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Anpuh Rio de Janeiro

Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ


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VADIAGEM E CRIMINALIZAÇÃO: A FORMAÇÃO DA MARGINALIDADE


SOCIAL DO RIO DE JANEIRO DE 1888 A 1902

Marina Vieira de Carvalho


Pós-graduanda da Universidade Federal Fluminense

INTRODUÇÃO

O advento da vadiagem como fator criminógeno, se articulou as transformações ocorridas na


sociedade brasileira em sua conjuntura histórica de desenvolvimento do capitalismo dependente. A
abolição da escravatura, o êxito rural o processo de industrialização, a urbanização entre outros
processos, foram fatores que caracterizaram tal desenvolvimento. Sendo privilegiada nesta pesquisa o
período de 1888 a 1902. O centro da cidade do Rio de Janeiro é o cenário escolhido para análise das
conseqüências destes fatos, onde verificamos a gênese e a cristalização da marginalização da pobreza.
Os objetivos abordados por esta pesquisa privilegiam: a dinâmica das relações sócio-produtivas
que levam a gênese da marginalidade social, o processo histórico do qual resulta o aparecimento do
“vadio”, o cotidiano dos supostos vagabundos; o modo como eram vistos pela sociedade; a forma pela
qual o Estado se comunicou com estes; e a forma peculiar de inserção na nova divisão social do
trabalho. Tal estudo se enquadra no domínio da história social, visto que sua problemática coloca em
análise as ações dos homens comuns e os micro-conflitos sociais do cotidiano.
A cristalização da ideologia dominante ofusca a percepção das tensões e dinamicidade
provenientes da realidade histórico-social em que os conceitos são construídos. A escolha do
vagabundo como objeto de análise deste estudo, torna-se significativa para a compreensão dos valores
difundidos em nossa sociedade. Visto que, através deste novo criminoso criado pela acumulação
capitalista, verificamos como o poder público atuou para o controle dos despossuídos dos meios de
produção e como consolidou a ideologia que marginaliza os excluídos dos benefícios do sistema.
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 2

O ADVENTO DA MARGINALIDADE SOCIAL

Marginalidade e capitalismo
A marginalidade está articulada com a dinâmica de acumulação de capital, onde as camadas
populares são rotuladas de acordo com sua integração na divisão social do trabalho. Sendo assim, o
advento deste fenômeno aparece como integrante ao desenvolvimento capitalista, ele é resultado das
contradições geradas pelo processo de acumulação. Nos países periféricos, a marginalidade se
apresenta de forma diferenciada, pois:
“o capitalismo da região desenvolve-se transformando pequena parcela da força de trabalho em
trabalhadores assalariados; ao se desenvolver, libera parte da mão-de-obra vinculada às relações de
produção tradicionais, que não consegue se transformar em assalariada. Mas essa liberação não é
aleatória. Ela é criada com a intensificação do processo industrial.”1
O processo de industrialização nas sociedades dependentes é direcionado para atender as
necessidades do capital estrangeiro; deixando à margem do modo produção hegemônico uma grande
parcela da força de trabalho “presentes em boa parte das atividades integrantes do setor terciário (...)
além dos desempregados, das várias formas de subemprego”.2
Uma fração destes desempregados vai atuar para estatização dos salários e para inibir as ações
do proletariado, compondo o que o marxismo chama de exército industrial de reserva. Interagindo com
o sistema de forma periférica, através de formas alternativas de sobrevivência. Assim sendo, os
marginais são funcionais e participam das relações econômicas perifericamente, favorecendo assim a
acumulação de riquezas.

