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A constituição do campo de análise

e pesquisa da antropologia jurídica


Orlando Villas Bôas Filho
Doutor e Mestre em Direito –USP;
Professor da Faculdade de Direito – Mackenzie.
São Paulo – SP [Brasil]
ovbf@mackenzie.br

Pretendemos, neste artigo, analisar sinteticamente a constituição do


campo de análise e pesquisa da antropologia jurídica no século XIX,
enfatizando sua relação com o imperialismo e com o colonialismo.
Palavras-chave: Antropologia jurídica. Colonialismo. Imperialismo.

Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 333-349, 2007. 333


1 Antropologia, colonialismo e imperialismo

Abordar a constituição do campo de análise e pesquisa da antropo-


logia jurídica implica examinar a gênese dessa disciplina, ou seja, o contex-
to em que ela se forma e quais os condicionamentos históricos, culturais
e sociais de sua formação. Nesse sentido, um primeiro aspecto altamente
significativo que precisa ser ressaltado consiste na ligação da antropologia
social, num sentido geral, e da antropologia jurídica, em particular, com o
imperialismo europeu que, surgido do colonialismo, caracteriza-se por sua
dimensão expansionista. Embora, de acordo com a análise do historiador
Marc Ferro (1996), seja possível distinguir várias formas de interpenetra-
ção e sobreposição do imperialismo à colonização (colonização de tipo anti-
go, colonização de tipo novo e imperialismo sem colonização), o fato é que,
conforme ressalta Hannah Arendt (1989), o expansionismo imperialista do
século XIX difere significativamente das formas de conquista precedentes
que caracterizam as políticas imperialistas típicas da formação de impérios,
ao estilo de Roma.
Ao analisarem o que denominam de império, entendido como “subs-
tância política” que regula as permutas globais e o poder supremo que go-
verna o mundo, Antonio Negri e Michael Hardt (2001) o distinguem do
imperialismo que, fundado na soberania do Estado-nação, exprimiu-se na
expansão colonialista européia. Assim, para esses autores, o império, con-
cebido como forma paradigmática de biopoder – no sentido em que Michel
Foucault (1993 e 1999) define o termo: governo da vida social como um todo
–, característico de nossos dias, seria completamente distinto do imperia-
lismo fundado na idéia de expansão territorial de Estados-nação soberanos,
que buscavam estender sua soberania para além de suas fronteiras1. Nesse
sentido, o imperialismo, enquanto fenômeno historicamente circunscrito,
caracterizar-se-ia essencialmente por aquilo que Ferro (1996) denominou
de “bulimia territorial”.

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Segundo Eric Hobsbawm (2002), entre os anos 1880 e 1914, assiste-
se à cristalização de um novo tipo de império, o colonial, que se baseia na
repartição do mundo em países “avançados” e “atrasados”. É nesse contexto
que o referido historiador ressalta que,

[...] mesmo sendo o colonialismo apenas um dos aspectos de


uma mudança mais geral das questões mundiais, foi, com toda
a certeza, o de impacto mais imediato. Ele constituiu o ponto
de partida de análises mais amplas, pois não há dúvida de que a
palavra ‘imperialismo’ passou a fazer parte do vocabulário po-
lítico e jornalístico nos anos 1890, no decorrer das discussões
sobre a conquista colonial. Ademais, foi então que adquiriu a
dimensão econômica que, como conceito, nunca mais perdeu.
Eis por que são inúteis as referências às antigas formas de ex-
pansão política e militar em que o termo é baseado. [...] Em
suma, o novo colonialismo foi um subproduto de uma era de
rivalidade econômico-política entre economias nacionais con-
correntes, intensificada pelo protecionismo. (HOBSBAWM,
2002, p. 114)2 .

O imperialismo, que tem como contrapartida a expansão colonial


dos Estados nacionais europeus, demandava justificação de que pudesse
haurir sua legitimidade. Como enfatiza Hobsbawm (2002), numa era de
política de massa, havia necessidade de angariar, para a expansão imperia-
lista, o apoio popular, sobretudo do grande contingente de descontentes.
A idéia de superioridade racial, nesse contexto, será uma das mais efica-
zes ferramentas de legitimação da expansão imperial. Embora essa idéia
de superioridade não seja nova na relação entre os europeus e as demais
sociedades, como o demonstra a primorosa análise de Tzvetan Todorov
(1993), o fato é que, no imperialismo do século XIX, havia uma novidade
consistente em que

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[...] os não-europeus e suas sociedades eram crescente e geral-
mente tratados como inferiores, indesejáveis, fracos e atrasados,
ou mesmo infantis. Eles eram objetos perfeitos de conquista, ou
ao menos de conversão aos valores da única e verdadeira civiliza-
ção [...] (HOBSBAWM, 2002, p. 118).

