu consideravel-
mente, a escola quilombola Milton Santos é referência para Jequié, tendo até disputa para obter
uma vaga. Após a presença do quilombo, surgiram mercados, jardins, campo de futebol, posto
de saúde, creches, benefícios que antes eram impossíveis. Enfim, a infraestrutura melhorou
muito, segundo os entrevistados; após a presença do quilombo.
Em meio a todo esse avanço, ainda tem moradores do quilombo que ainda tem vergonha
de ser identificado como quilombola, porque se perpétua na mente de parte dessa popu-
lação, dessas pessoas, a visão estereotipada no tocante aos quilombolas como preguiçosos,
sujos, incapazes, etc. Políticas públicas têm proporcionado a esses quilombolas condições
de vencerem essa barreira e isso tem surtido efeito como nos informa um dos moradores
entrevistados.
Não moro perto da escola, porém dentro da comunidade quilombola. Me identifico racial-
mente como negro. Tem quatro anos que moro aqui na Bahia e antes eu me considerava
pardo, eu morava em São Paulo (Ricardo Dantas, estudante do Colégio Milton Santos, Escola
quilombola no Barro Preto).
170
Este estudante, depois que veio para Jequié começou a aprender um pouco mais, pois,
conforme ele, em São Paulo, não existia ensino da cultura afro brasileira. Na Bahia ele começou
a se interessar pelo assunto e hoje se reconhece como um jovem negro.
Retornar ao seu lugar de origem e encontrar um local acolhedor fez uma grande diferença
na vida desse jovem,
Estudar aqui no começo não foi agradável, por eu não me reconhecer como quilom-
bola. Hoje eu tenho orgulho de estudar aqui, de dizer com orgulho que eu sou negro e
quilombola. Tenho descendentes africanos, angolanos, não tenho vergonha de dizer
isso para mim estudar em uma escola quilombola é mostrar pertença do que você
realmente é. Eu tenho uma irmã, ela não estuda aqui ainda porque ela é do ensino
das series iniciais, e nós não temos ainda uma escola quilombola que acolha essas
crianças das series iniciais. Ela estuda em uma escola pública é louca de vontade
de estudar aqui na escola quilombola. (Ricardo Dantas, estudante do Colégio Milton
Santos, Escola quilombola no Barro Preto).
Sempre que este jovem está em outro ambiente fora do Colégio Milton Santos, encontra
pessoas que falam mal da escola, pessoas que nem estudam ou estudaram na mesma, então
como esse jovem vem sendo orientado e sua estima está em alta, ele aproveita a oportunidade
para apontar as qualidades do seu ambiente escolar:
A vergonha deu lugar ao orgulho da sua origem e comunidade, com a afirmação do legado
histórico e da história oral. Afastando o complexo de inferioridade, possibilitando um novo
desenvolvimento nos estudos e na sua vida cotidiana.
171
7. COMUNIDADE QUILOMBOLA: CONQUISTAS DO QUILOMBO BARRO PRETO E A
RESISTÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
O nosso objetivo era investigar como se dão, nesses espaços, processos de empodera-
mento e equidade, “buscando capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação
entre dois ou mais eixos da subordinação” (CRENSHAW, 2002, p, 177). Apresentando algumas
definições do conceito de identidade, partindo da investigação da origem do quilombo urbano
e a construção indentitária dessa população, suas expectativas e desafios.
Relatos como os de Ricardo, mostram que estamos indo no caminho certo na inclusão
dos quilombolas, valorização da sua cultura, destaque do seu legado étnico/racial/ cultural,
quebrando paradigmas e promovendo a valorização da identidade quilombola. Para o jovem
reconhecer que estuda em uma escola que goza do amparo governamental, e que ela tem
bons professores, bons profissionais, boa merenda, favorece e garante a valorização formal e
afetiva dessa população.
Importante considerar que a maioria dos funcionários moram dentro do bairro, isso ajuda
muito no tocante ao trabalho de construir a identidade quilombola nos alunos.
Outro relato vem de uma senhora de nome fictício Maria do Rosário, moradora do bairro,
ela é branca e durante muito tempo lutou e se ressentiu ao ser chamada de quilombola.
