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INTRODUÇÃO
Marginalidade e capitalismo
A marginalidade está articulada com a dinâmica de acumulação de capital, onde as camadas
populares são rotuladas de acordo com sua integração na divisão social do trabalho. Sendo assim, o
advento deste fenômeno aparece como integrante ao desenvolvimento capitalista, ele é resultado das
contradições geradas pelo processo de acumulação. Nos países periféricos, a marginalidade se
apresenta de forma diferenciada, pois:
“o capitalismo da região desenvolve-se transformando pequena parcela da força de trabalho em
trabalhadores assalariados; ao se desenvolver, libera parte da mão-de-obra vinculada às relações de
produção tradicionais, que não consegue se transformar em assalariada. Mas essa liberação não é
aleatória. Ela é criada com a intensificação do processo industrial.”1
O processo de industrialização nas sociedades dependentes é direcionado para atender as
necessidades do capital estrangeiro; deixando à margem do modo produção hegemônico uma grande
parcela da força de trabalho “presentes em boa parte das atividades integrantes do setor terciário (...)
além dos desempregados, das várias formas de subemprego”.2
Uma fração destes desempregados vai atuar para estatização dos salários e para inibir as ações
do proletariado, compondo o que o marxismo chama de exército industrial de reserva. Interagindo com
o sistema de forma periférica, através de formas alternativas de sobrevivência. Assim sendo, os
marginais são funcionais e participam das relações econômicas perifericamente, favorecendo assim a
acumulação de riquezas.
1
Kowarick, Lucio. Capitalismo e Marginalidade na América Latina.RJ, Paz e Terra, 1975, p.61.
2
Idem, ibidem, p.61.
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como necessidades gerais. Nos seus discursos, o interesse e a vontade exprimem-se, ou traem-se sob a
forma de algum princípio abstrato ou alguma razão de força maior”.3
O meio pelo qual a população fica a parte dos conflitos sócio-econômicos se dá através da
ideologia dominante. Porém o mesmo não fornece um verdadeiro conhecimento da estrutura às classes
dominadas, pois tem “a função precisa de escamotear o conflito, escamotear a dominação, escamotear
o ponto de vista particular, dando-lhe a impressão de ser o ponto de vista universal”. 4
O discurso ideológico dominante ganha pressupostos legais ao implementar crimes ideológicos
metamorfoseados em crimes políticos. Com o agravamento das contradições sócio-econômicas
verificamos seus efeitos no campo criminal, Consagrando no código penal a punição para os
transgressores dos valores ideológicos hegemônicos.
“As contradições do capitalismo explicam que o mesmo processo vincula o trabalhador no
trabalho (aceitando a brutalização de sua canga pessoal), dirige o desempregado para o crime
(aceitando os riscos da criminalização): a necessidade de sobrevivência em condições de privação(...)o
sistema de controle do crime atua sobre o segmento da força de trabalho excedente (a proteção do
cidadão honesto, o combate ao crime nas ruas, etc., legitima a coação do Estado), mas o objeto real é a
disciplina da força de trabalho ativa”·
O conceito jurídico de marginalidade social considera apenas as conseqüências das condições
sociológicas vivenciadas pelo objeto em questão, sem analisar o processo que leva a tais
conseqüências. Há uma criminalização da classe marginal, pois o poder público começa a persegui-los
antes mesmo da consumação do ato delituoso. Visto que a conduta de mendigos, vagabundos e
prostitutas são foco de particular preocupação do Estado. Esta tendência acontece em todas as
sociedades capitalistas, como nos demonstra o direito francês:
“Para poder punir o vagabundo é necessário estabelecer sua culpabilidade, isto é provar
que ele está sem domicílio, sem recursos e sem profissão e, exclusivamente por sua culpa. O que
5
a lei reprime na vadiagem é a adoção voluntária de um gênero de vida socialmente perigoso.”
3
Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização. SP, Cia das Letras, 1992, pp.194-195.