Entretanto, para ser eficaz, a ideologia da superioridade demandava


argumentos capazes de proporcionar o convencimento de sua veracidade.
Não cabe aqui adentrar a questão referente à formulação do conceito de
povo que, enquanto subproduto dos Estados-nação, forneceu importante
elemento ideológico que, ao lado do racismo colonial, permitiu legitimar o
imperialismo. Para os propósitos limitados desta análise, basta notar, se-
guindo Hardt e Negri (2001, p. 121), que “[...] os conceitos de nação, povo
e raça nunca estão muito separados. A construção de uma diferença racial
absoluta é o terreno essencial para a concepção de uma identidade nacional
homogênea,” ou seja, a constituição das nações, entendidas como “comuni-
dades imaginadas”, para utilizar o termo proposto por Benedict Anderson
(1991), que encontrou, no conceito de raça, um elemento capaz de operar
clivagens eficazes que estão na base da constituição da identidade nacional.
Ora, o Estado-nação opera, nesse contexto, como uma máquina de
produção de “outros”, fazendo que o africano, o ameríndio e o oriental apa-
reçam como contraponto negativo da identidade européia. O sujeito coloni-
zado surge, no imaginário europeu, como uma espécie de amálgama inde-
finido composto de tudo aquilo que, em geral, se opõe à civilização; dessa
forma, segundo Hardt e Negri (2001, p. 141), “[...] a construção negativa de
outros não europeus é, finalmente, o que funda e sustenta a própria iden-
tidade européia.” Esse processo, em meio ao qual a alteridade não é dada,
mas produzida, encontrará na antropologia nascente, quiçá, um dos mais
influentes mecanismos de sustentação. É nesse sentido que Hardt e Negri
(2001, p. 142) enfatizam que “[...] entre as disciplinas acadêmicas envolvidas
nessa produção cultural de alteridade, a antropologia foi, talvez, a rubrica

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mais importante, sob a qual o outro nativo foi importado para a Europa e
dela exportado.”
Ademais, é preciso considerar que a antropologia fornecia não ape-
nas um instrumento de grande valia para legitimar a expansão imperialis-
ta em seus respectivos contextos de origem, mas também uma ferramen-
ta importante para o exercício da dominação nos contextos coloniais, ou
seja, além de justificar as políticas expansionistas no âmbito das próprias
potências européias, a antropologia igualmente proporcionava aos agentes
coloniais conhecimentos úteis ao exercício da dominação. Assim, no que
concerne à ação colonizadora das potências européias, a antropologia do
século XIX se apresentava como um saber voltado à dominação, pois nes-
se contexto, como enfatiza Norbert Rouland (1988), conhecer melhor as
sociedades colonizadas não tinha outra finalidade senão a de dominá-las
de modo mais eficaz3. É por essa razão que Robert Weaver Shirley (1987)
e Norbert Rouland (1988 e 1995) ressaltam que a antropologia jurídica se
desenvolveu como uma espécie de subproduto do expansionismo imperial
do século XIX4.
Aliás, vale notar que o próprio desenvolvimento dessa área dependeu,
em certa medida, da existência da dominação colonial, que fornecia aos pes-
quisadores seu campo de observação e análise. Wendy James (1995) e Talal
Asad (1995), por exemplo, enfatizam a relação de dependência dos antro-
pólogos com os agentes coloniais, o que, segundo eles, acarretava uma situa­
ção duplamente ambivalente para a antropologia, no contexto da domina-
ção colonial. De um lado, havia ambivalência na relação entre a atuação dos
antropólogos, no que concerne à fundamentação de uma dominação, com a
qual eram instados a colaborar, mesmo discordando, e, de outro, diante dos
movimentos nacionalistas e revolucionários, essa disciplina, inicialmente
vista de modo positivo, paulatinamente passava a ser considerada conser-
vadora. Em razão dessa dupla ambivalência, explicam-se, segundo James
(1995), as acusações e suspeitas que recaem sobre a antropologia, durante o
período colonial, tendo como base as mais variadas instâncias.