A cristalização da marginalidade: o papel da ideologia e o conceito jurídico

Em termos marxistas, a ideologia, estruturada nos hábitos culturais e sociais consolidados no


espaço e no tempo histórico, legitima os interesses da classe dominante, apresentando-os como se
fossem as vontades gerais da sociedade, através de um discurso sedutor e lacunar.
“O núcleo temático de A Ideologia Alemã, que Marx e Engels escrevem em 1846 expõe a
relação íntima que as representações de uma sociedade mantêm com sua realidade efetiva. (...) A
ideologia compõe retoricamente (isto em registro de persuasão) certas motivações particulares e as dá

1
Kowarick, Lucio. Capitalismo e Marginalidade na América Latina.RJ, Paz e Terra, 1975, p.61.
2
Idem, ibidem, p.61.
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 3

como necessidades gerais. Nos seus discursos, o interesse e a vontade exprimem-se, ou traem-se sob a
forma de algum princípio abstrato ou alguma razão de força maior”.3
O meio pelo qual a população fica a parte dos conflitos sócio-econômicos se dá através da
ideologia dominante. Porém o mesmo não fornece um verdadeiro conhecimento da estrutura às classes
dominadas, pois tem “a função precisa de escamotear o conflito, escamotear a dominação, escamotear
o ponto de vista particular, dando-lhe a impressão de ser o ponto de vista universal”. 4
O discurso ideológico dominante ganha pressupostos legais ao implementar crimes ideológicos
metamorfoseados em crimes políticos. Com o agravamento das contradições sócio-econômicas
verificamos seus efeitos no campo criminal, Consagrando no código penal a punição para os
transgressores dos valores ideológicos hegemônicos.
“As contradições do capitalismo explicam que o mesmo processo vincula o trabalhador no
trabalho (aceitando a brutalização de sua canga pessoal), dirige o desempregado para o crime
(aceitando os riscos da criminalização): a necessidade de sobrevivência em condições de privação(...)o
sistema de controle do crime atua sobre o segmento da força de trabalho excedente (a proteção do
cidadão honesto, o combate ao crime nas ruas, etc., legitima a coação do Estado), mas o objeto real é a
disciplina da força de trabalho ativa”·
O conceito jurídico de marginalidade social considera apenas as conseqüências das condições
sociológicas vivenciadas pelo objeto em questão, sem analisar o processo que leva a tais
conseqüências. Há uma criminalização da classe marginal, pois o poder público começa a persegui-los
antes mesmo da consumação do ato delituoso. Visto que a conduta de mendigos, vagabundos e
prostitutas são foco de particular preocupação do Estado. Esta tendência acontece em todas as
sociedades capitalistas, como nos demonstra o direito francês:
“Para poder punir o vagabundo é necessário estabelecer sua culpabilidade, isto é provar
que ele está sem domicílio, sem recursos e sem profissão e, exclusivamente por sua culpa. O que
5
a lei reprime na vadiagem é a adoção voluntária de um gênero de vida socialmente perigoso.”

Assim, a classe dominante criminaliza a classe desfavorecida para coibir os trabalhadores


ativos, se aliando ao Estado para manter o controle da força de trabalho e para obter a aprovação da
opinião pública sobre o tratamento violento destinado aos excluídos do sistema. A legislação vigente
estabelece as formas comportamentais aceitas ou não na sociedade. Os marginalizados, como não
aderem o modelo ideal de trabalho, o assalariamento, são criminalizados. O Estado intensifica o seu

3
Bosi, Alfredo. Dialética da Colonização. SP, Cia das Letras, 1992, pp.194-195.
4
Chauí, Marilena. Crítica e Ideologia. Rio de Janeiro, CEAF, 1978, pp. 22.
5
Imput Abreu, Waldyr de. O Submundo do Jogo de Azar, Prostituição e Vadiagem. RJ, Freitas Bastos, 1984, p.173.
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 4

aparelho repressivo e ideológico, punindo severamente a pobreza, sendo estes os recursos pelos quais o
poder público interage com os despossuídos dos meios de produção.

A FORMAÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO CAPITALISTA NO BRASIL

O século XIX foi marcado por diversas transformações econômicas e sociais no Brasil. Além da
passagem da monarquia para a República, assistimos o fim do regime escravocrata de produção e a
organização da economia capitalista. Estas mudanças resultaram em uma legislação contundente com a
nova ordem econômica, a qual colocava a população rotulada de vadia como marginal perante os novos
padrões comportamentais.
Para o êxito do capitalismo, foi de vital importância a metamorfose da mão-de-obra escrava
para assalariado, isto é, transformar o negro em trabalhador livre e expropriado. Do mesmo modo, se
promoveu a privatização dos meios de produção, mais especificamente a concentração da posse da
terra e do lucro entre a elite latifundiária.
Primeiramente, o poder público regulamenta a posse das propriedades aos latifundiários através
da Lei de Terras de 1850. Esta transformava a terra em uma mercadoria de compra e venda e elevou o
seu preço a tal custo que a tornou inacessível aos trabalhadores, por eles não terem condições
financeiras de aquisição, garantindo assim a mão-de-obra rural. Ou seja, com a abolição da escravatura
alterou-se a relação de trabalho, no entanto o modelo de propriedade rural, o latifúndio, teve sua
manutenção garantida através desta lei.
O processo de industrialização não acompanhou no mesmo ritmo as transformações do mundo
do trabalho. No novo regime, quem detinha o poder político eram as oligarquias cafeeiras, por
investirem prioritariamente no setor primário, a indústria foi relegada. O negro livre, chegando ao
centro do Rio de Janeiro, não foi absorvido pelas novas profissões que a industrialização
proporcionaria, com efeito, não se tornou um operário e se viu na condição de desempregado.
Desamparados pelo poder público e de apoio do restante da sociedade, o liberto se viu
responsável por si e pelos seus dependentes sem ter condições materiais para cumprir esta tarefa. O
poder político desprezou o drama material e moral que o negro sofria, deixando-os livres para viverem
nas penosas condições que poderiam criar para si e para os seus dependentes nas novas condições
sócio-econômicas. Fato este retratado por Florestan Fernandes:
“A abolição teve um significado legal, o mundo dos brancos perpetuou-se como realidade
contrastante ao mundo dos negros. Este continuou a existir a margem da história, sofrendo a
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degradação crescente da condição de espoliado, dos efeitos desintegrativos da dominação e o


6
impacto desorteador das pressões da ordem social competitiva.”

Porém, o problema surgiu na própria criação do trabalhador livre e despossuído na realização da


importante e árdua tarefa de estabelecer esta nova relação de produção, o assalariamento, necessário
para reprodução do próprio capitalismo. Como obrigar os despossuídos dos meios de produção, após
anos de atividade laborativa forçada, a se vender no mercado de trabalho, bem como se submeter à
rígida disciplina e controle de um “senhor”?
Para solucionar tal questão, realizou-se a reformulação dos valores culturais, surgiu uma nova
ética contundente a lógica capitalista. Esta almejava convencer a mão-de-obra do valor fundamental do
trabalho para a vida em sociedade, ou seja, esta nova mentalidade objetivava fazer com que o
trabalhador não visse o labor de forma negativa, mas sim que estivesse disposto ao mesmo.
Um dos obstáculos em imprimir ao trabalho um caráter positivo era a lembrança da escravidão,
pois está gerou uma herança negativa deste, na qual era visto como uma atividade que degradava o
homem. Teriam que convencer o liberto, após anos de trabalhos forçados, a se tornar um assalariado.
Do mesmo modo, a Lei Áurea foi percebida como uma ameaça pública, posto que para a boa sociedade
os negros não estavam preparados para a liberdade concedida, não havia apreço à civilidade, ao zelo
pelo bem público, ao gosto pelo trabalho.
Desse modo, a nova ética do trabalho ensinaria às camadas populares a terem prazer em serem
úteis e a entenderem seus deveres para com a sociedade de classes. Dividindo a sociedade em dois
pólos distintos: de um se refere ao mundo do trabalho, “de outro, há o mundo da ociosidade e do crime
estar à margem da sociedade civil – isto é, trata-se de um mundo marginal, que é concebido como
imagem invertida do mundo virtuoso da moral, do trabalho e da ordem (...)”7
Ao transformar o liberto em força de trabalho assalariada, se solucionava a ameaça que o negro
livre representava. Garantindo assim o controle das camadas populares que, conscientes de seus
deveres, não ameaçariam a propriedade, além, é claro, de assegurar a mão-de-obra para o mercado de
trabalho capitalista. No entanto:
“O mercado de trabalho capitalista não se limita ao esquema de trabalhador despossuído, dono
apenas de sua capacidade de trabalho, que se encontra então no tal mercado com um capitalista altivo e
carrancudo, que detentor dos meios de produção, lhe acena com a possibilidade de um emprego.”8