4
Chauí, Marilena. Crítica e Ideologia. Rio de Janeiro, CEAF, 1978, pp. 22.
5
Imput Abreu, Waldyr de. O Submundo do Jogo de Azar, Prostituição e Vadiagem. RJ, Freitas Bastos, 1984, p.173.
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aparelho repressivo e ideológico, punindo severamente a pobreza, sendo estes os recursos pelos quais o
poder público interage com os despossuídos dos meios de produção.
O século XIX foi marcado por diversas transformações econômicas e sociais no Brasil. Além da
passagem da monarquia para a República, assistimos o fim do regime escravocrata de produção e a
organização da economia capitalista. Estas mudanças resultaram em uma legislação contundente com a
nova ordem econômica, a qual colocava a população rotulada de vadia como marginal perante os novos
padrões comportamentais.
Para o êxito do capitalismo, foi de vital importância a metamorfose da mão-de-obra escrava
para assalariado, isto é, transformar o negro em trabalhador livre e expropriado. Do mesmo modo, se
promoveu a privatização dos meios de produção, mais especificamente a concentração da posse da
terra e do lucro entre a elite latifundiária.
Primeiramente, o poder público regulamenta a posse das propriedades aos latifundiários através
da Lei de Terras de 1850. Esta transformava a terra em uma mercadoria de compra e venda e elevou o
seu preço a tal custo que a tornou inacessível aos trabalhadores, por eles não terem condições
financeiras de aquisição, garantindo assim a mão-de-obra rural. Ou seja, com a abolição da escravatura
alterou-se a relação de trabalho, no entanto o modelo de propriedade rural, o latifúndio, teve sua
manutenção garantida através desta lei.
O processo de industrialização não acompanhou no mesmo ritmo as transformações do mundo
do trabalho. No novo regime, quem detinha o poder político eram as oligarquias cafeeiras, por
investirem prioritariamente no setor primário, a indústria foi relegada. O negro livre, chegando ao
centro do Rio de Janeiro, não foi absorvido pelas novas profissões que a industrialização
proporcionaria, com efeito, não se tornou um operário e se viu na condição de desempregado.
Desamparados pelo poder público e de apoio do restante da sociedade, o liberto se viu
responsável por si e pelos seus dependentes sem ter condições materiais para cumprir esta tarefa. O
poder político desprezou o drama material e moral que o negro sofria, deixando-os livres para viverem
nas penosas condições que poderiam criar para si e para os seus dependentes nas novas condições
sócio-econômicas. Fato este retratado por Florestan Fernandes:
“A abolição teve um significado legal, o mundo dos brancos perpetuou-se como realidade
contrastante ao mundo dos negros. Este continuou a existir a margem da história, sofrendo a
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6
Fernandes, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. SP, Ática, 1978, p.23.
7
Chalhoub, Sdney. Trabalho, Lar e Botequim. SP, Brasiliense, 1986, p.49.
8
Idem, ibidem, p.43.
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Tal esquema não encaixava a população que não se articulou as novas relações de produção.
Construíram formas autônomas de sobrevivência, exerciam subempregos que não eram reconhecidos
pelo aparato público por afetar a moral estabelecida. Assim, oscilavam entre a legalidade e a
ilegalidade. Ambulantes, trapeiros, ratoeiros, entre outras situações de subempregos, eram os que mais
apareciam nas estatísticas criminais.
Este quadro despertou à preocupação do poder público, pois colocava novamente em perigo a
ordem pública. As pessoas que não eram absorvidas pelo modo de produção hegemônico transitavam
pela cidade sem alguma ocupação contundente com a nova ideologia vigente. O que afetava a
perpetuação da lógica capitalista, devido à ameaça que a mão-de-obra ociosa representava. Nesta
conjuntura surgiu um novo personagem na capital da República: o vagabundo.
O Cotidiano da Vadiagem
A identidade marginal do vagabundo é fruto do desenvolvimento do capitalismo, visto que este
proporcionou o advento desse personagem ao causar a exclusão de uma vasta parcela de mão-de-obra
do processo produtivo hegemônico.