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Assim, a relação da antropologia, em sentido genérico, com o proces-
so de colonização, decorrente da expansão imperialista européia, mostra-se
fundamental para que se compreendam não apenas as orientações concei-
tuais das primeiras escolas de antropologia jurídica, mas também o desen-
volvimento da antropologia enquanto disciplina5. A esse respeito, Rouland
(1988 e 1995) ressalta que a antropologia jurídica, como disciplina derivada
da história do direito, teria surgido na segunda metade do século XIX, ten-
do por base a atividade de alguns “pais fundadores”, que, nesse contexto,
teriam escrito sob o influxo de um contexto internacional marcado pela
dominação colonial, que teria fornecido às principais nações européias seus
respectivos campos de experimentação, sob os quais se fundariam as escolas
nacionais de antropologia. Assim, os chamados “pais fundadores” da antro-
pologia jurídica, tais como Henry J. Sumner-Maine, Johann Jakob Bachofen
e Lewis H. Morgan, são todos autores que escreveram num contexto de ex-
pressiva expansão imperialista dos Estados capitalistas europeus, o que, em
maior ou menor grau, repercute em suas obras6.
Ora, nesse contexto, a necessidade de conhecer os povos colonizados
para melhor dominá-los, expressão que Robert Weaver Shirley (1987) de-
nomina de “dimensão pragmática” da antropologia7, está tão estreitamente
relacionada à questão da colonização imperialista que é possível identificar,
inclusive, diferenças no desenvolvimento dessa disciplina conforme o perfil
diferente de cada tipo de colonização. Segundo Shirley (1987), a forma de
colonização imperialista britânica, que se caracterizava pela dominação in-
direta, demandava maior aceitação dos usos e costumes (inclusive jurídicos)
das populações dominadas. Isso fez com que, num primeiro momento, a an-
tropologia britânica se desenvolvesse muito mais que a francesa, uma vez que
a França tinha um perfil de colonização que era direto e visava à assimilação
dos povos dominados. Em sentido semelhante, Talal Asad (1995), ao compa-
rar o papel desempenhado pela antropologia, sobretudo no contexto africano,
com o do orientalismo, no que concerne às sociedades islâmicas, ressalta que
ambas as perspectivas teriam ajudado a justificar a dominação colonial.

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Dessa ligação entre antropologia e a colonização, decorrente, em
grande medida, da expansão imperialista dos Estados capitalistas europeus,
advêm três das principais características dessa área de estudo em seus pri-
meiros tempos. Contudo, conforme enfatiza Talal Asad (1995), apesar de
manter ligações irrefutáveis com o colonialismo, não é correto considerar
a antropologia apenas uma ferramenta da dominação colonial ou um sim-
ples reflexo da ideologia que dava esteio a essa dominação. A antropologia
moderna, enraizada que está na consciência burguesa, apresentou ao longo
de seu desenvolvimento contradições e ambigüidades que lhe permitiram
transcender suas determinações de origem.
É inegável que o saber antropológico serviu à dominação, sobretudo
durante o século XIX, porém não se limitou apenas a essa dimensão, pois
a relação entre antropologia e dominação colonial é complexa e ambígua e,
por isso, não se reduz apenas à simples instrumentalização da primeira pela
segunda. Malgrado essa relação esteja enraizada na assimetria inerente à
relação entre dominadores e dominados e na tendência de imprimir a visão
e a racionalidade ocidentais às demais sociedades, é preciso considerar que,
nem por isso, a antropologia foi um simples reflexo de uma situação de fato,
caracterizada por violência e espoliação. Ainda que tenha contribuído indi-
retamente para a dominação colonial, a antropologia, nesse período, tam-
bém se caracterizou por posturas críticas.8 Assim, o antropólogo, mesmo
que seja um “radical frustrado”, tal como o caracteriza Wendy James (1995),
não deixou de ser, em várias situações, um crítico da dominação colonial.

