Você está na página 1de 126

Estado de barbárie

Neste número da Revista PUCViva, a violência urbana é tratada de diversos ângulos.


Mesmo assim, sua abordagem tem uma abrangência limitada, considerando que a
violência se espalha em muitas formas por todo tecido social.

No momento em que decidimos enfrentar esse tema, o impacto da ação policial nos
morros do Rio de Janeiro repercutia como incêndio, o Brasil se preparava para as
festividades dos Jogos Panamericanos e a estátua do Cristo Redentor era eleita uma das
maravilhas do mundo. De lá para cá, os acontecimentos confirmaram que o incêndio é
gigantesco. Os bombeiros se mostraram impotentes. Ganhou força a tese de que fogo se
apaga com fogo. Por outro lado, bombeiros e incendiários comungam a possibilidade de,
unidos, fazer retroceder o fogaréu. O plano consiste em aumentar a repressão ao crime e
desenvolver programas sociais.

O governo federal concebeu um plano estratégico, com orçamento de R$ 6,7 bilhões.


Estabeleceu-se uma “nova geografia política”, que engloba onze regiões metropolitanas
marcadas pela violência. Denominou-se Programa Nacional de Segurança Pública com
Cidadania.

A face social desse programa vem no sentido de dizer: temos consciência de que só a
repressão policial não resolve a criminalidade. O nível elevado da tragédia atingiu a
classe média e transbordou em crise política. A essência do plano reflete o pensamento
social de camadas da classe média e de setores da política burguesa de que, se é preciso
guerra nas favelas, que se faça guerra.

Em fins de outubro, discutindo controle de natalidade e aborto, o governador do Rio de


Janeiro, Sérgio Cabral Filho, declarou que a Favela da Rocinha é “fábrica de produzir
marginal”. O Ministro da Defesa, Nelson Jobim, enalteceu a política de segurança do Rio
de Janeiro: “Não há mais que se falar naquela postura meditativa e acadêmica sobre o
crime organizado. Tem que ir para o confronto (...)”.

O país está regido por uma política de guerra do Estado. Os fatos indicam que a regra é
matar a qualquer preço. Mas, os jovens mortos – muitos por execução – não são o crime
organizado. São arrastados à criminalidade pela burguesia narcotraficante – esta, sim, é
crime organizado -, que permanece impune, movimentando bilhões de dólares por meio
de bancos e negócios “lícitos”. E tem ramificação nos governos, parlamentos, judiciários
e corpo policial.

A tragédia está em que parte de nossa juventude pobre vem sendo dizimada. A fração
burguesa narcotraficante continua enriquecendo. A burguesia em geral se apropria de
parte desse enriquecimento. A classe média vê nos favelados seus perigosos inimigos.
Brutal contradição. Reflete a desintegração do sistema econômico e social.
É necessário combater a inversão da verdade e sua versão ideológica. A violência urbana
é produzida e praticada pela burguesia e seu Estado. O tráfico e o contrabando fazem
parte do mercado e das relações de propriedade. O desemprego e a miséria empurram
contingentes de jovens para os negócios da fração burguesa narcotraficante. Alta
concentração de riqueza e luxuosa vida burguesa; disseminada miséria e carência de tudo.
Essa realidade divide e enlaça minoria e maioria.

A favela, como diz o governador do Rio de Janeiro, é fábrica de marginais. Se dissesse


que as favelas são fabricadas pela exploração e concentração de capital, portanto pela
classe capitalista, então se veria que não é a favela uma fábrica de marginais.

A favela é a parte mais visível do rosto da pobreza e da miséria. Não por acaso, a
população favelada, na cidade de São Paulo, em quatro anos, teve um acréscimo de 700
mil pessoas, chegando a 2 milhões. Segundo as autoridades, para reduzir a violência, é
preciso, no estado mais rico da federação, atingir uma meta de 300 presos por 100 mil
habitantes. Por esse critério, o interior está sendo coalhado de penitenciárias.

O Brasil tem cerca de 420 mil detentos, e os governantes calculam que são necessários
mais duzentos e cinqüenta presídios. 20% dos homicídios em São Paulo e Rio de Janeiro
são praticados pela polícia, uma das taxas mais altas do mundo. As mortes por
assassinato, no país, aproximam-se de 50 mil por ano. No Rio de Janeiro, a cada 100 mil
habitantes, 45 são assassinados; em Recife, 70; Vitória, 78,3. Em São Paulo, as chacinas
marcam o cotidiano das favelas e bairros pobres.

Boa parte dessa barbárie atinge a juventude.

Este número da Revista PUCViva está dedicado à tarefa de elevar a consciência sobre a
gravidade da violência urbana e a necessidade de vê-la como produto da decomposição
social do capitalismo.

Erson Martins de Oliveira


APRESENTAÇÃO

Violência urbana

A Revista PUCviva, neste número, trata da Violência Urbana, que se manifesta de forma
diferenciada nos vários âmbitos da vida social, por nós retratados por intermédio das
múltiplas violências: de classe, de gênero, de etnia, geracional, que ocorrem no trabalho,
nas ruas, nos bairros, na família, nas escolas, no esporte, nas instituições e que se
originam das formas de exploração econômica, dominação política e opressão social. As
violências que se (re)produzem na vida cotidiana são ancoradas nos aparatos repressivos,
coercitivos e ideológicos para manter a violência do capital. Inegavelmente, há um solo
sócio-histórico comum da Violência Urbana contido nas expressões da Questão Social,
apreendidas como o conjunto das desigualdades, resultantes da contradição entre capital e
trabalho, a qual é agravada pelo aprofundamento destrutivo do capitalismo
contemporâneo, no século XXI, de internacionalização e financeirização da economia na
ordem burguesa consolidada.

A violência do capital, a partir de 1973, no plano internacional, estabelece uma nova


ofensiva da violência sobre a classe-que-vive-do-seu-trabalho: o desemprego estrutural, a
redução de postos de trabalho, a terceirização, o trabalho polivalente, temporário, sem
carteira assinada, informal, subcontratado, por tempo determinado, trabalho infantil e
ampliação do trabalho feminino com menor remuneração. Esse processo de precarização
das condições de existência da classe trabalhadora é estabalecido por uma nova gestão da
força de trabalho denominada “acumulação flexível”.

A lógica destrutiva do capital que recai sobre os trabalhadores e seus filhos é agravada
pela cultura da chamada pós-modernidade, que imprime o irracionalismo, o presentismo,
o efêmero, o fugaz, o preconceito, o racismo, a xenofobia, a intolerância e o
individualismo, que violentam e degeneram substancialmente as relações de sociabilidade
humana. O ciclo da violência constitui-se um dos elementos intrínsecos da degradação
humana e social dos nossos dias: a alienação se espraia, e a ausência de um projeto
classista é saudada pelos apologetas da ordem. O tecido social encontra-se esgarçado em
um processo de degeneração das instituições burguesas, num período de decadência
ideológica e de regressão histórica face à ofensiva do grande capital sobre a classe
trabalhadora.

A Revista é, portanto, um veículo de debate e combate teórico e político a esse estado


destrutivo da Violência Urbana. A direção teórica a que me referencio é a da totalidade
do ser social, na compreensão do processo histórico de produção e de reprodução das
relações sociais no capitalismo contemporâneo, em que se (re)produz o ciclo de
violências. Vivemos um momento de lutas sociais de resistências no enfrentamento da
barbárie social, e setores significativos da Universidade brasileira se somam a estas lutas.
O legado histórico de lutas dos setores da Universidade, estudantes, professores e
funcionários, contra a ditadura, pela democratização do país e na defesa de direitos
sociais remete ao papel histórico da Universidade com direção social, o que requer, neste
momento, que a resistência ao capitalismo se some às lutas antiimperialistas e
anticapitalistas no horizonte do projeto de emancipação humana. Para tanto, a luta pela
autonomia e independência de classe na construção do socialismo expressa-se como uma
necessidade e possibilidade de atualidade histórica da classe trabalhadora na luta pela
igualdade e pela liberdade em uma sociedade de indivíduos sociais produtores livremente
associados.

Nesse sentido, foi extremamente importante: contar professores, estudantes e


pesquisadores de núcleos de pesquisa da graduação e da pós-graduação da PUC-SP,
como os núcleos de: Violência e Justiça, Pobreza e Desigualdade, Família e Sociedade, e
Relações de Trabalho, na graduação da Faculdade de Serviço Social, e Criança e
Adolescente, na pós-graduação; o Nu-Sol, da pós-graduação em Ciências Sociais, bem
como participantes do projeto de extensão “Refazendo vínculos, valores e atitudes”,
professores das faculdades de psicologia, Ciências Sociais, Direito e Educação Física - da
PUC-SP, da USP e da FAMA -, juristas, militantes de movimentos sociais, profissionais
de campo, assistentes sociais, psicólogas e jornalistas que atuam cotidianamente com as
expressões da questão social no âmbito das políticas e dos movimentos sociais, com
produção teórica, acadêmica, política, militante e de atuação profissional nos diversos
espaços sócio-ocupacionais. Poder ler os diversos artigos e reconhecer a finalidade social
de cada um deles fortalece ainda mais a perspectiva dos projetos coletivos articulados à
construção de um projeto societário emancipatório.

A Violência Urbana é tratada nesta revista em situações diversificadas. Todas elas,


porém, têm traços de continuidade na análise e na denúncia da perversidade dos ciclos da
violência e da desigualdade, explicitados por intermédio de dezesseis artigos que tratam
respectivamente de: violência racial, violência e drogadição, violência no esporte,
violência de controle sócio-penal, violência doméstica e familiar, mães vítimas de
homicídios, situação carcerária, confinamento urbano, violência policial, violência na
segurança pública, violência nos padrões de sociabilidade, juventude e ciclo da violência,
violência com a população em situação de rua, anarco-abolicionismo penal, direito e
violência, crianças e adolescentes - um ciclo de violências: redução da idade penal.

A realidade social, aqui trazida pelas mãos de muitas autoras(es), nos remete a muitas e
diversificadas indagações, dúvidas, inquietações, reflexões políticas, acadêmicas,
teóricas, metodológicas, éticas, investigativas e organizativas. Todas elas, porém, em uma
mesma direção: no sentido de um posicionamento firme para o enfrentamento coletivo da
barbárie social em que estamos mergulhados. O trabalho, a política, a cultura, a arte, a
educação, as profissões e os partidos classistas podem se espraiar como práxis em uma
possibilidade e necessidade históricas permanentemente presentes na direção da
conquista de padrões civilizatórios fundantes para a conquista da história humana.

Dra. Maria Beatriz Costa Abramides


Coordenadora do Núcleo de Relações de Trabalho da Graduação - Professora da
Faculdade de Serviço Social da PUC-SP. Secretária da ALAEITS - Associação Latino-
Americana de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. Diretora da APROPUC-SP
Redução da idade penal

Dalmo de Abreu Dallari


Prof. Dr. pela Universidade de São Paulo

CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UM CICLO DE VIOLÊNCIAS

Os meninos de rua estão cometendo violências. Os meninos de rua estão sofrendo


violências. Aí estão duas verdades, duas faces da mesma moeda, que expressam a
realidade do Brasil de hoje e que denunciam a existência de uma organização social
profundamente injusta. Quem são as vítimas dessas violências? São todas as pessoas que
vivem no Brasil ou que passam por aqui, mas são, sobretudo, os próprios meninos e
meninas de rua, tanto nos casos em que são estigmatizados nas manchetes dos jornais ou
no sensacionalismo da televisão quanto nas situações em que sofrem silenciosamente as
violências, sem despertar reações indignadas, sem motivar alguém a cobrar das
autoridades uma providência enérgica e urgente.

No ano de 2005, a ONU, em sua primeira avaliação completa sobre os direitos das
crianças e dos adolescentes no Brasil, fez duras críticas à situação existente, e assinalou
que, tendo aderido à Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, em 1990, e
estando obrigado a apresentar relatórios a cada cinco anos, o Brasil só enviou o primeiro
informe em 2003, o que revela a pouca importância atribuída aos direitos da infância e da
adolescência e às violências contra elas. Um dado muito preciso revela um aspecto grave
dessas violências: em 2004, a Pastoral do Menor constatou que, de 1.304 jovens cariocas
atendidos no Plano de Capacitação Profissional em 2003, 90% não tinha sequer a certidão
de nascimento (Jornal do Brasil, 6/5/04).

Tais situações de violência, que agridem a dignidade humana e impedem a paz social,
trazendo prejuízos de várias naturezas às vítimas diretas e indiretas, ativas e passivas, das
práticas violentas, serão gradativamente diminuídas e começarão a desaparecer no
momento em que se levar a sério a Constituição brasileira e os direitos e
responsabilidades que ela consagra. Com efeito, no artigo 1o da Constituição estão
expressamente consignados os fundamentos da República; entre eles, estão a dignidade
da pessoa humana e a cidadania. No preâmbulo da Carta Magna brasileira, ficou
estabelecido que o objetivo da Constituinte foi instituir um Estado Democrático de
Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais. No artigo 23,
foram enumeradas as competências comuns da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios, indicando-se ações específicas que todos estão obrigados a desenvolver,
entre as quais, como dispõe o inciso X, está a obrigação de “combater as causas da
pobreza e os fatores de marginalização, promover a integração social dos setores
desfavorecidos”. A falta de iniciativas visando a esses objetivos configura omissão de
dever constitucional e dá fundamento para que o Ministério Público promova a
responsabilidade dos respectivos chefes do Executivo.
É importante lembrar que, segundo a Constituição, a efetivação dos direitos deverá ser
feita com a colaboração da sociedade, o que é coerente com a solidariedade natural que
decorre da própria natureza associativa dos seres humanos, sendo certo que todas as
riquezas em mãos de qualquer pessoa são o produto do trabalho de muitos. Tudo isso dá
fundamento para a criação de tributos e fundos especiais visando a tal objetivo. Mas, a
iniciativa privada poderá e deverá, espontaneamente, dar sua contribuição. Assim, por
exemplo, os bancos, que têm lucros fabulosos, poderiam destinar 0,1% desses lucros para
fundos de promoção humana e desenvolvimento social. O interesse é de toda a sociedade,
pois a garantia do respeito à dignidade humana e de efetiva integração na sociedade
beneficiará a todos, pois levará à eliminação das injustiças, permitirá o gozo tranqüilo das
riquezas e de todos os bens que a sociedade proporciona e, numa síntese, a conquista da
paz. O que se tem visto, porém, pelo noticiário dos jornais, é que, em lugar de assumir
sua responsabilidade e de agir com solidariedade, as camadas privilegiadas da sociedade
brasileira só pensam em termos de repressão e de punição. Bem ilustrativo disso é o fato
de que, de tempos em tempos, volta a ser proposta e defendida por meio da grande
imprensa a redução da idade de responsabilidade penal dos brasileiros, pela crença,
absolutamente equivocada, de que colocando na cadeira os adolescentes envolvidos em
práticas que a lei define como crime, estará resolvido, pelo menor custo, o problema da
violência praticada por menores ou com sua participação. Para que se perceba o
equívoco, é oportuna uma reflexão sobre essa proposta.

RESPONSABILIDADE PENAL DO MENOR

A responsabilidade penal da pessoa, ou seja, a possibilidade de tratar alguém como um


criminoso, começa aos dezoito anos de idade, de acordo com as leis brasileiras. Com base
nesse dado, e possivelmente desconhecendo o que dispõe a legislação sobre o menor de
idade que cometa um ato definido na lei como crime, de vez em quando um parlamentar
propõe a redução daquela idade. Essas propostas, algumas vezes, são produto da
ignorância, mas também costumam ter caráter demagógico, com a finalidade de ganhar
notoriedade e agradar eleitores. A criminalidade é alta no Brasil, e a imprensa noticia
com grande estardalhaço ocorrências violentas envolvendo menores de dezoito anos.
Com isso, uma parte da população pensa que, pondo os menores na cadeia, será reduzido
o nível de violência.

Pela importância do assunto e pelo grande interesse da população, é necessário esclarecer


alguns pontos fundamentais, a partir dos aspectos jurídicos envolvidos, pois qualquer
proposta de mudança da legislação visando à redução da idade de responsabilidade penal
deverá, antes de tudo, estar de acordo com a Constituição. Superado esse ponto, é preciso
considerar outros aspectos relevantes, para verificar se a aprovação de uma proposta
naquele sentido trará benefício ou prejuízo para o povo brasileiro, ou se, além de inútil,
será mais uma grande injustiça legalizada.

Do ponto de vista jurídico, a atribuição de responsabilidade penal aos menores de dezoito


anos, que a legislação brasileira considera menores, e por isso com o direito a um
tratamento diferenciado, que pode chegar até a internação num estabelecimento
especializado mas, em hipótese alguma, numa prisão, contraria um direito individual
fundamental. A previsão de tratamento jurídico diferente daquele que se aplica aos
adultos é um direito dos menores de dezoito anos, que são pessoas, indivíduos, sujeitos
de direitos. De acordo com o artigo 60, parágrafo 4º, da Constituição, não poderá ser
objeto de deliberação uma proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos
e garantias individuais. Como é evidente, qualquer proposta no sentido de aplicar as leis
penais aos menores de dezoito anos significará a abolição de seu direito ao tratamento
diferenciado, previsto em lei, e por esse motivo será inconstitucional. Essa é a conclusão
do ponto de vista jurídico, o que, de certo modo, tornaria desnecessário o exame de
outros aspectos, mas pela importância do assunto, será interessante comentar o tema a
partir de outras perspectivas.

PENALIZAÇÃO DE CRIANÇAS: INJUSTIÇA INÚTIL

Sempre que um ato violento contra a pessoa humana é praticado por criança ou
adolescente com idade inferior a dezoito anos, há uma investida daqueles que pretendem
dar às crianças e adolescentes que praticam tais atos o mesmo tratamento dispensado a
um criminoso adulto. Ressurge, então, a proposta de redução da idade de
responsabilidade penal, havendo quem proponha dezesseis e até catorze anos como a
idade a partir da qual todos sejam igualmente tratados como criminosos.

Essas propostas revelam uma reação emocional de pessoas que, por medo ou indignação,
pensam na repressão como uma espécie de vingança ou como forma de intimidação, para
reduzir a criminalidade. Mas, também participam dessas propostas muitas pessoas que,
por se sentirem mais fortes, pensam imediatamente na prática de uma violência
legalizada como forma de sujeitar e imobilizar o mais fraco. Na realidade, as violências
praticadas por menores de idade que mais aparecem envolvem, quase sempre, crianças ou
adolescentes pobres, que dificilmente poderiam se defender num processo judicial.

Na consideração das propostas visando à diminuição da idade de responsabilidade penal,


é preciso que sejam examinados com serenidade todos os aspectos básicos da questão,
incluindo causas e conseqüências, sem deixar de considerar todas as circunstâncias
individuais e sociais e sem perder de vista os valores éticos implícitos na condição
humana e as razões pelas quais se tem tratamento legal diferente às crianças e aos
adolescentes. Ao mesmo tempo, é necessário também avaliar os efeitos práticos
previsíveis, caso se faça aquela redução da idade, tendo em conta os dados da realidade
conhecida.

Começando por este último aspecto, é por todos sabido, por força de ampla e constante
divulgação feita pelos meios de comunicação de massa, que os presídios brasileiros, salvo
raríssimas exceções, estão superlotados, e não oferecem condições mínimas para que o
preso receba apoio psicológico, educação para a convivência e treinamento para o
exercício de uma profissão. Além disso, é de conhecimento geral que, por todas essas
circunstâncias, os presídios, mantendo pessoas amontoadas e sofrendo muitas espécies de
violência física, psíquica e moral, promovem a desumanização do preso, além de
oferecerem as melhores condições para a troca de experiências entre criminosos e para a
formação de quadrilhas.

A Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Organização das Nações


Unidas em 1989 e assinada pelo Brasil, não faz diferenciação entre criança e adolescente,
e determina que se trate como criança, como um ser humano com características
especiais, toda pessoa com idade inferior a 18 anos. Nesse documento, foi reiterada a
proclamação contida na Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, segundo a qual “a
criança, em razão de sua falta de maturidade física e mental, necessita de proteção e
cuidados especiais”. Ao mesmo tempo em que se tem reiterado a afirmação de que a
pessoa humana com menos de dezoito anos já é pessoa e tem os mesmos direitos
fundamentais reconhecidos a todos os seres humanos, há também uma reiteração no
reconhecimento de que a pessoa com menos de dezoito anos é um ser que ainda não
completou sua formação, e por isso é merecedor de tratamento especial adequado. É mais
do que evidente o conflito brutal entre essas exigências, que envolvem aspectos
psicológicos, biológicos, éticos e jurídicos, e a realidade dos presídios brasileiros.

A par disso, é preciso deixar claro que não é verdadeira a afirmação, feita freqüentemente
com grande leviandade, de que o menor de dezoito anos pode cometer qualquer violência
e continuar agindo livremente, recebendo ainda proteção especial para continuar
praticando atos anti-sociais. Bastará uma simples leitura do que dispõe o Estatuto da
Criança e do Adolescente, lei número 8069, de 13 de julho de 1990, especialmente nos
artigos 112 e 121, para verificar que a lei brasileira prevê a imposição de uma série de
medidas sócio-educativas aos menores infratores, estabelecendo espécies diferentes de
medidas segundo as circunstâncias de cada caso e considerando que, sempre que
possível, o infrator deverá sofrer a imposição da medida tendo a vigilância e
acompanhamento de pessoal especializado, sendo mantido em ambiente familiar.

Em casos extremos, se a infração consistir em grave ameaça ou violência contra a pessoa,


estabelece o artigo 121 que poderá ser determinada pelo juiz a internação do menor
infrator, que será retirado do ambiente familiar. Dispõe, entretanto, o artigo 123 do
Estatuto, que “a internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes,
em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios
de idade, compleição física e gravidade da infração”. No parágrafo único do artigo 123,
está dito, expressamente, que durante o período de internação, inclusive provisória,
“serão obrigatórias atividades pedagógicas”.

Assim, portanto, não há justificativa para que se proceda ao rebaixamento da idade de


responsabilidade penal. Tal medida seria uma violência ética, sobretudo porque, como é
público e notório, na quase totalidade dos casos que são divulgados pela imprensa com
estardalhaço, os menores infratores são pobres, que, quase sem exceção, não tiveram o
apoio afetivo, espiritual e mesmo material de um ambiente familiar propício ao seu
desenvolvimento. Não raro, já nasceram sofrendo violências, a começar pela falta de
habitação em condições dignas e da alimentação indispensável ao seu crescimento sadio,
além da absoluta falta de perspectivas para uma vida futura decente. Acrescente-se ainda
que, conforme tem sido registrado por muitos estudiosos de criminologia, o efeito
intimidativo da pena é praticamente nulo, para pessoas, incluindo-se aí os adultos, que se
acostumaram a sofrer violências desde o início da vida.

REDUÇÃO DA IDADE PENAL: PREJUÍZO PARA A SOCIEDADE

Em conclusão, a redução da idade de responsabilidade penal trará mais prejuízos do que


benefícios à sociedade, pois jogará definitivamente no mundo da criminalidade
adolescentes que, se receberem a aplicação das medidas sócio-educativas, inclusive
privação da liberdade nas condições previstas na lei, estarão sendo preparados para a
convivência pacífica e respeitosa. Evidentemente, ninguém poderá ficar feliz ou
indiferente quando um adolescente praticar qualquer violência contra a pessoa humana,
nem se há de deixá-lo livre para que cometa novas violências, tendo como justificativa
para a impunidade o fato de ter nascido na miséria. Mas, onde houver efetivo respeito
pela dignidade e pelos direitos fundamentais da pessoa humana, com o reconhecimento
de que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, como
proclama a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a reação da sociedade deverá
ser no sentido de exigir que se dê ao menor infrator o tratamento previsto na lei, e que,
além disso, sejam cumpridas as normas éticas e jurídicas que determinam a garantia da
igualdade de direitos e dignidade a todos os seres humanos, desde o momento de seu
nascimento. Assim, serão atacadas as causas das violências, e a humanidade poderá ter
esperança num futuro de paz.

Dalmo de Abreu Dallari


Prof. Dr. pela Universidade de São Paulo
Mais uma vez...
A redução da idade penal*

Maria de Lourdes Trassi


Profa. da Faculdade de Psicologia da PUC-SP
O tema redução da idade penal[1] se inscreve no debate sobre a insegurança social que –
no Brasil e em muitos lugares do mundo – mobiliza inúmeros setores da sociedade. A
polêmica sobre o tema revela o embate de mentalidades no trato deste e de outros
fenômenos sociais, na busca de soluções que reconstituam a fragilidade dos vínculos
sociais e diminuam o mal-estar nas relações humanas.

Essa discussão retorna ao cenário público na freqüência com que algum delito grave é
cometido ou atribuído a algum adolescente. Os crimes que chamam a atenção e são
espetacularizados pela mídia envolvem, em sua maioria, estratos sociais diferentes: os
pobres (agressores) e os ricos (vítimas). No primeiro semestre de 2007, o assunto
retornou à mídia e o Congresso Nacional se mobilizou intensamente na discussão do
assunto com vistas à tramitação do projeto de lei de redução da idade penal, após o
trágico assassinato do menino João Helio, no Rio de Janeiro. A mobilização durou até a
crise da presidência do Senado, do setor aéreo e retornará quando[2]...

Neste debate, os subsídios de uma e outra especialidade científica ou área de


conhecimento podem aportar elementos que tornem os argumentos mais rigorosos,
menos equivocados. Contudo, as discussões e decisões são políticas: podem produzir
alteração da Constituição Federal (artigo 228), do Estatuto da Criança e do Adolescente
(lei 8.069) e do destino social de um setor da população adolescente: os autores de ato
infracional[3].

O pressuposto desta reflexão é a idéia da responsabilização do adolescente por sua


conduta - algo que fazemos e devemos fazer em casa, na escola e também na comunidade
de vizinhança e convivência[4]. A formação das novas gerações - em uma concepção de
cidadania que implica direitos e deveres - não defende a impunidade. Isto significa que,
no caso do adolescente autor de ato infracional, inimputabilidade não significa, de novo,
impunidade.

A dramatização do ato infracional praticado por adolescente é uma “cortina de fumaça”


que visa a simplificar e falsear a compreensão do fenômeno da criminalidade, das
violências e localizar as determinações longe dos círculos do poder e de sua
responsabilização. É necessário situar a compreensão do fenômeno deste adolescente no
contexto da cultura e do lugar em mutação constante e acelerada que os adolescentes e
jovens (de todo o planeta) ocupam no mundo social redesenhado por fenômenos
transnacionais (as novas tecnologias de comunicação, os ícones de identidade que
transitam no universo online, a planificação dos desejos em outro lugar do mundo para
qualquer lugar onde se esteja) e no mundo simbólico de todas as gerações.
Da década de 1960 para cá, a fisionomia do fenômeno do adolescente envolvido com a
criminalidade (aqui e em outros lugares do planeta) se alterou bastante, dos pontos de
vista quantitativo e qualitativo[5]. Esta alteração se inscreve em um contexto complexo
de multideterminações: as diferentes expressões da violência criando um ambiente de
sociabilidade onde as novas gerações nascem, crescem e formam sua identidade (as
guerras, por exemplo); a representação social que percorre o mundo em que a
juventude/adolescência é associada com a nova “classe perigosa”[6]; as mudanças
profundas na estrutura e organização da família, desempenho das funções parentais e nos
padrões de relação de gênero e de geração; a universalização de uma escolarização de
baixíssima qualidade; o jovem e o adolescente tratados como agentes sociais autônomos
pelo mercado (porque são bons consumidores), independentes da tutela dos adultos; o
consumismo exacerbado e a insatisfação permanente com a incapacidade de consumir
tudo aquilo que passa diante dos olhos e é associado ao bem-estar e à felicidade; a ruptura
das novas gerações com os valores da história, das gerações anteriores (o mais
enigmático fenômeno do final do século XX cujos efeitos ainda não compreendemos,
segundo Eric Hobsbawm[7]); a ausência de modelos significativos para as novas
gerações; o esgarçamento da autoridade no domínio público e privado; a disseminação do
uso de drogas, a partir da década de 1980, em todas as classes sociais; a instalação de
territórios do crime organizado em alguns centros urbanos do Brasil disputando com a
família, a escola e os projetos sociais os nossos adolescentes, cada vez mais jovens, com
bons salários e carga horária de trabalho compatível[8]; e, também, muitas famílias que,
antes, eram aliadas no resgate dos adolescentes cooptados pelo crime organizado, agora
sucumbem à idéia/ilusão da proteção e do ganho garantido que contribui no orçamento
doméstico. Ou seja, nas “quebradas do mundaréu”, como diz Plínio Marcos, onde há a
ausência do Estado ou sua presença se dá exclusivamente pela violência das forças de
segurança, outras estratégias de sobrevivência se constroem, se solidificam e definem um
destino de morte para os nossos adolescentes[9].

Essas múltiplas determinações – existem outras - se combinam de modo particular na


biografia singular de cada adolescente. Esse processo ocorre em um contexto de profunda
desigualdade social[10], onde as condições objetivas de vida determinam o percurso
existencial, aquilo que alguém poderá consumir de bens materiais e culturais e o seu
destino social. Os adolescentes e os jovens não se conformam com isto. O ato infracional
é, muitas vezes, a possibilidade de consumir o que passa diante de seus olhos (distante de
suas posses), mas é também a alternativa (“torta”) para afirmar sua identidade (a arma),
pertencer, contestar... Revelar.

Portanto, é impossível dar conta da complexidade das determinações históricas, sociais,


culturais, psicossociais da produção de adolescentes autores de ato infracional com a
alteração da idade penal. É impossível minimizar o medo social e o clamor por segurança
social elegendo o adolescente autor de ato infracional como bode expiatório[11].

Subjetivar a causa dos problemas sociais faz com que as dificuldades sociais (relações
sociais destrutivas, estruturas contraditórias) sejam projetadas em um ou mais grupos de
pessoas. Os pesquisadores do tema têm a obrigação política e ética de esclarecer os
cidadãos de que a construção de um bode expiatório não dará conta de obter aquilo que
todos desejamos: a paz pública.

Nesse sentido, é importante lembrar que várias análises sobre o aumento da


criminalidade, em todos os estratos sociais e em todas as idades, demonstram que há uma
correlação entre a impunidade e o aumento da prática de crimes. Não são as medidas
punitivas mais severas, mas a certeza da punição que inibe a prática do delito.

Em nosso país, desde 1990, está em vigência o Estatuto da Criança e do Adolescente


(ECA) que estabelece seis medidas sócio-educativas para o adolescente (12 a 18 anos)
autor de ato infracional: advertência, reparação de danos, prestação de serviço à
comunidade, liberdade assistida, semi-liberdade e internação. As medidas têm caráter
punitivo e sócio-educativo, em um grau de severidade crescente. Essa lei está formulada
de acordo com as normas internacionais sobre o assunto, das quais o Brasil é signatário:
Regras Mínimas para a Administração Penal Juvenil, Pequim/1985; Diretrizes das
Nações Unidas para a prevenção da delinqüência juvenil, Riad/1990; Regras Mínimas das
Nações Unidas para a proteção dos jovens privados de liberdade, Riad/1990.

O ECA é um instrumento jurídico de garantia de direitos para todas as crianças e


adolescentes brasileiros, em um país onde a maioria das crianças e adolescentes não tem
seus direito garantidos. Sua concepção de criança e adolescente supera o senso comum, a
criminalização da pobreza, a tutela do Estado ou dos mais ricos sobre os mais pobres, e
responsabiliza os adolescentes sobre sua conduta.

Ao consideramos a idéia da responsabilização, é equivocado um argumento usado, com


freqüência, para justificar a não redução da idade penal, fundamenta-se na idéia de
ausência de capacidade de discernimento do adolescente. As noções dos valores de “bem
e mal, certo e errado” se desenvolvem desde a primeira infância: por treino, por imitação
nos primeiros anos de vida e pela aquisição da linguagem, que é facilitadora do processo
de internalização das regras sociais que permitem a convivência coletiva.

É deste modo que o indivíduo entra no mundo dos adultos, da cultura. Isso recoloca a
importância de bons modelos de aprendizagem social, de socialização, para as crianças e
adolescentes: em casa, na escola, na rua, nos meios de comunicação. Ou seja, o modo
como a criança e o adolescente pensam, sentem e se comportam revela seu entorno
social, os valores e padrões de conduta que circulam em seu meio social. :Hoje, o seu
meio social é o mundo. Então, outro equívoco é culpabilizar exclusivamente a família ou
outro grupo de pertencimento do adolescente por sua conduta.