A sub-classe trabalhadora vagava pelas ruas do centro exercendo atividades que ofendiam os
novos valores da ideologia capitalista, muitas vezes cometiam pequenos delitos, ocasionando o
desordenamento do espaço público da cidade. Era alvo do aparato repressivo do Estado, que reprimia
os vadios e desordeiros que agrediam o ordenamento social. Como afirma Engels:
“A necessidade deixa ao trabalhador a escolha entre morrer de fome lentamente, matar a si
próprio rapidamente, ou tomar o que ele precisa onde encontrar – em bom inglês, roubar. E não há
motivo para surpresa de que muitos dentre eles prefiram o roubo à inanição ou ao suicídio.”9
Muitos dos supostos vagabundos estavam na verdade repletos de ocupações. Eles retiravam do
cisco, do que é jogado fora, o seu sustento. Transformavam o inútil, o lixo, em meio de subsistência.
Exemplos dessa categoria de trabalho são:
Os caçadores – caçavam gatos de rua para venderem aos restaurantes já mortos e sem pele, que
os serviam como carne de coelho; os sabidos - procuravam nos lixos botas e sapatos velhos para
venderem aos sapateiros, que os consertavam e vendiam em suas sapatarias; os selistas – passavam os
dias próximos às charutarias, procurando nas calçadas selos de cigarros e charutos para venderem as
charutarias, as quais colocavam em uma marca barata o selo de uma marca cara; os ratoeiros – eram os
9
Imput: Georg e Kirchheimer. Punição e Estrutura Social, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1999, p. 28.
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negociantes de rato. Andavam pelos locais onde viviam as classes populares tocando uma corneta para
avisar aos seus clientes de sua chegada. Então, apareciam as pessoas que realmente caçavam os ratos
para vender-lhes. Após a compra, eles os revendiam a Diretoria de Saúde a um custo maior.10
Na perspectiva da ideologia hegemônica essas atividades eram ilícitas, uma vez que se
sustentavam de forma desonesta ou agressiva da moral e dos bons costumes. Fato este que enquadrava
os sub-trabalhadores no artigo 399 do Código Penal de 1890, que tratava sobre a vadiagem. No entanto,
essas ocupações eram a forma pela qual o exército de excluídos conseguiu sobreviver diante do quadro
de miserabilidade destinado a estes pela nova ordem econômica.
10
Sobre o cotidiano das classes perigosas, vê: Rio, João: A Alma Encantadora das Ruas. RJ, Simões,1951.
11
Anais da Câmera dos Deputados, RJ, 1888,p. 273.
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‘Art. 399. Deixar de exercer profissão, offício, ou qualquer mistêr em que ganhe a vida,
não possuindo meio de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a subsistência por
meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes:’
14
‘Pena – de prisão cellular por quinze a trinta dias.’”
12
Jornal Reacção, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1902.
13
Anais da Câmera, op. cit., p. 296.
14
Pierangelli, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. São Paulo, Jolavi, 1980, p. 316.
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Assim, passou ser alvo da repressão policial aquele que não obtinha meios que reproduzissem
sua vida material e que não possuía moradia. Do mesmo modo era punido por exercer formas
alternativas de subsistência, uma vez que estava à margem das relações de produção dominante.
O vagabundo se tornou criminoso por ser contrário a ética do trabalho, a prisão servia para
punir aqueles que não exerciam esta ocupação que enobrecia o homem. O intuito da prisão era obrigar
a população ao trabalho, como declarava o primeiro inciso do artigo 399:
“1º Pela mesma sentença que condenar o infrator como vadio, ou vagabundo, será ele
obrigado a assignar termo de tomar ocupação dentro de quinze dias, contados do cumprimento da
15
pena.”
A polícia, geralmente, não respeitava tal prazo. Visto que nas operações destinadas a “varrer”
das ruas os vagabundos, eles eram recolhidos e levados novamente a prisão pela mesma infração que
acabavam de obter a liberdade, não se cumprindo assim o prazo de 15 dias.