2 Aspectos constitutivos do campo de análise


e pesquisa da antropologia no século XIX

Ressaltou-se que da ligação entre antropologia e colonização decor-


rem algumas das principais características da antropologia em seus primei-
ros tempos. Aqui serão enfocados, sobretudo, três aspectos que, no contex-

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to do século XIX, podem ser definidos como constitutivos do campo de
análise e pesquisa da antropologia nascente, quais sejam: a) a idéia de um
campo de análise e pesquisa limitado ao estudo das “sociedades primitivas”
(sociedades sem Estado); b) a perspectiva evolucionista, que era baseada no
pressuposto etnocêntrico da superioridade da sociedade ocidental sobre as
demais; c) o caráter instrumental da disciplina que, ao fornecer, ainda que
indiretamente, bases para a dominação colonial, constituiu-se num saber
voltado à “gestão de populações”.
Trata-se de aspectos constitutivos do campo da antropologia no sécu-
lo XIX, mutuamente relacionados, de modo que o saber voltado ao estudo
dos povos primitivos e carregado de carga etnocêntrica, que se expressava
na perspectiva evolucionista, forneceu ferramenta importante para a im-
plementação da dominação colonial, indicando, assim, a convergência, res-
saltada pelo antropólogo Benoît de L’Estoile (2002), entre a “racionalidade
científica” e a “racionalidade administrativa”. Para fins didáticos, será anali-
sado, em linhas bastante gerais, cada um desses aspectos que, mutuamente
articulados, fornecem um quadro característico do que foi a antropologia
em seus primeiros tempos.

2.1 A antropologia como estudo das “sociedades primitivas”

No que concerne ao primeiro aspecto, é preciso ressaltar que, origi-


nalmente, a antropologia apresentava um campo de análise e de pesquisa
marcado por contornos bastante precisos, o que a diferenciava das outras
ciências do homem – a sociologia, por exemplo, ou seja, conforme comu-
mente enfatizam os antropólogos,

[...] na divisão do trabalho entre as ciências sociais, a antropo-


logia especializou-se na descrição e na classificação de grupos
sociais freqüentemente tidos como primitivos, atrasados, mar-

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ginais, tribais, subdesenvolvidos ou pré-modernos, definidos
por sua exterioridade e alteridade em relação ao mundo dos an-
tropólogos, ele próprio definido pela civilização, pela ciência e
pela técnica. (L’ESTOILE; NEIBURG; SIGAUD, 2002, p. 9).

Essa “especialização” da antropologia no estudo dos chamados “povos


primitivos” expressa uma das delimitações que o contexto de nascimento dessa
disciplina impôs ao seu campo de análise e pesquisa. A esse respeito, Norbert
Rouland (1988 e 1995) enfatiza que Auguste Comte, em seu Cours de philoso-
phie positive, por exemplo, distinguia a antropologia da sociologia, destacando
justamente que a primeira se referiria às sociedades pré-modernas, enquanto
a segunda estaria direcionada à análise das sociedades modernas que, nesse
sentido, apareceriam como horizonte da antropologia, cujo objeto de estudo
estaria adstrito às sociedades exóticas, tradicionais, pré-modernas.
Esse aspecto referente à ligação da antropologia com a expansão im-
perialista engendrou, posteriormente, problemas de definição do próprio
campo de análise dessa disciplina, pois, como estava ligada, na sua origem,
à idéia de estudar os “povos primitivos” para fornecer um saber que servisse
de instrumento à dominação em contextos coloniais, tornou-se questionável
a possibilidade de extensão do seu campo de análise e pesquisa com vistas a
abranger as sociedades modernas. Esse aspecto se tornou ainda mais acen-
tuado no contexto pós-colonial, no qual, como decorrência da desintegração
dos grandes impérios coloniais, houve diminuição do interesse por outros
povos que se traduziu, inclusive, no decréscimo dos financiamentos para
as pesquisas em campos longínquos. Com base nisso, segundo L´Estoile,
Neiburg e Sigaud (2002), os antropólogos começaram a voltar sua atenção
para o “patrimônio etnológico” das sociedades modernas. Nesse contexto,
tornou-se significativa a questão de como delimitar o campo de análise e
pesquisa da antropologia diante da sociologia.
Essa espécie de “crise de identidade” da antropologia, decorrente da
delimitação de seu campo de pesquisa ao estudo dos “povos primitivos”,