Essa ideia de transformar nosso bairro em quilombola, não foi discutida com a
comunidade, foi algo imposto. Para mim quilombo era o refúgio dos negros fugitivos
das senzalas, preguiçosos e com pouco caráter; portanto eu não queria fazer parte
desse grupo. Sempre fui uma líder aqui na comunidade e me senti desrespeitada.
Porém com as atividades que são oferecidas na comunidade e na escola quilombola,
e os ensinamentos, mudei meu conceito de quilombo e quilombola.
Quando partimos para entrevistar mulheres negras idosas (anciãs denominadas griôts)
observamos o quanto a história oral, sua ancestralidade, identidade étnica, racial e de gênero
172
é importante e fundamental para preservar sua identidade e do grupo ao qual pertencem,
mesmo sofrendo duas ou mais manifestações de subordinação. Crenshaw (2002, p. 177)
chama esta circunstância de interseccionalidade, na qual o sujeito utiliza seus saberes para
fugir da posição de subalternidade.
Comum a todas essas mulheres é a perspectiva de que não é possível entender a sub-
ordinação das mulheres negras sem levar em conta a raça, a etnia, classe, o gênero e a
sexualidade. E como estes elementos interagem na produção das desigualdades. Por isso é
importante entender e intervir na realidade de exclusão em que se encontram as mulheres
negras brasileiras, conforme assegura Ribeiro:
173
REFERÊNCIAS
CONSIDERAÇÕES
Fazer um trabalho etnográfico é lento e minucioso, exige ir além dos textos atuais e
entender o processo histórico de exclusão perversa da qual a população africana foi submetida.
Necessário se faz ampliar o entendimento à determinada realidade social. Conforme Geertz
(2012) é fundamental observar o que os seus praticantes fazem: a etnografia é um esforço
elaborado para uma “descrição densa”. Portanto aqui com os dados preliminares da pesquisa
em andamento, apresentamos uma síntese dos dados coletados e avaliados no tocante ao
quilombo e em particular ao quilombo urbano do Barro Preto: suas nuances e o papel das
mulheres nesse cenário.
Este estudo é uma amostra parcial de nossa pesquisa e aproveitamos para reafirmar que
trabalhar com quilombos é uma atividade lenta. Alguns entrevistados se auto reconhecem como
negros e mencionam as vitórias alcançadas. Ainda existe um grande número de descendentes
de escravizados que não conseguem identificar-se como quilombolas. A discriminação social
e racial está impregnada e estigmatizada no contexto de vida delas há anos.
Em contrapartida, as mulheres que foram entrevistadas mostram por meio das questões
pontuadas e respondidas que têm uma expressiva participação na comunidade onde vivem.
Elas denotam a forma como se colocam diante dos assuntos da comunidade e que embora
estejam expostas a inúmeras formas de invisibilidades e subordinações, estas mulheres são
protagonistas da história de suas comunidades e peças fundamentais na engrenagem do
quilombo.
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SANTOS, Helio. A Busca de um Caminho para o Brasil: a trilha do círculo vicioso. Editora
SENAC São Paulo, 2001.
176
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO
VENCER A SEGREGAÇÃO?
Após o 13 de maio de 1888, nas cidades brasileiras a população negra foi segregada nos
meios urbano e rural (COSTA, 2007; OLIVEIRA, 2013). A segregação significou, gradualmente,
o contínuo processo de desenvolvimento das desigualdades e do racismo, separando e
subrepresentando a população negra nas principais áreas da sociedade.
Carlos Hasenbalg (2005) e Antônio Sergio Alfredo Guimarães (1995; 2002) afirmam que o
racismo e o acúmulo das desigualdades se processou no transcorrer do século XX, favorecendo,
1
Doutor em Ciências Sociais. Pós-Doutorado pelo Programa Nacional da Fundação Capes em Sociologia
Urbana. Professor na Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS/Bahia.
177
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?