Nessa etapa da vida, portanto, o adolescente já desenvolveu espírito crítico, capacidade


de julgamento moral e discernimento. Não é este o argumento a ser usado para nos
posicionarmos contra a redução da idade penal. Importam o projeto de sociedade que
queremos para nós e para as futuras gerações, os modelos que oferecemos a eles como
referência de conduta, e a ética que orienta as relações humanas e cria o ambiente de
sociabilidade.
Um outro aspecto importante a ser ressaltado quanto à existência da lei (ECA) é que,
considerada uma das leis mais avançadas do mundo, a sua implementação nas últimas
duas décadas permitiu avanços significativos quanto à erradicação do trabalho infantil,
visibilidade e intervenções junto aos fenômenos da violência doméstica, da prostituição
infanto-juvenil, a desmontagem dos grandes internatos (orfanatos). Porém, ela não foi
implementada na área do adolescente autor de ato infracional. Por exemplo, um avanço
(direito conquistado) desta Lei (1990) em relação ao antigo Código de Menores (1979) é
a garantia de advogado de defesa, que assegura o devido processo legal para o
adolescente, o que ocorre de modo incipiente e precário, mesmo na cidade de São Paulo.
Outro aspecto é relativo às condições de cumprimento da medida de internação em claro
desrespeito ao proposto pela lei e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (Conanda). Portanto, a pergunta é quase pueril: por que mudar uma lei que
ainda não foi implementada?

Em relação ao segundo aspecto, é relevante considerar as dificuldades de sua


implementação. Entre outras, a incipiente municipalização das medidas de meio aberto
esbarra nas dificuldades dos municípios – setores da população e dos gestores locais –
para se responsabilizarem pelos seus adolescentes mais difíceis, e a execução da medida
de privação de liberdade, que é, com freqüência, objeto de denúncias do Ministério
Público e organizações da sociedade civil – em todo o Brasil - quanto às condições
absolutamente brutalizadoras em que os adolescentes cumprem esta medida no sistema
FEBEM[12], por ter estabelecido o regime carcerário como modo de operar a medida.

Em março de 2007, o Núcleo de Estudos da Violência da USP lançou um dossiê em que


esclarece “a correlação entre desrespeito aos direitos humanos e aumento do índice de
criminalidade”. A dicotomia criada e alimentada na opinião pública entre proteção dos
direitos humanos e garantias de ordem e segurança pública é falsa.

Nestas circunstâncias, em que o Estado transgride suas responsabilidades para com os


cidadãos, não há esperança de que os 4.476 adolescentes internos da FEBEM-SP
possam, ao final da medida, se incluir de modo produtivo, criativo e satisfatório na
coletividade. Pelo contrário, saem raivosos ou, como dizia Luiz Alberto Mendes[13], no
final da década de 1960, quando saiu do RPM (Recolhimento Provisório de Menores, que
funcionava em um dos prédios do atual Complexo do Tatuapé da FEBEM-SP), “saem
predadores”. A cidade tem medo de seus adolescentes.

Outro aspecto relevante a ser abordado diz respeito aos casos criminais de repercussão
nacional, devido à dramaticidade dos que são citados para justificar a mudança da lei.
Quantos são, no Brasil, os casos de adolescentes autores de ato infracional, com perfil
agravado, como se refere o Conanda?[14] É razoável mudar a lei a partir de alguns casos?
Quantos? Não temos dados quantitativos de levantamentos ou pesquisas que esclareçam
sobre isto. Portanto, não temos também dados sobre a possível articulação (sempre
tentada) entre quadros agravados de sofrimento mental e a prática de atos infracionais (as
psicopatias), o que acaba por demonstrar que a discussão sobre a redução da idade penal
é um embate entre mentalidades.
Contudo, sabemos que, se os adolescentes forem para o sistema penitenciário neste
período de extrema plasticidade de suas vidas (a formação da identidade), sairão de lá
com novos compromissos com a criminalidade. Então, podemos antecipar que haverá um
desperdício de vidas.

Essa consideração não minimiza a gravidade do delito praticado por alguns adolescentes
(quantos?), porque, como diz Boris Fausto, “não é possível reduzir a prática de crimes
exclusivamente a fatores sociais”. O crime constitui a humanidade de todos nós, ensinava
Freud, e a emergência e a atuação deste aspecto destrutivo de nossa constituição psíquica
depende de inúmeros fatores biográficos e das oportunidades (sociais, educacionais,
culturais) que temos ao longo da vida para transformá-la em potência produtiva - as
experiências de resiliência. Neste sentido, é fundamental responsabilizar os adolescentes
de acordo com a gravidade do delito, suas circunstâncias (como preconiza o ECA), e
garantir condições humanizadoras no cumprimento da medida – condições que lhe
permitam outro presente e outro futuro na sua relação com o outro, com o mundo e
consigo mesmo.

Para defender a não redução da idade penal, precisamos de convicções éticas, clareza e
vontade política para construir uma sociedade mais amorosa, além de competência
técnica e garantias de orçamento. Isto se sustenta em uma compreensão do fenômeno
para além das nossas emoções e em argumentos pautados pela lógica do desafio, não pela
lógica do fracasso no trato com o presente e com o futuro destes adolescentes.

Nesse sentido, como formadores das novas gerações, é necessário que sejamos potentes
para construir mentalidades - um processo histórico, para além do tempo da biografia
pessoal – que se revela em aspectos aparentemente insignificantes, como, por exemplo,
deixar de chamar o adolescente autor de ato infracional de menor (uma outra categoria de
gente) e passar a chamá-lo de adolescente, porque ele é, antes de tudo, adolescente, por
mais que o crime que praticou tenha sido bárbaro e dramático. É esta a complexidade
com a qual lidamos e que precisamos compreender.

A referência para esta reflexão é a ética da responsabilidade das gerações mais velhas
para com as novas e futuras gerações, o que exige olhar para além do tempo presente, de
nossos medos e do temor dos demais seres humanos, para além do tempo da nossa
biografia pessoal.

*Este artigo foi, em parte, apresentado como conferência na Jornada de Saúde Mental da
Secretaria Municipal da Saúde, em 23 de maio de 2007, em Belo Horizonte; em
exposição na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, em 30 de maio de 2007,
em Brasília; e retoma aspectos abordados no artigo “O Futuro do Brasil não merece
cadeia”, publicado na Revista de Serviço Social & Sociedade, nº 77, editora Cortez,
2004.

[1] No Brasil, a maioridade penal é estabelecida aos 18 anos de idade.


[2] Em 17 de julho de 2007, o SF PEC 00020/1999 de 25/3/1999 (Senado Federal,
Projeto de Emenda Constitucional) foi encaminhado ao plenário do Senado para entrar na
ordem do dia (sítio do Senado Federal). Sua ementa é: “Altera o artigo 228 da
Constituição Federal, reduzindo para 16 (dezesseis) anos a idade para imputabilidade
penal”.

[3] No Brasil, segundo o Censo de 2000 (IBGE), há 25 milhões de adolescentes (12 a 18


anos) e, segundo a Secretaria Especial de Direitos Humanos (2004), são 39.578 (0,2% da
população total de adolescentes) os autores de atos infracionais no sistema sócio-
educativo (aos quais foi atribuída a prática de algum delito); e, segundo levantamento da
FEBEM-SP (13/5/2007), existem 21.595 adolescentes no sistema sócio-educativo no
estado de São Paulo, sendo 4.476 em medida de internação (o custo de um adolescente
em internação é de R$2.317,00).

[4] D. W. Winnicott, psiquiatra inglês, trabalhou com crianças e adolescentes difíceis


entre as duas grandes guerras do século XX, e afirmava que quando a família e a
comunidade não acolhem, nem se responsabilizam por seus adolescentes, só resta o
Estado (neste caso, a polícia).

[5] O estudo detalhado desde a década de 1960 até 2005 está no livro Adolescência-
Violência: desperdício de vidas. São Paulo, Cortez, 2006.

[6] Manuel Castel em “A insegurança social”.

[7] Eric Hobsbawm em A Era dos Extremos – o breve século XX. . São Paulo,
Companhia das Letras, 1995.

[8] Na zona leste de São Paulo, os educadores de um projeto social que atende
adolescentes autores de atos infracionais em medida sócio-educativa de meio aberto
(Liberdade Assistida) contavam, perplexos, que uma criança de seis anos (com a chupeta
na boca) funcionava de “olheiro” de um ponto de droga de um bairro que é considerado
uma “fábrica de infratores”.

[9] O Brasil é o terceiro país do mundo em homicídio de jovens (15 a 24 anos), depois da
Colômbia e Venezuela; na faixa etária de 14 a 16 anos, é onde este índice mais cresceu. É
também o primeiro país do mundo em morte de adolescentes por arma de fogo, dentre os
65 países pesquisados. Dados do Mapa da Violência – os jovens no Brasil, de Julio J.
Waiselfisz, Brasília, 2006

[10] Eric Hobsbawm, em seu livro Era dos Extremos - o breve século XX, afirma que o
efeito mais perverso da desigualdade não é entre os povos e nações, mas se desenvolve
dentro de um mesmo país quando setores da população, em função de sua origem social,
não podem usufruir – no presente e no futuro - dos bens materiais, culturais, espirituais
de que outros setores usufruem; ou seja, sabem que seu destino social está traçado.
[11] Em São Paulo, 1% do total dos homicídios é praticado por adolescentes. Em torno
de 10% dos adolescentes envolvidos com atos infracionais são autores de homicídio.

[12] Ver o relatório OAB/CFP, março de 2006, elaborado a partir de vistoria nas várias
instituições nos diferentes estados do Brasil onde os adolescentes cumprem a medida de
internação; documentos do Ministério Público, depoimentos das mães da Amar
(Associação das mães e adolescentes em risco); a documentação em vídeo que a
primeira-dama do Rio de Janeiro fez em 14 ou15/3/07 das desumanas condições de
insalubridade em duas das trinta e oito unidades destinadas a adolescentes autores de ato
infracional, no Rio de Janeiro.

[13] Autor de Memórias de um sobrevivente, Cia das Letras.

[14] Segundo o levantamento estatístico da FEBEM-SP, em 13/5/07, 8,7% dos


adolescentes estão internados por homicídio doloso; 3,7%, por latrocínio; roubo
qualificado, 52,8%; roubo simples, 2,4%; tráfico de drogas, 14,4%, no universo total de
4.476 adolescentes.

Maria de Lourdes Trassi


Profa. da Faculdade de Psicologia da PUC-SP
Direito e violência

Willis Santiago Guerra Filho


Prof. Dr. de Filosofia do Direito no Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito da
PUC-SP

Em uma conferência célebre, proferida por Max Weber, tratando da política como
vocação profissional (“Politik als Beruf”), a política é apresentada como significando “a
participação no poder ou a luta para influir na distribuição de poder” (Max Weber,
“Ensaios de Sociologia”, 3a. ed., trad. por Waltensir Dutra, rev. téc. Fernando Henrique
Cardoso, Rio de Janeiro, 1974, p. 98). Quanto ao direito, ele tem, indubitavelmente,
relação com o poder, uma relação tão estreita que, muitas vezes, se encontra quem a
reduza às relações de poder, tendo como conseqüência a politização absoluta –
tendencialmente absolutista, autoritária, quando não, totalitária – do direito, que assim é
degradado à condição de uma espécie de disfarce da política, mero instrumento do poder.

Esse modo reducionista de tratar o direito, além de outras manifestações sociais, pode ser
encontrado entre defensores de um marxismo vulgar, que entendemos como uma
deturpação do pensamento original do excepcional conhecedor (também) do direito, até
por sua formação acadêmica, que foi Karl Marx. Ao mesmo tempo, há quem proceda da
maneira inversa, patrocinando uma redução, ainda que metodológica, da política, se não
ao direito, a uma forma jurídica de exercício do poder que é aquela predominante na
modernidade, qual seja, o Estado. Exemplo disso estaria presente nas escolas de
positivismo jurídico normativista, como as kelsenianas, mas também entre sociólogos,
como o apenas referido Max Weber, que completa a definição acima apresentada de
política como envolvendo relações de poder. “seja entre Estados ou entre grupos dentro
de um Estado” (id. ib.). Já no início de seu discurso, Weber anunciará o recorte por ele
adotado, para tratar de um assunto tão vasto, envolvendo a política, ao buscar
compreendê-la como “apenas a liderança, ou a influência sobre a liderança, de uma
associação política, e, daí, hoje, de um Estado” (id., grifos no or., p. 97).

Na seqüência de sua palestra, Weber se indaga sobre o que seria, sociologicamente – de


sua perspectiva, compreensiva, verstehende, isto é, hermenêutica, logo, também,
filosófica, por levar em conta o sentido valorativo atribuído a suas ações pelos sujeitos na
sociedade - uma associação qualificada como “política” e, especificamente, dentre elas,
aquela que se apresenta como um “Estado”, adiante qualificado como “moderno”. Após
descartar a possibilidade de uma definição teleológica, a partir dos fins de tais
associações, pois esses poderiam ser, virtualmente, quaisquer, sem que se possa
determinar nenhuma dessas tarefas como peculiares dessas associações, como
associações políticas, Weber se propõe, então, a defini-las pelos meios específicos
empregados para a consecução de finalidades propriamente políticas.

Nesse passo, vale-se de um pronunciamento feito por León Trotski, sobre a força como o
fundamento de todo Estado, para consagrar o uso da força física como o meio empregado
tipicamente pelas associações políticas como tais. O autor passa a se referir a tal força por
uma denominação mais precisa, a de “violência”, sendo a utilização dela por certas
instituições sociais a condição para a existência do Estado, que mesmo não tendo apenas
esse meio para se impor, nem se deva considerá-lo, como em associações políticas
consideradas predecessoras do Estado, a exemplo do clâ, um meio normal, nem por isso
deixa de ser considerado por Weber o meio específico desse Estado,que na modernidade
apresenta ainda relações “especialmente íntimas” com a violência (id., p. 98). Em
seguida, Weber apresenta sua clássica definição do Estado como “uma comunidade
humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de
um determinado território” (id. ib., grifos no or.).

A questão fundamental, nesse conceito, que é um conceito substancial da política tendo


como forma o direito, passa a ser, como se percebe na continuação do texto de Weber, a
de caracterizar a legitimidade do emprego da violência, questão que o autor coloca da
seguinte maneira: “Quando e por que os homens obedecem?” (ob. cit., p. 99). Eis a
questão que, dependendo do modo como se pretenda respondê-la, nos situará ora no
terreno da filosofia política, ora no da filosofia jurídica. A resposta de Weber pretende
localizar-se no campo da ciência, ainda que social, e privilegia a questão do “como” se
obedece - de modo funcional, portanto -, por meio da famosa tipologia das três formas
“puras” de legitimação: a tradicional ou consuetudinária, a carismática ou pessoal, e a
legal ou racional, tipicamente moderna, caracterizada como uma “fé na validade do
estatuto legal, baseada em regras racionalmente criadas” (id. ib, grifos no or.). Esses tipos
se combinam para formar aqueles de fato e empiricamente existentes.

De passagem, vale ainda lembrar que, também para o positivismo jurídico normativista
kelseneano, a ordem jurídica, a que se reduzem o direito e o Estado em sociedades
“evoluídas” - as modernas - é concebida como uma “ordem coativa” (Zwangsordnung).
“Coação” é um termo mais brando para referir-se à violência, quando associada com uma
ordem jurídica cuja legitimidade decorreria da legalidade e procedimentos
correspondentes, pelo menos formalmente, sendo este o ângulo que interessaria ao estudo
científico do direito como Kelsen, sabidamente, propugnava que se o empreendesse.

É interessante notar essa coincidência entre o positivismo normativista, que se pretendia


purificado de qualquer noção extra-jurídica, com uma perspectiva igualmente positivista,
porém sociológica. Essa não é a única remissão que se encontra na teoria pura do direito
à dimensão sociológica, pois o conceito de validade das normas jurídicas e da ordem
jurídica como um todo a que elas pertencem, adotado por esta teoria, estritamente formal,
correspondente à existência mesma dessas normas do direito positivo, esse conceito
depende de um “mínimo de eficácia”, de acatamento fático e obediência regular (cf. H.
Kelsen, “Reine Rechtslehre”, 2a. ed., Viena, 1960, pp. 208, 216 ss.; ed. bras., “Teoria
Pura do Direito”, pp. 227, 236 ss.). Já com um “mínimo de justiça” não se preocupa tal
teoria, em conformidade com mitos como o da objetividade científica e a neutralidade
axiológica, sobre os quais se erige, imperceptivelmente, supondo com isso superar modos
“primitivos” de pensamento, dominados por uma crença mágica no poder encantatório
das palavras. Essa teoria vem a perceber só muito mais tarde, quase tarde demais, que
toda sua construção da ordem jurídica escalonada e justificada por uma norma hipotética
fundamental não passava de mais uma ficção (cf. id., “Allgemeine Theorie der Normen”,
Viena, 1979, pp. 206 e seg., ed. bras., “Teoria Geral das Normas”, pp. 328 e seg.), e o
correspondente direito, a ficção coletiva - coercitiva, por ser jurídica - da modernidade.

De uma perspectiva filosófica, contudo, podemos – e, a meu ver, devemos – nos ocupar
dessas questões, que não são consideradas aptas a um tratamento científico, de acordo
com o padrão ou paradigma predominante na modernidade, aquele positivista, com base
no qual se desenvolveu uma crença, não assumida como tal, na possibilidade de se atingir
uma verdade definitiva, desde que abdicando de uma certa dimensão dos problemas,
precisamente aquela que mais nos diz respeito, como sujeitos humanos afligidos por tais
questões, sobre o valor e o sentido de nossa existência.

Não é objetivo deste artigo abordar o tema da epistemologia, mas também não o é
considerar sem conexão a filosofia da ciência e a filosofia política, assim como a ética e a
filosofia do direito, como bem demonstram trabalhos de epistemólogos contemporâneos
dos mais acatados, como o já referido Karl Popper, além de Thomas Kuhn, cuja principal
obra, intitulada A Estrutura das Revoluções Científicas, anuncia a conexão entre os
fenômenos políticos e científicos, conexão que foi explorada à saciedade por Paul
Feyerabend, especialmente na sua obra mais conhecida, Contra o Método: Esboço de
uma Teoria Anarquista do Conhecimento.

Há uma modificação a ser feita no próprio modelo de ciência jurídica, para torná-lo
adequado a uma concepção do direito comprometida ética e politicamente com a
sustentação e a promoção da subjetividade humana, nos quadros de uma ideologia que se
mostre compatível com sua diversidade e pluralismos, aquela que é aberta e se reconhece
provisória, inacabada, um processo em desenvolvimento: a democracia. É o que venho
procurando desenvolver, especialmente em obras recentes, como Teoria Processual da
Constituição (São Paulo, 2000, 2a. ed., 2002) e Teoria da Ciência Jurídica (São Paulo,
2001).

Cumpre manter, nos limites deste texto, a atenção à temática que ora nos ocupa. Para
isso, retornemos ainda uma vez a Max Weber, ao texto que vínhamos trabalhando. Após
a apresentação dos tipos de legitimação do poder, tidos como justificações internas para a
obediência e sujeição aos que o exercem, essa obediência se diz “determinada pelos
motivos bastante fortes do medo e esperança – medo da vingança dos poderes mágicos do
detentor do poder, esperança de recompensa neste mundo ou no outro – e, além de tudo
isso, pelos mais variados interesses” (ob. loc. ult. cit.). Nesse ponto, defrontamo-nos com
a justificação para o respeito ao direito e ao Estado que foi dada por autores fundadores
do pensamento político moderno, utilitarista e positivista, como Maquiavele Hobbes.

Ocorre que, com tais argumentos, meramente fáticos, não justificamos, sequer
explicamos, satisfatoriamente, por quê haveríamos de nos submeter à violência
organizada juridicamente, e com exclusividade, pelo simples fato de ser a violência
proveniente do Estado, sem a ela nos contrapormos, preterindo-o em favor de alguma
outra forma de associação e identificação, ainda que muito menor e menos poderosa, mas
que melhor nos contemplasse em relação a nossos interesses e esperanças, até para vencer
o medo, inclusive do próprio Estado. Realmente, o que presenciamos no momento é a
ubiqüidade da violência, em todos os planos e espaços de convivência, desde a família,
passando pela comunidade em que se mora, desde as menores até as grandes cidades,
para atingir a escala planetária, onde atuam Estados e organizações para-estatais que não
se limitam a exercer a violência em determinado território. Eis o tema urgente a ser
enfrentado, mais do que qualquer outro, na interseção entre filosofia política e jurídica,
para que uma regulamentação possível da nossa estada nessa vida como humanos, ou
seja, uma verdadeira “oikonomia” (de oikos, “casa”, e nomia, “regramento”).
Entendamos, primeiro, como se situa a violência, em face do poder e do direito, para em
seguida situá-la, assim como o poder e o direito, em face do ser em que os três encontram
seu fundamento, considerando que sequer existiriam, propriamente, se este ser não
existisse: o ser que somos, os humanos.

O direito, nessa configuração, se apresenta em um estado de tensão permanente entre o


ideal de justiça, jamais realizado – ao menos, abstratamente, como a verdade, que é a
forma da justiça, sendo também ela um ideal regulador, para os que a buscam, seja pela
ciência, seja pela filosofia -, e a realidade da violência, na qual se ampara o poder, poder
de pôr e impor o direito, sendo a violência a forma cujo conteúdo é o sofrimento causado
a um sujeito, passivo, por um outro sujeito, ativo, para assujeitá-lo à simples violência de
uma vontade de poder, de um desejo de sujeição para tentar suprir uma carência de ser,
própria desse ser ficcional, artificioso, desejante, por incompleto, que somos os humanos,
como seres terrestres, o húmus da terra, mundanos.

É assim que o direito pode ser atraído – e traído - pela força, negativa, malévola, desse
meio e instrumento por excelência do poder que é a violência, materializada em corpos
legislativos e de funcionários a serviço de uma legislação, desde os mais altos, agindo ou
omitindo-se de maneira a autorizar a violência, até aqueles que praticam concretamente
os atos de violência, como as corporações policiais. O “espírito das leis”, contudo, é a
justiça, esse elemento sutil que anima o direito, para torná-lo propriamente correto,
podendo se manifestar em situações concretas, desde que saibamos como partejá-la,
repartindo adequada e proporcionalmente com os envolvidos o que naquele momento e
desde antes lhes seja devido, em respeito à sua dignidade e igualdade de sujeitos às dores
e sofrimentos dos que se sabem finitos no infinito insabido.

O direito, então, entre o real da violência, que é atual, e o ideal da justiça, que é eterno,
seria a possibilidade, junto ao poder, o potencial de suprimir cada vez mais a violência,
nas relações humanas, para torná-las, propriamente, em relações proporcionais entre seres
dotados de humanidade, “com-paixão” uns pelos outros e por outros seres, que mesmo
sem serem humanos, nos emocionam e afetam, quando nos mostram tudo o que não
somos e que nos ultrapassa, existindo também.

O que me parece urgente é que se reconheça o quanto o direito e o poder que por seu
intermédio é exercido vêm gerando violência, nessa sociedade a um só tempo
extremamente produtiva e destrutiva, em escala planetária, que se formou no ocidente, na
modernidade, espalhando-se por todo o mundo. E isso não apenas por ser a condição
mesma de seu funcionamento, para dizer ainda uma vez com Max Weber, o “processo de
expropriação política” (ib., p. 103), que resultou na profissionalização dos que se
dedicam ao acúmulo de poder, tal como os que justificam a própria existência pelo
acúmulo indefinido de riqueza, dispensando-se de qualquer sacrifício, à diferença do que
ocorre em qualquer outro tipo de sociedade, aquelas que a modernidade só reconhece
como formas inacabadas dela mesma, em estágios primitivos de seu próprio
desenvolvimento, um desenvolvimento que, ao contrário do que se pensava – e a maioria
ainda parece pensar, se é que ainda pensa -, cada vez se nos apresenta como tendo por
etapa final a destruição, ao invés da redenção, da humanidade e, talvez, de tudo o mais
que compõe esse planeta singular em que nos encontramos.

O direito moderno, então, vai romper com qualquer justificação de si em termos


sacramentais – e sacrificiais, pois onde se reconhece o sagrado (que não precisa ter a
forma de alguma divindade), há temor e respeito por ele ou isso, havendo também
sacrifícios para aplacá-lo -, passando o direito, assim como a ética e até as religiões, a se
justificarem apenas - ou o quanto possível -, tal como as ciências, racionalmente,
considerando serem essas faculdades racionais que nos igualariam, assim como a todos
permitiria reconhecer e fazer o que lhe era exigido por uma ordem normativa voltada para
o seu benefício. Em sendo assim, fica sem justificativa a enorme e crescente
desigualdade que aflige a tantos dos que são reconhecidos e se reconhecem como,
igualmente, sujeitos de direitos, e de tantos direitos, assim como são tantos os desejos
produzidos em uma sociedade voltada para o estímulo ao consumo de uma produção
excessiva, que não se justifica senão por esse mesmo consumo, incessante.

O resultado dessa escalada de direitos e desejos insatisfeitos é a produção de violência na


tentativa de satisfazê-los, com reações violentas por parte dos que querem continuar
gozando do que já possuem e buscando mais, sempre mais e ainda mais, infinitamente.
Como já nos alertara Hobbes, em seu Leviathan (1ª ed. 1651), “sendo os seres humanos,
como de fato o são, governados por suas paixões, por natureza ilimitadas, e sendo
capazes, ainda por cima, de, mediante o uso de sua razão, calcular as conseqüências boas
ou más de ações que visem à satisfação daquelas paixões – se admitidas tais premissas,
então ou haverá um poder superior suficientemente forte para manter a todos em respeito
mútuo, ou eles tenderão necessariamente a destruir-se uns aos outros”.

Esse poder, em todas as sociedades de que se tem notícia, com exceção daquelas surgidas
na modernidade, é um poder que se ampara em uma força superior, a “justiça divina”, de
que nos fala Walter Benjamin no final de seu ensaio primoroso “Sobre a Crítica da
Violência” (e do Poder! – Gewalt), e não na força inferior, que é a violência mesma.
René Girard, em “A Violência e o Sagrado” (1972), sustenta a tese de que só o sacrifício
de alguém, o “bode expiatório”, pode catalisar a violência de todos contra todos, gerada
pelo desejo mimético que acomete o ser humano, desejando o desejo do outro, por não
saber por quê e o que deseja. Esses “bodes expiatórios”, em nossas sociedades modernas,
por serem modernas e racionais, contrárias à magia e aos mitos, se apresentam na forma
dos excluídos/incluídos dessas sociedades, ou seja, os que se acham internos e internados,
em domicílios, reformatórios, asilos, delegacias, prisões, hospitais e também naquela
instituição paradigmática dessas todas, segundo Giorgio Agamben (em Homo Sacer,
1995), que é o campo de concentração, para refugiados ou prisioneiros em geral, de status
indefinido.
Continuamos afirmando e confirmando para nós mesmos o que seria a nossa
superioridade, por nos mantermos a salvo dessa condição de mortos-vivos – até irmos
parar em uma instituição dessas, às quais ninguém está realmente imune (afinal, somos
todos iguais) -, sem esquecer que podemos também, a qualquer momento, ser atacados
por algum dos que lá estiveram ou para lá, por isso, terminarão indo. Tais instituições
nada mais fazem do que, ao tentar dissimular, revelar o nosso encarceramento na prisão
simbólica de nossos medos ancestrais, instigados cotidianamente pelos meios de
comunicação de massa, tornando assim mais presente do que real a violência em sua
forma extrema, que seria aquela dita urbana – como se urbanidade e violência fossem
noções compatíveis.

Willis Santiago Guerra Filho


Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará
(licenciado). Professor Titular da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professor de Filosofia do Direito no Programa de
Estudos Pós-Graduados (Mestrado e Doutorado) em Direito da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Ceará (UFC). Especialista em Filosofia Dialética (UFC). Mestre
em Direito (PUC-SP). Doutor em Ciência do Direito (Universidade de Bielefeld,
Alemanha). Livre-Docente em Filosofia do Direito (UFC) e Pós-Doutorado em Filosofia
(IFCS-UFRJ).
Violência: Alcances e limites das políticas públicas de segurança pública

Francisco Fonseca
Prof. de Ciência Política da FGV-SP

INTRODUÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO: O CARÁTER MULTIFACETADO DA


SEGURANÇA PÚBLICA[1]

Analisar o que se chama de violência e segurança pública implica adotar uma visão
necessariamente holística, isto é, incorporar diversas variáveis que, associadas, as tornam
em pontos de culminância de um conjunto de fatores econômicos e sociais, e políticos,
institucionais e organizacionais[2]. Observemos algumas das variáveis que compõem
esse quadro, que vão desde os aspectos objetivos até os simbólicos, associados à
complexidade da estrutura econômico-social, à forma como o Estado (em várias
dimensões) age e à dinâmica das políticas públicas, entre outros aspectos.

Em relação às variáveis econômicas e sociais, estas remetem: i) à forma de ser do


capitalismo contemporâneo, em razão da emergência do “desemprego estrutural
tecnológico” e da diminuição do trabalho socialmente necessário; ii) à forma específica
de ser do capitalismo brasileiro: pertence à periferia do sistema, depende de capitais e
tecnologia exteriores, divide-se em oligopólios[GK1] e apresenta forte concentração da
renda; iii) à chamada “formação social” brasileira, cujas elites econômicas historicamente
se apropriaram do Estado, resultando numa dominação das classes sociais subalternas,
inicialmente de forma bruta, e, após 1930, por meio de um complexo aparato
sócio/ideológico; iv) à estrutura social brasileira, em que o Estado, notadamente após
1930, de certa forma trouxe para dentro do aparato estatal as relações sociais das
emergentes classes surgidas da industrialização, embora mantivesse em seu manto as
decadentes classes agrárias[3].

Como síntese desse processo, um estudo do IBGE, “Estatísticas Brasileiras do Século


XX”, informa que o Brasil cresceu cerca de cem vezes no século XX, taxa que contrasta
com a distribuição de renda, que é uma das piores de todo o planeta.

Mas, há um conjunto de aspectos que remete às outras variáveis aludidas. A existência ou


não de equipamentos públicos, por exemplo, evidencia a presença ou não do Estado, em
seus três níveis. Assim, a existência de equipamentos sociais (creches, escolas, centros de
recreação, centros de formação e requalificação, centros de inclusão digital, hospitais e
centros de saúde) e políticas públicas ostensivas, tais como o Programa Saúde da Família
(PSF), entre outros, representam colchões sociais capazes de diminuir a potencialidade de
jovens e adultos tornarem-se presas fáceis do crime organizado e mesmo do pequeno
furto, entre outras “saídas” individuais.
Paralelamente à existência de equipamentos sociais, o problema do emprego e da renda
adquire enorme importância, tendo em vista serem esses os elementos estruturais que
podem levar à desagregação familiar e do tecido social como um todo. Daí, uma vez
mais, a importância do papel do Estado, seja indiretamente, como regulador
macroeconômico da atividade empresarial, seja diretamente, por meio de políticas
públicas. É claro que a iniciativa privada é per se responsável pela criação de riquezas na
sociedade capitalista, mas não por sua distribuição. Neste quesito, a lógica do capitalismo
contemporâneo é justamente a concentração da renda, como veremos abaixo. É por isso
que o papel regulador – em sentido amplo – do Estado torna-se crucial para refletirmos
sobre violência e segurança pública.

Em decorrência desses fatores, a perspectiva de vida, notadamente para jovens moradores


das periferias das grandes cidades, torna-se crucial. Em outras palavras, se não há
mercado de trabalho, se a família é desagregada, se não há equipamentos públicos
minimamente eficazes e eficientes, entre outras carências, e se tal ambiente se replica em
comunidades inteiras, tal ausência de perspectiva de vida torna-se um combustível
altamente explosivo. Embora pessoas em situações idênticas possam responder de forma
distinta às agruras sociais, o fato social fundamental diz respeito à condição de vida a que
são expostas milhões de pessoas. Tais condicionantes são potencializados pela
inexistência de expectativas de vida quanto ao futuro, o que abre imensos espaços aos
comportamentos voltados ao “vale tudo” e ao “não ter nada a perder”.

As instituições, notadamente os mecanismos legais e policiais de prevenção e punição,


referem-se à forma de atuação do Estado para coibir a violência, tanto de forma
preventiva (caso, por exemplo, dos Conselhos de Segurança, os Consegs, entre inúmeros
outros exemplos) como punitiva (sistema prisional, lei de execuções penais, formas de
apenamento). A prevenção é tão ou mais importante do que a punição, pois todos os
exemplos exitosos de segurança (administração de presídios, resolução de conflitos e
gestão de políticas públicas, entre outros) envolveram a comunidade, que se tornou
partícipe da organização e gestão da segurança como um todo. Os casos do Jardim
Ângela e de Diadema, que se tornaram famosos pelos seus inegáveis êxitos, demonstram
cabalmente essa assertiva.