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fez-se notar em diversos momentos, a ponto de se tornar “moda” postular
o declínio dos estudos antropológicos em decorrência do desaparecimento
de seu objeto. Claude Lévi-Strauss (2003), por exemplo, chegou a ressaltar
que, para além do próprio desaparecimento físico dos chamados “povos pri-
mitivos”, a própria transformação das sociedades tradicionais, em razão de
sua rápida assimilação ao mundo ocidental, os levaria para além da alçada
da pesquisa antropológica. Isso denota a permanência da estreita delimita-
ção do campo de pesquisa da antropologia ao estudo dos povos primitivos.
É certo que se observa hoje uma expansão do campo de análise e
pesquisa antropológica para além dos limites das sociedades denominadas
“primitivas”, “tradicionais”, “exóticas” etc. (DELIÈGE, 1995). A precisa de-
limitação do campo da antropologia ruiu diante de um processo contínuo
de expansão rumo ao domínio outrora pertencente à sociologia – as socie-
dades modernas. Assim, não faz mais sentido compreender a antropologia,
de um modo geral, e a antropologia jurídica, em particular, como perspec-
tivas cujo campo de análise e pesquisa esteja adstrito ao estudo das socie-
dades denominadas “tradicionais”, “exóticas” ou “primitivas”. Seu campo de
análise se expandiu e diversificou de tal modo – num processo progressivo
de superação das determinações que lhe foram impostas por seu contexto
de nascimento – que seus contornos se tornaram tênues e, muitas vezes,
pouco perceptíveis, sobretudo quando se pretende delimitá-lo em relação ao
campo de análise da sociologia. É nesse sentido, que Jean Copans (1988, p.
15) enfatiza que “[...] a antropologia já não é a ciência provinciana das socie-
dades exóticas e folclóricas, tal como foi freqüentemente considerada.”

2.3 Evolucionismo como expressão de um pressuposto


etnocêntrico

A origem evolucionista da antropologia jurídica, que se relaciona estrei-


tamente com a questão da dominação, também é uma expressão dos proble-

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mas decorrentes da vinculação da antropologia à colonização. Como ressalta-
do, a antropologia moderna se constituiu no contexto da conquista colonial do
séc. XIX e tem como pano de fundo, por exemplo, a partilha da África pelas
potências européias. Nesse contexto, conforme ressalta Copans (1988), houve
uma afinidade bastante clara entre a relação de subjugação dos povos “não-
europeus” (note-se que esse próprio termo já é carregado semanticamente de
uma desqualificação dos outros povos que são tomados como contrapartida
negativa da “civilização européia”) pelo “messianismo ocidental”, típico do fim
do século XIX, e as teorias evolucionistas que, fundadas em concepções etno-
cêntricas, forneceram a base ideológica para legitimar essa dominação.
É possível, portanto, enxergar nas perspectivas evolucionistas a ex-
pressão de uma postura etnocêntrica que perpassa a relação do colonizador
europeu com os povos colonizados, fundamentando, discursivamente, sua
assimetria. É nesse sentido que

[...] a descoberta intelectual das sociedades ‘não européias’ colo-


ca, pois, em foco a diversidade das formas sociais de pensamento
e de comportamento e a das instituições correspondentes. Mas
é difícil, a princípio, separar a abordagem científica da aborda-
gem ideológica ou moral desse fenômeno. A reação instintiva do
Ocidente face aos povos exóticos é o etnocentrismo, que, implí-
cita ou mesmo explicitamente, ajuíza das sociedades ‘não euro-
péias’ pelo modelo europeu. (COPANS, 1988, p. 14).

Note-se, entretanto, que, enquanto expressão de posturas etnocên-


tricas, as concepções evolucionistas limitaram a constituição do campo de
análise e pesquisa da antropologia geral, e da jurídica, em particular, pois
as mantiveram presas a categorias analíticas problemáticas, tais como as de
“raça” e “evolução unilinear”. Isso fez com que a antropologia se conservas-
se presa a pressupostos etnocêntricos, tornando-se incapaz de apreender
adequadamente a diversidade cultural e as especificidades de cada socie-

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dade. Nesse sentido, a antropologia do século XIX deixou de ser um saber
propriamente científico para tornar-se ideologia, com todo o cuidado que a
utilização desse conceito demanda.