Conforme Henrique Cunha (2016), João Vargas (2013) e Reinaldo José de Oliveira (2013),
as áreas de produção de conhecimento ligadas à cidade, em sua grande maioria, se orientaram
e organizaram o espaço das cidades brasileiras sem tomar a devida atenção das histórias,
memórias, identidades e o acervo histórico e civilizatório das populações negra e indígena. Por
exemplo, os cursos de arquitetura e urbanismo, engenharias e as áreas das ciências humanas
e sociais, veem a produção de conhecimento de forma generalizada, compartilhando com os
ideais de modernização do pensamento europeu e norte americano; com a implantação das
políticas de limpeza e embelezamento, o realce dos centros com a criação de parques, praças
e grandes avenidas (boulevares), além do ininterrupto projeto de abertura de vias expressas,
privilegiando o trânsito do capital e da mão de obra (FELDMAN, 2005).
É diante deste cenário da população negra, que aqui buscaremos delinear o papel, as
ações e as políticas dos territórios negros e quilombolas para viabilizar a luta contra as práticas
de segregação, racismo e violência.
O texto foi construído a partir de experiências sobre as vivências da população negra nas
cidades brasileiras, em especial, o protagonismo de territórios negros e quilombolas. Dentre
178
as experiências sobre o assunto, o curso de Educação Escolar Quilombola UFRB/SECADI
(2014/2015), através dos debates e trocas entre alunos e professores, proporcionou algumas
reflexões contidas no presente estudo.
O curso de Educação Escolar Quilombola realizado nos anos de 2014 e 2015 (doze meses),
sob a coordenação da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, ofertado nas cidades de
Feira de Santana, Cruz das Almas, São Felipe e Santo Antônio de Jesus, alcançou a formação
de 125 professores das escolas públicas.
179
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?
180
esta interpretação valoriza e torna central a história dos vencedores, ou seja, daqueles que
permaneceram com os mesmos privilégios na história passada e na etapa atual.
A palavra fuga não condiz com o contexto de escravidão, e sim a concepção de busca da
liberdade.
Na América como um todo, nosso país foi o último a abolir a escravidão. Em países como
os Estados Unidos, Haiti e parte do Caribe, a luta pela abolição ocorreu em uma conjuntura de
transformações no mundo como a Revolução Francesa que inaugurou o ideal de igualdade,
fraternidade e liberdade e a Revolução Industrial na Inglaterra, que se expandiu pelo mundo.
As grandes transformações ocorreram em diferentes momentos e lugares, mas o cenário
da abolição foi marcado com a luta dos quilombos, das revoltas e embates da população
escravizada.
No passado e nos dias de hoje, por meio de estudos históricos, sociológicos e antropológi-
181
8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?
cos, temos territórios de quilombos por todo o país, de norte a sul da realidade nacional. Nesta
confluência de espaço e tempo dos quilombos no Brasil, outras interpretações nos auxiliam a
melhor compreender a sua origem e o seu desenvolvimento.
Nos grandes centros em desenvolvimento dos séculos XVII, XVIII e XIX, como nas cidades
de Salvador, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, os quilombos intensificaram suas lutas
para além de sua territorialidade, em direção aos centros de desenvolvimento socioeconômico.
É exatamente nas áreas urbanas, centro e sede do desenvolvimento e do comércio, que
os quilombos foram se aproximando e promovendo pequenas revoltas, insurreições e/ou
desestabilizando a estrutura da sociedade escravocrata.
Segundo João José Reis (2003), nos idos de 1835, os africanos escravizados, saídos
da região do Recôncavo rumaram em direção a Salvador com o objetivo de tombar o poder
imperial e pôr fim ao trabalho escravo. Na época, a maioria da população que vivia no meio
urbano e rural era de africanos e afro-brasileiros. Segundo o autor, os africanos islamizados
protagonizaram todo o processo de insurreição em Salvador. Diante do processo de rebelião
se juntaram ao movimento os negros que habitavam as áreas centrais e intermediárias, por
pouco, a revolta não se concretizou no Brasil.
182
extensão e as ações dos movimentos sociais negros, no decorrer do século XX.
O livro “Os Quilombos e a Rebelião Negra”, de Clóvis Moura, publicado no ano de 1987,
um ano antes da Constituição Federal, também tem e merece o seu reconhecimento.