CONSTRANGIMENTOS E POTENCIALIDADES
DO ESTADO BRASILEIRO

O Estado não é uma abstração, mas sim um conjunto de prerrogativas, instituições e


regras que age concretamente, pois ele é detentor de diversas exclusividades (exercício da
violência, aplicação da lei, taxação de impostos, emissão da moeda, universalização de
regras, inclusão de todos os indivíduos, sem exceção, no sistema legal etc.). Tal poder,
contudo, convive com inúmeros constrangimentos – fiscais, de recursos humanos,
geográficos, institucionais e legais, internacionais, entre outros – que dificultam
fortemente sua atuação. Um deles refere-se ao chamado neoliberalismo – doutrina
marcada pela radicalidade de seus diagnósticos e proposições, o que nos faz denominá-lo
de “ultraliberalismo”[4] –, pois tem no “mercado-livre”, no “privatismo” e no
“individualismo” suas marcas, o que impacta fortemente as políticas sociais, a
solidariedade e o papel do Estado como regulador da sociedade. Desde 1990, o Brasil
experimenta políticas neoliberais – dada a hegemonia desta doutrina no contexto
internacional –, com conseqüências importantes, tais como a necessidade de tornar-se
receptor de capitais especulativos, promover ajustes fiscais, abrir-se comercialmente à
competição internacional, e focar suas políticas sociais. Numa palavra, adequar-se ao
ambiente internacional, adequação que foi promovida pelos países de capitalismo central.
Com isso, o espaço para políticas preventivas de inclusão cedeu terreno para práticas
meramente punitivas.

Outro constrangimento diz respeito às implicações da frágil tradição democrática no país,


pois os períodos democráticos foram muito curtos e esparsos, impactando fortemente a
cultura política, que se formou e se desenvolveu de forma extremamente autoritária ao
longo do tempo. Afinal, instituições pouco republicanas, capturadas por elites políticas e
econômicas, marcam nossa história. Mas, ao lado da fragilidade das instituições,
conviveu e convive a extrema desigualdade social, fruto de uma das mais perversas
distribuições de renda do planeta. A junção desses dois macroaspectos define em larga
medida a sociedade brasileira ao longo dos tempos, e mantém-se como um
constrangimento indubitável de nossa realidade, ainda hoje.

Em decorrência de nossa curta experiência democrática, a questão da segurança


permaneceu essencialmente um tema “militar”, e não da sociedade. Secretarias de
Segurança Pública foram invariavelmente ocupadas por militares, circunscrevendo ao
aparato policial e militar todo o conhecimento e ação quanto à violência e a segurança.
Essa marca vem sendo, sobretudo desde a Constituição de 1988, alterada, o que significa
um importante avanço: é importante notar que o Ministério da Defesa, que existe há
menos de uma década, é ocupado por um civil desde sua criação, o que denota como o
tema segurança é recente para a sociedade. Também o fato de as universidades terem se
voltado para o tema violência/segurança desde a década de 1980 expressa a recente
incursão civil ao problema como uma questão social.

Há outros importantes constrangimentos, notadamente institucionais e de gestão, caso da


fragilidade na integração dos sistemas de informação entre os três níveis de governo e
seus aparatos policiais e militares. Embora haja vários avanços, faltam a tais aparatos
uma linguagem e uma comunicação unificadas, rápidas e eficazes. Não são apenas meios
tecnológicos, mas sim uma articulação orgânica entre as Forças Armadas, as polícias
militares e civis de cada estado, as guardas civis e os Conselhos de Segurança, entre
outros agentes. Para tanto, vontade política e destravamento de inúmeros obstáculos são
desafios ainda não vencidos, apesar dos diversos avanços. Tais constrangimentos
apontam para a ausência de uma visão sistêmica da Segurança Pública, que envolva o
Estado e a sociedade politicamente organizada, em suas diversas dimensões.

Uma dessas dimensões diz respeito aos frágeis mecanismos de “controles sociais
democráticos” (questão fundamental a todas as esferas da vida brasileira). Controlar
democraticamente, por meio de regras, procedimentos e fóruns, todos aqueles que detêm
o poder – no caso do aparato policial e militar, o poder é de matar – é mais um dos
constrangimentos e desafios que compõem a visão holística da questão da
violência/segurança.

Como contexto a todos esses fatores, há os constrangimentos da Administração Pública


brasileira, nos diversos níveis: baixos salários, carreiras pouco atrativas, baixos
mecanismos de controle da corrupção, leniência de setores sociais quanto à fuga das
regras, indefinições e sobreposições administrativas e institucionais, entre outras, mas
que convivem com inúmeros avanços, nos mais diversos âmbitos.

O CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
COMO INDUTOR DA VIOLÊNCIA

Um forte constrangimento refere-se à nova configuração do capitalismo contemporâneo,


marcado pela capacidade de produzir cada vez mais com menos pessoas. Esse é um dos
impactos da terceira revolução industrial no Estado e na sociedade. Afinal, o emprego
formal está diminuindo vigorosamente, o que faz com que as ocupações precárias
assumam uma tal dimensão que a informalidade das economias, com toda sorte de
precarização, instabilidade e incerteza, domine os ambientes social, psicológico e
econômico. Os efeitos são extremamente graves, o que faz do Estado – cada vez menos
capaz de taxar impostos em razão da informalidade – o agente chamado a responder, por
meio de políticas públicas, de aparatos de segurança e outros o que a economia
desestrutura. Trata-se de uma dificílima realidade, ainda mais grave nos países periféricos
do capitalismo, como o Brasil.

Apesar de todos esses óbices, que se impõem como constrangimentos vigorosos, há


inúmeras potencialidades, pelas seguintes razões: a mobilização da sociedade tem papel
crucial na organização de demandas; quanto mais transparência, maior a eficácia das
políticas públicas; o Brasil permanece como um Estado industrial com um parque
produtivo complexo; a diversidade regional pode ser aproveitada como positiva; há
inúmeras experiências exitosas no país que podem ser replicadas ou tomadas como
insumo para novas experiências, caso do banco de dados do programa Gestão Pública e
Cidadania da FGV/SP.

A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA E OUTRAS FORMAS


DE VIOLÊNCIA: O EXEMPLO DA PUC-SP

Há muitas formas de violência – e conseqüentemente de segurança – na sociedade,


sobretudo no Brasil. Para além da violência física, inúmeras formas de pressão,
constrangimento e violência psicológicos são observáveis: existem de forma aberta ou
subliminar[5].
No caso da PUC/SP, o processo de demissão de cerca de duas centenas de professores em
fevereiro de 2006 expôs a face mais obtusa de diversos grupos políticos detentores de
poder na Universidade: nas coordenações, nos departamentos e nas faculdades.
Mancomunados à reitoria que, embora destituída de poder formal (em virtude da
intervenção da Fundação São Paulo), foi capaz de produzir listas de demissão – uma
espécie de “sentença de morte” – aos que, por motivos os mais diversos, não “rezavam na
mesma cartilha” dos grupos dominantes. Assim, fez vistas grossas às demissões
persecutórias e colaborou, direta e indiretamente, com toda forma de violência simbólica.
Afinal, a demissão persecutória, sem critérios justificáveis do ponto de vista acadêmico,
baseada na lógica “amigo-inimigo”, impôs-se sobre a cabeça de duas centenas de
professores, entre os quais o autor deste artigo[6].

Reitere-se que a demissão, em razão de seu caráter persecutório aos que ousaram
dissentir, assemelha-se fortemente ao assassinato político, ao banimento, à exclusão dos
que incomodam. É curioso e patético observar, nesse sentido, que muitos dos que, por
meios variados, inscreveram os nomes de professores nas listas de demissão, os que
“justificaram” tais demissões, ou então se calaram perante elas (o silêncio é, muitas
vezes, mais revelador do que as palavras), dizem-se defensores do “Estado de Direito
Democrático”, da postura “republicana”, das “instituições democráticas”, da sociedade
regulada por “procedimentos racionais”, do “convívio das diferenças”, da “liberdade”.
Atuaram de forma facínora, da mesma forma que o coronel Erasmo Dias, de tão triste
lembrança, que em 1977 (como se sabe) invadiu as dependências da PUC, e prendeu
centenas de estudantes. São formas de violência semelhantes, embora efetuada por meios
diferentes. Aliás, tornou-se patético a PUC exibir o documentário da invasão de 1977,
quando dá guarida a novos erasmos dias e pratica atos semelhantes intramuros! Afinal,
torturar, prender e matar (caso da ditadura militar pós-1964), de um lado, e de outro,
tornar-se temido, exercer toda forma de pressão psicológica ao estilo “sou amigo do rei”,
e ter o poder de demitir (ou inscrever nomes de colegas em listas para tanto), como o foi
o caso de diversos grupos dominantes na PUC-SP, formam uma linha contínua. É lógico
supor que esses mesmos “democratas autoritários”[7] possam levar aos “paredões” seus
adversários – dado que transformados em inimigos –, caso chegassem ao poder do Estado
numa eventual ditadura (que, esperemos, nunca mais ocorra). O fato simbólico
fundamental aqui diz respeito justamente a comportamentos análogos em situações
diversas.

Essas considerações são cruciais para que compreendamos que violência e segurança não
são temas distintos ou distantes de nosso cotidiano. Mesmo na Universidade, que se quer
um espaço privilegiado, devemos refletir sobre as formas simbólicas, mas muito reais e
tangíveis, de violência[8]. O que implica repensar o próprio sentido de segurança, pois
não é possível haver compromissos com valores democráticos na sociedade quando se
pratica internamente toda forma de violência!

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dados todos esses aspectos, variáveis e dimensões da questão da violência e da segurança
pública, notadamente no Brasil, algumas conclusões são possíveis, e podem ser assim
expressas: a) deve-se ressaltar a importância da distribuição de renda (diminuição das
desigualdades gritantes, justiça social, base social mais igualitária como colchão para a
democracia, democracia social), e b) do Estado de Direito Democrático (participação da
sociedade organizada, controles sociais, transparência, controle das autoridades,
legalidade) para a segurança pública. Com isso, o sentimento de pertencer à
“comunidade” poderá se fazer, o que se expressa por meio da maior igualdade social e da
legitimidade das instituições. De certo modo, a democracia social corresponde à
democracia política, isto é, uma sociedade extremamente desigual vê refletida essa
desigualdade nas instituições, o que faz da democracia algo muito frágil e tênue. Afinal,
entre a fome e o voto, parte significativa dos brasileiros, se um dia chamada a opinar, não
terá dúvidas.

Os múltiplos desafios significam jamais oferecer tal dilema à sociedade, mas sim
articular – de maneira holística – igualdade social à democracia, sociedade ao Estado,
legalidade à legitimidade, e perspectiva de vida aos pobres no interior do capitalismo
periférico (com o objetivo de desenvolvê-lo). Especificamente quanto às políticas
públicas de segurança pública, o grande desafio é olhá-las de forma contextualizada e
compreendê-las como articuladas às estruturas capitalistas e do Estado e da sociedade no
Brasil, em suas múltiplas dimensões. Só assim poderemos avançar de forma crítica,
eficaz e democrática a uma sociedade menos desigual, menos violenta e menos insegura.

Por fim, a questão da violência simbólica, infelizmente tão bem sintetizada pela PUC-SP
no episódio das demissões em 2006, alerta para a entronização de uma sociedade violenta
no cotidiano acadêmico, com o agravante de pretender analisar a sociedade com olhos
distantes. Trata-se de uma armadilha que se deve evitar!

[1] Este artigo reflete duas pesquisas que respectivamente coordenei e participei,
juntamente com Izidoro Blikstein, Ruben Keinert, Fabio Storino, Hironobu Sano e
Luciano Bueno, todos da FGV-SP, junto à Secretaria Nacional de Segurança Pública
(Senasp), em 2005. Ambas serão publicadas, em 2007, nos Cadernos de Gestão Pública e
Cidadania da FGV/SP, com os seguintes títulos: “O Sistema Nacional de Armas (Sinarm)
como Sistema de Gerenciamento do Estoque Legal de Armas no Brasil:
Uma Contribuição às Políticas Públicas” e “Armas de Fogo no Brasil: Uma Investigação
sobre seus Valores e Significados”.

[2] Não abordaremos causas psicológicas, tendo em vista o objetivo deste texto voltar-se
à análise de estruturas sociais, econômicas e políticas.

[3] As análises de Victor Nunes Leal, em “Coronelismo, Enxada e Voto”, Sônia Draibe,
em “Rumos e Metamorfoses”, e de Francisco Weffort, em “O Populismo na Política
Brasileira”, contribuem para essa análise.
[4] Cf. FONSECA, Francisco. O Consenso Forjado.

[5] Deve-se mencionar o papel da mídia como agente de poder que, por vezes, promove
simbolicamente a violência. Seus órgãos normalmente são empresas privadas que,
contudo, atuam como intermediadoras da esfera pública. Como se voltam ao público de
classe média – leitor de jornais no Brasil –, expressam seus interesses, e também os do
Capital, o que implica atuar de forma enviesada. No caso específico da segurança
pública, não abordam o papel da extrema desigualdade social como fonte da violência,
assim como a histórica cooptação do Estado pelas elites. Dessa forma, a mídia de modo
geral contribuiu fortemente para a desqualificação das temáticas vinculadas aos Direitos
Humanos, que nada mais são que a expressão do Estado de Direito Democrático. Além
disso, não contribuiu com a redemocratização no que diz respeito ao conflito entre
Capital e Trabalho, pois via de regra propugnou pela criminalização dos sindicatos que
fizessem greves, assim como dos movimentos populares e sociais. De toda forma, a
mídia, em tese, faz parte da sociedade, embora atue como poder paralelo ao definir
agendas e formar opiniões. Trata-se de um poder brutal, que também pode contribuir para
a democratização, embora não seja essa a experiência da mídia no Brasil. O fato de o
controle social sobre a mídia, que é essencial à democratização dos meios de
comunicação, não ter vingado no Brasil é uma amostra de seu poder sobre a sociedade e
sobre o Estado, diferentemente da experiência de outros países.

[6] Ver meu artigo sobre minha demissão no número 26 da Revista PUC (abril a junho de
2006), intitulado “Veto, demissão e barbárie”. Esta edição é dedicada integralmente à
análise da “crise da PUC”.

[7] Título de um livro de João Almino sobre os constituintes de 1946 que proclamavam a
democracia e agiam autoritariamente. Cf. ALMINO, João. Os Democratas Autoritários.
São Paulo, Brasiliense, 1980.

[8] É sintomático observar que o chamado “índice de sinistralidade”, que é um dos


índices utilizado pelas empresas de seguro médico para aumentar seus preços, indica que
aumentou substantivamente o número de professores da PUC que se utilizaram de
serviços médicos os mais distintos desde o fatídico fevereiro de 2006, o que denota
concretamente como a violência simbólico tem efeitos reais, palpáveis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTNER, E. The functions of the police in modern society. Chevy Chase, National
Institute of Mental Health, 1970.

DAHL, Robert. Polyarchy: Participation and Opposition. Yale University, 1972.

DRAIBE, Sônia. Rumos e Metamorfoses – Estado e industrialização no Brasil:


1930/1960. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
FONSECA, Francisco. O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda
ultaliberal no Brasil. São Paulo, Hucitec, 2005.

___________________ “O Trabalho Ideologicamente Retratado: a Intermediação


Patronal e Autoritária do Conflito Social pela Grande Imprensa”, In DOWBOR, Ladislau
et. al. (orgs.). Desafios do Trabalho. São Paulo, Vozes, 2003.

____________________ “Mídia e Democracia: Falsas Confluências”, in Revista de


Sociologia e Política, nº22, 13-24 de junho de 2004. Universidade Federal do Paraná
(Dossiê Mídia e Política).

HARVEY , David . Condição Pós-Moderna. São Paulo, Loyola, 1992.

LEAL, V. Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. S. Paulo, Alfa-Omega, 1978.

MELLO JORGE, M. H. “Adolescentes e jovens como vítimas”. In: Pinheiro, P. S. et al.


(org.). São Paulo sem medo: um diagnóstico da violência urbana. Rio de Janeiro,
Garamond, 1998.

OFFE, Claus. Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro, Tempo


Brasileiro, 1984

REVISTA CIÊNCIA E CULTURA. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência,


dossiê violência (número 1, julho/agosto/setembro/2002).

SANTOS, W. Guilherme. Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro, Campus, 1987.

____________________ Ordem Burguesa e Liberalismo Político. São Paulo, Duas


Cidades, 1978.

SISTEMA DE INFORMAÇÕES SOBRE MORTALIDADE, Ministério da Saúde


(www.datasus.gov.br)

ZALUAR, A. Violência e crime. In: Miceli, S. (org.). O que ler na ciência social
brasileira (1970-1995). São Paulo: Anpocs: Sumaré, 1999.

Francisco Fonseca
Prof. de Ciência Política da FGV-SP. Foi professor, durante dez anos, do Departamento
de Política da PUC-SP..
A violência racial no Brasil

“Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”


Marcelo Yuka

Dojival Vieira
Jornalista, Editor de Afropress - Agência Afro-Étnica de Notícias

O que há de comum entre um guerrilheiro vietcong em combate contra o exército norte-


americano - o mais poderoso da Terra – na guerra do Vietnã, na década de 1960, e um
jovem negro do Capão Redondo, periferia de São Paulo, hoje?

Ambos morrem cedo, muito cedo, com vantagem para o guerrilheiro vietcong. Enquanto
um combatente no Vietnã, enfrentando a maior potência militar do planeta, tinha uma
expectativa média de vida de oito anos, o jovem negro do Capão Redondo não deve
esperar viver mais do que cinco, a partir do momento em que passa a pertencer aos
quadros dos soldados do tráfico.

Os dados do antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário Nacional de Segurança


Pública, podem assustar ou soar alarmistas, mas o que fazem mesmo é dar uma idéia
mais aproximada da realidade de que, apesar das aparências de paz, vivemos uma guerra.
Não declarada, mas uma guerra, com as vítimas de sempre.

Quando a Globo mostrou, num domingo, no “Fantástico”, o documentário “Falcão –


Soldados do Tráfico”, de MV Bil, a estatística pôde ser comprovada: de todos os meninos
entrevistados no documentário, gravado no curto período de menos de um ano, nas
principais regiões metropolitanas brasileiras, apenas um sobreviveu para contar a história.

Nascer negro, no Brasil, como se vê, não significa apenas ser candidato a viver nos piores
indicadores de carência e pobreza, ganhar cerca de 54% menos, não freqüentar escolas
públicas de qualidade e estar condenado a condições subalternas. Significa,
principalmente: morrer mais cedo.

A expectativa de vida de um homem negro no Brasil é seis anos menor do que a de um


homem branco, de acordo com dados do IPEA, confirmados por todos os demais
indicadores sócio-econômicos disponíveis. Isso, em condições normais, digamos assim.

A violência urbana, contudo, tem se encarregado de encurtar ainda mais a precária vida
dos jovens pobres – na sua imensa maioria, negros.

O curioso é que esse quadro não se altera, ano após ano. Aparece quase todos os dias na
mídia, em estudos acadêmicos, nos indicadores sócio-econômicos e no Mapa da
Desigualdade Racial, produzido pelo PNUD. Sua repetição, de tão freqüente, tornou-se
monótona. É como uma aberração que, por alguma razão, naturalizou-se. Passou a ser um
dado que não provoca mais espanto, nem perplexidade nas pessoas.
A violência dos baixos salários e das condições de vida sub-humanas (de acordo com
Estudo do IPEA, 63% da população que vive abaixo da linha de pobreza é negra, e o
mesmo ocorre com a condição racial dos 70% que vivem abaixo da linha de indigência)
se soma a um outro tipo de violência, não menos perversa, nem menos cruel: a violência
do Estado.

Sabe-se que, no sistema de exploração capitalista, o aparelho policial, a máquina


repressiva, não é neutra: tem suas vítimas preferenciais. No caso brasileiro, a vítima
preferencial é do sexo masculino, jovem e, claro, sempre negra.

GENOCÍDIO

Estudos recentes divulgados pela ONU, no ano passado, atestam que 70% dos jovens
com idade entre 15 e 24 anos, vítimas de homicídio no Brasil, são jovens negros, o que
caracteriza uma espécie de genocídio que, do mesmo modo, vem se naturalizando, ano
após ano. Isso não provoca mais reação de indignação da sociedade civil organizada, nem
das organizações de direitos humanos.

É chocante como pessoas bem informadas, que desenvolveram uma notável sensibilidade
para determinadas questões, perderam a capacidade de se indignar com dados como
esses. Não é muito diferente o que acontece com a indiferença em face da morte de
dezenas de crianças indígenas por desnutrição – ou seja, fome – nos últimos dois anos.

É como se crianças morrerem de fome não fosse tão grave por serem crianças indígenas,
eis a que ponto chega essa espécie de embotamento social. As mesmas pessoas que
sentem repulsa e ânsia de vômito pelo assassinato do menino João Hélio, de uma família
de classe média, no Rio, por delinqüentes juvenis, que o arrastaram depois de o garoto
ficar preso ao cinto de segurança, não conseguissem reagir à tragédia de crianças de um
ou dois anos morrerem por falta de comida – o mais recente capítulo do genocídio de 507
anos, responsável pela redução das populações indígenas de 6,5 milhões, no século XVI,
para apenas pouco mais de 700 mil, neste século.

No episódio da guerra entre a Polícia e o Primeiro Comando da Capital (PCC) – a facção


criminosa que domina os presídios de São Paulo –, em maio de 2006, os números
também não deixaram dúvidas sobre quem são as vítimas. De acordo com o jornal Folha
de São Paulo, num massacre a céu aberto no Carandiru[GK1], produzido pela Polícia
paulista durante uma semana, dos suspeitos mortos, 63% tinham a cor distintiva: negra.

A combinação de pobreza e raça - ou seja, exploração de classe e discriminação racial,


fruto de três séculos e meio de escravismo e mais cento e vinte anos da modalidade de
racismo camuflado – torna óbvia e previsível a equação sinistra: pobreza + condição
racial = morte prematura.
AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA RACIAL

Quando se discute desigualdade social e distribuição de renda no Brasil, há pelo menos


um consenso, independentemente da posição política e ideológica de quem debata: com
cinco copas conquistadas, o país é campeão mundial, não apenas em futebol, mas
também no quesito desigualdade. Ou seja: não somos, jamais fomos um país pobre. Ao
contrário: somos um país riquíssimo, mas socialmente injusto e, etnicamente,
profundamente desigual.

Sob esse aspecto, entretanto, não há nenhum acordo quanto ao fato de que a desigualdade
racial e de gênero por aqui são os dois elementos estruturantes da desigualdade social
brasileira, obscena mesmo para os nossos padrões.

É a combinação de exploração capitalista, em um nível escandaloso de perversão, e


discriminação racial – herança de quase quatro séculos de escravismo – que faz do Brasil
o que é: um modelo mundial de desigualdade, digno de figurar em qualquer ranking
mundial, por qualquer ângulo que se analise.

Antes que alguém tire conclusões apressadas, é bom esclarecer: não estamos falando dos
grotões atrasados, onde as relações de produção não chegaram ao padrão capitalista.
Estamos falando do Brasil mais desenvolvido e industrializado. Tome-se, por exemplo, a
região do ABC paulista.

Nos últimos trinta anos, essa região, com ênfase em São Bernardo do Campo, esteve no
centro dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais do país. Pode parecer
redundante lembrar, mas trata-se da região-berço do novo sindicalismo que se espalhou
pelo país, berço da CUT e do PT – o partido político hoje no Governo Federal, e que teve
um papel fundamental na luta pelo fim da ditadura e pela redemocratização do país.

Não por acaso, São Bernardo do Campo é a cidade-residência do Presidente da


República, e onde Lula tem seu domicílio eleitoral. Não se pode deixar de reconhecer que
os movimentos sindicais e populares impulsionados por estes atores, que irromperam na
cena política no final da década de 1970, tiveram uma forte importância para a
modernização das relações sociais e políticas no Brasil e para a consolidação da
incipiente democracia que temos, mesmo que jamais tenha passado do plano formal e
esteja longe de significar inclusão e cidadania.

Vejamos quais são os indicadores sócio-econômicos e raciais dessa cidade, que tem,
segundo o Censo do IBGE de 2000, em estudo do Observatório Afro-Brasileiro,
coordenado pelo Professor Marcelo Paixão, da UFJR, 695.719 mil habitantes, dos quais
194.358, isto é, 27%, são afro-descendentes – pretos e pardos, de acordo com o critério
do IBGE.

Trata-se, numericamente, da cidade, no ABC, com maior presença negra, ocupando o


nono lugar no ranking de cidades com população negra no Estado de São Paulo.
O nível de rendimento médio mensal de um homem negro, em São Bernardo, é de, em
média, R$ 690,00, enquanto um homem branco tem um rendimento de R$ 1.409,00. No
caso da mulher negra, a defasagem se repete para pior: uma mulher negra tem um
rendimento médio mensal de R$ 445,00, enquanto que, no caso de uma mulher branca, o
rendimento passa para R$ 847,00.

Mas, não é só em termos de ganho salarial que o homem negro perde. A professora
Nadya Guimarães, da USP, em estudo recente, chegou a uma conclusão interessante a
respeito das desigualdades de natureza racial na região de onde saíram as principais
lideranças sindicais do país, inclusive o próprio Presidente da República. Um homem
negro, de acordo com o estudo, tem um tempo médio de permanência no emprego de 50
semanas, enquanto que, para um homem branco, esse tempo chega a 70 semanas.

A tradução dos dados não exige grande esforço: o negro é o último a ser admitido e o
primeiro a ser alcançado nos cortes de pessoal que as empresas realizam com a
periodicidade costumeira.

Mas, as desvantagens não ficam por aí: em São Bernardo do Campo, a taxa de
analfabetismo da população negra maior de 15 anos de idade chega a 8%; a taxa da
população branca é 3%; a taxa de analfabetismo funcional da população negra chega a
20%, e a da população branca, a 11%. Embora represente 27% da população, sua
participação na composição racial da população analfabeta funcional e analfabeta maior
de 15 anos chega a 41% e 47%, respectivamente.

A intensidade da pobreza e indigência da população negra não é menos reveladora: 50%


dos negros de São Bernardo do Campo – 97.558 pessoas, ou seja, quase 100 mil - vive
abaixo da linha de pobreza, e 25%, abaixo da linha de indigência.

Nas demais cidades da região, a situação se repete de forma quase tediosa: em todas, o
dado comum em todos os indicadores é a desvantagem dos negros. Por que será que isso
acontece em uma cidade e numa região que, ainda hoje – apesar da conhecida evasão de
muitas empresas –, é o coração industrial do Brasil?

Dependendo do ângulo de visão e de análise, muitas hipóteses serão levantadas. Alguns


dirão que os negros tiveram pouco acesso à Educação, são menos qualificados para o
trabalho, por isso ganham menos. Outros buscarão explicações na questão social, ou seja:
por ocuparem o lugar mais baixo na pirâmide de exclusão, são, naturalmente, os que
ganham menos. Outros ainda dirão envergonhadamente com seus próprios botões
(porque o racismo, no Brasil, não se assume) que é isso mesmo, sempre foi assim, mas,
claro, há exceções, existem negros que são gente muito boa e até merecem melhorar de
situação, coitados!

Há um pano de fundo em todos os argumentos, independentemente de onde partam, da


direita ou da esquerda, dos mais toscos aos mais sofisticados: todos evitam tocar na
questão racial, todos cuidadosamente evitam a “herança maldita”, as seqüelas e as
conseqüências, persistentes em todos os indicadores, dos 350 anos de escravismo e de
uma abolição pela qual o Estado lavou as mãos em relação ao infortúnio da população
negro-descendente brasileira.

Os governos e os políticos, de um modo geral, têm uma enorme dificuldade de


compreender uma verdade histórica elementar: o nó da exclusão social, no Brasil, não é
puramente econômico; tem uma interface racial que não pode ser ignorada porque aqui as
seqüelas de 350 anos de escravismo permanecem plantadas.

Um outro estudo – desta vez do professor Rafael Guerreiro, do IPEA -, chamado


Mobilidade Social dos Negros Brasileiros, é devastador em relação aos argumentos
falaciosos que tentam negar – por ignorância ou má fé – o que está à vista de todos: os
efeitos perversos do racismo e da violência racial nas relações sociais no Brasil.

Segundo Guerreiro, “a ideologia racista inculcada nas pessoas e nas instituições leva à
reprodução, na sucessão das gerações e ao longo do ciclo da vida individual, do
confinamento dos negros aos escalões inferiores da estrutura social, por intermédio de
discriminação de ordens distintas, explícitas, veladas ou institucionais, que são
acumuladas em desvantagens”. Trata-se da naturalização das posições de invisibilidade e
de subalternidade reservadas à população afrodescendente. A institucionalização da
violência racial, portanto, há séculos.

O ETERNO SUSPEITO

A violência racial praticada pelo aparelho de Estado é seletiva também na abordagem. O


alvo é o mesmo: o negro é suspeito, a ponto de o senso comum racista consagrar o
bordão: “negro correndo é suspeito, parado é ladrão”.

Uma pesquisa quantitativa realizada na cidade do Rio de Janeiro, em junho e julho de


2003, sobre experiências da população carioca com a polícia em situações de abordagem
-, bem como um trabalho realizado pela Science, Sociedade Científica da Escola
Nacional de Ciência e Estatísticas, sob coordenação de Denize Britz do Nascimento e
José Matias Lima, confirmam o que todos já sabem.

Uma amostragem aleatória de 2.250 pessoas, com idades entre 15 e 65 anos, revelou o
que não é segredo para ninguém: a ocorrência de revista corporal também varia
sensivelmente conforme idade, gênero, cor e classe das pessoas abordadas.

Os jovens, os negros e as pessoas de renda e escolaridade mais baixas sofrem revista em


proporções bem maiores do que os demais segmentos considerados.

É muito nítido que a polícia não só suspeita menos de pessoas brancas, mais velhas e de
classe média que transitam pelas ruas da cidade, como tem maior “pudor” em revistá-las
– procedimento fortemente associado à existência de suspeição, e via de regra,
considerado humilhante.
A pesquisa revela que os auto-declarados pretos foram revistados em proporção
significativamente maior do que os auto-declarados brancos – 55% contra 32,6%, relatam
as professoras Silvia Ramos e Leonarda Musumeci, em Elemento Suspeito, livro sobre a
abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro, editado pela Civilização
Brasileira.

Desnecessário acrescentar que o que vale para o Rio vale para São Paulo e para todos os
demais grandes centros do país – Brasília, Recife, Salvador etc. –, onde a combinação de
pobreza e raça constituem a senha para a morte.

SAINDO DO GUETO

Mas, se os indicadores são tão óbvios, monótonos até, de tão repetitivos, por que a
sociedade não reage? Melhor dizendo: por que os setores organizados da classe média –
inclusive aqueles que se declaram de esquerda – não reagem?

Afinal, é a mesma classe média capaz de sair às ruas em passeatas pela paz, quando um
dos seus é atingido pela violência. A repercussão na mídia é imediata, e a comoção,
instantânea. Entretanto, considera muito natural – quase um dado da realidade – quando
jovens negros são alvos da chacina que acontece do outro lado da rua.

Na prática, há um divórcio entre a pobreza negra e a classe média branca – mesmo a que
tem tendências progressistas -, o qual é mantido pelo mito e pela mentira da democracia
racial, que representa uma espécie de senha para o silêncio geral diante da violência do
racismo e da discriminação apontada nos indicadores.

O muro do apartheid é invisível, mas está lá. Não há dúvida quanto à sua eficácia para
neutralizar a reação organizada dos setores da sociedade capazes de paralisar o ciclo de
violência. É como se houvesse um pacto silencioso baseado no princípio de que “se não
são dos nossos, não nos diz respeito”. O matar e o morrer passam a ser um
desdobramento da própria vida e da violência em que vive, ou melhor, tenta sobreviver a
parcela da população negra, que é alvo.

A violência que começa com a superexploração capitalista é potencializada e amplificada


pelo Estado – na medida em que este é mero instrumento de reprodução de uma ordem da
qual a violência é componente intrínseca –, tanto do ponto de vista econômico e social,
quanto do ponto de vista racial.