2.4 Saber instrumental voltado à “gestão de populações”

A antropologia evolucionista do século XIX – enquanto saber volta-


do ao estudo dos “povos primitivos” e baseada no pressuposto etnocêntrico
de que as sociedades ocidentais (entendam-se por tais, sobretudo, as socie-
dades européias) seriam qualitativamente superiores às demais, pois cons-
tituiriam o desfecho de um processo evolutivo unilinear pautado por eta-
pas sucessivas de desenvolvimento – forneceu, segundo Norbert Rouland
(1988) e François Laplantine (2006), uma justificação teórica para o exer-
cício da dominação colonial, ou seja, conforme Claude Rivière (2004, p.
34-35), “[...] situado na história, o discurso antropológico não é inocente:
numa determinada conjuntura colonial, ele é o discurso do explorador, do
missionário, do administrador, do jurista, o que em nada afeta a competên-
cia e a perspicácia de alguns dentre eles.”
A ligação da antropologia com a expansão colonial, que a tornou, em
última instância, “[...] filha de uma era de violência [...]” (LÉVI-STRAUSS,
2003), fez com que apresentasse, em seus primeiros tempos, uma dimen-
são nitidamente instrumental ou pragmática, que se expressava tanto na
fundamentação discursiva da dominação imperialista das nações européias
quanto no fornecimento de um repositório de conhecimento sobre as so-
ciedades coloniais que servia para tornar mais eficaz a dominação. É nesse
sentido que os antropólogos L´Estoile, Neiburg e Sigaud (2002) enfatizam
que haveria uma espécie de “afinidade eletiva”9 (e, portanto, não uma rela-
ção mecânica de causa e efeito) entre a produção do conhecimento antro-
pológico e a administração colonial. Essa “afinidade eletiva” se expressaria
justamente na imbricação recíproca do saber dos antropólogos com a domi-

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nação colonial, ou seja, a administração colonial apoiaria o desenvolvimen-
to de instituições acadêmicas especializadas na produção de saber sobre as
populações nativas – tais como museus, expedições etnográficas, departa-
mentos universitários e institutos de pesquisa –, e os antropólogos, apesar
de muitas vezes manterem posturas críticas em relação às atividades de seus
Estados de origem, forneceriam conhecimentos que, em última instância, se
prestariam à validação das políticas coloniais.
É justamente por isso que a antropologia do século XIX poderia ser
descrita, em linhas gerais, como uma espécie de saber voltado à “gestão de
populações”, uma vez que se teria prestado à fundamentação do governo, à
administração e ao controle dos povos colonizados.

3 Considerações finais

Este artigo procurou indicar os condicionamentos exercidos pelo con-


texto do século XIX na constituição do campo de análise e pesquisa da an-
tropologia jurídica sem a pretensão obvia de fazer um apanhado exaustivo,
e buscou demonstrar que a antropologia jurídica do século XIX, tal como
enfatiza Norbert Rouland (1988), teria sido um instrumento que serviu aos
propósitos da colonização (o que, de resto, se aplica a todo o saber antro-
pológico desse período). Nesse sentido, procurou-se demonstrar, inclusive,
que a própria especialização inicial da antropologia no estudo de “povos
primitivos” só foi possível

[...] porque tais grupos já se encontravam submetidos ou em


processo de submissão aos estados nacionais ou imperiais mo-
dernos, e eram objeto de políticas que compreendiam desde a
preservação e a proteção até programas de transformação so-
cial planificada e, também, políticas repressivas. (L’ESTOILE,
NEIBURG E SIGAUD, 2002, p. 9).

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Diante disso, a antropologia do século XIX apresentou a nítida pre-
valência de uma dimensão instrumental, voltada à gestão de populações, a
partir de uma visão etnocêntrica que as desqualificava como “primitivas”. É
certo que, ao longo de seu desenvolvimento, essa área do saber foi-se afas-
tando progressivamente dessas características de origem, de modo que su-
perasse as determinações de seu contexto de formação. Entretanto, não se
pode desconsiderar que, tendo nascido numa época marcada pela domi-
nação e pela espoliação decorrentes da dominação colonial, a antropologia
(de uma maneira geral, e a jurídica, em particular) reforçou as relações de
assimetria que o Ocidente impingiu a outros povos. Assim, se o saber an-
tropológico, de um lado, forneceu uma visão mais objetiva dos fenômenos
humanos, por outro, é preciso notar que isso se deu, conforme bem o res-
salta Claude Lévi-Strauss, a partir de uma relação em que uma parte da
humanidade se arrogou o direito de tratar a outra como objeto10.