Moura (1987) organiza seu escrito sobre os quilombos no Brasil, debruçando-se sobre vasta
informação de documentos, mapas e de literatura pertinente sobre a temática; a organização
e a economia interna dos quilombos, a força de enfrentamento e resistência, as insurreições
urbanas em associação com as forças quilombolas e a luta pela abolição. Além de analisar o
processo de organização e enfrentamento político, Moura traz um mapeamento dos quilombos
nos estados da Bahia, São Paulo, Sergipe, Maranhão e a região Amazonense.
Ambos, Edison Carneiro e Clóvis Moura, devem e precisam ser lidos e interpretados nos
estudos e pesquisas sobre a história dos Quilombos no Brasil. As obras dos autores, mesmo
diante das grandes mudanças do tempo e do espaço, são imprescindíveis para os estudos
contemporâneos, desde a formação de professores da educação básica, a graduação e a
pós-graduação.
Até o momento, interpretamos que a história dos Quilombos no Brasil não é a história
contada pelos vencedores. A história dos quilombos no Brasil contempla o universo socioe-
conômico e político de africanos e afro-brasileiros, protagonistas por cimentar as bases do
desenvolvimento e do capitalismo em solo nacional.
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terra, à saúde, à educação e as referências básicas, essenciais para o exercício da vida social.
Nos territórios negros e quilombolas, a segregação teve efeito devastador, como por
exemplo, impediu a população negra e pobre de se tornar empreendedora, de ter a posse e
poder desenvolver e viver da produção da agricultura, da criação e comercialização de animais,
e de forma estrutural, o mito da democracia racial inviabilizou a população negra quanto a
conscientização étnica racial, de organizar revoltas e protagonismos para pôr fim ao quadro de
sub-representação na sociedade brasileira.
Para a professora Ilka Boaventura Leite (2000) falar dos quilombos e dos quilombolas
no cenário atual, é, portanto, proferir uma luta política, que não para e está em constante
construção.
Segundo a autora que cita Munanga (1999), o quilombo brasileiro é uma cópia do quilombo
africano, reconstruído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela
implantação de uma outra estrutura política na qual se encontravam todos os oprimidos.
Leite (2000) afirma que o quilombo, frente a uma leitura histórica, sociológica e antropológ-
ica, proporciona o aparecimento de novos atores sociais, ampliando e renovando os modos de
ver e viver a identidade negra em contínuas formas de apoio e organização com os segmentos
sociais no Brasil, como os territórios negros do meio urbano que lutam contra o racismo e a
segregação, os povos indígenas, as comunidades rurais e ribeirinhas, enfim, os atores que no
dia a dia buscam subverter a ordem e as estratégias da segregação.
Em outra perspectiva, Leite (2008) declara que o quilombo após passar por diferentes fases,
da resistência, do enfrentamento e da organização, hoje, trem trilhado a organização em torno
do direito à terra, a produção de territorialidades e identidades e, nas últimas três décadas
do século XX, a busca por direitos que foram sistematicamente negados. Os direitos dos
quilombolas, dos ambientes urbano e rural, em mais de três séculos, foram sistematicamente
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negados; as materialidades que envolvem a terra e a sua transformação por intermédio do
trabalho social, produz e reproduz o ambiente construído até as questões não materiais e
subjetivas, por exemplo, a participação na história da cidade, do ambiente construído e do
processo pedagógico de construção de conhecimento.
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Conforme o mapa acima, no ano de 2015, eram 157 comunidades quilombolas que haviam
conquistado a titulação de suas terras na justiça. Nesse campo do direito à terra, é uma luta
árdua, diante do enfrentamento com os grandes latifundiários, empresários da agroindústria,
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do mercado nacional e global, do meio político e da hierarquia do Estado. O espaço físico não
é um fenômeno exclusivo da produção identitária dos territórios de quilombos, é a história, a
memória e a vida social tecida e empreendida no chão dos quilombos. É a terra, enquanto
construção social e os elementos subjetivos que definem a identificação dos sujeitos ao
quilombo.