6
Fernandes, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. SP, Ática, 1978, p.23.
7
Chalhoub, Sdney. Trabalho, Lar e Botequim. SP, Brasiliense, 1986, p.49.
8
Idem, ibidem, p.43.
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Tal esquema não encaixava a população que não se articulou as novas relações de produção.
Construíram formas autônomas de sobrevivência, exerciam subempregos que não eram reconhecidos
pelo aparato público por afetar a moral estabelecida. Assim, oscilavam entre a legalidade e a
ilegalidade. Ambulantes, trapeiros, ratoeiros, entre outras situações de subempregos, eram os que mais
apareciam nas estatísticas criminais.
Este quadro despertou à preocupação do poder público, pois colocava novamente em perigo a
ordem pública. As pessoas que não eram absorvidas pelo modo de produção hegemônico transitavam
pela cidade sem alguma ocupação contundente com a nova ideologia vigente. O que afetava a
perpetuação da lógica capitalista, devido à ameaça que a mão-de-obra ociosa representava. Nesta
conjuntura surgiu um novo personagem na capital da República: o vagabundo.

A CONSTITUIÇÃO DA VADIAGEM COMO CRIME

O Cotidiano da Vadiagem
A identidade marginal do vagabundo é fruto do desenvolvimento do capitalismo, visto que este
proporcionou o advento desse personagem ao causar a exclusão de uma vasta parcela de mão-de-obra
do processo produtivo hegemônico.
A sub-classe trabalhadora vagava pelas ruas do centro exercendo atividades que ofendiam os
novos valores da ideologia capitalista, muitas vezes cometiam pequenos delitos, ocasionando o
desordenamento do espaço público da cidade. Era alvo do aparato repressivo do Estado, que reprimia
os vadios e desordeiros que agrediam o ordenamento social. Como afirma Engels:
“A necessidade deixa ao trabalhador a escolha entre morrer de fome lentamente, matar a si
próprio rapidamente, ou tomar o que ele precisa onde encontrar – em bom inglês, roubar. E não há
motivo para surpresa de que muitos dentre eles prefiram o roubo à inanição ou ao suicídio.”9
Muitos dos supostos vagabundos estavam na verdade repletos de ocupações. Eles retiravam do
cisco, do que é jogado fora, o seu sustento. Transformavam o inútil, o lixo, em meio de subsistência.
Exemplos dessa categoria de trabalho são:
Os caçadores – caçavam gatos de rua para venderem aos restaurantes já mortos e sem pele, que
os serviam como carne de coelho; os sabidos - procuravam nos lixos botas e sapatos velhos para
venderem aos sapateiros, que os consertavam e vendiam em suas sapatarias; os selistas – passavam os
dias próximos às charutarias, procurando nas calçadas selos de cigarros e charutos para venderem as
charutarias, as quais colocavam em uma marca barata o selo de uma marca cara; os ratoeiros – eram os