The constitution of legal anthropology’s


analysis and research field
The article intends to carry through a synthetic analysis of the con-
stitution of legal anthropology’s analysis and research field in the
XIX century, emphasizing its relation with imperialism and colo-
nialism.
Key words: Colonialism. Imperialism. Legal anthropology.

Notas
1 Segundo Hardt e Negri (2001, p. 12), “[...] a transição para o Império surge do crepús-
culo da soberania moderna. Em contraste com o imperialismo, o Império não estabelece
um centro territorial de poder, nem se baseia em fronteiras ou barreiras fixas.”
2 Nesse ponto, a análise de Hobsbawm (2002) diverge significativamente da de Ferro
(1996), para quem a “bulimia territorial”, que caracteriza a febre expansionista do impe-
rialismo europeu do século XIX, não seria um fenômeno novo, e sim um comportamen-
to que já se teria manifestado bem antes da era do imperialismo.

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3 Referindo-se ao saber antropológico do século XIX, Norbert Rouland (1988, p. 36)
ressalta que “[...] mieux connaître les sociétés traditionnelles n’aurait servi qu’à mieux les
dominer [...].”
4 A esse respeito, Norbert Rouland (2003, p. 70-71), referindo-se à antropologia jurídica,
enfatiza que “[...] podemos encontrar-lhe precedentes na Antiguidade e na época moderna,
assim como entre os autores e os viajantes árabes da Idade Média. Mas ela nasce realmente
no final do século XIX, em pleno triunfo tecnológico e cultural do Ocidente: a Revolução
Industrial se propaga na Europa, e a colonização se estende na África e na Ásia.”
5 Ao referir-se à antropologia qualificada como jurídica, Jacques Vanderlinden (1996, p.
36) ressalta que “[...] la qualification juridique se situe alors sur le même plan que d´autres
adjectifs, par exemple, culturelle, économique, politique ou sociale, pour définir un comparti-
ment particulier de ce savoir global que serait l´anthropologie [...]”
6 Análises introdutórias acerca do pensamento dos “pais fundadores” da antropologia
jurídica podem ser encontradas em Rouland (1988, 1995 e 2003) e em Vanderlinden
(1996).
7 Shirley (1987) considera que a antropologia moderna seria caracterizada por três as-
pectos: o pragmático, o romântico e o científico. O aspecto pragmático seria justamente
aquele que se relaciona com a dominação colonial.
8 A esse respeito, Rouland (1995, p. 17-18) ressalta que “[...] bien qu´il ait pu servir à justi-
fier le colonialisme, l´évolutionnisme unilinéaire ne manque pas de grandeur. [...] Dès la fin
du XIXe siècle, s’élèvent les premières critiques.”
9 A utilização do termo “afinidade eletiva” para tratar da relação entre antropologia e co-
lonialismo serve aos autores para ressaltar a base weberiana da análise por eles proposta.
Como se sabe, Weber, em seu célebre livro intitulado A ética protestante e o espírito do
capitalismo (2004), ressalta justamente a relação não-causal, mas de afinidade entre a
Reforma e o Capitalismo.
10 Segundo Lévi-Strauss, “[...] l’anthropologie est fille d’une ère de violence; et si elle s’est rendue
capable de prendre des phénomènes humains une vue plus objective qu’on ne le fasait auparavant,
elle doit cet avantage épistémologique à un état de fait dans lequel une partie de l’humanité s’est
arrogé le droit de traiter l’autre comme un objet.” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 69).

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recebido em 3 nov. 2007 / aprovado em 19 nov. 2007


Para referenciar este texto:
BÔAS FILHO, O. V. A constituição do campo de análise e pesquisa da
antropologia jurídica. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 333-349, 2007.

Prisma Jurídico, São Paulo, v. 6, p. 333-349, 2007. 349

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