No mapa acima, os estados de Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Pernambuco, Pará, Mato
Grosso e Rio Grande do Sul, estão em evidência com o alto número de terras em processo
de titulação. É importante uma breve reflexão, por exemplo: Mato Grosso é um dos territórios
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Segundo Rogério Haesbaert (2006) o cenário da territorialidade, desterritorialidade e
reterritorialidade contempla movimentos contínuos do sujeito e seu grupo social no contexto
espacial e temporal frente às construções, desconstruções e reconstruções, materiais e
subjetivas que incidem sobre as necessidades objetivas e não objetivas dos grupos humanos
que disputam os lugares e posições na vida social.
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Uma breve observação e interpretação dos mapas 2 e 3, a respeito da cartografia de
quilombos na Bahia, sobretudo a elaboração de Clóvis Moura, chama-nos atenção que a
territorialidade antecede a discussão da Constituição Federal de 1988. A cartografia levada à
frente por Moura, na época e nos dias de hoje, é um marco inicial do processo de organização
da territorialidade quilombola na Bahia e no cenário brasileiro.
Figura 8.3: Mapa 3 - Cartografia dos Quilombos Baianos, Clóvis Moura, 1987.
A afirmação acima, reitera a reflexão dos mapas, porque comprovam o percurso da ideia de
quilombo aqui desenvolvida; a resistência física e social, o enfrentamento político e a produção
de identidades, são fatores fortes e imprescindíveis no tema abordado.
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chão dos territórios. Na Bahia, foi assim: com a Revolta dos Malês que viviam nas áreas
centrais, no entorno e em suas cercanias.
Constatamos, a partir dos estudos, pesquisas, cursos de extensão e as ações sociais sobre
a produção das Relações Étnicas e Raciais, em especifico, o Curso de Educação Escolar
Quilombola da UFRB, que as territorialidades negras e os quilombos, em todas as etapas da
história do Brasil, eles se fortaleceram quando somaram forças e caminharam de mãos dadas.
Para um dos principais geógrafos do Brasil, Milton Santos (2001), o território é resultado
da construção e intervenção do homem, via trabalho social, diante da história da civilização
humana, artificializando, desenvolvendo e impondo novos instrumentos no tempo e no espaço
das sociedades. Santos descreve que o território é resultado do desenvolvimento do meio
técnico científico informacional.
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que todos podem usufruir e viver as territorialidades dos cenários local e global. Na realidade,
a perversidade e a enganação, estão no cotidiano das sociedades, das cidades do mundo
e do Brasil; elas são mercadorias, ideologias, fetiches e poder político que são impostos por
estados e pequenos grupos de pessoas em relação aos países em desenvolvimento e em
pleno estado de pobreza.
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8. OS TERRITÓRIOS NEGROS E OS QUILOMBOS VÃO VENCER A SEGREGAÇÃO?
pesquisa e extensão.
A partir do diálogo dos alunos e de nossa base em ensino, pesquisa, extensão e movimento
social, delineamos nossas observações, ideias, saberes e praticas sobre território e territoriali-
dades negras: espaços e lugares cravados pela memória dos mais velhos (da ancestralidade),
como a casa e o ambiente onde estão depositadas as lembranças e os marcos iniciais das
identidades; o lugar do não racismo, onde as identidades se processam com a valorização das
representações materiais e subjetivas; são os espaços culturais e subjetivos, voltados para
a pratica social, recreativa e cultural, como o universo do samba e suas variações conforme
a região e o lugar do país; as religiosidades defendidas e representadas pela população
negra, haja vista os terreiros de candomblé e umbanda, as irmandades religiosas em devoção
aos santos negros (Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, nossa Senhora da Aparecida,
dentre outras); os grupos sociais que se articulam para fins de resistência, enfrentamento
e de proposições políticas para eliminação das desigualdades, de luta por direitos e de re-
conhecimentos; o corpo de homens e mulheres negras, desde a origem, desenvolvimento
e transformações, são espaço de produção e reprodução da territorialidade negra, é o lugar
onde recebem, trocam e multiplicam as referências identintárias, históricas, culturais, enfim,
o corpo é o espaço depositário das inscrições negras, portanto, das territorialidades negras
diante de todos os processos de desterritorialização e reterritorialização.