Aliás, o mesmo Estado patrocinador e mantenedor da “desordem” organizada, não apenas


pratica a violência racial direta, eliminando suas vítimas – em confrontos reais ou
fictícios, não importa -, mas também reproduz um sistema montado para garantir a
concentração de renda e a continuidade das desigualdades sociais, e pratica racismo
institucional de forma sistemática.
ENCONTRANDO AS SAÍDAS

É curioso como as pessoas – mesmo acadêmicos renomados e setores considerados


progressistas – acabam por esquecer que o escravismo, no caso brasileiro, não foi uma
relação privada entre os senhores da Casa Grande e os negros e as negras seqüestrados do
continente africano por quase quatro séculos.

Foi um negócio privado, sim, mas mantido, sustentado e avalizado pelo Estado por meio
de Leis, como as Leis da Terra (1850), do Ventre Livre (1871), Sexagenário (1885) e
Áurea (1888). Essa última foi o derradeiro ato de uma série de normas jurídicas adotadas
para satisfazer as pressões inglesas – ou seja, as chamadas “leis para inglês ver”.

Não por acaso, a Abolição no Brasil, sacramentada por intermédio da Lei Áurea e
concretizada quando a maioria da população negra escravizada já havia se evadido para
os quilombos, não representou a inclusão de nenhum negro aos direitos básicos da
cidadania; como escola, trabalho e moradia, dentre outros.

Ao contrário: a liberdade, para eles, representou a “rua da amargura”; o desamparo do


desemprego, da falta de moradia, da favela – a nova senzala. Sobre os escombros da
derrocada do escravismo, estruturou-se a República, em 1889. Como se vê, desde o
princípio foi sempre a República de poucos – os mesmos.

A resistência do Estado brasileiro, ainda hoje, quase 120 anos depois da abolição do
regime de trabalho escravo, em assumir suas responsabilidades por reparações, até
mesmo com ações afirmativas e cotas (o Estatuto da Igualdade Racial e o PL 73/99
dormem um sono profundo nas gavetas do Congresso) é o indicador mais evidente de que
a opção das elites dominantes continua a mesma: desejam seguir praticando a violência
seletiva, que tem pobres e negros como alvos preferenciais.

Essa violência só cessará na medida em que os setores marginalizados da população – em


especial, estes últimos – lograrem construir alianças capazes de enfrentar e superar a
desigualdade social brasileira com seu componente de violência racial. Violência
econômica, pela superexploração da força de trabalho; social, pela segregação dos
guetos; e política, pela privação da cidadania, reduzida ao simulacro da participação em
eleições viciadas.

Do mesmo modo que a pobreza, para os brancos, não é algo aleatório, mas sim produzido
com a lógica e a racionalidade próprias do modo de produção capitalista, para a
população negra, tampouco o é, pois é fruto da desvantagem que carrega pelos 350 anos
de escravismo e mais 120 anos de uma modalidade de racismo que é, possivelmente, a
pior existente no mundo: o racismo camuflado e hipócrita que jamais ousa dizer seu
nome no Brasil.

Ou seja: os negros são pobres porque são negros, uma vez que carregam a desvantagem
histórica de terem tido seus antepassados escravizados durante séculos.
Sem essa compreensão, será mantida a ideologia da democracia racial, que camufla e
mascara (como é, aliás, o papel de qualquer ideologia), e que seguirá fazendo vítimas: as
mesmas de sempre.

Dojival Vieira
Jornalista, Editor de Afropress - Agência Afro-Étnica de Notícias; presidente da ONG
ABC SEM RACISMO; Membro da Comissão do movimento Brasil Afirmativo..
Anarco-abolicionismo penal

Acácio Augusto
Pesquisador do Nu-Sol

Conheço outra evidência: ela me diz que o homem é mortal.


Porém contam-se nos dedos os espíritos que extraíram disto
as conclusões extremas. Há uma defasagem entre o que
imaginamos saber e o que realmente sabemos, a aceitação
prática e a ignorância simulada que faz com que vivamos
com idéias que, se as sentíssemos de verdade,
deveriam transtornar toda nossa vida.
Albert Camus
A punição é “uma forma de interação humana em diversas práticas sociais: na família, na
escola, no trabalho, nos esportes. Neste sentido, todos conhecemos seus papéis, o passivo
do ser punido e o ativo ‘daquele que pune’”.[1] A resposta punitiva às situações
conflituosas é uma prática comum na nossa sociedade; basta pensar em o que se faz com
uma criança que não se comporta, com um estudante que causa problemas, com um
jogador que não respeita o treinador ou com um funcionário que não segue as normas da
empresa.

Neste momento histórico, quando se dissemina a crença no combate à impunidade, urge


questionar qual é o efeito de tratar infrações e situações conflituosas do ponto de vista da
punição e da recompensa. Essa prática sedimentada de interação social sustenta as atuais
políticas penais, que combinam super-encarceramento — como prisões de segurança
máxima para jovens e adultos — e medidas “mais brandas” de contenção de liberdade —
como liberdade assistida[2] para jovens e penas alternativas para adultos.

Muito raramente é questionada a possibilidade de encarar as transgressões fora do


circuito punitivo. Nesse sentido, a perspectiva libertária, sem ignorar a violência e o risco
que habita a vida de cada um, mas também, sem fazer disso mote para aprisioná-la em
espaços que reiterem a covardia de viver protegido sob o signo da segurança perpétua,
propicia atuar por outros percursos. Pretende arruinar o modo de vida baseado na lógica
punitiva, favorecendo, na atualidade, perspectivas que enfatizam a liberdade contra as
políticas de super-encarceramentoe as práticas de controles eletrônicos e democráticos
para contenção de liberdade.

Este artigo apresenta brevemente a história das lutas anarquistas contra as prisões,
associada às práticas do abolicionismo penal e seus efeitos no Brasil. Desta maneira,
busca apontar não só para a possibilidade da abolição da prisão para jovens, mas,
também, para uma vida apartada das respostas punitivas a uma situação conflituosa. Com
efeito, aparta-se das atuais soluções que se dizem contrárias ao encarceramento, mas que
funcionam como restauradoras da prática punitiva, combinando controles eletrônicos a
céu aberto com internação.
Libertários

Willian Godwin afirmou, com vigorosa coragem, no final do século XVIII, que a questão
da punição talvez fosse a mais fundamental da ciência política[3]. Com esta afirmação,
iniciou uma tradição mutante, entre libertários que combatem o sistema penal, em
proveito da liberdade do indivíduo em relação ao Direito, ao Estado e à Comunidade.
Essa tradição emerge em meio aos combates anarquistas em torno da prisão e da
instituição do Direito como maneira específica de dominação burguesa, para defesa da
segurança e da continuidade da propriedade privada. Esta crítica encontra-se em
Proudhon[4], no jornal fourrierista La Phalange[5], na imprensa anarquista da segunda
metade do século XIX e nos confrontos dos anarco-terroristas no final do mesmo
século[6].

Os anarquistas, em meio aos seus movimentos de libertação, inventaram práticas que não
só colocavam em questão a continuidade do Estado e da dominação burguesa pelo
Direito fundado na propriedade privada, como também questionavam uma vida baseada
no exercício centralizado da autoridade. Tal prática não se encontra alocada apenas nas
instituições como uma forma específica de dominação, mas também se manifesta na
maneira como cada um lida com o sexo, com a educação de crianças e jovens, com as
relações de produção e com o trabalho. Essa maneira singular de atuar politicamente,
demolindo a autoridade centralizada em suas mais cotidianas manifestações, levou Edson
Passetti a apresentá-la como heterotopias: maneiras de experimentar a utopia, não como
finalidade, mas como experiência do presente[7]. Este deslocamento possibilitou uma
outra maneira de atuação para os libertários. Desvencilha-os de uma obrigatoriedade
histórico-temporal e leva-os para uma atuação histórico-política no espaço, inventando
outras possibilidades de enfretamento da ordem, liberadas da revolução como solução
final.

A histórica luta dos anarquistas encontra eco em uma prática libertária recente que
investe na abolição do sistema penal. Na passagem da década de 1960 para 1970,
emergiu, na Europa, um grupo de estudiosos do Direito conhecidos como abolicionistas
penais. Segundo Passetti, “o abolicionismo penal é uma prática libertária interessada na
ruína da cultura punitiva da vingança, do ressentimento, do julgamento e da prisão.
Problematiza e contesta a lógica e a seletividade sócio-política do sistema penal moderno,
os efeitos da naturalização do castigo, a universalidade do direito penal, e a ineficácia das
prisões [...], e opera fora da órbita da linguagem punitiva e da aplicação geral das penas,
para lidar com a infração como situação-problema, considerando cada caso como
singularidade”[8].

Os abolicionistas, assim como os anarquistas, não formam um bloco hegemônico de


atuação. Entre os seus propositores, marxistas e libertários, há diferenças que não
excluem a conversação e os embates, afirmando maneiras diversas de criticar
analiticamente o sistema penal, como expressam as reflexões de Thomas Mathissem, Nils
Christie e Louk Hulsman[9]. Este último, com sua maneira singular de encarar o
abolicionismo penal como um investimento de movimento social e atuação intelectual na
transformação dos costumes e da linguagem, aproxima-se mais dos libertários, por atacar
buscando rompimentos imediatos.

Anarco-abolicionismo penal

Uma associação entre a anarquia como vida apartada do governo, fundada em costumes
que abolem a autoridade centralizada, e o abolicionismo penal como um estilo de vida
que se aparta do julgamento e da punição constitui-se, como sugere Salete Oliveira, em
uma parceria-força[10], que emergiu, no Brasil, a partir da década de 1990, investindo no
fim da prisão para jovens.

O estudo instaurador dessa prática nasceu de uma pesquisa coordenada por Edson
Passetti, realizada entre os anos de 1993 e 1994, e publicada como livro com o nome de
Violentados: crianças, adolescentes e justiça. De maneira corajosa, já nos primeiros anos
de promulgação do E.C.A. (Estatuto da Criança e do Adolescente), explicitou o
redimensionamento do suplício para o interior da família e a violência das instituições
contra crianças e adolescentes ultrapassando internamentos e unidades disciplinares.

Nesse livro, são questionadas as práticas jurídicas direcionadas aos jovens no Brasil, com
seus especialistas e técnicos reprodutores de uma sociabilidade autoritária que cerceava a
liberdade dos jovens, encarados como propriedade da Família, do Estado e da Sociedade.
Assim, torna-se evidente a permanência da mentalidade retrógrada de juízes que
utilizavam o E.C.A. a partir de uma analogia com o Código Penal de 1940, reproduzindo
as medidas dos antigos Códigos de Menores (1927 e 1979) e optando quase sempre pela
medida sócio-educativa de internação, igualando medida sócio-educativa e pena.

Em face da guerra que é a política, este estudo se perguntava: “Por que não a paz?”. Com
a continuidade de uma política penal que reproduzia uma lógica de associação entre
pobreza e violência e uma mentalidade punitiva incapaz de garantir a liberdade e a
integridade física de jovens violentados por pais, avós, tios, padrastos e policiais, enfim,
por todos que, segundo a lei, deveriam zelar por seu pleno desenvolvimento, surgia uma
proposta que privilegiava a leitura do E.C.A. pelo seu viés pedagógico, enfrentando suas
limitações como estatuto jurídico, e introduzindo uma possibilidade conciliatória. Enfim,
surgia “uma proposta que jamais será aceita (a desativação da FEBEM)”, fazendo eco às
propostas abolicionistas, com atenção ao círculo vicioso das reformas penais, e
investindo na possibilidade de não mais internar em “mini-prisões” os jovens envolvidos
em atos infracionais[11].

Mais de dez anos após este estudo, a prisão para jovens no Brasil continua, desdobrada
em controles a céu aberto, regulados pelo Estado e financiados pelas fundações
empresarias. A mudança de nome de FEBEM (Fundação do Bem Estar do Menor) para
CASA (Centro de Atendimento Sócio-Educativo ao Adolescente) apenas confirma o
ciclo vicioso das reformas que garantem a continuidade da prisão para jovens como
campo privilegiado de experiências penais e fabricação de soluções que ecoam em todo o
sistema penal. Neste sentido, recentemente, é inegável que o uso de medidas sócio-
educativas ensinou e preparou a entrada em vigência do regime das penas alternativas.

Estancar a mentalidade punitiva

Se a punição é uma forma de interação social, cujos limites se chamam asilo, manicômio,
orfanato, internato e prisão, a breve exposição das experimentações de anarquistas e
abolicionistas aponta para uma mudança na mentalidade punitiva das pessoas. Como
anunciavam os libertários e já havia mostrado Michel Foucault, em Vigiar e Punir[12], as
reformas penais não passam de maneiras de perpetuar os regimes das penas, que não se
encontram somente nas instituições de confinamento, mas no cotidiano da vida das
crianças, jovens e adultos em circuitos de obediência naturalizada, transcendental ou
cientificamente justificada à hierarquia.

A questão da violência envolvendo crianças e jovens no Brasil, relacionada a atos


infracionais, desperta o interesse da mídia e da chamada sociedade civil, causando
espanto, comoção, ira e, muitas vezes, horror e clamor por pena de morte. Nota-se, nos
debates televisivos, nos jornais e revistas de grande circulação, que pessoas de condições
sócio-econômicas e formações culturais diferentes se posicionam de maneira similar. Via
de regra, um acontecimento trágico, como um assassinato ou um estupro, desencadeia
uma reação que coloca o âncora do telejornal da noite, o filósofo universitário e a dona de
casa no mesmo registro opinativo. Cada um, lançando mão de sua linguagem específica,
afirma a mesmíssima coisa: combate à impunidade, pelo fim das infrações, mais rigor
policial e disciplinar, intransigência com o tráfico de drogas, policiamento ostensivo,
forças armadas nas ruas... Identifica pobres, miseráveis, crianças abandonadas, jovens
perdidos, e conta com as camadas pobres da população para rechaçar seus próprios
sangues ruins. Eis um novo racismo que emerge numa era de muito controle; de um
controle chamado democrático.

Todos esses pronunciamentos convergem para o mesmo discurso em prol da segurança


pública e da defesa da sociedade, ampliando o combate à escalada da violência com
políticas que endureçam o tratamento dos autores de tais atos tidos como “criminosos”.
Desse circuito opinativo, decorrem, com maior freqüência, as sazonais campanhas pela
redução da maioridade penal e pela instauração da pena de morte legalizada no Brasil.

No entanto, existem os mais comedidos. Estes se esforçam em chamar a atenção para as


condições de vida, do ponto de vista sócio-econômico, das pessoas identificadas como
autores regulares dos atos que assombram a opinião pública. Com efeito, propostas de
políticas sociais de assistência, exigindo maior presença do Estado, atuação responsável
das empresas, proliferação das ONGs (Organizações não-governamentais), PPPs
(Participações público-privadas), OSCIPs (Organizações da sociedade civil com interesse
público) e dos institutos de pesquisa que se ocupam da questão decorrem das
intervenções sociais desses grupos. Embora pareçam contraditórios, os dois
posicionamentos se complementam. Mesmo que o primeiro, aparentemente, seja mais
duro, e o segundo, mais brando, o que move os dois é a mesma coisa: a defesa da
sociedade contra o perigo localizado, preferencialmente, entre jovens que, segundo eles,
perderam o sentido de convivência digna e pacífica. Jovens que, por sua condição sócio-
econômica, pelo meio onde vivem e suas relações sociais, representam um perigo para
sociedade. Os discursos se unificam na constatação de que há uma escalada da violência
que deve ser combatida, combinando assistência social, privada e estatal, e dura
repressão, também privada e estatal.

Quando se combate a violência, de qual violência se fala? O Estado é violento. A Escola


é violenta. A Família, com suas regras, punições e suplícios de filhos, sobrinhos, netos e
enteados, é muito violenta. Será que a preocupação com a violência dos que diariamente
choram na TV e nos jornais é apenas uma preocupação com a violência que eles
entendem como ilegítima? E isto supõe que o uso legítimo da força é imprescindível por
parte do soberano. Mas, não foi este uso imprescindível que confundiu o legal e o ilegal
até hoje (afinal, a infração se torna crime segundo as circunstâncias históricas, portanto
não há uma ontologia do crime) e justificou estados de sítio, tiranias e exceções? Se
querem estancar a violência, por que não se revoltam contra a continuidade da indústria
armamentista, que alimenta tanto o mercado legal quanto os mercados ilegais? Enfim,
contra a propriedade privada, comunal ou estatal!

É quase impossível ignorar que a violência institucionalizada corresponde a uma maneira


de viver baseada na autoridade centralizada, na distribuição assimétrica das condições de
uso da força e de bens e na continuidade de uma mentalidade punitiva. Se alguém,
vivamente, se incomoda com a violência, que alguns apressadamente classificam como
banalizada, é urgente que afirme o fim do sistema penal. Não só de sua expressão
terminal nos tribunais e prisões, mas antes, na reprodução cotidiana que se faz de um
sistema de punição e recompensa difundido largamente na família, na escola, nas
empresas e nas universidades.

A liberdade para os jovens acontece de maneira intempestiva. Tateando a vida com


sagacidade, alguns jovens afirmam sua liberdade como outrora internos os rebelados na
FEBEM, os jovens estudantes e contestadores, os punks que vagam pelas ruas de uma
grande cidade. Enfrentam punições e violências com vigor e coragem. Sabem que a
transgressão, por ser isto mesmo, não pode ser compreendida nem esperada. É preciso
estar atento para o que enunciam essas insurgências, algo que a mentalidade punitiva não
comporta e não suporta!

Quando não capturadas em programas, projetos, propostas e partidos, as atitudes de


jovens revoltados alertam para possibilidades de liberação de uma forma de lidar com a
vida calcada na mentalidade punitiva, que há muito apodrece, como alertaram, aos
anarquistas e operários do final do século XIX, as intempestivas incursões de jovens
terroristas como Émile Henry — não tanto por suas bombas, mas pela atitude desafiadora
em face de verdades que se pretendem incontestáveis e de uma sociedade que se crê
eterna.
[1] Hulsman, Louk. “Alternativas à Justiça Criminal” in Passetti, Edson (coord.). Curso
livre de abolicionismo penal. São Paulo/Rio de Janeiro, Nu-Sol/Revan, 2004, p. 35.

[2] Sobre o funcionamento da Liberdade Assistida (L.A.), ver: Souza Santos, Thiago.
“Liberdade Assistida: uma tolerância intolerável”. In: Verve, n. 9, São Paulo, Nu-Sol,
2006, pp. 115-128.

[3] Godwin, Willian. “Crime e punição”. Tradução de Maria Abramo Caldeira Brant in
Verve, n° 5. São Paulo, Nu-Sol, 2004, pp. 11-84.

[4] Resende, Paulo-Edgar A. e Passetti, Edson (orgs). Proudhon. São Paulo, Ática, 1986.

[5] Foucault, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 2002, pp. 253-254.

[6] Maitron, Jean. “Émilie Henry, o benjamim da anarquia” in Verve, n. 7, São Paulo,
Nu-Sol, 2005, pp. 11-42. Ver também, a respeito dos embates anarquistas, Augusto,
Acácio. “Os anarquistas e as prisões: notícias de embate histórico” in Verve, n. 9, São
Paulo, Nu-Sol, 2006, pp. 129-141; ver ainda “Terrorismo anarquista e a luta contra as
prisões”. In: Passetti, Edson e Oliveira, Salete (orgs) Terrorismos, São Paulo, Educ, 2006,
pp. 139-148.

[7] Passetti, Edson. “Heterotopias anarquistas”. In: Verve, n. 2, São Paulo, Nu-Sol, 2002,
pp. 141-173; e Passetti, Edson. “Vivendo e revirando-se: heteretopias libertárias na
sociedade de controle”. In: Verve, n. 4, São Paulo, Nu-Sol, 2003, pp. 32-55.

[8] Passetti, Edson. “Ensaio sobre um abolicionismo penal” in Verve, n° 9, São Paulo,
Nu-Sol, pp. 83-84.

[9] Ver Passetti, Edson (coord.). Curso livre de abolicionismo penal. São Paulo/Rio de
Janeiro, Nu-Sol/Revan, 2004. & Passetti, Edson (org.). Conversações abolicionistas: uma
crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo. IBCCrim, 1997.

[10] A sugestão de abolicionismo e anarquia como uma parceria-força contra o


encarceramento de jovens no Brasil, pode ser observada em uma série de trabalhos do
Nu-Sol, desde seu primeiro boletim mensal eletrônico Hypomnemata, em www.nu-
sol.org, consultado em 28/07/2007. A denominação específica para esta associação como
uma parceria-força é apresentada por Oliveira, Salete. “Anarquia e dissonâncias
abolicionistas” in Revista Utopia, n° 22, Lisboa, 2006, pp. 29-32 e em ponto e vírgula.
Revista eletrônica do programa de estudos pós-graduados em ciências sociais da PUC-
SP, São Paulo:PUC-SP, agosto 2007, n. 1.

[11] Passetti, Edson et alli. Violentados: Crianças, adolescentes e justiça. São Paulo,
Imaginário, 1999, pp. 170. Limito-me, aqui, apenas traçar um breve percurso da
emergência dessa associação entre anarquia e abolicionismo penal. Os desdobramentos
dessa prática podem ser acompanhados a partir das pesquisas do Nu-Sol e de suas
publicações, como a Revista Autogestionária Verve, o boletim eletrônico mensal
Hypomnemata e nos comentários semanais em Flecheira Libertária, problematizando a
anarquia e o abolicionismo penal. www.nu-sol.org

[12] Foucault, Michel. Vigiar e punir. Trad.: Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 2002.

Acácio Augusto
Pesquisador do Nu-Sol; Mestrando no programa de Estudos Pós-Graduados em Ciâncias
Sociais da PUC-SP; bolsista CNPq, Integrante do Centro de Cultura Social de São Paulo
(CCS-SP).
Vida e morte nas ruas de São Paulo

Juliana Abramides dos Santos


Assistente Social Formada pela Faculdade de Serviço Social da PUC-SP em 2005

Este artigo refere-se à análise realizada a partir de minha experiência de trabalho nas ruas
do centro da cidade de São Paulo, nos anos de 2005 e 2006, como redutora de danos
relacionados ao uso e abuso de substâncias psicoativas1 (SPAs) e assistente social na
organização não governamental Centro de Convivência É de Lei.

Central - São Paulo

Neste início do século XXI, é quase impossível conceber a vida fora das cidades, ou ao
menos, sem ter a referência da vida urbana. O urbano constitui-se em espaço de
admiração, produção social de riqueza e apropriação desigual, fruição social e coletiva, e
diferenciações que se imbricam com a questão material.

Na megalópole central do país, encontramos a mais perfeita caracterização da sociedade


do consumo, a sociedade esquizofrênica, epicentro do capitalismo e do poder. Entre
canários, sirenes, turbulências, máquinas, humanos e humanóides (pessoas alienadas de
muitos âmbitos da vida); pânico, medo, ansiedade, depressão, jogo de interesses, jogos
patológicos, reificação, desejo, individualismo, vontade de morte, descontentamento,
compulsões; comportamentos que geram angústia de maneira latente à precariedade da
vida humana.

Como um reflexo condensado e síntese do que acontece nas periferias e por toda cidade,
no centro, todo dia se cruzam dois milhões de pessoas: trabalhadores do comércio, de
empresas públicas e privadas, em serviço público, bancários, profissionais liberais, do
sexo (homens, mulheres e travestis), camelôs, catadores de papel e papelão, catadores de
latinhas, engraxates, caixeiros-viajantes, artesãos, feirantes, panfleteiros, “homens-placa“,
crianças trabalhando; moradores de edifícios clássicos e simples, moradores em cortiços,
pensões, hotéis e ruas; turistas nacionais e estrangeiros, transeuntes em circulação, em
divertimento e a passeio; empresários, banqueiros, comerciantes; representantes dos
poderes executivo, legislativo e judiciário; estudantes; religiosos em pregação;
manifestantes em protestos e reivindicações; músicos, malabaristas, estátuas humanas,
cuspidores de fogo; boêmios e botequeiros…

Não há, na cidade, região mais rica em aparelhos culturais, de saúde ou educação. O
centro da cidade de São Paulo aparece cheio de luz, de lojas de videogames e fliperamas,
serviços, comidas, fácil locomoção, em que o corpo sensório se inebria pelos estímulos
visuais de cores irreais num mundo do prazer e do imaginário.
A rua como espaço público apresenta relações de consumo, de lazer, de afetos, de
violência, de uso, abuso e comércio das drogas. A faixa etária da população que está
vivendo a sociabilidade das ruas mediada pelo uso e abuso de substâncias psicoativas está
na larga faixa dos sete aos vinte e um anos.

Entre as crianças há uma incidência em relação ao uso e abuso de solventes e de crack,


substâncias bastante prejudiciais à saúde física, psíquica e neuronal. Esses “seres-zinhos”
que fazem uso de drogas, desde cedo, por vezes, têm sua formação corporal contida e
podem ficar anões.

Nas ruas, a criança mantém uma rotatividade cruel. O sumiço de meninos é recorrente,
desaparece um e outro logo o repõe: parecem bonecas que estavam com defeito. Jogadas
no lixo, em poucos dias são repostas por outras, prontas a inalar a fumaça industrial.

A criança e o adolescente, por vezes, saem de casa rumo ao desconhecido como


alternativa a casa e à escola, “em busca de liberdade e na descoberta do mundo”. Nas
ruas, descobrem uma outra família. O tempo nas ruas ganha imediaticidade, posto que o
que se quer, pode até ser saciado momentaneamente (bico, alimento, droga, um troco).

As possibilidades de lidar com a espera, com a perspectiva projetiva e, portanto, de


planejar um futuro ficam mais prejudicadas: se, para o adolescente, o amanhã costuma
ser muito distante, se ele está na dinâmica da rua, o amanhã parece não existir.

Parte dos adolescentes e jovens sobrevive na ilegalidade da economia das drogas


psicoativas. Os “aviõezinhos” e os intermediários “pertencem à mesma classe de
indivíduos que já eram alvo das políticas de contenção social; eles já eram os principais
corpos a superlotarem os sistemas penitenciários” (Rodrigues, 2003:109).

As pessoas que usam SPAs nas ruas e os vendedores da ponta do processo de


comercialização das drogas, recrutados pelo narcotráfico, sofrem a repressão policial e
sua maioria é composta por setores empobrecidos, negros, marginalizados e que vivem
precárias condições de vida.

Cabe ressaltar que toda a população em situação de rua está sujeita à violência policial,
ao preconceito, à discriminação, ao estigma fortemente presente em uma sociedade de
classes, de exploração e opressão social. Essa situação é fortemente agudizada na
existência de novas gerações que nascem e crescem nas ruas desprovidas das condições
básicas de vida, em uma situação de barbárie social.

Em nossos trabalhos de rua, deparávamo-nos com diversos relatos de crianças e jovens,


em situação de uso e abuso de drogas psicoativas, sobre a violência de policiais da
Guarda Civil Municipal (GCM) e da Polícia Militar. A polícia tem espancado homens,
mulheres e crianças em situação de rua: nos mocós, nas ações de despejo e de
reintegração de posses de áreas ocupadas pelos movimentos de moradia, nas rondas
noturnas e diurnas. Torturas e abuso de autoridade marcam a atitude de diversos policiais
que utilizam suas ferramentas básicas: cassetete, gás de pimenta, bombas de efeito moral
e balas de borracha.

A Cracolândia e a Operação Limpa

No centro da cidade de São Paulo, especialmente na cracolândia[2], no distrito da Luz,


identifica-se uma epidemia de uso e abuso de crack, detectada a partir de 1989,
principalmente por adolescentes, jovens e adultos vivendo em situação de rua em
condições de extrema vulnerabilidade econômica, social e pessoal.

Sob a alegação da existência de comércio e consumo de drogas ilegais e da degradação


na região, a prefeitura do município São Paulo desencadeou uma série de ações,
denominadas “Operação Limpa”. As ações foram realizadas entre os dias 7 e 17 de março
de 2005, pelo Governo Serra, e posteriormente pelo Governo Kassab, de maio a julho de
2007, por meio da subprefeitura da Sé, sob a coordenação do subprefeito Andrea
Matarazzo.

A “Operação Limpa” comandada pela Policia Militar e pela Guarda Civil Metropolitana
resultou em repressão a centenas de pessoas: humilhação, espancamentos, prisões,
violência física e moral, apreensão e destruição dos insumos de prevenção que as pessoas
que usam e abusam das SPAs recebem dos redutores de danos e o fechamento de hotéis.

A nova-velha “higienização” do espaço urbano por meios repressivos e de “limpeza”, no


mais, leva à expulsão e eliminação da população em situação de rua. Crianças,
adolescentes e adultos sistematicamente autuados tiveram recolhidos os seus pertences
essenciais à sobrevivência: colchões, cobertores, panelas, entre outros. Expulsos,
passaram a procurar outras ruas, praças e mocós nas redondezas para poder continuar a
vida.

Uma das práticas dispensadas aos moradores de rua pela prefeitura de São Paulo para
fazer a “limpeza” de locais como o vale do Anhangabaú e a Praça da Sé é utilizar
caminhões-pipa, jogando água, durante a noite, naqueles que dormem na região, para
expulsá-los[3].

Esta realidade configura-se em disputa por territórios entre as pessoas em busca de


morada e o grupo interessado no mercado imobiliário e no comércio. Esse processo de
gentrificação resulta na expulsão da população de baixa renda da região central da cidade
e sua substituição por classes de alto poder aquisitivo.

A Investida Conservadora

A revalorização do centro junto ao poder público e demais instituições da sociedade é


proposta pela Associação Viva o Centro – Sociedade pró-revalorização do Centro de São
Paulo na defesa dos interesses dos proprietários de imóveis localizados em área de
deterioração, ou seja, uma associação de proprietários urbanos de setores da economia,
comércio, serviços, instituições privadas e públicas. A associação organiza ações locais
nas microrregiões do centro para fiscalização da atuação do poder público e o
encaminhamento de sugestões e propostas.

O predomínio de comerciantes é marcado pelo conservadorismo, ao se pautar por


interesses diretamente ligados às suas condições de proprietários, enfatizando soluções de
expulsão dos camelôs e da população de rua, além de maior policiamento, com base em
razões que vão da “concorrência desleal” do comércio informal a interesses diretamente
ligados à valorização de seu patrimônio imobiliário.

Pode-se observar, sobretudo, os fortes vínculos da Viva o Centro com o PSDB/PFL nos
governos estadual (Geraldo Alckimin, Cláudio Lembo e José Serra) e municipal (José
Serra e Gilberto Kassab). Esta relação de interesses entre o Viva o Centro, o Executivo e
parte do Legislativo é de suma importância para a concretização de leis, esforços da
polícia e efetividade de objetivos que somente são possíveis com a ação do poder
público. A criação do Pró-Centro, pela pressão do Viva o Centro, impulsionou a
“Operação Limpa”.

Essa revalorização pressupõe, do ponto de vista do capital, uma política de requalificação


urbana com ênfase na valorização e renovação urbano-imobiliária, em detrimento do
atendimento das necessidades sociais das populações pauperizadas que vivem no centro
em situação de barbárie social.

O depoimento do representante do Viva o Centro da região da Praça João Mendes é


justamente nesse sentido:

“O que tem que acontecer no centro aqui em São Paulo, na minha opinião, é faxina, é
limpeza, depois sim para vir algum construtor, que tenha o maior interesse em construir
aqui uma grande torre, um grande prédio, um grande shopping no Centro, mas como é
que a gente vai trazer o nosso convidado para cá, se a gente tem vergonha de trazer um
convidado dentro do nosso escritório? Eu tenho vergonha! (palmas) É prostituição,
senhor secretário! (…)” (Frúgoli Jr. 2000:93).

A região do centro de São Paulo, apesar de alguma revitalização, restauração e


tombamento, apresenta-se bastante deteriorada e abandonada pelo Estado. A restauração
dessa área central pressupõe, necessariamente, a implantação de políticas sociais públicas
para a população ai residente. No entanto, essas políticas se mostram bastante reduzidas e
insuficientes.

Políticas de Atenção à População em Situação de Rua


O atendimento a esta população tem sido fundamentalmente emergencial por meio de
alojamento em albergues e abrigos e no incentivo para que as pessoas retornem às suas
cidades de origem, ofertando passagens de ônibus. Desconhece-se que essa população já
é moradora de São Paulo por segundas e terceiras gerações e não se apresentam
alternativas de política social pública de emprego, renda e moradia.

O reconhecimento legal da política da Assistência Social, pela constituição de 1988,


como uma política pública de direitos significou avanço para o atendimento à população
pauperizada e sem acesso a direitos sociais e trabalhistas. Porém, a ausência de políticas
sócias estruturantes (trabalho e moradia) e universais (saúde e educação) que a ela se
articulem restringe essa política a um atendimento pontual, focalizado em programas
compensatórios funcionais à reprodução da desigualdade e de manutenção do
capitalismo.