9
Imput: Georg e Kirchheimer. Punição e Estrutura Social, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1999, p. 28.
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negociantes de rato. Andavam pelos locais onde viviam as classes populares tocando uma corneta para
avisar aos seus clientes de sua chegada. Então, apareciam as pessoas que realmente caçavam os ratos
para vender-lhes. Após a compra, eles os revendiam a Diretoria de Saúde a um custo maior.10
Na perspectiva da ideologia hegemônica essas atividades eram ilícitas, uma vez que se
sustentavam de forma desonesta ou agressiva da moral e dos bons costumes. Fato este que enquadrava
os sub-trabalhadores no artigo 399 do Código Penal de 1890, que tratava sobre a vadiagem. No entanto,
essas ocupações eram a forma pela qual o exército de excluídos conseguiu sobreviver diante do quadro
de miserabilidade destinado a estes pela nova ordem econômica.

A ideologia legitimadora do vadio como marginal


As mudanças sócio-econômicas fizeram com que as elites repensassem os valores e normas
dominantes para adequá-los a lógica do sistema. Nesta conjuntura é que se constituiu a ética do
trabalho, a qual combatia a vadiagem. Esta foi elaborada pelo ministro Ferreira Viana, no ano de 1888,
na câmara dos deputados, em cujo discurso o labor se apresentava como a lei suprema da vida em
sociedade, era o elemento que garantia a ordem pública.
Na visão dos deputados os negros ao serem libertos, ao invés de se metamorfosearem em
assalariados passaram a ser vagabundos, preferindo uma vida de vícios e ociosidade a exercerem uma
ocupação lícita.
Assim, a sociedade deveria ter uma atitude de defesa contra estes indivíduos, pois a vadiagem
os tornava perigosos. Visto que, se não possuíam um trabalho era porque recorriam a meios ilícitos
para sobreviverem, estando predispostos ao crime. Como analogia desta mentalidade, se apresenta o
discurso da Comissão Parlamentar após a analise do projeto:
“O projeto (...) revela a intenção de orientar espíritos transviados, corrigir disposições
viciosas, antes de punir criminosos. Se o legislador tem o imprescindível dever de consagrar no
direito positivo prescrições tendentes à repressão dos crimes que atentam à ordem social, não lhe
é lícito desconhecer que esses atos deviam-se, o mais das vezes, do relaxamento ou da
11
depravação dos costumes, tendo geralmente como causa geradora a ociosidade.”

O poder público se empenhava para que a população marginal aderisse ao


assalariamento.Criavam atividades para serem exercidas pela chamada classe perigosa Como exemplo
de tal medida, nos aparece este anúncio do Jornal Reação:
“ ‘Vagabundos e Desordeiros’

10
Sobre o cotidiano das classes perigosas, vê: Rio, João: A Alma Encantadora das Ruas. RJ, Simões,1951.
11
Anais da Câmera dos Deputados, RJ, 1888,p. 273.
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Os desordeiros, vagabundos, assassinos e gatunos que quiserem se alistar na guarda de lenço


branco, a dez mil réis por dia, comida, prestígio de autoridade e carta branca para exercerem suas
profissões, não têm mais que se dirigirem à agencia na CHEFEATURA DE POLÍCIA.”12
O projeto de repressão à ociosidade afirmava que o vadio só era ameaçador se permanecesse
ocioso sem ter meios que gerassem sua subsistência. Já o sujeito que era ocioso, mas obtinha rendas
que reproduzissem sua vida material, não apresentava perigo algum para o convívio social. Sendo
assim, só se tornava um marginal aqueles que apresentassem os dois elementos que os criminalizavam
na sociedade: pobreza e ociosidade.A este respeito o deputado Rodrigues Peixoto declara:
“As classes pobres e viciosas... sempre foram e hão de ser sempre a mais abundante causa de
todas as sortes de malfeitores: são elas que se designam mais propriamente sob o título de classes
perigosas; pois quando mesmo o vício não é acompanhado pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza
no mesmo indivíduo constitui um justo motivo de terror para a sociedade. O perigo social cresce e
torna-se de mais a mais ameaçador, à medida que o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, o que é
pior, pela ociosidade.”13
O Estado empregou o seu aparato ideológico para garantir que os despossuídos dos meios de
produção se transformassem em força de trabalho ativa. Pois, para manter a ordem social era necessário
reprimir os indivíduos que não estavam inseridos na nova ética do trabalho, com efeito, os vagabundos.