Abdias Nascimento (1977), em sua obra Genocídio do Negro no Brasil, nos auxilia e reitera
nossas reflexões. O genocídio, de forma física, cultural e simbólica, em nossa interpretação,
diz respeito ao contexto de constantes processos de construção, desconstrução e reconstrução
das referências da história e cultura africana e afro-brasileira em nosso país.
O genocídio da população negra sempre foi corrente, desde a sociedade escravocrata até
o presente momento, do meio técnico científico informacional. Conforme o Mapa da Violência
no Brasil, a territorialidade de homicídios concentrada na população pobre, masculina, negra
e jovem é o quadro atual do genocídio da população negra. Neste cenário do genocídio,
devemos acrescentar a questão de gênero, são as mulheres negras o alvo mais vulnerável
da violência, do racismo e das desigualdades. O genocídio das mulheres negras tem se
apresentado às territorialidades nas formas de agressão, assédio, estupro, homicídios, na
ausência e/ou deficiência de políticas públicas nas áreas de saúde, mercado de trabalho e
194
educação.
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Território e quilombo são semelhantes, por exemplo, quando os atores que vivem, trabalham
e transformam a terra para fins de resistência física e simbólica, enfrentamento político e a
construção, desconstrução e reconstrução dos valores históricos e civilizatórios de determinado
grupo social.
Carril (2006) e Oliveira (2008), em estudos sobre a população negra na cidade de São
Paulo, especialmente das periferias, identificaram que os jovens negros do movimento hip hop
passaram a adotar a palavra quilombo para se referir ao lugar ou pedaço do bairro em que
viviam, a partir das expressões que correspondem a resistência e as forças que elaboraram
identidades e representações que valorizam a história e o cotidiano social e cultural. Portanto,
o termo quilombo foi adotado pela juventude em razão do aspecto social e político.
Reconhecemos que a identificação, quem determina são os atores sociais que estão ligados ao
espaço histórico e social. Eles, no urbano ou no rural, se reconhecem enquanto quilombolas,
comunidades de terreiros, movimentos sociais sem-terra e sem-teto, ribeirinhas, comunidades
de mulheres, enfim, são os atores dos territórios e dos quilombos que definem a palavra de
reconhecimento (MUNANGA, 2010).
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Nossas experiências, especialmente a produção sobre espaço e população negra, tem
procurado fazer a distinção entre territórios negros e quilombos. Especialmente aqui, adotamos
a distinção dos termos, em razão da palavra território e territorialidade dialogar com diferentes
frentes do conhecimento, que incidem em usos, funções e sentidos.
POLITICAS PUBLICAS
As políticas mais recentes, de ação afirmativa e com ênfase nas populações historicamente
excluídas e marginalizadas, foram sendo construídas no decorrer do século XX a partir das
referências dos movimentos sociais negros.
Segundo Alberti e Pereira (2010), da pós abolição aos dias de hoje, as políticas públicas
para a população negra foram sendo elaboradas pelos atores que sofrem a segregação e o
racismo, haja vista as propostas e ações dos movimentos sociais negros: no início do século
XX, a Frente Negra Brasileira e as organizações sociais e culturais que se organizavam para
combater o racismo e propor alternativas ao quadro de segregação material e subjetiva; o
Teatro Experimental do Negro no Rio de Janeiro, propôs a formação social e cultural para fins
de mobilidade socioeconômica e política da população negra, especialmente os homens e
mulheres que pertenciam aos lugares e posições de menor expressão social; gradualmente,
dos anos de 1970, com o processo de redemocratização e abertura política, ocorreu a reorgani-
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zação dos movimento sociais negros, a partir do legado de enfrentamento, denunciaram o mito
da democracia racial e as práticas racismo e preconceito do cenário nacional que esconde,
camufla e torna invisível as relações entre brancos e negros, especialmente a marginalização
da população negra.
As políticas públicas mais recentes, com ênfase na população negra, todas vieram com
a herança das lutas e a organização dos movimentos sociais que se organizavam desde
o início do século XX, portanto, são ações que buscam a eliminação da segregação e das
desigualdades acumuladas no decorrer do século passado e o momento contemporâneo.