Historicamente, o Estado respondeu à população em situação de rua por meio de políticas


“higienistas” e controle social repressivo em que a “Questão Social” era concebida como
caso de polícia. A partir da década de 1930, no período do Estado Novo, incorpora-se o
atendimento às necessidades sociais decorrentes da “Questão Social” como política
pública estatal. Esse atendimento, porém, desenvolve-se desde a gênese, basicamente por
ações emergenciais e convênios com entidades sociais que reproduzem, em grande parte,
um caráter assistencialista, de benemerência, de favor, caritativo no âmbito das entidades
filantrópicas e religiosas.

Um orçamento um pouco maior, para a execução dessa política pública, foi destinado em
algumas experiências implementadas por governos democráticos e populares. Veio
acompanhado de pressão e mobilização dos movimentos sociais que lutaram por
orçamento e implementação de políticas sociais públicas. Destaca-se, porém, que a partir
do avanço da gestão neoliberal na esfera do Estado, há uma drástica diminuição de
recursos orçamentários voltados às políticas sociais universais, e há uma ampliação de
programas sociais compensatórios.

No que se refere à política de atenção à população em situação de rua, o controle


autoritário e “higienista” desempenhado por parte do governo municipal da cidade de São
Paulo tenta eliminar os indivíduos sociais tidos como improdutivos e parasitários, e
eliminar o uso de SPAs, algo visto como um hábito pernicioso à manutenção da ordem.

As pessoas que usam drogas psicoativas são consideradas, em grande parte, de forma
extremamente preconceituosa e estigmatizada, em que a moral conservadora orienta-se
por uma conduta sócio-cultural repressora, punitiva e de culpabilização.

O despreparo policial para lidar com a população em situação de rua e das pessoas que
usam e abusam de SPAs se manifesta por uma polícia truculenta. Torna-se premente uma
vigilância social e coletiva no sentido de denunciar e combater as arbitrariedades e
abusos de poder.
A chacina dos moradores de rua ocorrida em 2004 e a ação de “limpeza” da população
com esguichos de caminhão pipa, em maio e julho de 2007, evidencia claramente esta
prática, tornando explícito o papel do Estado de legitimador da desigualdade e de
controle social.

A degeneração total do Estado democrático de direito se desnuda, a democracia política


do Estado burguês é meramente formal, uma vez que os direitos constitucionais existem,
em sua maioria, apenas na lei. A ação iniciada em 2005 pela prefeitura de São Paulo no
governo Serra e reavivada em julho de 2007 pelo governo Kassab expressa a violação
desses direitos:

“Violação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da
Constituição Federal): Atuação repressiva do poder público, que deveria garantir a
segurança e as condições essenciais de sobrevivência da população vulnerável”.

Violação do direito à cidade sustentável (art. 2o, inciso I, do Estatuto da Cidade, Lei
Federal n. 10.257): Negação do direito à terra urbana, à moradia, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer previsto, bem como do acesso a programas e
projetos de inclusão social e habitacional.

Violação ao direito à moradia adequada (art. 6º da Constituição Federal): Não-


atendimento da população de baixa e baixíssima renda por programas de habitação de
interesse social nos processos de intervenção urbanos; em muitos casos, as ações
vitimaram as crianças (contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente) e idosos
(contrariando o Estatuto do Idoso).

Violação do Direito à Igualdade e não-discriminação (art. 5º, "caput", da Constituição


Federal): Discriminação da população de baixa renda - neste caso, os moradores de rua -
mediante a repressão e expulsão forçada dos locais onde se abrigam.

Violação do direito de liberdade de ir e vir (artigo 5º da Constituição Federal): Restrição


de circulação e permanência das crianças, dos adolescentes e moradores de rua da região
central da cidade de São Paulo, praticada principalmente por policiais da Guarda Civil
Metropolitana”. (http://dossie.centrovivo.org/Main/CapituloVIIParte2).

Concluindo
As ações autoritárias, policialescas, repressoras e punitivas agravam o quadro de
complexidade da população que vive em situação de rua e dos indivíduos que usam e
abusam das drogas psicoativas. Estas ações aprofundam o preconceito, os estigmas, a
intolerância, a intransigência, a discriminação, o racismo e a opressão de classe e etnia.

O enfretamento dessa barbárie social demanda necessariamente uma ação coletiva e


permanente dos movimentos sociais, profissionais, intelectuais, sindicatos e organizações
autônomas no sentido de lutar por garantia e ampliação de direitos sociais e políticas
sociais universais (saúde e educação), políticas de emprego e moradia, assistência social,
cultura, lazer; combater as discriminações, estigmas, intolerâncias e preconceitos que
recaem fortemente sobre a população em situação de rua e em situação de uso e abuso
das drogas psicoativas.

Tal prática social pressupõe reconhecer essa população em suas particularidades e


trajetórias de vidas, suas expectativas, vontades, individualidades e em suas
possibilidades como sujeitos sociais. Atuar, portanto, com uma concepção de vida e de
moral que tenha como valores a igualdade, a liberdade e a universalidade na direção de
uma sociedade sem exploração de classe, opressão de gênero e etnia, na perspectiva de
um projeto emancipatório de sociedade.

1Optei por utilizar preferencialmente o termo substância psicoativa seguida do termo


droga psicoativa e por último droga sempre colocado em itálico, uma vez que, esse termo
é xulo, utilizado como algo desprezível, horrível e ruim no dia-dia popular (Que droga de
vida!). O que cotidianamente chama-se drogas e pejorativamente tóxicos são as
substâncias que ao serem ingeridas alteram a linha do pensamento e o estado de
consciência: café, guaraná, cigarro, cocaína, anfetamina, etc.

2 A Cracolândia é o espaço público urbano formado pelo quadrilátero das ruas Mauá,
General Couto de Magalhães e avenidas Duque de Caxias, Cásper Libero, Ipiranga e Rio
Branco onde vive uma população estigmatizada por sua condição de ter a rua como único
meio de sobrevivência e moradia e por fazer uso de drogas psicoativas

3 Outra medida adotada na região central foi a instalação de uma “rampa mendigo” sob
um viaduto, no cruzamento da Avenida Paulista com a Avenida Doutor Arnaldo. A
ocorrência de assaltos na área, em instantes de engavetamento de trânsito, foi o
argumento usado pelo subprefeito Matarazzo em 22 de setembro de 2005.

Referências Bibliográficas

BRITES, Cristina Maria. Uso de droga injetável e redes de interação social - Prazer e
cuidados com a saúde, é possível? Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC/SP, 1999.

FRÚGOLI JR, Heitor. Centralidade em São Paulo: Trajetórias, conflitos e negociações na


metrópole. São Paulo: ed. Cortez, 2000, p.69 a 109. HANSEN, João Adolfo. Pós
–Moderno & Cultura. In Samira Chalub (org.), Pós- Moderno &, Rio de janeiro: Imago,
2000. pp. 37 - 63.

HYGINO, Angela e Garcia, Joana, in Drogas: a permanente (re) encarnação do mal.


Revista Serviço Social e Sociedade. V.74. ano XXIV julho de 2003. Saúde, qualidade de
vida e direitos. São Paulo: Cortez.

RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico, uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino, 2003.
ROSA, Cleisa Moreno M. e outros. População de Rua: quem é, como vive, como é vista.
São Paulo: Hucitec, 1992.

Site consultados:
http://dossie.centrovivo.org/Main/CapituloVIIParte2
http://www.midiaindependente.org
http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=25&id=284

Juliana Abramides dos Santos


Assistente Social Formada pela Faculdade de Serviço Social da PUC-SP em 2005;
Redutora de Danos e Assistente Social do Cantro "É de Lei", em 2005 e 2006,
trabalhando com crianças, adolescentes, jovens e adultos em uso e abuso de substâncias
psicoativas e em situação de piti.
Homens sem rosto
identidades perdidas de uma população no cárcere

Wagner Hosokawa
Assistente Social formado pela PUC-SP

Apresentação e análise

Conhecendo o sistema carcerário apenas pelo olhar da mídia, muitas vezes não
observamos os rostos ou identidades dessas pessoas que perdem nomes e naturalidades,
entre outros pertences da sua individualidade. O que é apresentado nos programas de
linha policial a partir da lógica “mocinho e bandido” esconde a realidade presente na
diária reprodução da ideologia dominante que limita as relações sociais, na sociedade
capitalista contemporânea, e torna a população carcerária em meros casos que “infringem
a ordem estabelecida pela legislação penal vigente”.

A criminalização da questão social não deve ser apontada apenas como uma manifestação
pura e simples do individuo, mas como resultante dos aspectos sócio-econômicos,
políticos e culturais pelos quais se apresenta. A própria reorientação do capitalismo na
década de 1990, que aumenta sua acumulação via reestruturação produtiva, gera
mudanças no processo de desenvolvimento industrial no Brasil, deslocando inclusive
suas prioridades para o mercado financeiro, com métodos de produção cada vez mais
dinâmicos, rápidos e quantitativos. Esses fatores reduzem significativamente os postos de
trabalho, e sao elementos do período neoliberal em nosso país.

A alienação do trabalho alcançou um elevado estágio neste período da história, quando o


individuo se individualiza, se desprende das idéia de coletivo e de vida comunitária, para
se jogar à lógica da luta pela sobrevivência individualista. Como diz Ianni, “talvez se
possa dizer que esse desencontro entre a sociedade e a economia seja um dos segredos da
prosperidade dos negócios (no capitalismo moderno) (...) em outros termos, a mesma
sociedade que fabrica a prosperidade econômica fabrica as desigualdades que constituem
a questão social” (Ianni, 1991). Em relação a essa analise e à criminalização do
indivíduo, observemos a opinião do Sr. Alberto Silva Franco, desembargador aposentado
do TJ de São Paulo, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (15/08/04), sobre a
proposta de revisão da lei de crimes hediondos: “quem está num nível de miséria é um
perturbador do sistema econômico. O Estado mínimo não está preocupado com o social
(...).”

Isso se aplica ao modelo de Estado Mínimo adotado pelos governos desde o fim da
década de 1980, num projeto que combina a desaceleração do desenvolvimento produtivo
e o fortalecimento do mercado de capitais como política econômica na América Latina,
inclusive no Brasil. Essa opção impôs uma idéia de que a melhor distribuição de renda
acontece como conseqüência natural do crescimento econômico, da estabilidade
monetária e do equilíbrio financeiro.
Passada mais de uma década, esse modelo não se mostrou eficaz, e mais uma vez ocorreu
o seu inverso: aumento de desempregados na última década, queda de poder aquisitivo e
renda e aumento dos crimes voltados contra o patrimônio.

Esta situação engendrou, como via possível, o subemprego, a informalidade, a


mendicância, a dependência de programas de transferência de renda ou, em último caso, a
criminalidade.

Buscamos, a partir desta compreensão da sociedade, partir para um estudo sobre a


população carcerária, trazendo para o centro desse debate as particularidades de pessoas
que, de forma diferenciada, tiveram suas vidas cruzadas pela situação do cárcere, e terão
de aprender a ter uma nova convivência social, e buscar novos meios de sobrevivência no
“mundo” muito restrito que é o da penitenciária.

Partimos dos mesmos pressupostos que direcionam o trabalho realizado pelo Instituto
Terra Trabalho e Cidadania (ITTC)[1], que coordenou, de 1999 a 2001, uma pesquisa
minuciosa para conhecer a população carcerária da penitenciaria Mário de Moura
Albuquerque (P1, na cidade de Franco da Rocha-SP)[2].

Nosso objetivo aqui é construir um desenho das identidades dos presos para conhecê-los,
individualmente e coletivamente, nas relações sociais existentes antes do delito e no dia-
a-dia do cumprimento da pena. Nossa interrogação também diz respeito ao modo de
estabelecer as relações com estas informações e criar possibilidades no processo de
ressocialização dos presos.

A pesquisa, apesar da importância e riqueza dos seus dados, ainda não foi totalmente
analisada ou organizada de forma completa, pois alguns elementos novos são atualizados
pelo tempo, pelas mudanças na legislação, pelas penas já cumpridas ou deslocamento dos
presos para outras unidades penitenciárias. Também é preciso considerar uma margem de
diferença em alguns dados, devido à negativa ou desconhecimento do preso a respeito da
questão apresentada pelo entrevistador. Assim, algumas análises não dizem respeito ao
universo total pesquisado, mas esse cuidado foi adotado, para que não se generalize
aquilo que se mostrou parcialmente na visão dos entrevistados.

Mesmo assim, as informações colaboram para apresentar um perfil de uma população,


não reconhecida como formada por indivíduos que têm direitos, com um cotidiano
desconhecido pelo próprio sistema penitenciário e pela sociedade.

No universo total da pesquisa[3], temos informações de caráter quantitativo e também


questões abertas (de caráter qualitativo), sendo 327 os presos pesquisados.

Apresentação preliminar dos dados

Uma das primeiras categorias que destacamos é sobre o trabalho. 270 dos entrevistados
citaram pelo menos uma categoria de trabalho no item “profissão”, contra 54 que não
responderam por não terem clareza sobre seu ofício, antes de cometerem o crime. Isto
significa que apenas 16% não declararam ter exercido uma profissão ou trabalho.

Sobre a idade dos condenados, a ausência de perspectiva entre os jovens está refletindo
inclusive no seu ingresso nos crimes comuns, seja o furto, seja o roubo, e no universo da
nossa pesquisa, temos 153 jovens de 18 a 25 anos já condenados. É a faixa etária de
maior concentração, são 47% de jovens alijados do convívio social. Portanto, a maioria é
de trabalhadores e jovens.

Também é relevante o número de presos que tiveram passagem pelo sistema FEBEM
(Fundação do “Bem-Estar” do “Menor”)”[4]. Cerca de 60 entrevistados responderam
positivamente quando perguntamos se o preso em questão já esteve interno num sistema
ou participou de outras medidas sócio-educativas[5].

Isso mostra uma população jovem e trabalhadora envolvida na criminalidade e alijada de


sua capacidade de produzir socialmente, a partir do cerceamento de sua liberdade,
resultante de suas histórias de vida e das oportunidades (não) colocadas à disposição da
grande massa da população brasileira em situação de vida precária e vulnerável, como
veremos a seguir.

Pessoas que, nas entrelinhas da própria pesquisa, buscam reencontrarem-se em


atividades, visitas ou até mesmo em cartas. Buscam, assim, retomar uma sociabilidade
mínima durante o cumprimento da pena e o retorno à sociedade, que não se dá apenas
pela condição de sair em “liberdade”.

Deixamos claro que não apresentamos uma opinião de intervenção “moral”, como se
apresentam nos instrumentos da ideologia dominante[6] que querem imputar sobre a
população carcerária a responsabilidade única pelo crime, como se houvesse divisão entre
“bons ou maus”, desconsiderando as diferenças de classe, de oportunidade e de inserção
social existentes em nossa sociedade.

Execução penal no Brasil, verdades e mentiras sobre a atual situação carcerária e a


realidade social vivida
As informações da pesquisa refletem, em parte, os resultados de estatísticas nacionais,
como os dados do IBGE[7], chamados de “Dados do Século XX”, que reúnem
informações sobre o perfil da população brasileira neste último século. No capítulo
“Justiça”, apresenta inúmeras alterações do perfil da população carcerária entre as
décadas de 1940 e 90, bem como a diferenciação dos crimes.

Os crimes contra o patrimônio[8] representam apenas 26%, em 1943, dos motivos totais
de condenações. Em meados de 1985 quase 58%. Se considerarmos nossa pesquisa,
realizada em 1999-2001, dos 327 pesquisados, 199 foram condenados por roubo, outros
22 por furto, 47 por tráfico, e apenas 18 por “matar alguém”.
Nos relatos dados pelos pesquisados no item “causa do delito”, em que se perguntava
“por que realizou tal atividade criminosa”, temos 106 respostas abertas que afirmam que
cometeram crime de furto e roubo em função de “desemprego”, “necessidade financeira”,
“ajudar a família” e “melhorar as condições de vida”.

Porém, devemos considerar os diferentes processos históricos pelos quais passou a


sociedade brasileira, entendendo seu crescimento populacional e as diversas mudanças
socioeconômicas que foram determinantes para a alteração do comportamento em relação
ao crime e à violência.

Considerando a violência como um fator da crescente desumanização, é interessante


trazer para a análise a perspectiva do relatório da ONU[9] sobre os países latino-
americanos: “durante o decênio 1980-1990, os salários mínimos urbanos reais
diminuíram, quase em todos os países da América Latina”. Essa análise guarda relação
com a mudança de perfil carcerário apontada acima.

Dados do “Mapa da Violência 4 – os jovens do Brasil” colocam nosso país em quinto


lugar no ranking de homicídios entre os jovens na faixa dos 15 aos 24 anos: de cada 100
mil jovens brasileiros, 52,1 foram assassinados em 2000. Na pesquisa, há um
comparativo desse quadro sobre os custos da violência, por exemplo, representando 10%
do PIB só em atendimento aos casos de homicídios na saúde. Na maioria dos casos, os
motivos são os mesmos: ascensão social por meio de atividades ilícitas e crimes que vão
de roubo e furto a tráfico de drogas.

Segundo Pochmann[10], “... o jovem fica vulnerável a alternativas ilegais de


sobrevivência (...) onde o desemprego não é um componente isolado”. Observando as
análises de especialistas de outras áreas, há mais lenha nessa fogueira da relação do
jovem e a reprodução da questão social. Na matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo
(04/04/04), sob o titulo “Fenômeno cria geração perdida”, cinco pesquisadores de uma
instituição ligada à Unicamp afirmam que “a permanência na marginalidade teria raízes
nos ganhos aferidos com as ações criminosas e no grau de envolvimento com o crime,
atividade na qual muitas dessas pessoas – em algum momento da vida – encontraram a
única forma de subsistência”. Considerando os dados no estado de São Paulo, os
pesquisadores informam a “proporção assustadora”: das mais de 125 mil pessoas nas
cadeias, a maioria é jovem e presa por roubo.

Na mesma matéria, há apontamentos sobre que tipo de relação o Estado vem fazendo
sobre a questão da segurança e criminalidade. ”(...) o Estado usa o enorme número de
capturados para sustentar o sucesso da ação policial e frisar uma falta de relação direta
entre o melhor policiamento e a queda da criminalidade. Mas a quantidade de presos,
dizem os estudiosos de segurança, não necessariamente reflete eficiência da força
estatal”.

Como conseqüências disso, há uma inserção cada vez maior de presos e presas
cumprindo pena em condições questionáveis, segundo informações inclusive de
organizações de defesa dos direitos humanos, e constantes crises no interior do sistema
penitenciário.

Números de matrícula: esquecendo várias histórias de vida.

Reconhecendo a realidade enfrentada no interior do cárcere, e fazendo relação com os


dados nacionais apresentados, podemos afirmar que: o sistema constituído atualmente
não depende apenas de recursos, mas também de um projeto que possibilite realizar ações
de atendimento que resguardem os direitos dos presos na construção de seu perfil e de
sua identidade no sentido da ressocialização e inserção dos egressos e das egressas na
sociedade.

Na pesquisa realizada pelo ITTC[11], no cabeçalho de identificação do entrevistado,


associados ao seu nome, estão os números de matrícula de cada um no sistema. Não
questionamos a importância das regras que delimitam a organização administrativa da
instituição penal. Nosso ponto é a “institucionalização da pessoa”, evidenciada a partir do
momento em que ela é reconhecida no sistema pelo seu número, e não pelo seu nome.
Podemos dizer que ela é rebatizada, o nome de nascença é o número de encarcerado.

A partir daqui, apresentamos uma análise dos dados da pesquisa para que nos leve a
entender o cotidiano dos presos.

No item “situação carcerária”, a questão sobre “quais cursos gostariam que fossem
oferecidos na Penitenciária” recebeu as seguintes resposta: 139 indicações em cursos de
informática, 109 de elétrica, 88 de enfermagem, 125 de desenho mecânico e 61 de outros.
Destacamos a iniciativa do preso para qualificar-se, atualizar-se ou formar-se em algum
curso técnico que possibilite apreender mais conhecimento durante o cumprimento da
pena e que lhe possibilite algum trabalho no cárcere ou quando do seu regresso à
sociedade.

Sobre as atividades realizadas pelos presos, foi perguntado: “quais atividades culturais e
educacionais que participa”. Temos 160 respostas para “atividades religiosas”, seguidas
de 130 para “festas” e 79 para “palestras”, ou seja, esses mesmos presos participam de
algum tipo de ocupação do próprio tempo, dedicando-se a alguma atividade, mesmo que
tenha valor subjetivo, como no caso da religiosa. Porém, as ofertas são ínfimas, restritas
em diversidade e qualidade[12].

Para a questão: “gostariam de participar de alguma atividade e de quais atividades”,


temos 131 respostas para a realização de hortas comunitárias, 108 para música
(instrumentos musicais), 93 para pintura ou artesanato, 88 para criação de pequenos
animais, 56 para teatro e 27 para outros. Ficam claros os vários interesses dos presos e
suas possibilidades de criatividade, apontando que o trabalho não deve ser a única
alternativa, pois outras atividades são direitos garantidos pela legislação.
Em relação à situação familiar dos presos, 277 afirmam ter família. Destes, 35 afirmaram
estar casados, 20 solteiros e 132 “amasiados” (termo que trata de um relacionamento a
dois sem formalização legal); contra 47 que responderam não ter família constituída.

A identidade e o perfil do grupo de presos da P1 ganha mais uma característica: eles são
jovens, trabalhadores e se sentem pertencentes a uma família. É uma informação
importante para podermos traçar ações e políticas públicas para a sociedade e para o
público no sistema penitenciário.

Sobre a comunicabilidade com o “mundo exterior”, temos, nas respostas sobre as visitas,
220 entrevistados que afirmaram receber algum tipo de visitante, acrescidos de outros 50
detentos, que declararam receber visitas esporádicas. Ainda sobre as visitas, na categoria
“recebe visita de quem”, são citados desde “familiares” genericamente, e,
especificamente, citados com maior freqüência, “pai, mãe, filho(a), esposa e irmã”,
seguidos de primos(as), tias(os), namorada, avô e avó. Sobre o “recebimento de
correspondência”, cerca de 260 recebem cartas de pessoas, familiares ou amigos(as).

Vale destacar a presença marcante de presos da cidade de São Paulo, em torno de 137(na
sua maioria da zona leste, norte e sul – nesta ordem), e de cidades da grande São Paulo,
como Guarulhos, o grande ABCD, Osasco, Santa Isabel e Suzano, entre outras. Algumas
cidades do interior são mais citadas, como Campinas e Ribeirão Preto, e ainda
encontramos presos oriundos de cidades como São José do Rio Preto, Teodoro Sampaio,
Registro e Amparo, que somadas, representam 52 dos detentos do interior do estado de
São Paulo.

Lembramos que há situações precárias em termos econômicos e sociais das famílias,


onde distância é um fator importante para impossibilitar o contato maior e constante com
o parente próximo, a esposa, a companheira ou com os amigos, dificultando a
manutenção dos laços de amizade e as relações sócio-afetivas.

Identidades espalhadas pelo chão do sistema:


Recomeçando pelos limites impostos pela sociedade.

Na questão “escolaridade”, temos: presos com primário completo são 35, e com primário
incompleto, 100, seguidos de 121 presos com ginasial incompleto e apenas 21 com
ginasial completo. 14 apresentavam ensino médio incompleto, e 4 tinham completado o
ensino médio; 4 tinham ensino superior incompleto, e 2 completaram esse nível de
estudo. Apenas 6 não informaram sua escolaridade, e 20 afirmaram ser analfabetos. A
falta de um programa educacional interno que viabilize ampliar estas faixas de
conhecimento e oportunizar a alfabetização é uma situação a ser considerada.

O nosso jovem detento, trabalhador, paulista, constituiu família e têm escolaridade


situada na incompletude dos diversos níveis de ensino, seja primário, ginasial ou médio.

Sobre a “profissão” dos presos, 270 afirmaram ter ofícios ou conhecimentos


especializados. Existem habilidades e conhecimentos que não são potencializados no
presídio, pois 136 presos informaram não ter ou não realizar nenhuma atividade de
trabalho no cárcere.

Outros 118 estão atuando em algum tipo de trabalho, em oficinas de trabalho, atividades
internas da administração, na cozinha ou em atividades externas. Assim, a chamada
“ociosidade” nos presídios é o que impera, não pela recusa do preso, não pela ausência de
qualificação, não pela falta de interesse do preso em aprender o novo, mas pela ausência
de ações constituídas para exercício de trabalho ou desempenho de atividades.

Mesmo na realização dos escassos trabalhos oferecidos pelo sistema, encontramos


precariedades. Nas questões relativas às condições de trabalho e segurança e sua
existência ou não na penitenciária, mais especificamente na questão: “recebe
equipamento de segurança?”, 106 presos afirmaram não haver oferta de equipamentos de
segurança para a realização do seu trabalho. Em outra questão, sobre problemas de
higiene no ambiente de trabalho, foram dadas 30 respostas afirmativas, alegando 17
situações problemáticas nos sanitários, 15 no sistema de esgoto, 8 no ambiente da
cozinha e 2 na oficina.

À pergunta “você já sofreu algum acidente de trabalho na penitenciária?”, 19


responderam que sim, sendo que 4 afirmaram ser de “queda”, outros 9 relacionaram o
acidente com o material utilizado no trabalho (produto químico etc.), e os demais não
responderam ou não souberam responder.

Para além de questões de formação e déficit de ocupação do preso, temos o descaso em


relação à legislação trabalhista[13], de segurança individual, na falta de estímulo quanto
aos hábitos de higiene e cuidado pessoal, se refletindo em todo o cotidiano do preso.
Mesmo no trabalho, não há preocupação em manter os indivíduos, o grupo e o coletivo
protegidos de riscos e condições insalubres.

Segundo os entrevistados, a profissão é fundamental na perspectiva de retorno ao


convívio familiar e social. A esse respeito, vale a pena comentar sobre um pequeno
resultado obtido a partir da pesquisa citada, quando os profissionais do Instituto Terra,
Trabalho e Cidadania, a partir da análise e leitura das informações obtidas nas entrevistas,
realizaram um esforço no sentido de aproximar os desejos e as necessidades indicadas
pela população carcerária, por meio do reconhecimento da existência de uma necessidade
coletiva de melhoria da alimentação e da pouca oferta de atividades internas no cárcere.

O resultado foi a proposição e a implantação de um projeto de horta, a ser implementada,


cuidada e desenvolvida pelos presos, e que foi encaminhada pela entidade juntamente
com a diretoria de produção do presídio, para a diretoria geral. O projeto resultou em uma
atividade concreta para um grupo de presos e, ao mesmo tempo, em melhoria na
qualidade da alimentação diária.

Com relação a outros direitos e garantias, destacamos o item: “há contagem de remição
da pena[14]?”. Temos 200 respostas positivas, porém, quando perguntado: “você
controla?”, há apenas 129 respostas afirmativas. Isso mostra o não acompanhamento do
preso em relação ao seu direito, pela ausência de informações que o auxiliem no
acompanhamento dos seus direitos.

Quanto à saúde dos entrevistados, destacamos algumas informações, no item “você


tratava de alguma doença antes de ser detido?”. 48 responderam que sim, e 279, que não.
Porém, mais adiante, era perguntado: “depois que chegou aqui, apresentou alguma queixa
ou doença?” Temos 101 respostas afirmativas, mostrando que as condições do cárcere
são promissoras para o desenvolvimento de situações de falta de saúde, e ainda não
demonstram a presença de medidas de prevenção ou atendimento especializado para
tratamento de doenças conseqüentes da idade, hereditariedade ou adquiridas no cárcere.

Nas questões de sexualidade, relacionadas a saúde, temos no item “orientação sexual”, as


seguintes quantidades: 303 heterossexuais, 8 homossexuais e 3 bissexuais. Sobre as
visitas íntimas, 187 afirmaram que não recebem, e 140 afirmaram receber. Destes, a
maioria recebe na própria cela, e 113 com freqüência quinzenal, contra 24, de freqüência
esporádica. Quando perguntados se receberam na penitenciária algum tipo de orientação
sobre o uso de preservativos, cerca de 141 responderam que sim, em oposição aos 186
que responderam não.

Ainda na questão da saúde, e mais especificamente sobre saúde mental, cabe expor os
resultados do item “saúde mental antes de ser preso”, na questão “você sofreu algum tipo
de agressão?” Temos 119 respostas, que foram divididas e classificadas pelo tipo:
espancamento, 116; violência sexual, 2; e tortura, 31. Os outros tipos de agressão são:
humilhação, 79; ameaça, 61, e extorsão, 28. É importante ressaltar que temos várias
respostas múltiplas por isso supera - e muito - os 119 que responderam afirmativamente.

Esses resultados são seguidos pela pergunta seguinte: “se foi agredido fisicamente, por
quem foi?” Mesmo que haja um grande número de entrevistados que “afirmam” sofrer
algum tipo de agressão por parte de autoridade policial, a pesquisa não se aprofundou
suficientemente nesta questão.

Não há como afirmar quais são as razões ou situações que envolveram a agressão, seus
motivos, porém cabe afirmar que não há amparo legal ou moral que justifique a violência
como procedimento sobre uma população contida, privada da liberdade e que deveria ter
sua integridade física e moral assegurada pelo Estado.

Conclusão
Nem Santos, nem Demônios:
Desmistificando a imagem projetada para a sociedade, reconstruindo rostos.

Observando os números, dados e informações vindos dos próprios presos, pairam no ar


inúmeras indagações, reflexões e perguntas que levam nossa imaginação para uma
situação inimaginável: e se fossemos nós a estar nesta situação? Justamente porque a
conclusão a que se chega, olhando toda a estrutura que mantêm o sistema carcerário, é
que a sociedade brasileira não deveria ter um sistema carcerário que desumaniza e
desvia-se da sua tarefa.
Por outro lado, olhar para o dia-a-dia, as histórias de vida, as questões que levaram cada
um deles a cometer um crime, enfim, a compreensão e a aproximação do perfil dos 327
presos da Penitenciária de Franco da Rocha indicam caminhos e instrumentos
fundamentais para pensar ações de ressocialização do preso dentro de possibilidades
restritas, sem grandes investimentos, sem grandes ilusões mas, no mínimo, dentro da lei.
Isso significa mexer nas questões que envolvem o sistema carcerário.

Esse desvelar do preso e do cárcere mostra-nos o quanto é importante levar para a


sociedade este debate, rompendo o estigma, presente e assumido, inclusive por quem se
encontra cumprindo pena, aceitando a violência, acomodando-se e naturalizando a prisão
como uma roda viva para quem nela está. Para quem nela passou ou a ela retornou, por
reincidência, é assim e “sempre será!”

Há de se acumular propostas alternativas e reverter o quadro de violência e falta de


oportunidades para a classe trabalhadora paulista (no caso da P1), e mais, ampliar as
oportunidades para o preso caracterizado como: jovem, ex-trabalhador, com pouca ou
nenhuma escolaridade, com sentimentos e valorização da família a que pertence, enfim,
ampliar as oportunidades para o cidadão brasileiro, que se encontra privado do convívio
social e submetido a condições desumanas nos presídios.

Acreditamos que revelamos um vasto campo de limites e possibilidades no sentido de


fazer incorporar um outro olhar sobre os presos.

[1] O ITTC é uma organização não governamental que atua na defesa dos direitos
humanos. E em São Paulo, hoje, tem sua ação, prioritariamente, voltada ao atendimento
de presas estrangeiras, em convênio com Secretaria da Administração Penitenciaria
(SAP), e presas brasileiras em geral, distribuídas pelos “presídios” da capital paulista.

[2] A pesquisa citada deu origem no mesmo período ao desenvolvimento de projeto de


apoio a ressocialização dos internos desta penitenciária.

[3] A pesquisa possui nove categorias, sendo: 1) dados gerais; 2) dados processuais; 3)
dados sociais; 4) situação carcerária; 5) trabalho; 6)saúde; 7)saúde mental; 8) saúde
atendimento; 9) hábitos; no item citado os dados “causa do delito” estão contidos nos
dados processuais

[4] O sistema FEBEM citado refere-se à medida de internação e medidas em meio aberto
que compõem o artigo 122, que trata das medidas sócio-educativas (cap. IV, seção VII),
contidas na lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

[5] As medidas sócio-educativas surgem como um novo paradigma sobre a atuação da


sociedade, por meio do Estado, para a reinserção do adolescente infrator e volta ao
convívio familiar ou com a comunidade. A esse respeito, o Estatuto da Criança e do
Adolescente se contrapõe à concepção punitiva contida no revogado “código de
menores”.