A consagração da criminalização da vadiagem


A contravenção da vadiagem consagrou a criminalização da miserabilidade. O Estado, ao
utilizar-se do seu aparato repressivo para garantir o ordenamento das relações sócio-econômicas,
legitimou através da manipulação política os padrões comportamentais aceitos ou não em uma
sociedade.
Ao marginalizar a mão-de-obra excedente, o Estado cria à contravenção da vadiagem,
legitimada pelo código penal de 1889:
“‘Capítulo XIII – Dos Vadios e Capoeiras.’

‘Art. 399. Deixar de exercer profissão, offício, ou qualquer mistêr em que ganhe a vida,
não possuindo meio de subsistência e domicílio certo em que habite; prover a subsistência por
meio de ocupação proibida por lei, ou manifestamente ofensiva da moral e dos bons costumes:’
14
‘Pena – de prisão cellular por quinze a trinta dias.’”

12
Jornal Reacção, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1902.
13
Anais da Câmera, op. cit., p. 296.
14
Pierangelli, José Henrique. Códigos Penais do Brasil: evolução histórica. São Paulo, Jolavi, 1980, p. 316.
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Assim, passou ser alvo da repressão policial aquele que não obtinha meios que reproduzissem
sua vida material e que não possuía moradia. Do mesmo modo era punido por exercer formas
alternativas de subsistência, uma vez que estava à margem das relações de produção dominante.
O vagabundo se tornou criminoso por ser contrário a ética do trabalho, a prisão servia para
punir aqueles que não exerciam esta ocupação que enobrecia o homem. O intuito da prisão era obrigar
a população ao trabalho, como declarava o primeiro inciso do artigo 399:
“1º Pela mesma sentença que condenar o infrator como vadio, ou vagabundo, será ele
obrigado a assignar termo de tomar ocupação dentro de quinze dias, contados do cumprimento da
15
pena.”

A polícia, geralmente, não respeitava tal prazo. Visto que nas operações destinadas a “varrer”
das ruas os vagabundos, eles eram recolhidos e levados novamente a prisão pela mesma infração que
acabavam de obter a liberdade, não se cumprindo assim o prazo de 15 dias.
Já no segundo inciso, o poder público assumia a tarefa de ensinar o valor do trabalho para os
condenados entre quatorze e vinte um anos de idade. Assim, os presos aprenderiam a cumprir o seu
dever nas novas relações sócio-econômicas.
“2º Os maiores de quatorze serão recolhidos a estabelecimentos disciplinares industriaes,
16
onde poderão ser conservados até a idade de 21 anos.”

Nesta perspectiva, o código penal previa a formação da mão-de-obra livre e expropriada. A


intenção não era apenas de obrigar as camadas populares ao mesmo, mas também objetivavam que elas
desenvolvessem o gosto pela sua função social.
“‘Art. 400 - Se o termo fôr quebrado, o que importará reincidência, o infrator será
recolhido, por um a três anos, a colônias penaes, que se fundarem em ilhas marítimas, ou nas
fronteiras do território nacional, podendo para esse fim ser aproveitados os presídios militares
existentes.’
17
‘Parágrafo único. Se o infrator for estrangeiro será deportado.’”