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século XXI. Particularmente, a política de cotas, estabelece a oportunidade de estudantes
de escolas públicas, negros e indígenas, conforme o peso relativo de participação negra e
indígena no quadro regional, portanto esta política oportunizou a transformação do quadro da
segregação no ensino superior brasileiro, com a entrada de estudantes negros, indígenas e
brancos de escolas públicas nas instituições de ensino superior (federais e estaduais).
No quadro dos territórios negos e quilombolas, neste momento e para as próximas décadas,
a somatória de forças terá que ser mais pontual, crítica e abrangente, tendo em vista a
eliminação gradual e integral do quadro da segregação e do racismo.
Conforme Cunha (2016), os movimentos sociais negros terão que buscar conhecimento,
saberes e práticas para atuações no cenário do espaço (urbano e rural), sobretudo nos lugares
e posições da sobre-representação negra. Será necessário maior participação em políticas e
lugares ainda incipientes, como as políticas para a cidade, o meio ambiente, a agricultura, o
mercado de trabalho, enfim, em áreas e posições historicamente omitidas e negligenciadas
pelo Estado brasileiro.
Para o momento presente e futuro, os territórios negros e quilombolas terão que pensar,
estruturar e agir em torno de políticas públicas no que tange ao espaço e relações étnicas
raciais. Retomando a leitura dos mapas acima, esta reflexão passa direta e indiretamente pela
titulação de todas as terras de comunidades quilombolas registradas no país, da formação
e promoção de uma pedagogia da diversidade que retrate a história e a cultura africana,
afro-brasileira e indígena, como, por exemplo, a educação escolar quilombola, portanto, a
eliminação da segregação e do racismo, terá que responder às demandas das cartográficas dos
mapas apresentados acima e, em especial, da transformação da hierarquia socioeconômica e
política que separa brancos e negros na sociedade brasileira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Aqui, nossa interpretação delineou a questão dos territórios negros e quilombolas frente a
perspectiva de ações, saberes e práticas para fins de eliminação da segregação, do racismo e
das desigualdades.
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REFERÊNCIAS
(dos cenários urbano e rural) veem avançando na busca por direitos materiais e subjetivos.
Observamos que nos momentos de conflitos, resistência, reconhecimento e desenvolvimento,
a união e a somatória de forças é primordial para manter as referências dos territórios negros
e quilombolas.
Os territórios negros e quilombolas, do passado e dos nossos dias, estão avançando suas
lutas e conquistas para fins da eliminação da segregação. O percurso não foi plenamente
alcançado, porém, as conquistas, enfrentamentos, reconhecimentos e direitos, vão transformar
as cartografias de poderes inscritos na estrutura socioeconômica e política do Estado brasileiro.
Conforme os mapas apresentados, um dos enfrentamentos que temos pela frente, princi-
palmente no estado da Bahia, diz respeito ao processo de produção e desenvolvimento de
uma pedagogia da diversidade, sobretudo das territorialidades negras e quilombolas.
O direito à terra e à educação são lutas e marcos essenciais para fortalecer o território,
as territorialidades e os quilombos no Brasil. O curso de educação escolar quilombola da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia pautou reflexões nesse quadro. De um lado, a
questão da segregação da população negra, e, de outro lado, as bases materiais e subjetivas
para pensar o século XXI. Portas que foram abertas sob olhares atentos para promover a
transformação e justiça social de nosso pais.
REFERÊNCIAS
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OLIVEIRA, Reinaldo José de. A Cidade e o negro no Brasil: Cidadania e Território. Editora
Alameda, São Paulo, 2013.
VARGAS, João H. A luta por territórios negros do Rio de Janeiro. In: Reinaldo José de
Oliveira. A Cidade e o Negro no Brasil: Cidadania e Território. Editora Alameda, São Paulo,
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OLIVEIRA, Reinaldo José de. A Cidade e o Negro no Brasil: Cidadania e Território. Editora
Alameda, São Paulo, 2013.
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REFERÊNCIAS
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FELDMAN, Sarah. Planejamento e zoneamento em São Paulo. São Paulo, EDUSP, 2005.
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