[6] Sobre “as classes sociais e o estado”, V. Lênin, 1917, do livro “O Estado e a
revolução”, cap. I. Nesse capítulo, autor trabalha sobre a literatura marxiana para analisar
como se reproduz, na sociedade capitalista, a diferença entre as classes, e como o Estado,
as forças armadas e inclusive as prisões atuam na forma repressiva do capital para conter
revoltas ou ações contrárias aos objetivos dominantes.

[7] IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia Estatística, fundação pública vinculada ao


Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão do governo federal.

[8] Consideram-se “crime contra o patrimônio” o furto, o roubo, o estelionato e o


latrocínio, pela legislação vigente e utilizada pela pesquisa do IBGE.

[9] Relatório de 1994, do comitê preparatório da cúpula social mundial, ONU.

[10] Professor de Economia da Unicamp e ex-secretário de trabalho da Prefeitura de São


Paulo (na gestão Marta Suplicy).

[11] Pesquisa desenvolvida em 1999-2001, pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, já


citada.

[12] Ressaltamos o que está estabelecido pela Lei de Execuções Penais (LEP), no seu
artigo 41, com referência aos direitos do preso: “V - proporcionalidade na distribuição do
tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; VI - exercício das atividades
profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com
a execução da pena; Vll - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e
religiosa”.

[13] Artigos 138 e 153 e 154 do decreto 611/92.

[14] O condenado que cumpre pena em regime fechado ou semi-aberto pode remir
(abater) pelo trabalho parte do tempo de execução da pena na proporção de um dia de
pena por três horas de trabalho (art. 33 da LEP). V. Manual dos direitos dos presos,
publicado pelo ITTC (Instituto Terra, trabalho e cidadania).

Referências Bibliográficas
OLIVEIRA, Isaura de Mello Castanho; PAVEZ, Graziela Acquaviva, e SCHILLING,
Flávia, Reflexões sobre violência e justiça. São Paulo, Educ, (ANO).

Fernandes, Florestan, “Apontamentos sobre a teoria do autoritarismo”;


Folha de SP, Cotidiano, (15.08.04), sob o título “Direito Penal não resolve o problema” –
questões pendentes na configuração de uma política social: uma síntese – Laura Tavares
analise publicada em dezembro de 2004, no site www.outrobrasil.net.

IANNI, O. “A questão social”. In: São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Jan/Mar. 1991.
COMPLETAR REFERÊNCIA

ITTC, Manual dos direitos dos presos, São Paulo;

Wacquant, Loic, “Porque punir os pobres: uma nova gestão da miséria nos Estados
Unidos” Instituto Carioca de Criminologia – editora Freitas Bastos;

Yazbek, Maria Carmelita, Revista Temporalis – Abepss, ano II, n° 03 jan a jun / 2001 –
“A questão social no capitalismo”, texto Pobreza e exclusão social: expressões da questão
social no Brasil.[GK1]

Wagner Hosokawa
Assistente Social formado pela PUC-SP.
Violência doméstica e familiar
uma demanda a ser enfrentada

Laisa Regina Di Maio Campos Toledo


Assistente Social e Socióloga; Doutora pela PUC-SP

A violência doméstica e familiar, na particularidade da violência contra a mulher, não é


um fato recente, embora só nas últimas décadas tenha sido visibilizado publicamente.

Os dados da OMS sobre violência são alarmantes. Uma pesquisa encomendada pela
ONU e realizada por Ongs e universidades brasileiras, desde 2001, com 1.172 mulheres
entre 15 e 49 anos de todas as classes sociais, de São Paulo e Pernambuco, e divulgada
pela Organização Mundial da Saúde, OMS, no final de 2005, mostra um quadro
preocupante em relação à violência de gênero:

27% das paulistas e 34% das pernambucanas já sofreram violência doméstica infligida
por seus maridos;

Destas, 40% em SP e 37% em PE, admitiram ter sofrido pelo menos uma vez
escoriações, cortes, perfurações na pele, ruptura dos tímpanos e queimaduras. Uma em
cada três destas vítimas teve de ser hospitalizada em conseqüência das agressões;

10% das paulistas e 14% das pernambucanas já sofreram violência sexual, ou seja, foram
obrigadas a manter relações sexuais pela força ou por ameaças;

essas mulheres apresentam mais chances de ter problemas de saúde do que as que nunca
sofreram violência, e também são duas vezes mais suscetíveis a cometer suicídio;

entre 8% e 11% sofreram violência física durante a gravidez, sendo que um terço
corresponde a gestantes atingidas na região do abdômen.

em São Paulo, 25% das entrevistadas diz ter enfrentado violência física ou sexual desde
os 15 anos, apontando seus pais e parentes do sexo feminino e masculino como
responsáveis (CRESS, 2006).

Na prática, como assistentes sociais, cotidianamente, enfrentamos as mais diversas


manifestações da violência doméstica e familiar. Desde a mais visível, como a violência
física e sexual, até as mais sutis, às vezes pouco consideradas, como a violência moral e
psicológica. Não trataremos de nenhum tipo especial de violência, mas sim da violência
de gênero que se objetiva no espaço privado, entendido como o doméstico e familiar. O
foco deste artigo é a análise da questão no âmbito do debate teórico e das mediações
presentes na situação da violência doméstica e familiar[1], na perspectiva de apontar
caminhos indicativos para ações programáticas futuras na agenda das políticas públicas.
Partimos do pressuposto teórico de entender a violência como situação, isto é, é
relacional, pressupõe atores envolvidos, é particularizada e mediatizada pelas condições
materiais e culturais de vida e sociabilidade.

Este artigo está angulado em três pontos. No primeiro, ensaiamos uma incursão teórica
em torno do debate teórico e das possíveis mediações presentes na situação da violência
na relação com o poder. No segundo, algumas determinações postas no contexto da
situação da violência doméstica e familiar. No terceiro, algumas considerações sobre a
questão ética e política da estratégia de empoderamento das mulheres. Finalmente, nas
considerações finais, indicamos alguns pontos para reflexão quanto às formas de
enfrentamento dessa questão.

Violência e poder

Segundo Saffioti (2004), a violência contra a mulher inscreve-se no âmbito da violência


de gênero. Na violência de gênero, a mediação é o abuso do poder assegurado, no espaço
privado, pela ideologia do patriarcado. Assim como gênero é constitutivo das relações
sociais, da mesma forma a violência é constitutiva das relações entre homens e mulheres,
e se localiza historicamente na ordem patriarcal de gênero.

Segundo essa autora, a ideologia da ordem patriarcal foi forjada para dar cobertura a uma
estrutura de poder pela qual as mulheres se convencem de que a subalternidade é natural.

Saffioti (2004:96) instala a questão da violência no terreno dos direitos humanos,


entendendo por “violência todo agenciamento capaz de violá-los”. Para essa autora, no
senso comum, a violência pode ser entendida como a ruptura de diferentes tipos de
integridade: física, sexual, emocional e moral. Nessa definição, reside o perigo de perder
a referência objetiva e política da violência, pois ruptura dá margem à interpretação
singular. “A ruptura de integridade como critério de avaliação de um ato como violento
situa-se no terreno da individualidade”. São muito tênues os limites entre quebra de
integridade e obrigação de suportar o destino de gênero, o destino de ser socializada para
sofrer.

Para Chauí (1984), a violência é:

Uma realização determinada das relações de força tanto em termos de classes sociais
quanto em termos interpessoais. Consideramos haver diferença entre a relação de força e
a de violência (ainda que esta seja uma realização particular daquela). A pura relação de
força visa, em última instância, a aniquilar-se como relação pela destruição de uma das
partes. A violência, pelo contrário, visa manter a relação mantendo as partes presentes
uma para a outra, porém uma delas anulada em sua diferença e submetida à vontade e à
ação da outra. A força deseja a morte ou supressão imediata do outro. A violência deseja
a sujeição consentida ou a supressão mediatizada pela vontade do outro que consente em
ser suprimido pela desigualdade. Assim, a violência perfeita é aquela que obtém a
interiorização da vontade e da ação alheias pela vontade e pela ação dominada, de modo a
fazer com que a perda da autonomia não seja percebida nem reconhecida, mas submersa
numa heteronímia que não se percebe como tal. Em outros termos, a violência perfeita é
aquela que resulta em alienação, identificação da vontade e da ação de alguém com a
vontade e a ação contrária que a dominam (Chauí, 1984: 35).

Chauí considera a violência sob dois outros ângulos além do entendimento de violação ou
transgressão de normas:

Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação
hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é,
a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e
inferior. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas
como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo
que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência
(Chauí, 1984: 35).

Um aspecto importante a ser ressaltado a partir dessas considerações é o caráter da


sujeição da vontade alheia, resultando em alienação e subalternidade, implícitas na
situação de violência, o que implica, necessariamente, a dimensão política do aviltamento
dos direitos humanos..

A perspectiva política redimensiona a questão da violência. O tema da violência é


recorrente na literatura acerca da mulher. No entanto, a grande tônica se assenta na
denúncia da mulher como vítima do homem. Por essa visão, o homem detém o poder
absoluto e a mulher é subjugada passivamente aos mandos e desmandos, colocando-se
numa posição perigosamente essencialista e maniqueísta, que projeta a mulher como boa
e o homem, como vilão. Essa perspectiva foi decorrente das primeiras pautas dos
movimentos feministas e de mulheres que se angularam na direção de colocar a mulher
como vítima do homem, no tom de um discurso emocionado e até raivoso.

A revisão desta perspectiva apontou para a incursão teórica nos meandros da situação da
violência, superando o antagonismo reducionista da relação para a dimensão da
complementaridade e contradição. Ou seja, não podemos colocar a mulher passivamente
na situação de violência, pois os dois pólos do poder instalado na situação de violência,
“algoz e vítima”, complementam-se contraditoriamente. De alguma forma, a mulher é
parte constitutiva dessa relação, mesmo que de forma alienada ou subjugada pela força ou
pelo medo.

Saffioti (1992) e Toledo (1995) reconhecem que o subalterno integra de forma


constitutiva a relação de poder de dominação e exploração. Segundo Toledo,

só os estudos mais recentes, acerca das relações de gênero, reconhecem a subalternidade


no interior das relações sociais, atravessadas pela ideologia da burguesia patriarcal,
através da qual homens e mulheres foram socializados. Ou seja, o poder imanado do
patriarcalismo não é uma prerrogativa do homem, um poder hegemônico, privilégio
apenas do homem, mas tanto a mulher quanto o homem reproduzem esta questão.
Portanto, podemos questionar se realmente a mulher é subjugada passivamente. Parto do
pressuposto que a subalternidade não é uma via de mão única: é antes uma dinâmica
plena de antagonismos e complementaridades, sem a qual não se poderia reconhecer a
própria condição do subalterno e de quem subalterniza. Nesse sentido a mulher também
complementa e é sujeito dessa questão tanto quanto o homem (Toledo, 1995: 66).

A subalternidade é uma das faces do poder, e se manifesta vinculada a uma idéia,


concepção ou representação socialmente aceita e legitimada no plano das relações
sociais. A forma mais perversa de sua objetivação é pela alienação e servidão ideológica.

Não basta a emancipação política e a igualdade, no plano da materialidade, se as


mulheres não romperem com a servidão ideológica à qual estão submetidas. A mulher,
por meio da socialização, apreende como “natural” o seu papel na sociedade, não
reconhecendo daí os limites dessa concepção para o seu desempenho e participação na
sociedade para além do determinado. A naturalização da subalternidade aparentemente
oculta o poder e a própria condição de subalterno. (Toledo, 1995: 68)

Se a subalternidade é a face do poder objetivada na relação de violência pela mulher,


segundo Saffioti e Almeida (1995), quando os homens perpetram violência estão sob o
efeito da impotência, pela necessidade de subjugar pela força. Efetivamente, os homens
convertem sua agressividade em agressão mais freqüentemente que as mulheres.

As mulheres são socializadas para conviver com a impotência; os homens – sempre


vinculados à força – são preparados para o exercício do poder. Convivem mal com a
impotência. Acredita-se ser no momento da vivência da impotência que os homens
praticam atos violentos, estabelecendo relações deste tipo (Saffioti, 2004:84).

Nessa lógica, a dinâmica envolvendo subalternidade e impotência é uma das faces


complementares e contraditórias da situação de violência. Ainda na tentativa de indicar
caminhos de análise, outra face da situação de violência é a relação entre controle e
medo. Saffiotti (2004) afirma que as relações de dominação e exploração e a disputa pelo
poder comportam, necessariamente, controle e medo, uma atitude e um sentimento que
formam um círculo vicioso na situação de violência doméstica e familiar.

Finalmente, reafirmando a perspectiva de que a situação de violência é relacional, um


ponto que merece destaque é a polemica em torno da cumplicidade da mulher na situação
de violência. Nessa direção, Chauí (1984: 47) polemiza o debate quando desenvolve a
tese da cumplicidade das mulheres na situação de violência a partir da questão da
dependência em face do outro. Para essa autora, a dependência é uma condição subjetiva,
engendrada pela própria definição do lugar social e cultural das mulheres. Os papéis de
gênero de esposa, mãe e filha são definidos como seres para os outros, não como seres
com os outros. Assenta-se na mediação do amor incondicional, que pressupõe abnegação,
sacrifício, aceitação e generosidade. Ao mesmo tempo, são atributos e virtudes do
feminino. A dependência se instala quando o ser para o outro impede de ser com os
outros e dos outros também serem para nós. Nessa situação de dependência para o outro
e, geralmente, do outro, Chauí infere que “as mulheres praticam sobre outras vários tipos
de violência porque reproduzem sobre as outras o mesmo padrão de subjetividade, isto é,
encaram as outras e esperam que estas se encarem a si mesmas como seres para outrem”
(1984: 48).

A questão da cumplicidade pela dependência também é apontada por Cardoso (1984: 18):

Em qualquer relação de imposição e desrespeito, os dominados são vítimas mais


freqüentes e por isso desenvolvem armas que são produtos de sua fraqueza. Tal como
acontece com outras formas de dependência, a condição feminina é muitas vezes
percebida como uma garantia confortável de proteção e respeito. As mulheres aprendem
a manipular os mesmos padrões que as desqualificam para exigir privilégios que, em
última análise, as mantém desiguais. Apesar da glorificação das mães e esposas, elas
nunca podem escapar à teia invisível que nossa cultura constrói para aprisioná-las em
uma contínua competição com outras mulheres (filhas, amantes, prostitutas etc.).
Estratégia de submissão, esse processo garante um poder efêmero que só se exerce na
esfera privada, mas que perpetua a dependência pública. A conseqüência dessa
contradição é que a condição feminina propicia a sensação de que as mulheres devem ser
respeitadas e, na verdade, elas se tornam alvos fáceis para todos os abusos.

Entendemos que o exercício não se esgota neste ponto, pois são várias determinações
presentes na situação de violência que permitem a construção de outras mediações. Nesta
perspectiva, as relações de poder presentes na situação de violência têm de ser analisadas
contemplando os meandros invisíveis do imaginário social, da moralidade, da
sexualidade e do discurso internalizado nos níveis da concepção de mundo, das relações
sociais e da identidade do homem e da mulher.

O espaço doméstico e familiar da violência

Segundo Saffioti, (20054:83) “a violência de gênero, inclusive em suas modalidades


familiar e doméstico, ignora fronteiras de classes sociais, de grau de industrialização, de
renda per capita, de distintos tipos de cultura (ocidental versus oriental) etc.”

A maior parte das situações de violência tem lugar em relações afetivas. Pela sua
excelência, o espaço privado media as relações de violência, materializadas na divisão
sexual do trabalho e subjetivamente asseguradas pela referência simbólica do lugar da
mulher na família. Pela ordem patriarcal de gênero, cabe à mulher a preservação da
família e dos vínculos afetivos, incluindo-se nestes os vínculos conjugais. Assim, em
nome da indissolubilidade da família e da relação conjugal, tudo deve ser tolerado e
preservado no campo da privacidade do lar. Por essas regras, “roupa suja se lava em
casa”, “em briga de marido e mulher não se mete a colher” etc. Esse tipo de imaginário
concorre para a resistência da mulher para tornar pública a violência que sofre, calada,
muitas vezes reposta no dia-a-dia por motivos banais, na nobre tarefa de preservar a
unidade familiar.
Segundo Cardoso (1985:18):

Ao prescrever para a mulher um papel passivo e submisso, a sociedade cria espaço para o
exercício da imposição. A socialização tradicional impõe às mulheres que abdiquem de
certas profissões, desejos, prazeres e que fiquem confinadas a certos ambientes. Isso,
porém, não é entendido como violência, embora seja uma violência institucionalizada. A
denúncia e a consciência desse tipo de violência só foi possível porque já existe uma
prática contrária, ou seja, já se abriu espaço para a discordância, uma vez que o que era o
reino privado de cada um passou a ser público e transformado em questão política.
Revela-se o lado não-manifesto (reprimido) das situações cotidianas”. [2]

Nessa lógica, a violência é institucionalizada, protegida pelo privado, pois o privado


protege a não visibilidade da violência, e a privação do privado concorre para a violência
não vista, garantida pelas instituições sociais. Nesse terreno, o maior aval é dado pela
família.

A nucleação da família em torno das relações entre marido e mulher, e entre pais e filhos,
produto da forma de organização social a partir do mundo do trabalho, favoreceu a
potencialização das emoções e as manifestações afetivas no espaço do privado. A família
contemporânea ganhou status de agente de proteção social, passando a ter uma
importância cada vez maior na socialização e proteção dos seus membros. Como espaço
da intimidade, a família ficou responsável pela produção e reposição dos afetos,
aparentemente não disponíveis no mundo perverso e cruel do trabalho.

A família como um “refúgio em um mundo sem coração”[3] é uma decorrência da falsa


cisão entre o público e o privado. Como refúgio, a família se permite ser o espaço das
relações afetivas intensas, legitimadas pelo amor incondicional. Ou seja, o amor
incondicional é a base ideológica da família nuclear burguesa. Segundo D’Incao (1989:
10):

A família nuclear burguesa caracteriza-se por um conjunto de valores, que são o amor
entre os cônjuges, a maternidade, o cultivo da mãe como um ser especial e do pai como
responsável pelo bem-estar e educação dos filhos, a presença do amor pelas crianças e a
compreensão delas como seres em formação e necessitados, nas suas dificuldade de
crescimento, de amor e de compreensão dos pais. Seria ainda próprio dessa situação o
distanciamento cada vez maior da família em relação à sociedade circundante,
circunscrevendo-se, dessa maneira, uma área doméstica privada em oposição à área
pública; esta última é sentida pela família como sendo cada vez mais hostil e estranha, e
não digna de confiança.

São inúmeras as questões que permeiam as relações no espaço do


privado/doméstico/familiar, e estas ganham tonalidades e contornos dependendo das
condições materiais de vida. Por exemplo, a violência de gênero, principalmente a
doméstica, aumenta em função do desemprego. Para Saffioti (2004: 85), “o papel de
provedor das necessidades materiais é, sem dúvida, o mais definidor da masculinidade.
Perdido este status, o homem se sente atingido em sua própria virilidade, assistindo à
subversão da hierarquia doméstica”.

Outra mediação por onde a situação de violência incide se dá no âmbito da sexualidade,


pois “um dos elementos nucleares do patriarcado reside exatamente no controle da
sexualidade feminina, afim de assegurar a fidelidade da esposa a seu marido” (Saffioti,
2004:49), e a legitimidade dos filhos como herdeiros consanguíneos da propriedade
privada (Engels, 1970), instaladas nas bases da família e do casamento monogâmico.
Posta desta forma, a mulher continua alvo da violência, reproduzindo a posição
antagônica em relação ao homem. Entretanto, a polêmica nesse terreno não é tranqüila.

No debate acerca da sexualidade, Chauí (1984 e 1991) levanta uma das contradições
presentes: em um momento em que se abriram as possibilidades para as fantasias e a
erotização das relações sociais, cada vez mais a repressão sexual é exercida às avessas, ou
seja, pela reificação da sexualidade. Desse aspecto, Chauí deriva a indagação se podemos
falar em violência apenas sobre as mulheres. Mais ainda, levanta que a mídia tem
veiculado mulheres indiretamente violentas, particularmente com outras mulheres, pois,
quando incrementam uma imagem de “fêmea desejável que a maioria das mulheres não
pode realizar (seja porque fisicamente não correspondem à imagem criada, seja porque
economicamente não dispõem de recursos e tempo para se fabricarem naquele padrão,
seja, enfim, porque seus desejos não se satisfazem através dessa imagem), estas correm o
risco da rejeição por parte de seus parceiros, sentindo-se indesejáveis, repugnantes e
desagradáveis” (Chauí, 1984: 59).

Podemos continuar instigando o debate na busca de outras mediações por onde a situação
da violência doméstica se objetiva. Sabemos que não esgotamos todas. No entanto, resta
uma questão: como podemos enfrentar essa questão no campo da ética e da política no
exercício profissional?

Por uma ética para o empoderamento

Os movimentos feministas, sem dúvida, partiram do ponto de vista essencialista ao se


afirmarem no projeto da luta específica da mulher, colocando-a como boa, e o homem,
mau, mas tiveram o mérito de colocar no debate público e político as questões do pessoal,
anunciando um aspecto que já vinha se mostrando visível, que era a transformação da
intimidade.

Heller (1982), analisando os movimentos feministas, considera que eles contribuíram


para a transformação da consciência das mulheres, e expressaram problemas e exigências
reais, embora nem sempre as formas fossem as mais adequadas, gerando distorções e
desentendimentos. De qualquer forma, “é uma conquista de tais movimentos o fato de
terem compreendido que ser ‘iguais e livres’ já não significava, para as mulheres,
identificarem-se com os homens e, mais precisamente, o fato de que as mulheres se
tenham tornado capazes de refletir sobre sua própria humanidade como feminilidade”
(Heller, 1982: 200)

Para Heller, as mulheres corriam o risco de se identificaram com a própria humanidade


por meio da masculinidade, a forma masculina de enxergar o mundo. Esse é o grande
risco quando pensamos em uma ética libertária. Identificar a humanidade pela
feminilidade significa construir um mundo diferente, no qual o homem seja “um
semelhante”.

No entanto, o empoderamento das mulheres não pode deslumbrar qualquer possibilidade


que signifique simplesmente a reprodução ou inversão de uma estratégia de poder ainda
alienante do homem e da mulher. A perspectiva é uma política de gênero que use o poder
de forma democraticamente compartilhada pela busca da igualdade, preservadas as
diferenças.

O debate acerca das desigualdades, portanto, deve se instalar no campo do poder e no


terreno da política, pois, para Saffioti (2004:116), “diferente faz par com idêntico; já a
igualdade faz par com desigualdade, e são conceitos políticos. Assim, as práticas sociais
de mulheres podem ser diferentes das de homens da mesma maneira que, biologicamente,
elas são diferentes deles”.

Cabe aqui uma observação. Quando falamos em empoderamento, a questão do poder


ganha um novo sentido.

Entenderemos o poder como a capacidade coletiva para tomar decisões concernentes à


existência pública de uma coletividade, de tal maneira que seja expressão de justiça,
espaço de criação de direitos e garantia do justo pelas leis, sem coação. Sendo poder
numa sociedade dividida em classes, não o confundiremos: 1) com os interesses
particulares das classes em presença e em luta; 2) com instituições que exprimam apenas
os interesses particulares dessas classes; 3) com instâncias de mando de uma classe sobre
outra; 4) com os ocupantes dessas instâncias. (...) Tomaremos como poder como
expressão dos direitos daquela parte da sociedade cujo desejo é não ser comandada nem
oprimida.” (Chauí, 1984: 34).

Nos projetos coletivos de empoderamento das mulheres, a direção somente pode ser
política: “trata-se mesmo da necessidade de um salto de qualidade para por as mulheres
no mesmo patamar que os homens, não esquecendo, porém, de humanizar os homens”
(Saffioti, 2004: 117), pois “trocar homens por mulheres no comando daria, com toda a
certeza, numa outra hierarquia, mas sempre uma hierarquia geradora de desigualdades”
(Saffioti, 2004: 94)

Para Heller (1992: 197), essa questão do empoderamento das mulheres também tem um
sentido, uma direção:
Nós, mulheres, temos de elaborar formas de expressão nas quais se manifeste a
igualdade, a paridade, afim de podermos - através dessa nossa prática - participar em uma
luta comum.

A não dominação e a não opressão devem estar, portanto, no horizonte ético de qualquer
forma de luta ou resistência. Não podemos nos esquecer que os homens, na questão da
violência doméstica, também são oprimidos e dominados.

O sofrimento de alguns homens seria mais agudo, ou intenso, ou generalizado, neste


momento atual de nossas sociedades, quando o poder masculino se vê questionado. Os
homens chegam a suprimir toda gama de emoções, necessidades e possibilidades, tais
como o prazer de cuidar dos outros, a receptividade, a empatia e a compaixão,
experimentados como inconsistentes com o poder masculino (Fonseca, 1998:191).

Essa perspectiva transita da visão essencialista para a libertária, segundo a qual


homens e mulheres têm um compromisso ético e histórico com o futuro a ser construído.

Formas de enfrentamento

Nos limites deste artigo, na perspectiva de apontar caminhos indicativos para ações
programáticas, finalizamos indicando alguns pontos para reflexão.

A necessidade de identificação da complexidade envolvida na situação da violência


doméstica, incorporando as demandas das famílias, particularmente aquelas em situação
de vulnerabilidade social.

A luta contra qualquer forma de violência deve ser pautada na perspectiva da luta pelos
direitos e uma relação igualitária entre os sexos.

O desafio é ir além da denúncia, procurando as armadilhas ideológicas e a codependência


que aprisionam os sujeitos implicados nesta situação..

Superar a perspectiva vitimizadora da mulher.

Entender os fatores de risco em relação às situações de violência cronificadas pela


reincidência, e as implicações daí decorrentes na perspectiva da proteção pessoal e social.

Informar e esclarecer acerca dos direitos no tocante à proteção das pessoas envolvidas.

Trabalho com os atores envolvidos na situação de violência, problematizando e


ressignificando a situação de violência.

Trabalho interdisciplinar e em rede


A demanda do trabalho particularizado com o agressor – entender as armadilhas
ideológicas e culturais.

BIBLIOGRAFIA

BARROSO, Carmen, BRUSCHINI, Maria Cristina A. “Sofridas e mal pagas”. In:


Cadernos de Pesquisa. (37) São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1981.

CARDOSO, Ruth. “Prefácio”. In Perspectivas Antropológicas da mulher. (4) Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1984.

CHAUÍ, Marilena “Participando do debate sobre mulher e violência”. In: Perspectivas


Antropológicas da mulher. (4) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1984.

_____ Repressão sexual. Essa nossa (des)conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1991.

CRESS. Informativo nº 75 de 15 de fevereiro de 2006

D’INCAO, Maria Ângela (org). Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989.

ENGELS, F.. El origen de la família, la propiedad privada y el Estado. Moscou:


Progreso, 1970.

FONSECA, Jorge Luiz C. L. Conhecer os Homens a partir do gênero e para além do


gênero - Homens e Masculinidades. São Paulo: Editora 34, 1998.

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

GIDDENS, Anthony A Transformação da Intimidade. São Paulo: UNESP, 1992.

HELLER, Agnes. “O futuro das relações entre os sexos”. In: Encontros com a
Civilização Brasileira. V. 26. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

LASCH, Christopher. Refúgio num Mundo sem Coração - A Família: santuário ou


instituição sitiada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

SAFFIOTI, Heleieth I. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

______. “Rearticulando gênero e classe social”, in Uma Questão de Gênero, Rio de


Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992.

______. e ALMEIDA Violência de Gênero – Poder e Impotência. Rio de Janeiro:


Livraria e Editora Revinter Ltda, 1995.
______ Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

SALEM, Tânia “Mulheres faveladas: com a venda nos olhos”. In Perspectivas


Antropológicas da Mulher. (1) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1980.

TOLEDO, Laisa R. Di Maio Campos As Multidimensionalidades do Feminino no Jogo


do Poder no Campo da Sexualidade - Um estudo na perspectiva da identidade. Tese de
doutorado. São Paulo: PUCSP, 1995.

[1] A “violência familiar envolve membros de uma mesma família extensa ou nuclear,
levando-se em conta a consangüinidade e a afinidade” (Saffioti, 2004:71). Pode ocorrer
no interior do domicílio ou fora dele. A violência intrafamiliar extrapola os limites do
domicílio. A “violência doméstica apresenta pontos de sobreposição com a familiar.
Atinge, porém, também pessoas que, não pertencendo à família, vivem, parcial ou
integralmente, no domicílio do agressor, como é o caso de agregadas (os) e empregadas
(os) domésticas”. (Saffioti, 2004:71)

[2] A questão da violência do espaço do privado como privação também é desenvolvida


por Chauí (1984:33), baseada em Hanna Arendt (A condição Humana).

[3] Esta é uma expressão retirada do título do livro de LASH, C. , 1991.

Laisa Regina Di Maio Campos Toledo


Assistente Social e Socióloga; Doutora pela PUC-SP; Coordenadora do Núcleo Família e
Sociedade da Faculdade de Serviço Social.
A violÍncia constitutiva dos padrıes atuais de sociabilidade
 

  maldiÁ„o do progresso irrefre·vel È a irrefre·vel regress„o . 
A
Adorno e Horkheimer

Marisa Feffermann
Doutora em Psicologia, Pesquisadora do Instituto de Sa˙de do Estado de S„o Paulo/ SES /
SP
Nas grandes cidades urbanas e na sua periferia, o desemprego È fator que concorrem para
a dissoluÁ„o de laÁos comunit·rios e para o desenvolvimento de outros processos, como
a delinq¸Íncia e a violÍncia. Observa-se, nesta realidade, um recrudescimento de tendÍncia
totalit·ria, em raz„o do avanÁo das forÁas produtivas e das relaÁıes de produÁ„o, que
acirram a contradiÁ„o do desenvolvimento tecnolÛgico atrelado ‡ reproduÁ„o da
misÈria e das desigualdades sociais. Dessa forma, pode-se conceber que o mercado ilegal
tem surgido como resposta ‡ marginalidade econÙmica.

O tr·fico de drogas se serve de atividades organizadas e polivalentes, e È imprescindÌvel
compreender a din‚mica do setor informal do tr·fico. As drogas se deslocaram da
condiÁ„o inicial de signo emblem·tico de uma vis„o de mundo underground e se
inscreveram no circuito do comÈrcio e das finanÁas internacionais. 

A proposta deste artigo È apontar alguns pontos de reflexıes sobre o processo de
constituiÁ„o da subjetividade que afeta os jovens da periferia submetidos ‡ convivÍncia
com o tr·fico de drogas e ao cotidiano da violÍncia. Faz-se necess·ria uma reflex„o sobre
um mundo inquietante, contraditÛrio, a um tempo revolucion·rio e conservador; um
mundo cheio de enigmas e de cartas marcadas, de desejo de viver e ‚nsia de transgredir: o
universo da sociabilidade dos jovens. A marca indelÈvel da Ind˙stria Cultural perpassa
cada linha deste par·grafo e as linhas da vida dos jovens. Urge entender a mortalidade
desses jovens, esse antagonismo violento, que a todo momento demonstra imenso grau de
intoler‚ncia, quando se perde a possibilidade da aceitaÁ„o do outro[1]. 

O jovem ocupa, em nosso tempo, um lugar certamente problem·tico. Na maior parte das
vezes, o que emerge do mundo jovem ecoa no mundo adulto como impertinÍncia, doenÁa
ou delinq¸Íncia. Muitos estudos reforÁam essa vis„o e tendem a patologizar os jovens em
conflito com a lei, privilegiando a raz„o da sua entrada na carreira de delinq¸ente  e
seus determinantes. O deslocamento da produÁ„o social da delinq¸Íncia para a
hereditariedade, para a famÌlia e para a estrutura psÌquica oculta suas origens histÛricas e
sociopolÌticas. Condenam-se essa pr·tica e seus agentes, antes de se tentar entender o que
acontece para que esses jovens, inseridos num contexto de perda de valores, de
frustraÁıes, de falta de expectativas, de violÍncia, se voltem para a droga como fonte do
prazer que lhes È negado no dia-a-dia.

Nessa realidade, parte da juventude pobre torna-se instrumento do tr·fico internacional de
drogas; observam-se cada vez mais a participaÁ„o juvenil nos grupos que atuam como
intermedi·rios neste mercado, universo no qual a violÍncia dissemina-se rapidamente.
Ressalte-se o fato de que a vivÍncia em grupo dos jovens n„o gera necessariamente
violÍncia, e que muitos grupos juvenis n„o s„o violentos. 