A deportação ao imigrante que fosse preso como vadio, era contundente com a mentalidade da
elite em relação à força de trabalho estrangeira. Pois, almejavam fazer do imigrante o exemplo de
trabalhador assalariado. Se o imigrante não cumpria a pretensão do Estado, perdia sua função social,
passando a representar um mau exemplo para classe trabalhadora.
Outra relação enunciada pelo Projeto de Repressão a Ociosidade, e legitimada pelo Código
Penal, abordava à articulação entre pobreza e vadiagem. Tal relação foi afirmada no artigo 401:

15
Idem, ibidem, p. 316.
16
Idem, ibidem, p. 316.
17
Idem, ibidem, p. 317.
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 10

“‘Art. 401 – A pena imposta aos infratores, a que se referem os artigos precedentes, ficará
extinta se o condenado provar superveniente aquisição de renda bastante para sua subsistência; e
suspensa, se apresentar fiador idôneo que por ele se obrigue.’

‘Parágrafo único. A sentença que, a requerimento do fiador, julgar quebrada a fiança,


18
tornará efetiva a condenação suspensa por virtude dela.’”

A contravenção da vadiagem é peculiar porque o réu era culpado pela suposição de que ele
fosse recorrer a meios ilícitos para se manter, penalizava-se a suposição e não um ato delituoso em si.
Sua presença nos centros urbanos poderia influenciar os trabalhadores ativos, vinculados a novas
relações econômicas. Nesta perspectiva, adquiriu sentido a punição de um modo de vida anti-social que
induzia ameaça a acumulação.
As operações policiais, popularmente denominadas de canoa, varriam as ruas da cidade a
procura das classes perigosas.19 Só no dia três de agosto de 1902 foram presos 18 vagabundos,
conforme demonstram os registros da Casa de Detenção.20 A polícia cumpria a sua função, protegendo
a propriedade, defendendo os interesses dos donos dos meios de produção. Mantendo a ordem nos
becos onde habitavam a classe marginalizada. Esta se mantinha alerta esperando a ação repressiva do
Estado, como retrata um trecho de um lundu popular da época:
“Eu vivo triste como sapo na lagoa

Cantando triste, escondido pelas matas.

O meu nome na Gazeta de Notícias

Ainda hoje eu vi bem declarado:


21
Ontem, à noite foi preso um vagabundo (...)”

O poder público, além de não elaborar nenhum projeto que visasse a integração do vadio à
sociedade, empregou seu aparato repressivo para combater severamente a pobreza. Seria então a
criminalização da miséria, através da repressão e violência, a forma que o Estado encontrou para coibir
os vagabundos a agirem conforme as novas regras sócio-econômicas.

CONCLUSÃO

A sociedade brasileira, em sua conjuntura histórica de desenvolvimento dos meios de produção


e da força de trabalho capitalista, gerou a constituição de uma criminologia específica. A vadiagem

18
Idem, ibidem, p. 317.
19
Sobre a atuação da polícia, vê: Bretas, Marcos Luiz. A Guerra das Ruas. RJ Arquivo Nacional, 1997.
20
Fundo Casa de Detenção. 1902, APERJ.
21
Rio, João do, op. cit., p. 186.
‘Usos do Passado’ — XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006: 11

apareceu como fator criminógeno aos pobres por ser inversa ao dever social que este segmento da
população estava destinado, ou seja, o trabalho assalariado. Como não estavam enquadrados na
condição do assalariamento, passaram a representar uma ameaça a acumulação de capital, pois eram
marginais ao processo produtivo dominante.
Os meios alternativos de subsistência são estruturais ao capitalismo. A força de trabalho
excedente, isto é, o exército industrial de reserva, por ter sido excluída do processo produtivo
hegemônico, passou a exercer meios alternativos de sobrevivência. Estes então surgiram como uma
reação dos marginais a essa exclusão, e foi através dessa prática que se articularam perifericamente à
acumulação de capital. Desse modo, a vadiagem como ato delituoso, legitimado pelo Código Penal de
1889, passou a ser um crime por ferir o âmbito geral da distribuição dos padrões comportamentais
aceitos dentro do organismo social.

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