Já no segundo inciso, o poder público assumia a tarefa de ensinar o valor do trabalho para os
condenados entre quatorze e vinte um anos de idade. Assim, os presos aprenderiam a cumprir o seu
dever nas novas relações sócio-econômicas.
“2º Os maiores de quatorze serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes,
16
onde poderão ser conservados até a idade de 21 anos.”
A deportação ao imigrante que fosse preso como vadio, era contundente com a mentalidade da
elite em relação à força de trabalho estrangeira. Pois, almejavam fazer do imigrante o exemplo de
trabalhador assalariado. Se o imigrante não cumpria a pretensão do Estado, perdia sua função social,
passando a representar um mau exemplo para classe trabalhadora.
Outra relação enunciada pelo Projeto de Repressão a Ociosidade, e legitimada pelo Código
Penal, abordava à articulação entre pobreza e vadiagem. Tal relação foi afirmada no artigo 401:
15
Idem, ibidem, p. 316.
16
Idem, ibidem, p. 316.
17
Idem, ibidem, p. 317.
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“‘Art. 401 – A pena imposta aos infratores, a que se referem os artigos precedentes, ficará
extinta se o condenado provar superveniente aquisição de renda bastante para sua subsistência; e
suspensa, se apresentar fiador idôneo que por ele se obrigue.’
A contravenção da vadiagem é peculiar porque o réu era culpado pela suposição de que ele
fosse recorrer a meios ilícitos para se manter, penalizava-se a suposição e não um ato delituoso em si.
Sua presença nos centros urbanos poderia influenciar os trabalhadores ativos, vinculados a novas
relações econômicas. Nesta perspectiva, adquiriu sentido a punição de um modo de vida anti-social que
induzia ameaça a acumulação.
As operações policiais, popularmente denominadas de canoa, varriam as ruas da cidade a
procura das classes perigosas.19 Só no dia três de agosto de 1902 foram presos 18 vagabundos,
conforme demonstram os registros da Casa de Detenção.20 A polícia cumpria a sua função, protegendo
a propriedade, defendendo os interesses dos donos dos meios de produção. Mantendo a ordem nos
becos onde habitavam a classe marginalizada. Esta se mantinha alerta esperando a ação repressiva do
Estado, como retrata um trecho de um lundu popular da época:
“Eu vivo triste como sapo na lagoa
O poder público, além de não elaborar nenhum projeto que visasse a integração do vadio à
sociedade, empregou seu aparato repressivo para combater severamente a pobreza. Seria então a
criminalização da miséria, através da repressão e violência, a forma que o Estado encontrou para coibir
os vagabundos a agirem conforme as novas regras sócio-econômicas.
CONCLUSÃO
18
Idem, ibidem, p. 317.
19
Sobre a atuação da polícia, vê: Bretas, Marcos Luiz. A Guerra das Ruas. RJ Arquivo Nacional, 1997.
20
Fundo Casa de Detenção. 1902, APERJ.
21
Rio, João do, op. cit., p. 186.
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apareceu como fator criminógeno aos pobres por ser inversa ao dever social que este segmento da
população estava destinado, ou seja, o trabalho assalariado. Como não estavam enquadrados na
condição do assalariamento, passaram a representar uma ameaça a acumulação de capital, pois eram
marginais ao processo produtivo dominante.
Os meios alternativos de subsistência são estruturais ao capitalismo. A força de trabalho
excedente, isto é, o exército industrial de reserva, por ter sido excluída do processo produtivo
hegemônico, passou a exercer meios alternativos de sobrevivência. Estes então surgiram como uma
reação dos marginais a essa exclusão, e foi através dessa prática que se articularam perifericamente à
acumulação de capital. Desse modo, a vadiagem como ato delituoso, legitimado pelo Código Penal de
1889, passou a ser um crime por ferir o âmbito geral da distribuição dos padrões comportamentais
aceitos dentro do organismo social.