Ao jovem pobre  que trabalha ou de alguma forma est· ligado ao tr·fico de drogas æ,
s„o impregnados rÛtulos que, muitas vezes, tornam-se identidades. IndivÌduo
preguiÁoso, perigoso, mau car·ter, intrat·vel. Os estereÛtipos desfiguram a realidade,
encobrindo o que gera a desigualdade, e servindo, assim, como justificativa para a
dominaÁ„o. Dessa forma, a situaÁ„o de opress„o È naturalizada. Os estereÛtipos
delimitam campos, s„o categorias que impedem nossa identificaÁ„o com eles.  Quanto
mais distintos julgarmos que nÛs somos dele, mais protegidos nos sentiremos dos
impulsos hostis que nos pertencem  (CROCHIK, 1995: 22). 

A relaÁ„o de dominaÁ„o perpassa o cotidiano desses jovens. Buscam um lugar de
destaque no grupo e, muitas vezes, no tr·fico de drogas. Reproduzem a relaÁ„o de
dominaÁ„o a que s„o submetidos na sociedade em geral, na cultura do tr·fico de drogas.
Esses jovens respondem ‡ lÛgica vigente, discriminam qualquer diferenÁa, classificam,
rotulam, estereotipam, funcionam como um perfeito espelho da sociedade que os rejeita,
que os exclui. … importante questionar como ocorre a construÁ„o das subjetividades de
jovens que, desde muito cedo, s„o rotulados e sobrevivem por meio e apesar dos clichÍs,
dos estereÛtipos de pobres, negros e perigosos.

Os jovens, assim, agrupam-se na busca de uma identidade. Mas, se num primeiro
momento, essa È a finalidade, percebe-se que muitos desses grupos transformam-se em
grupos que tÍm como propÛsito, implÌcito ou explÌcito, a manutenÁ„o das condiÁıes
sociais.

Na tentativa de construÁ„o de sua subjetividade, que deveria ser feita pela experiÍncia -
relaÁ„o com o outro e pelo encontro -, na quase impossibilidade dessa construÁ„o, os
jovens v„o ‡ procura da autonomia ou de lugar de continÍncia, encontrando grupos
heterÙnomos, guiados pela lÛgica do pensamento dominante. 

… essa uma das ambig¸idades que o jovem vive no cotidiano, ‡ procura de relaÁıes
sociais que admitam o encontro de modelos identificatÛrios, que lhe permitam se
constituir como indivÌduo capaz de refletir sobre a realidade existente e procurar uma
identidade individual.

Os jovens discriminados utilizam-se do car·ter irracional da cultura vigente e, ao se
rebelarem, tentam demonstrar a responsabilidade ou a co-responsabilidade da sociedade
sobre seus atos. ExcluÌdos, reafirmam o obst·culo e o medo que a sociedade e a cultura
tÍm de enfrentar o diferente. O preconceito passa a ser uma das grandes conseq¸Íncias.
Segundo Crochik, o preconceito È engendrado pela cultura e se caracteriza pela
hostilidade manifesta ou sutil dirigida ‡queles que s„o considerados mais fr·geis 
(Crochik, 1997: 101). 

Os jovens envolvidos no tr·fico de drogas constituem-se na tens„o com essa realidade
objetiva. Uma malha que os enreda a cada movimento. Nesse emaranhado de fios, que se
entrelaÁam e se desfazem, v„o construindo a sua forma de estar no mundo, em condiÁıes
que podem ser consideradas quase irracionais, beirando a barb·rie.

H· evidÍncias[2] de que o trabalho no tr·fico È uma atividade muito arriscada, pelo
simples fato de ele se inscrever na ilegalidade, o que coloca o indivÌduo em uma situaÁ„o
de vulnerabilidade ‡s regras do sistema representado pela polÌcia ou pelo traficante. A
perspectiva de morte faz desses jovens refÈns de uma sobrevivÍncia sofrida e angustiada.
Cada dia de suas vidas È apresentado como uma prorrogaÁ„o da existÍncia; s„o os
sobreviventes. As atitudes desses jovens s„o de alerta constante, sempre atentos para se
defender de um perigo iminente. Buscam se antecipar ao risco, e apropriar-se de todas as
suas possibilidades. O cotidiano desses jovens faz com que a morte ganhe uma feiÁ„o
naturalizada, embora, pelas condiÁıes nas quais ela acontece, continue sendo assustadora.
A morte parece cercar esses jovens por todos os lados, seja ameaÁando suas prÛprias
vidas, seja a daqueles que lhes s„o prÛximos. … preciso reconhecer a din‚mica psÌquica
do ser humano em tens„o com a violÍncia existente na sociedade, para entender como a
internalizaÁ„o da violÍncia constitui as subjetividades. 

Esses jovens vendedores   trabalhadores  da ind˙stria do tr·fico -  tÍm obrigaÁıes, e
seguem regras de trabalho. O contrato existente nas relaÁıes de trabalho È verbal. A
puniÁ„o para o desrespeito de uma regra pode ser a morte. S„o o elo entre o dono do
ponto-de-venda e os consumidores, os fregueses da droga, garantindo sua circulaÁ„o. No
contrato, uma das condiÁıes implÌcitas È a lealdade  ao patr„o, o silÍncio em relaÁ„o ‡
identidade do dono do ponto-de-venda. Os jovens vendem a sua forÁa de trabalho, que
envolve o risco, no enfrentamento com a polÌcia e com os concorrentes . Vivem a
ilegalidade, o sigilo e a necessidade de estar em constante estado de alerta. O uso da arma
faz parte deste processo. Nessas condiÁıes, passam a pertencer a um grupo, a adquirir
objetos de consumo, o que seria quase impossÌvel por outros meios. E tambÈm, por causa
disso, s„o reconhecidos e respeitados. Essas atitudes s„o reforÁadas pela sua faixa et·ria,
que em conjunto com o risco e a transgress„o tornam esses jovens a parte mais vulner·vel
desta engrenagem.

As regras no tr·fico s„o estabelecidas para que o comÈrcio ilegal de drogas possa ocorrer
de modo satisfatÛrio e lucrativo. H· regras comuns no tr·fico, mas as formas de aplic·-las
s„o diferentes. As relaÁıes s„o assimÈtricas, o poder do dinheiro e do lugar ocupado
determina a situaÁ„o, mas os elementos que garantem esta relaÁ„o s„o, de um lado, o
medo de ser morto, ou excluÌdo da comunidade, e de outro, a necessidade de ser aceito
no grupo. A manutenÁ„o do poder reside na condiÁ„o de ser respeitado, seja por medo,
seja por dÌvida de gratid„o. Este poder È mantido n„o somente ‡ custa de armas, mas pela
lealdade e confianÁa que estes jovens tÍm para com os donos de pontos-de-venda. Assim,
por atitudes despÛticas apresentadas por traficantes-chefe, È imposto o respeito pelo
medo, ou pelo paternalismo que dissimula o excesso de autoridade sobre a forma de
proteÁ„o que mantÍm o grupo estruturado. Para os jovens que trabalham  no tr·fico,
È a possibilidade de um lugar de pertencimento. Dessa forma, constituem-se formas de
lidar com os conflitos que ocorrem em um grupo que, sob condiÁ„o marginal, busca
formas de sobrevivÍncia e de garantia de poder. A partir dos depoimentos dos jovens, h·
alguns indÌcios de como È o sistema coercitivo do tr·fico. Esses grupos re˙nem condiÁıes
para construir relaÁıes sociais subjacentes ‡ marginalidade, especificamente em relaÁ„o
ao crime. Os valores do processo de sociabilidade possuem traÁos idÍnticos aos de uma
sociedade na qual as relaÁıes de trabalho ocorrem como forma de exploraÁ„o. Nessas
relaÁıes, s„o identificadas regras que n„o disfarÁam a dominaÁ„o. E nisso difere da
hipocrisia das regras do contrato social burguÍs, em que a dominaÁ„o est· dissimulada, e
esta m·scara torna-se em um mecanismo elaborado de manipulaÁ„o. 

Os comportamentos marginais, apesar de neles haver discriminaÁ„o e de serem sujeitos
de puniÁ„o social e legal, afirmam-se e se ampliam, criando estratÈgias de sobrevivÍncia
que instauram novos cÛdigos simbÛlicos que permitem outra ordem. Estes jovens
trabalhadores do tr·fico, ao romperem algumas estruturas, colaboram com a
manutenÁ„o de outras. O pertencimento ao universo das relaÁıes existentes no tr·fico
leva ‡ ruptura com os valores da sociedade, o que implica fazer parte de regras e valores
constituintes desta relaÁ„o.

Estes jovens se constituem na mesma lÛgica da sociedade capitalista. S„o atraÌdos pelos
mesmos Ìcones: competiÁ„o, poder, ast˙cia, mulher, dinheiro, arma e carro, entre outros,
que lhes d„o legitimidade. Forma-se, assim, uma sociabilidade na qual a busca do poder
ocorre por meio de elementos de legitimidade semelhantes aos dos jovens que n„o atuam
no tr·fico e que ressignificam os modelos do discurso dominante. 

O jovem no tr·fico, n„o encontrando reconhecimento nas instituiÁıes legÌtimas da
sociedade, procura outra forma de ser reconhecido. A falta de perspectiva quanto ao
futuro desta sociedade que contribuiu para a sua posiÁ„o de marginal È uma das razıes
que o motiva a ter um lugar, no qual pode ser respeitado, e obter dinheiro; nas relaÁıes
do tr·fico, o jovem busca a aquisiÁ„o de bens reconhecidos e socialmente valorizados.

Estes jovens convivem cotidianamente com a violÍncia: o crack, por sua caracterÌstica,
sua potÍncia e elevado grau de produzir dependÍncia, impulsiona os usu·rios a todo o tipo
de atitude para obterem a droga; a polÌcia, como agente representante do Estado, que em
muitos casos n„o cumpre o seu papel de controlador, perante uma lei que deveria servir,
mas age de forma corrupta e cruel; o tr·fico de drogas, nas disputas entre pontos-de-
venda, ou nos castigos exemplares e, ainda, a violÍncia produzida desses jovens - vÌtimas,
mas muitas vezes algozes - produz cenas que explicam a imagem que a ind˙stria cultural
impıe a eles a cada momento. O medo, o suborno e a corrupÁ„o s„o discursos que
permeiam essa realidade. Na verdade, s„o os mecanismos discursivos do crime e do
poder.

Assim ultrajados, no seu cotidiano, depositam em outros a agressividade recebida, em
quem possa ameaÁ·-los ou representar uma humilhaÁ„o. A crueldade dos jovens surge
como resposta ‡ humilhaÁ„o. Vivem e vÍem o contraponto, o da ostentaÁ„o, e reagem de
forma ainda mais pÈrfida, pois eles n„o conseguem se identificar com os sujeitos que
est„o sendo roubados. S„o histÛrias que mostram como os jovens se submetem a e
subjugam outros sujeitos. … um jogo de poder, pelo poder. As relaÁıes ocorrem pela
dominaÁ„o, que È suscitada pelo medo. O antÌdoto para isso sÛ seria possÌvel se
houvesse identificaÁ„o entre os indivÌduos na sociedade atual. Na ausÍncia de projetos
sociais compartilhados, o sujeito encara o outro apenas como objeto.

Adorno (1994) afirma que a incapacidade de identificaÁ„o foi a principal condiÁ„o
psicolÛgica para que Auschwitz pudesse acontecer. No contexto desta realidade, s„o
percebidas as conseq¸Íncias da incapacidade de identificaÁ„o. 

Os sentimentos de humilhaÁ„o podem gerar a revolta contra o sistema social vigente.
Associado ‡ ausÍncia de reconhecimento social, isso possibilita a esses jovens a pr·tica de
aÁıes cruÈis, nas quais s„o capazes de colocar-se em risco para conseguir os objetivos
desejados. A violÍncia, no tr·fico de drogas, institui-se como um dos fundamentos para
sua manutenÁ„o e expans„o.

Estes fatores contribuem para a constituiÁ„o de subjetividades que reproduzem e acirram
esta violÍncia. Subjetividade constituÌda por comportamentos compulsivos, talvez por
conta do risco, quando a ast˙cia È a forma empregada para contornar as situaÁıes
opressivas do cotidiano, o que lhes permite tomar decisıes atÈ nas piores condiÁıes, e a
crueldade È uma resposta a numerosas humilhaÁıes sofridas. H· de se considerar que
estar em estado de alerta produz, nesses jovens, a necessidade de criarem mecanismos de
enfrentamento que se ajustam constantemente. … necess·rio ter ast˙cia para lidar com as
artimanhas do seu trabalho  e do seu cotidiano.

O preconceito produzido pela ideologia, por meio da ind˙stria cultural e pelos agentes do
Estado, imprime nestes jovens um estigma, que muitas vezes È revertido para a
sociedade, com a mesma ou maior violÍncia. O preconceito corporifica-se, e o inimigo
deve ser destruÌdo. As condiÁıes objetivas s„o desconsideradas, e todas as energias se
voltam contra quem indica aspectos de ameaÁa e de medo. Estas atitudes contribuem
para o aumento das afliÁıes dos indivÌduos em suportar os confrontos que o processo da
vida lhes apresenta, tornando-se fr·geis na procura de autonomia. Numa sociedade
antagÙnica ao prÛprio indivÌduo, todos os recursos s„o empreendidos para suportar o
sofrimento. Para esse processo de adaptaÁ„o, È necess·rio ter frieza. Os jovens dessa
pesquisa exacerbam esta frieza, e declaram-na como forma de sobrevivÍncia. Como todos
os indivÌduos, n„o aceitam desprezo e humilhaÁıes, e freq¸entemente respondem com
violÍncia fÌsica. Contudo, as forÁas s„o desiguais, e os comportamentos destes jovens
transgressores reverberam ecos, que afirmam cada vez mais a sua responsabilidade pela
violÍncia. No caso do jovem que trabalha  no tr·fico, a situaÁ„o È mais pungente. De
um lado, o trabalho opressor, a crueldade das leis do tr·fico, que n„o admite falhas, por
outro, a repress„o da polÌcia. 

Numa sociedade de indivÌduos autÙnomos, com vÌnculos sociais, reduz-se a
possibilidade de ocorrer uma barb·rie dessa ordem, mas a identificaÁ„o imediata com as
tendÍncias irracionais repıe e reforÁa a manifestaÁ„o da barb·rie.

Como pensar no engajamento de um jovem numa sociedade que participa de sua
exclus„o, e que È justamente o que ele denuncia? Num paÌs de direitos n„o incorporados,
um ato de infraÁ„o configura-se como recusa recÌproca de integraÁ„o. A condiÁ„o
marginal que a sociedade impıe ‡ juventude da periferia se faz acompanhar da recusa
desses jovens aos comportamentos socialmente aceitos. 

Ou seja, diante da recusa do reconhecimento simbÛlico desses jovens, diante do desprezo
e da indiferenÁa a que est„o submetidos (mais acentuados ainda perante as desigualdades
sociais do cen·rio brasileiro), espera-se que a inst‚ncia da lei se faÁa valer pela forÁa
bruta.

Os jovens que vivem essa realidade a cada momento se enredam mais. A cultura imposta
pela ind˙stria cultural os envolve com promessas de inclus„o a qualquer preÁo, e os
impede, pela discriminaÁ„o, por estereÛtipos, de integrarem-se ‡ rede. Todavia, ao se
deslocarem, podem encontrar uma brecha, uma possibilidade, ainda que remota. Vivem
numa ambig¸idade de querer estar dentro e de lutar para sair dessa rede, dessa trama.

  

Bibliografia:

ADORNO, T. W. Temas b·sicos da sociologia. TraduÁ„o de ¡lvaro Cabral. S„o Paulo:
Cultrix/ Edusp, 1973.

ADORNO, T. (1941) Sobre M˙sica Popular. In: COHN, G (Org.). Theodor W. Adorno.
S„o Paulo, ¡tica, 1994.

ADORNO, T. W. EducaÁ„o e emancipaÁ„o. S„o Paulo, Paz e Terra, 1995.

COSTA, J. F. ViolÍncia e psican·lise. 2™ ediÁ„o, Rio de Janeiro, Graal, 1986.

CROCHIK, J. L. Apontamentos sobre o texto EducaÁ„o depois de Auschwitz  de T.
W. Adorno. In: EducaÁ„o e sociedade. S„o Paulo, n. 42, 1992, p. 342-351.

CROCHIK, J. L. Nota sobre a psicologia social de T. W. Adorno. In: Psicologia e
sociedade. v. 8, n. 1, jan./jun. S„o Paulo, 1996, p. 90-103.

CROCHIK, J. L. Preconceito, indivÌduo e cultura. S„o Paulo, Robe, 1997, 2™ ed.

FEFFERMANN, M. Vidas Arriscadas: jovens trabalhadores do tr·fico de drogas.
PetrÛpolis: Vozes, 2004.

 
 arisa Feffermann
M
Doutora em Psicologia, Pesquisadora do Instituto de Sa˙de do Estado de S„o Paulo/ SES /
SP, autora do livro "Vidas Arriscadas", ed. Vozes.

 
Trajetórias de violências e de controle sócio-penal

Maria Liduína de Oliveira e Silva


Professora do Curso de Serviço Social da Faculdade Mauá e da Universidade São
Francisco.
1- 1- Pátria, Lugar de Exílio

Como lobos de súbito


Irrompem na planície citadina
Carregados de morte
Seu nome é violência
Trazem na mão mortíferos sinais
E de órbitas vazias
Caminham em silêncio
Envoltos na solidão
Do crime encomendado
Marginam as esquinas
Escondem o rosto sob o aço liso
Dos capacetes
E anônimos ocultos
Pela espessa cortina de ódio e nevoa
Como robôs avançam
A morte engatilhada
Espero o momento de partir agora
Compra-se o ritual
Uma voz grita viva
A liberdade o coro lhe responde
Pontuados de tiros
Canalhas temos fome
Arranquemos as pedras da calçada
Ó meu amor resiste
(...)
Luis Filipe
Neste artigo, não tivemos a pretensão de assumir uma discussão mais sólida sobre o
controle sócio-penal, expresso na lei nº 8.069 de 1990, denominada Estatuto da Criança e
do Adolescente, ou simplesmente chamado de ECA. Tampouco procuramos propor
mecanismos de intervenção junto ao Sistema de Administração da Justiça Juvenil. Nossa
intenção foi, tão-somente, apresentar reflexões preliminares feitas a partir de nossos
estudos, militância e experiências na área de defesa dos direitos humanos de crianças e de
adolescentes, sobretudo, considerando a necessidade de expor esses dados para ampliar o
debate em torno das violências que cercam os adolescentes que cometeram atos
infracionais. Nesse sentido, nos propomos a trabalhar a questão dos adolescentes em
conflito com a lei penal a partir de uma relação inseparável entre violência e controle
sócio-penal, analisando este controle como parte constitutiva da violência
institucionalizada pelo capitalismo contemporâneo, e operacionalizada pelo Sistema de
Administração da Justiça Juvenil Brasileiro.

A questão dos adolescentes em conflito com a lei é uma temática atual, polêmica, de
relevância social, política e profissional, tendo em vista que envolve questões de ordem
estrutural, conjuntural, jurídica e social. Porém, apesar da enorme publicização, dos
calorosos debates acerca da redução da maioridade penal e da violência juvenil e de
numerosos estudos sobre essa temática, ainda ela ainda não foi pautada, com
centralidade, numa perspectiva crítica e de totalidade, nem na acadêmica, nem nas
Organizações Governamentais e Não Governamentais, tampouco nos movimentos
sociais, principalmente no movimento da infância e da adolescência. Pois, geralmente, o
ponto de partida são experiências localizadas que, muitas vezes, podem ser significativas,
mas se esgotam nos próprios sujeitos, sem estabelecer nexos com a estrutura do
executivo, do judiciário e do legislativo, ou mesmo com a própria sociedade capitalista,
que gera desigualdade social.

2- Questão social, Estado-penitência e adolescente infrator.

No contexto neoliberal, embora a violência seja um fenômeno presente em toda


sociedade capitalista – produto da desigualdade social -, suas maiores vítimas letais são
justamente os adolescentes e jovens, pobres e negros, e, sobretudo, aqueles que estão em
conflito com a lei porque são violentadores e violentados, numa sociedade em que a
ausência de políticas públicas faz com que eles respondam também violentamente, num
ciclo de violências institucional e cotidiano.

A situação dos adolescentes em conflito com a lei se constitui como uma das expressões
mais violentas e terminais da questão social que afeta diretamente os direitos humanos
desses sujeitos, pois, além deles estarem privados de liberdade, também estão privados de
direitos. Na base desse ciclo de violências, está a questão social, que é incrementada pela
desigual relação entre capital e trabalho, pelo mercado mundializado, pela flexibilização
e terceirização das relações de trabalho, pela desregulamentação das legislações de
proteção social e pela reforma do Estado, aliada às políticas de corte dos gastos sociais.

Assim, a questão social se faz visivelmente mais grave, e o Estado brasileiro a relega a
um grande vácuo de violências estruturais, institucionais e cotidianas. Por essas causas,
grande parte dos adolescentes, nos dois primeiros decênios de suas vidas, está submetida
à ausência de escola, de saúde, de cultura, de esporte e de lazer, e está exposta às
negligências, aos abusos e à falta de dignidade. Gera-se uma grande desigualdade social
que se chama abandono, violência, descaso, omissão, punição, responsabilização penal e
controle sócio-penal.

As respostas neoliberais são nítidas. Não voltam sua atenção para a qualidade de vida das
pessoas, para a proteção social e para a emancipação, liberdade e autonomia humana, mas
sim, como nos ensina Batista (2003), para o ambicioso projeto que é composto pela
tolerância zero, pela xenofobia, pelo medo, pela segurança máxima, pela punição e
criminalização das relações sociais e pela responsabilização penal dos adolescentes
pobres.

Wacquant (2001) e Batista (2003) expressam que o empreendimento neoliberal destruiu o


Estado do Bem-Estar Social, substituindo-o por um Estado penal. À luz dessa ótica, está
ocorrendo a passagem do Estado Providência para o Estado-penitência, e, com isto, dá-se
a judicialização das relações sociais. Simples situações da vida cotidiana que,
anteriormente, eram resolvidas diretamente entre as pessoas, atualmente passam a ser
objeto de intervenção judicial - como, por exemplo: os conflitos entre casais, entre
vizinhos e entre pessoas; a regulamentação de visita e de guarda dos filhos; a interdição
de pessoas idosas; a negociação de aluguéis e de batida de carros. São cada vez mais
judicializadas, a partir da lógica do mercado, das relações sociais como mercadorias.
Batista nomeia essa intervenção judicial de criminalização das relações sociais,
ocorrendo uma regulação e controle do cotidiano pelo Estado e pelo mercado.

É evidente que os adolescentes infratores estão incluídos nesse ambicioso projeto de


criminalização das relações sociais, já que as respostas do Estado-penitência não têm sido
a construção de escolas, mas sim a construção de prisões, bem como a institucionalização
do “controle sócio-penal” - regulamentado pelo direito penal juvenil, previsto no ECA -
como uma das estratégias de controle da sociedade do controle, do Estado de Direito.

3 - Traços históricos do controle nas legislações de proteção à infância e a adolescência.

Violências e controle são marcas da trajetória de atenção dispensada pelo Estado aos
adolescentes. A história do controle sócio-penal nasceu com as legislações penais dos
adultos. Sua gênese foi com o primeiro Código Criminal do Império, em 1830. Depois,
foi também sustentada pelo primeiro Código Penal da República, em 1890, sob o enfoque
do penalismo indiferenciado, em que a criança e o adolescente respondiam por
“processos crimes” da mesma forma que os adultos. No entanto, foi com o processo de
consolidação da República, a partir do Movimento dos Reformadores, que o “controle
sócio-penal” para crianças e adolescentes foi alvo de severas críticas.

Em 1927, com a aprovação da primeira lei específica de atenção à infância, chamada


Código de Menores Mello Mattos, o “controle sócio-penal” foi “transformado” no
“controle sócio-penal informal”. O Código de Menores Mello Mattos, não por acaso, não
adotou juridicamente o “controle sócio-penal” dos Códigos Penais. Assumiu nas práticas
sócio-jurídicas a intenção do “controle sócio-penal”, por isso, chamamos de “controle
sócio-penal informal”. Em outros termos, o controle sócio-penal foi juridicamente
substituído pelo controle social, fundamentado nas práticas assistencialistas e
filantrópicas, que também tinham a dimensão sócio-penal.

Diante disso, crianças e adolescentes foram excluídos dos “processos crimes”, das
“garantias processuais” e da responsabilização penal, e foram assumidos tutelarmente
pelo Estado paternalista. Isso porque se tratava de uma política com ênfase no
“humanismo capitalista”, que não queria, ideologicamente, “vender” uma imagem do
capitalismo como “penalizador de crianças”. Preferiu legitimar-se como “Estado-pai”,
numa perspectiva paternalista e civilizatória, levantando a bandeira da “proteção” e da
“educação”.

Sob a égide da Ditadura Militar, em 1979, foi aprovado o segundo Código de Menores,
que manteve a mesma filosofia tutelar do Código Mello Matos. Assim, o sentido do
controle social, e não sócio-penal, de crianças e adolescentes “abandonados” ou
“desviantes” continuava a se justificar pelo “comportamento anti-social”, pelo “sintoma
do desajustamento social” em relação a uma ordem militar, que criminalizava as classes
consideradas perigosas.

Com o ECA, aprovado em 1990, engendrou-se uma nova mecânica de “controle” - que
não é mais tão claramente dirigido aos pobres, como o eram os dois Códigos de Menores
-: o “controle sócio-penal” formalmente instituído por um conjunto de normativas
nacionais e internacionais que estabeleceu um sistema de garantia de direitos. Neste,
estão as condições de exigibilidade dos direitos dos adolescentes em conflito com a lei, as
bases para o direito penal juvenil e para o sistema de responsabilidade penal juvenil,
operacionalizado pelo sistema de administração da justiça juvenil. Dentre esse conjunto
de normativas, destacamos que foi a Convenção Internacional dos Direitos da Criança
(1989), nos artigos 37 e 40, que definiu as bases jurídicas e as diretrizes de tratamento do
delito dos adolescentes, estabelecendo claramente o ato infracional como um ato de
natureza criminal, não de natureza anti-social, como nas legislações anteriores.

Com a implantação do sistema garantista e com a adoção do direito penal juvenil, que
defende e responsabiliza penalmente o adolescente, o ECA fez um corte com a concepção
tutelar de controle social ao impor um conjunto de direitos e deveres, como, por
exemplo: o devido processo legal; o princípio do contraditório; a ampla defesa; a
presunção da inocência; a assistência judiciária; a presença dos pais e responsáveis nos
procedimentos judiciários; de ser informado das acusações e de não responder; de
confrontação de testemunhas; de interposição de recursos; de apelação para autoridades
em diferentes instâncias hierárquicas e o habeas corpus.

Nesse sistema garantista, o adolescente é concebido como cidadão, isto é, como “sujeito
de direitos”, e não ‘objeto de tutela’, o que lhe dá a capacidade jurídica de responder por
seus atos (MENDEZ, 1998). Por ser “sujeito de direito”, o adolescente que cometeu um
ato infracional responde penalmente pela infração-crime, na medida em que direitos e
deveres fazem igualmente parte desse sistema, no contexto do legal controle sócio-penal.
Dessa forma, podemos dizer que, quando foi conveniente para a imagem do capitalismo
excluir adolescentes dos “direitos” e dos “deveres” de “cidadania”, assim o fez. Agora, a
lógica do estado de direitos está sendo incluí-los na “cidadania”. Em razão disso, novas
regras são montadas com base em um moderno significado de “inimputabilidade” e em
uma cidadania burguesa, em que eles são penalmente responsabilizados e socialmente
violentados por um sistema de injustiças que administra violências e arbitrariedades.
Os adolescentes “passaram” de um extremo da “criminalização jurídica da pobreza” das
legislações menoristas, para “entrarem” no outro extremo, da “criminologia jurídico
penal”, de uma legislação cidadã do Estado-penitência. Porém, com o agravante de que,
apesar de não serem somente os adolescentes pobres a cometerem atos infracionais, são
esses os mais violentados e que continuam selecionados para o aprisionamento. Nos
extremos dessas trajetórias, permanecem a “violência” e o “controle sócio-penal”, que
continuam criminalizando a pobreza e julgando que os adolescentes pobres constituem
marginais em potencial.

É bem verdade que tanto o Código de Menores quanto o ECA apresentam continuidades
e descontinuidades em suas respectivas épocas, mas essas duas leis estão a serviço da
“sociedade do controle” de seus tempos, numa perspectiva de modernização
conservadora. Na realidade, podemos dizer que já existia, nos Códigos de Menores, uma
intenção de controle sócio-penal de adolescentes autores de ato infracional, mas somente
no ECA esse tipo de controle foi legalmente instituído com base no direito penal. Em se
tratando especificamente do ECA, na apuração do ato infracional, seu paradigma está
alicerçado para atuar no campo da defesa da sociedade e na prevenção geral. Para tanto,
as redes de proteção da “sociedade providencia” foram ampliadas, aumentando não
somente o controle sócio-penal, mas, sobretudo, o controle social, a partir da ancoragem
preventiva da criminalidade em adolescentes empobrecidos.

Assim, o Estado-penitência se encarrega de amedrontar, judicializar e criminalizar as


relações sociais, normatizando e aperfeiçoando os instrumentos punitivos de “controle
sócio-penal”, com vistas ao “controle social” da “sociedade de controle”, em suas
diferentes formas de dominação. Particularmente, o “controle sócio-penal juvenil”
assume uma importante forma de controle da questão social. Como nos ensinou
Meszáros, trata-se de um tipo perverso de “controle”, que defende sutil e
flexibilizadamente os reais interesses da desigual relação entre trabalho e capital.

4- Considerações finais

Apontamos, neste artigo, algumas reflexões, indagações e a necessidade de


aprofundarmos as concepções norteadoras do ECA, especialmente as relacionadas à
responsabilidade penal juvenil e ao controle sócio-penal juvenil. Se, por um lado, a
introdução das categorias jurídicas “sujeito de direitos” e “infração” foi um avanço na
conquista e na garantia do sistema de direitos, por outro lado, esse mesmo paradigma
regulamentou a responsabilidade penal juntamente com o controle sócio-penal juvenil aos
moldes do sistema penal brasileiro, sem, no entanto, responsabilizar o Estado por seus
deveres. Nesses termos, não restam dúvidas de que velhas e novas questões se põem
nesse debate, das quais destacamos: no ECA permanece a contradição proteção versus
penalização? A centralização da categoria jurídica, seus limites e desdobramentos estão
imbricados no âmbito da responsabilização penal juvenil? As categorias jurídicas “sujeito
de direito” e “infração” são fundantes do controle sócio-penal? O direito penal juvenil,
ainda com tantas controvérsias, está suficientemente esclarecido no mundo jurídico e
social? Que concepções de mundo, de homem, de mulher, de criança, de adolescentes e
de Estado estão fundamentadas no ECA? Por fim, qual projeto de sociedade é
(re)afirmado no ECA?

Essas indagações são centrais para melhor conhecer e operar o Sistema de Administração
da Justiça Juvenil. Mesmo assim, ainda não aceitamos o desafio do enfretamento desse
dialogo, que é urgente. Não é possível prescindir desse diálogo numa conjuntura que
promove falsos debates. A ausência de embates só tende a despolitizar a questão do
adolescente penalizado, na medida em que joga o problema para o atraso e retarda a
abordagem política, social e jurídica da possível efetividade de um outro sistema de
justiça juvenil, o qual possa promover a potencialização da liberdade e dos direitos
humanos.

Para concluir, inferimos que o fim da violência começa na luta contra a desigualdade
social, pois o que temos vivenciado é um cenário espetacular de uma alienação geral que
arrebenta com os seus iguais. Uma verdadeira barbárie! Pois, a Pátria, que deveria ser um
lugar seguro de proteção e de pertença, acaba se tornando – como diz o poeta Luis Felipe
– um lugar de violências, de exílio para os adolescentes. Não basta somente modificar o
“conteúdo” da lei, sem transformar as concepções que a sustentam; não basta fazer a
passagem da condição de “objeto de intervenções judiciais” para ”sujeito de direitos”;
não basta a execução de inúmeros programas (Organização Governamental ou
Organização Não Governamental), se não existir a formulação de políticas públicas
estruturantes; não basta transformar o “controle sócio-penal informal” em “controle
sócio-penal formal”, sem alterar a raiz (natureza) do controle da sociedade de controle.
Não podemos minimizar essas reflexões críticas perante as concepções sustentadoras do
ECA e sua relação com o Sistema de Administração de (in)Justiça Juvenil, sob pena de
reafirmarmos o ciclo perverso das instituições punitivas do Estado capitalista, abrindo
mão da potencialidade, da criatividade e da liberdade dos adolescentes. A palavra que
eles mais reivindicam é LIBERDADE. Sonham com uma sociedade livre, com espaços
possíveis de energias, criações e liberdades. Como sempre diz Passetti (2003), a
“liberdade é a alma dos adolescentes”, ou então, como expressa o poeta Murilo Mendes,
“o vento liberta-se ventando”. Assim, os adolescentes e os jovens libertam-se pelo
exercício da liberdade, que está para além do controle sócio-penal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à


sociologia do direito penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia
Freitas Bastos, 1999. (Coleção Pensamento Criminológico, 1).

BATISTA, Nilo. Caros Amigos. São Paulo, n. 77, ano VII, p 28-33, 2003.

___________ Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 8º


edição, novembro de 2002.
BRASIL. Ministério da Saúde. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: 1991.

_________. Código Penal. Decreto-lei n. 3.914, de 9 de dezembro de 1941. São Paulo:


Rideel Ltda, 1999.

_________. Código de Menores. São Paulo: Forense, 1982.

KARL, MARX. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução: Conceição Jardim e


Eduardo Lúcio Nogueira. 2. ed. Portugal: Presença; Brasil: Martins Fontes, [s.d].

MENDEZ, Emílio Garcia. Infância e cidadania na América Latina. Tradução de Ângela


Maria Tijiwa. São Paulo: Hucitec/Instituto Airton Senna, 1998.

MÉSZAROS, Isteván. Para além do capital. Campinas: Editora da UNICAMP; São


Paulo: Boitempo, 2002.

PASSETTI, Edson. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo: Cortez, 2003.

WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Trad.: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.

Maria Liduína de Oliveira e Silva


Professora do Curso de Serviço Social da Faculdade Mauá e da Universidade São
Francisco e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa da Criança e do Adolescente da
PUC-SP.
Violência urbana e violência no esporte

Carol Kolyniak Filho


Prof. Dr. do Departamento de Educação Física e Esportes da PUC-SP
1-
INTRODUÇÃO

A violência é um tema que tem sido objeto de reflexão filosófica, de pesquisa científica,
de produção artística, de manifestações religiosas, de expressões míticas, de ações
políticas, enfim, de todos os campos da prática social e em todas as formas simbólicas. A
problematização da violência apresenta-se, nas produções simbólicas, desde os mais
antigos registros escritos, em diferentes culturas. Práticas sociais violentas têm sido
registradas e problematizadas em diversas situações de convívio humano, sob diferentes
condições ambientais e histórico-sócio-culturais. Nesse quadro geral, a violência urbana
inscreve-se como fenômeno associado aos processos de urbanização de populações, em
toda a sua complexidade.

Dadas as proporções que a violência urbana veio assumindo, ao longo do movimento de


progressiva concentração da população humana em cidades, as ciências humanas – em
particular a sociologia, a antropologia, a psicologia e as ciências jurídicas – se voltaram
ao estudo desse fenômeno com crescente interesse, especialmente a partir do final do
século XIX. Da multiplicidade de enfoques e de estudos específicos realizados, resultou a
compreensão de que a violência é um fenômeno que resulta de múltiplas determinações.
Educação familiar, educação escolar, meios de comunicação social, instabilidade política
e social, fatores genéticos, características neurofisiológicas, difusão do uso de drogas e
ideologias são exemplos de elementos que fazem parte do complexo de fatores que
condicionam a instauração e a manutenção da violência.

A violência urbana apresenta diferentes facetas, na atualidade. Isto decorre da


complexidade das características das grandes concentrações humanas, que envolvem
diversos campos de atividade econômica e cultural. Desse panorama complexo faz parte
a violência no esporte. Para além das manifestações violentas no âmbito da própria
prática desportiva, têm ocorrido manifestações de violência entre grupos de torcedores e
destes em relação a pessoas não relacionadas aos eventos esportivos. Nesse quadro,
destacam-se os confrontos entre torcedores (que resultam em ferimentos graves e mesmo
em mortes, não raro de pessoas que não fazem parte das torcidas), e a depredação e saque
de bens e serviços públicos e privados.

A violência associada ao esporte, nos termos acima apontados, é um fenômeno mundial.


No Brasil, a discussão sobre essa questão ganhou impulso a partir de um evento que, por
sua publicidade e pelas circunstâncias em que ocorreu, tornou-se emblemático e
desencadeou reações imediatas de diferentes setores da sociedade. Trata-se da briga entre
torcedores das equipes de futebol do São Paulo F.C. e da S. E. Palmeiras, ocorrida por
ocasião do jogo final de um torneio de futebol da categoria “júnior”, no estádio do
Pacaembu, na cidade de São Paulo, no dia 25/01/96. As cenas de agressão entre os
torcedores, amplamente divulgadas pela televisão, chocaram a opinião pública do país, e
repercutiram também no exterior. A morte de um torcedor e os ferimentos em dezenas de
outros, embora não fossem eventos novos, mobilizaram autoridades e a imprensa em
torno da discussão da violência no esporte e da busca de medidas para enfrentamento do
problema.

O ESPORTE COMO PRÁTICA SOCIAL E A VIOLÊNCIA URBANA

Para compreender as manifestações de violência associadas ao esporte como parte do


fenômeno mais amplo da violência urbana, cabe considerar, inicialmente, algumas
características do esporte.

Como ponto de partida da caracterização do esporte, assumimos o pressuposto segundo o


qual o esporte é uma prática social construída historicamente. Como tal, não tem
qualquer essência imutável, devendo ser compreendido no quadro mais amplo das
produções culturais, vinculadas tanto à infra-estrutura econômica como à superestrutura
ideológica.

Assumindo esse pressuposto, cabe compreender o esporte atual no contexto político-


econômico que o produz, ou seja, na ordem econômica do capitalismo e na sua
correspondente ideologia política, o liberalismo. Nessa ótica, o esporte moderno, cujas
características ganharam seus atuais contornos a partir de meados do século XIX,
especialmente a partir da Inglaterra, não pode deixar de refletir as contradições e os
problemas sociais mais gerais da sociedade organizada segundo o ideário capitalista-
liberal.

Dentre as características do referido ideário, podem ser destacadas algumas que assumem
centralidade na prática desportiva. A primeira delas é a competição, verdadeiro
pressuposto do esporte. A segunda é a organização rigorosa das regras que devem
normatizar os objetivos e as condições da competição desportiva. A terceira é a
organização racional e burocrática dos procedimentos de planejamento, condução,
controle e registro dos eventos desportivos e de seus agentes – clubes, atletas, dirigentes,
árbitros etc. A quarta é a publicidade dos eventos e de seus resultados. A quinta é a
mundialização de todos os estatutos, pressupostos, critérios e condições da prática, de
modo a expandir a institucionalização do esporte para que esta abranja toda a população
do planeta.

As características acima podem ser facilmente associadas ao modus operandi do


liberalismo econômico capitalista – competição livre entre agentes econômicos
empreendedores, segundo regras (monetárias, aduaneiras, trabalhistas etc.) definidas,
com produção organizada de modo racional e burocratizado, controlada e publicizada por
agências reguladoras (Estado, associações, sindicatos, organismos internacionais etc.) e
estendida progressivamente para além de fronteiras nacionais, configurando-se como
processo de mundialização da produção e da circulação econômicas.

Estabelecido este paralelo, é possível entender que as práticas sociais que caracterizam a
produção capitalista também fazem parte da dinâmica do esporte. Assim, em ambas as
esferas, embora se pressuponha que a competição se estabelece a partir de igualdade de
condições entre os competidores, isso não ocorre de fato. A primeira razão para isso
refere-se à desigualdade inicial entre os competidores. No plano econômico, não é
verdade que todos os empreendedores começam nas mesmas condições (quantidade e
qualidade de capital, conhecimento técnico, possibilidade de estabelecer-se onde e
quando querem etc.). Igualmente, no plano desportivo, os competidores apresentam
diferentes condições iniciais, no que se refere a patrocínio econômico-financeiro e
orientação técnica especializada. A segunda razão refere-se à desigualdade na aplicação
das regras. No jogo econômico, não é verdade que as regras são respeitadas igualmente
por todos – a prática do dumping é um exemplo cabal dessa afirmativa. Também no jogo
desportivo, as regras são freqüentemente burladas pelos competidores – simulação de
faltas, aplicação deliberada de violência, doping e outros expedientes são exemplos
amplamente conhecidos.

No que diz respeito ao planejamento e racionalização da produção, é óbvio que tanto a


produção econômica quanto o desempenho desportivo são, hoje, objetos de um grande
esforço e de um investimento para melhorar a produtividade e a eficiência. Além do
investimento em tecnologia, a organização estratégica para extrair o máximo de
rendimento daqueles que vendem sua força de trabalho – os operários nas fábricas, nos
bancos, no comércio, nos serviços, nas escolas, nas fazendas, e os atletas nos clubes – é
uma característica presente em todos os empreendimentos econômicos, incluindo os
desportivos.

O controle da atividade econômica capitalista, como já colocado, é exercido por


diferentes organismos reguladores. A atividade desportiva também está sujeita a
instituições reguladoras, de âmbito local (ligas e comissões municipais), regional
(federações), nacional (confederações, conselhos nacionais, comitês olímpicos nacionais)
e internacional (associações e confederações internacionais, comitê olímpico
internacional). Em ambos os casos (atividade econômica e esporte), ocorrem
favorecimentos, perseguições, decisões casuístas, fraudes, sobreposição de interesses
individuais em detrimento de interesses coletivos, por parte dos dirigentes das diferentes
instituições.

Isto posto, fica claro que o esporte apresenta-se como campo de conflito de interesses
políticos e econômicos, como qualquer outra área de atividade humana inserida no
conjunto das relações sociais marcadas por um distanciamento entre os discursos
normatizadores e as ações efetivas dos seus agentes.

Além das características genéricas que o esporte apresenta, no bojo do capitalismo


liberal, um outro fator contribui para que este campo seja associado à violência. Trata-se
da idéia segundo a qual o esporte é um meio socialmente aceitável de expressão da
agressividade, da qual a violência é uma conseqüência que deve ser controlada, mas não
pode ser totalmente evitada. Nessa idéia, assume-se que a violência é uma manifestação
inerente ao homem, e precisa de “válvulas de escape”, para que se expresse
preferencialmente em condições mais controladas, evitando sua propagação para todas as
relações sociais. Assim concebido, o esporte nunca poderia deixar de comportar alguma
violência, e tudo o que se poderia fazer é estabelecer mecanismos para regular suas
expressões e mantê-las num nível aceitável.

Em nosso entendimento, a violência no esporte – dentro e fora dos campos e quadras,


estádios e ginásios – não pode ser isolada da violência reinante no conjunto das relações
sociais, pois são as mesmas determinações gerais que condicionam todas as
manifestações de violência. Nesse sentido, acompanhamos Arlindo Chinaglia:

(...) as causas da violência no esporte devem ser buscadas na sociedade. E aqui não há
como escapar ou negar que a exclusão social é um fator preponderante dentre as
múltiplas causas da violência. A pobreza, as péssimas condições de vida, o desemprego, a
falta de escola, de moradia, de cultura, de lazer etc. Tudo isso gera situações de frustração
e de impotência, tendo como conseqüência a falta de perspectiva de vida e a
desesperança, presentes, inclusive, em nossa juventude. (in: Lerner, 1996: 45).

A POSSIBILIDADE DE REDUZIR A VIOLÊNCIA NO ESPORTE

No Brasil, os acontecimentos mencionados na referida partida de futebol desencadearam


análises e propostas voltadas para o enfrentamento da violência nos estádios
(especialmente em relação ao futebol) e nas cidades, como decorrência da ação de
torcidas organizadas ou de grupos de torcedores que promovem brigas (até planejando-as
com antecedência pela Internet) e saques. Dentre as propostas, pode-se citar:

-Numeração de todos os lugares nos estádios e controle da torcida por câmeras de vídeo.
-Prisão de torcedores violentos nos dias de jogos de seus clubes.
-Cadastramento e controle rigoroso das torcidas vinculadas aos clubes.
-Aplicação imediata e rigorosa das penas previstas para os crimes de agressão cometidos
nos estádios e suas cercanias.
-Aumento no preço dos ingressos.
-Engajamento de clubes, federações, confederações e atletas em campanhas e
manifestações contra a violência no esporte.
-Penalização de clubes nas competições, em decorrência de ações violentas de suas
torcidas.
-Maior rigor da arbitragem e afastamento ou punição de árbitros tecnicamente
despreparados ou que não atuem para coibir a violência em campo (pois esta estimula a
violência na torcida).

Em face da indissociabilidade entre violência no esporte e violência urbana, entende-se


que tais medidas, voltadas para o controle nos eventos desportivos, não podem ser
suficientes para superar os problemas que estão na raiz da violência. Ainda que não se
possa dispensá-las (e algumas vêm sendo implementadas, ao menos parcialmente),
quando muito, podem apenas reduzir as ocorrências violentas. A superação da violência
no esporte – no quadro da violência urbana – pressupõe um processo mais abrangente.

Em primeiro lugar, cabe questionar a visão que naturaliza a violência, atribuindo-a a uma
inescapável tendência agressiva presente no homem, que só pode ser controlada, mas
permanece sempre como possibilidade latente. Essa visão desconsidera que a construção
do ser humano é fruto da determinação recíproca entre a herança biológica e a herança
histórico-sócio-cultural. Esse processo não é previsível (a não ser que se assuma uma
visão teleológica do desenvolvimento humano) e, portanto, não se pode afirmar com
certeza que a violência é uma característica essencial do homem.

Assumindo-se que o homem é um ser histórico, em permanente processo de construção,


cabe cogitar que podemos vir a nos construir como seres não violentos. Não obstante,
também é preciso considerar que, em face do desenvolvimento histórico da maior parte
dos grupos sociais hoje existentes, as relações violentas fazem parte da vida social.

A vida social envolve a violência em diferentes planos, a começar pelo plano mais geral
dos conflitos entre classes sociais. É inegável que as diferenças estabelecidas entre
grupos sociais, no que diz respeito ao acesso aos bens materiais e culturais produzidos
pelo trabalho coletivo organizado, é um dos elementos que se colocam na raiz da
violência. Associadas a essas diferenças, estão as ideologias que justificam relações de
dominação que mantêm grandes grupos humanos assujeitados ao controle de minorias.
Embora tais ideologias (baseadas em religião, características étnicas, mitos de criação,
justificativas “científicas” etc.) sejam eficazes para auxiliar no controle das populações
submetidas às classes dominantes, o uso de violência é indispensável para materializar o
controle e, por conseguinte, tende a gerar reações também violentas. Um exemplo claro
disto é a violência recíproca que se estabelece entre certos agentes de instituições
policiais e pessoas excluídas da vida econômica “regular”, pelo desemprego, pela falta de
formação escolar e profissional adequadas, pela falta de serviços de promoção social etc.
– as quais acabam por envolver-se em atividades ilegais para sobreviver.

Assim sendo, entende-se que um movimento real de superação das relações sociais
violentas envolve a superação das grandes desigualdades sociais presentes na maior parte
do mundo, inclusive no Brasil – um dos campeões de desigualdade na distribuição de
renda. Sabe-se que isso só pode ocorrer com o envolvimento de muitos setores de nossa
sociedade, articulados em torno de um projeto político voltado para a construção de uma
sociedade democrática e igualitária. A amplitude e as dificuldades de tal empreitada são
tais que não podemos nos propor tratar dela neste artigo.

As dificuldades para promover as transformações político-econômicas estruturais que


podem conduzir à superação da violência urbana não justificam, contudo, a renúncia a
buscar caminhos para a construção de práticas sociais menos violentas. Embora
reconheçamos que soluções abrangentes dependem de mudanças nas relações de
produção e distribuição dos frutos do trabalho coletivo, numa ordem econômica
mundializada, entendemos que a superação da violência no esporte passa, também, por
uma ressignificação do sentido da prática esportiva. Essa ressignificação implica
processos educacionais, que podem ter lugar nas instituições educativas – escolas e
universidades – e em meios de comunicação social – jornais, revistas, TV, cinema,
Internet, rádio...

Uma educação – em sentido amplo – para um esporte menos violento e gerador de menos
violência envolve dois planos distintos e relacionados: a educação para a prática esportiva
e a educação para a apreciação do esporte como espetáculo.

A educação para a prática esportiva é uma tarefa que, no Brasil, deve envolver,
fundamentalmente, a categoria dos professores de Educação Física. Nas escolas, nos
clubes, nas escolinhas de esporte, em ONGs, enfim, em todos os espaços institucionais
em que ocorrem iniciação e competições desportivas, professores de Educação Física
podem ensinar práticas que tenham como fundamento o respeito a si e a outros,
colocando a integridade humana em primeiro plano, rejeitando cabalmente a idéia de que
o resultado da competição é o que mais importa. Tal orientação pedagógica implica a
articulação de uma visão crítica em relação ao esporte e às ideologias da “vitória a
qualquer preço” com propostas concretas de encaminhamento da prática esportiva, que
tenham como referências a integridade e o bem-estar de todos os nela envolvidos. Para
tanto, não basta o trabalho isolado de professores, pois é preciso articular competições
esportivas que se organizem em torno de uma orientação educacional comum. Por
exemplo, pode-se, por um lado, introduzir alterações nas regras, de modo a inviabilizar
atitudes violentas e, por outro lado, estimular a integração entre os adversários, após as
disputas, por meio de diferentes estratégias (confraternização, análise técnica e tática dos
jogos feita em conjunto pelas equipes etc.).

A educação para a apreciação do esporte como espetáculo, além de envolver a atuação


educacional dos profissionais de Educação Física, não pode prescindir do apoio de outros
meios de comunicação social – especialmente o rádio, a TV e a imprensa. Em nosso
entendimento, embora essa atuação já venha ocorrendo, é preciso uma ação mais clara e
sistemática desses meios de comunicação, no sentido de relativizar a importância do
resultado das competições, de modo a que estes não se transformem em pretextos para
atitudes violentas. É preciso, por exemplo, insistir na idéia de que a vitória ou a derrota
de uma equipe, em uma competição esportiva, não pode ser encarada como indicativo de
qualquer tipo de mérito ou demérito para seus torcedores. Outra idéia que pode ser
difundida continuamente é relativa ao caráter simbólico da vitória ou da derrota e à
ausência de conseqüências importantes destas para a vida dos torcedores. Cabe ressaltar o
fato de que a emoção do ato de torcer é significativa, mas deve se limitar ao momento da
competição e não se prolongar, com a mesma intensidade, para além deste. Esta idéia
articula-se a uma outra: o espetáculo esportivo deve ser encarado como uma atividade de
lazer, tal como outros espetáculos – cinema, teatro, circo, música etc. Assim, ainda que os
espectadores, em todos estas manifestações, continuem elaborando, comentando,
discutindo idéias e sentimentos estimulados pelos espetáculos, após o seu término, devem
ter clareza de que não se encontram mais na situação lúdica e imaginária em que os
espetáculos ocorrem, ou seja, que voltaram ao “mundo real”. A implementação de
propostas como as exemplificadas acima, contudo, pode esbarrar em um obstáculo de
natureza genérica, mas, nem por isto, menos limitante: o poder da ideologia liberal, que
consagra a competição e a valorização da vitória e dos “mais fortes”. É esta ideologia,
subjacente às práticas sociais que predominam na vida econômica e política (onde se
busca a vantagem a qualquer preço), que induz à idéia de que um esporte regulado por
princípios que priorizam a saúde, a integridade e o bem-estar de todos é um esporte “para
fracos” – uma vez que, “na vida real, é cada um por si e Deus por todos”. De fato, o que
será da competição econômica e política, nos marcos do atual capitalismo, se todos – dos
“tubarões” aos “peixinhos” – tiverem, de fato, os mesmos direitos, as mesmas
oportunidades, as mesmas condições e, o que é mais importante, forem reconhecidos
como iguais, em valor, em dignidade? Certamente, muitos dos “tubarões” terão de se
conformar em se transformarem em peixes menos truculentos e corpulentos, pois não
terão mais o direito de “engolir” os mais fracos. Aí está o “X” da questão.

O viés ideológico apontado acima não é uma abstração genérica. Ele pode ser visto em
manifestações concretas, das competições escolares às competições profissionais. Nas
primeiras, não é tão raro presenciar brigas entre pais “torcedores”, que vão prestigiar as
competições dos filhos (não é raro, também, que pais estimulem seus filhos a reagirem
com violência diante de outras crianças, como no esporte “de verdade”). Nas segundas, a
violência gerada pela busca de vitória a qualquer preço deve-se, também, aos valores
econômicos em jogo (prestígio e dinheiro dos atletas, interesses dos patrocinadores).
Nesse quadro, pode-se esperar que, muitas vezes, professores de educação física e
treinadores sejam exigidos, no sentido de ensinarem seus alunos e atletas a jogarem de
acordo com as regras “da vida” – vale dizer, com violência, subterfúgios, “manhas” etc.,
etc. Por isto, uma atuação sistemática para modificar a prática esportiva, no sentido de
torná-la menos violenta, exige uma convicção ideológica e uma vontade política clara e
direcionada, não apenas de professores e técnicos isolados, mas de um movimento
coletivo organizado.

A possibilidade de construir o esporte como manifestação voltada para a promoção da


saúde, do bem-estar, do prazer e da solidariedade entre pessoas, portanto, configura-se
como processo educativo, que deve envolver tanto profissionais que atuam na formação
do praticante e do espectador (profissionais de educação física) como os agentes sociais
responsáveis pela difusão do esporte como espetáculo. Entretanto, tal processo educativo
só pode alcançar seu escopo se ocorrer de forma articulada a um projeto político, pois o
esporte não pode ser isolado do conjunto das práticas sociais. Este é o real desafio para o
enfrentamento da violência urbana em todas as suas manifestações – do esporte aos
seqüestros e homicídios.

BIBLIOGRAFIA:

KOLYNIAK FILHO, Carol. Discutindo o conceito de esporte. Discorpo. 14. São Paulo:
Departamento de Educação Física e Esportes da PUC-SP, 2006, p. 41-54.
LERNER, Julio (editor). A violência no esporte. São Paulo: IMESP, 1996.
MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 2001.
POSTERLI, Renato. Violência urbana: abordagem multifatorial da criminogênese. Belo
Horizonte: Inédita, 2000.

Carol Kolyniak Filho


Prof. Dr. do Departamento de Educação Física e Esportes da PUC-SP
Confinamento Urbano:
expressões de uma sociedade esgarçada

Luzia Fátima Baierl - Professora e doutora da Faculdade de Serviço Social da PUC-SP,


co-coordenadora do Núcleo Temático Violência e Justiça da Faculdade de Serviço Social.
1-
O que é confinamento urbano? Segundo o dicionário Houaiss, um dos sentidos da
palavra refere-se ao ato ou efeito de isolar-se em dado lugar. Ou seja, trata-se de uma
conduta de se isolar ou a conseqüência de algo que faça com que as pessoas se apartem.
Interessa, neste texto, tratar das circunstâncias que levam pessoas, grupos, classes e
populações inteiras a apartarem-se de uma vida social nos espaços urbanos.

Parte-se do pressuposto de que a violência, nas suas diferentes expressões e


manifestações, o crime organizado, a impunidade, o medo social e a insegurança pública
são os elementos centrais para o entendimento das formas de apartação urbana. Cada vez
mais, os espaços urbanos vêm se configurando como espaços de segregação
populacional, colocando pessoas, grupos e classes sociais em espaços confinados que
impedem formas de sociabilidade.

Tomaremos a cidade de São Paulo como um dos territórios de segregação urbana,


onde cada vez mais os segmentos de classe se espalham pela cidade de forma confinada e
apartada. A violência e a criminalidade, na cidade de São Paulo e em outros grandes
centros urbanos, têm se revelado como as manifestações da questão social que mais
insegurança e impotência têm produzido nas pessoas, independentemente de sua situação
de classe, gênero, raça ou etnia. Isso muda o jeito de ser e viver dos sujeitos sociais no
cotidiano, e cria marcas profundas e fossos que cada vez mais separam e segregam
pessoas e classes sociais. Em uma sociedade marcada por contradições estruturais
decorrentes da forma como ela se organiza e estrutura, a segregação social, a
discriminação, os preconceitos e o medo são reforçados e mistificados em torno da
chamada onda de violência.

A violência é entendida como um fenômeno multifacetado que sempre existiu nas


sociedades, em todos os tempos e lugares, assumindo formas e manifestações
diferenciadas. É produto histórico e construção social, e envolve componentes éticos e
morais daquilo que é definido como bom ou mau, lícito ou ilícito, legal ou ilegal,
legítimo ou ilegítimo. Chauí[2] afirma que uma cultura define o que é violência quando
explicita para si e para a sociedade aquilo que entende por mal, crime e vício (Chauí,
1994: 337). Entende-se que a violência se manifesta diferenciadamente na sociedade,
afetando o cotidiano de pessoas, grupos e coletividades também de formas distintas, e
tem no medo social seu maior instrumento para subjugar e submeter pessoas e
coletividades.
As diferentes manifestações de violência e do crime organizado, sejam contra a
vida, sejam contra o patrimônio, afetam profundamente a vida cotidiana das pessoas,
tanto no âmbito privado como nos espaços públicos. Não somente pelas perdas materiais,
mas também pelas perdas emocionais e inseguranças geradas, que levam as pessoas a
alterações profundas no seu modo de ser e viver cotidiano. Vivem em sobressaltos, vivem
a insegurança de ir e vir, vivem o medo de ocupar espaços públicos pela total falta de
segurança.

Nas duas últimas décadas, convivemos com cifras elevadas do aumento de


diferentes formas de criminalidade - seja contra a vida, seja contra o patrimônio -, e,
principalmente, com um crescimento difícil de ser medido e quantificado dos sentimentos
de medo e insegurança que vêm dilapidando o capital social, reduzindo a qualidade de
vida e comprometendo o processo democrático. As pessoas já não mais exercem seu
direito de ir e vir à medida que locais antes freqüentados são evitados. Limitam os locais
onde transitam, e essa limitação relaciona-se com notícias espetaculares que aparecem na
imprensa escrita e nas telas da TV. Evitam transitar sozinhas à noite, seja a pé, em
transportes coletivos ou mesmo em seus veículos particulares. Aqueles que dispõem de
recursos gastam somas astronômicas em sistemas de segurança pessoal, segurança
residencial, segurança patrimonial e segurança de vida[3]. Aqueles que não dispõem de
recursos fornecem cartas brancas aos “donos dos pedaços” em troca de segurança. Muitos
passaram a ingressar em cursos de defesa pessoal; outros buscam proteção por meio da
aquisição de armas. Além dos custos sociais, que afetam fundamentalmente as formas de
relação entre as pessoas e a vida associativa e comunitária, os custos econômicos
advindos da violência chegam a patamares alarmantes. Londono e Guerrero (2004: 69)
apontam que os gastos em saúde e atendimento médico das vitimas de violência urbana e
de anos perdidos[GK1] chegavam a 1,9% do PIP, em 1999 (problemas de saúde mental,
pânico, até incapacidade física); custos com a segurança privada e pública correspondiam
a 1,4% do PIB; com transferências de recursos materiais das vítimas para os criminosos,
a 1,6% do PIB; deterioração dos investimentos, 2,2% do PIB; e 3,4% do PIB,
deterioração do consumo e do trabalho. A esses custos, outros são acrescidos, como:
desvalorização de áreas, terrenos e moradias em locais entendidos como áreas perigosas;
deterioração dos serviços de transporte público e táxis que se recusam a transitar por
áreas perigosas em determinados horários, o que afeta profundamente a população
usuária do serviço, implicando muitas vezes o abandono de empregos e de estudo por
falta de transporte seguro, bem como a queda do turismo em cidades consideradas
perigosas.

Os grandes e pequenos condomínios são expressão das manifestações do medo


social e da certeza da ausência de uma segurança pública eficiente e eficaz. Como aponta
Tereza Caldeira (2000), os condomínios configuram-se como espaços fortificados,
fortalezas que se apresentam como formas de segurança das mais sofisticadas, tanto de
pessoal (segurança privada) como de equipamentos eletrônicos: alarmes e câmaras de
vídeo. Os condomínios fechados só podem ser acessados por pessoas conhecidas, que
apresentem identificação, que permitam que sejam fotografadas ou que sejam autorizadas
pelos moradores. Ruas da cidade - espaços públicos de ir e viver - têm sido fechadas com
muros, portões e guaritas de seguranças de agências privadas. Casas com porteiro
eletrônico, câmeras externas, portões e muros altos com sistemas de alarmes. De outro
lado, temos os condomínios de favelas, onde também o acesso só é permitido com a
autorização do “dono do pedaço”. Os shoppings centers espalhado pelas diferentes
regiões da cidadetambém se configuram como grandes templos de consumo, de lazer, de
divertimento, de segurança e de confinamento: redes internas e externas de câmeras,
seguranças privadas e formas de exclusão veladas daqueles que não fazem parte desse
mundo. Regras não escritas e não ditas, que definem quem pode e quem não pode acessar
determinados espaços urbanos, são socializadas e seguidas a risca por todos: nesses
espaços, o acesso só é dado àquele que é conhecido e reconhecido. Ocupar e penetrar
espaços urbanos vincula-se diretamente com a idéia de conhecer e ser conhecido. Os
espaços territoriais urbanos são crivados pela significação simbólica e interpretados pelos
sujeitos sociais por meio de símbolos internalizados principalmente por meio da mídia e
dos índices de criminalidade divulgados, da aparência. Mais do que ser, o que conta é o
que você aparenta ser. A circulação das pessoas se dá naqueles espaços onde são
reconhecidas e com os quais têm identidade, nos territórios onde não correm riscos de
vida, seja nos condomínios de favela, seja nos condomínios de classe média ou alta[4].

Esse modo de viver na cidade - nas grandes metrópoles - de forma assustada,


buscando o máximo de proteção, apartando-se da vida e das relações de sociabilidade não
pode ser explicado somente do ponto de vista da forma como a violência e a
criminalidade se manifestam. Também não pode ser explicado somente pela a
insegurança pública decorrente da precariedade e da atuação das polícias (civil e militar)
nesses centros urbanos - não que essas não tenham um grau de responsabilidade
significativa na forma como a violência se expressa e avança.

O medo social, que segrega pessoas, que dilapida o capital social, que confina as
pessoas em espaços protegidos, é um medo construído socialmente. Sua gênese não se
encontra somente nas experiências singulares das pessoas que temem esse ou outro
aspecto da vida. Trata-se de um medo - singular e coletivo -, pois é um medo construído
socialmente, com o fim último de submeter pessoas, grupos e classes sociais a interesses
próprios (privados, de grupos ou de classes). Medo produzido e construído socialmente
em determinados contextos e conjunturas, por determinados grupos ou classes sociais, de
forma ostensiva ou velada, com vistas a atingir determinados objetivos e interesses a que
visam: subjugar, submeter, dominar e controlar o outro e classes inteiras por meio de um
conjunto de mecanismos de coerção e intimidação. Esse medo só pode ser entendido se
procurarmos buscar suas causas, que não estão na pobreza e miséria necessariamente,
mas que se encontram na forma como a sociedade capitalista se desenvolve e avança na
contemporaneidade.

O século XXI se inicia como o século de grandes conquistas científicas e


tecnológicas resultantes dos processos econômicos, sociais e políticos desencadeados ao
longo da segunda metade do século XX. Avanços na ciência, na cibernética, na
biotecnologia, nas neurociências e na física quântica têm possibilitado aos homens
descobertas jamais imagináveis com relação a melhorar a qualidade de vida: novos
processos e procedimentos que permitem salvar vidas, curar doenças, e minorar situações
de sofrimento humano. Novas descobertas, nos mais diferenciados campos, vêm
disponibilizando recursos e tecnologia que facilitam a vida do homem, criando
possibilidades de melhor qualificar a produção e a reprodução da vida social. As
distâncias foram encurtadas, e diferentes formas de comunicação podem ser feitas com o
simples digitar de teclas, que basta para colocar pessoas dos pontos mais distantes do
mundo em contato direto, em tempo real. Esses pequenos toques de teclas de telefones,
celulares ou microcomputadores não só permitem aproximar pessoas em nível mundial
de forma virtual, mas também que trilhões de dólares sejam movimentados, seja pela
telefonia, seja pela internet. Ao lado dos ganhos e benefícios do chamado progresso e
desenvolvimento científico e tecnológico, o outro lado sombrio se agudiza: a fábrica do
capitalismo, que produz a riqueza, o desenvolvimento e o avanço tecnológico, é uma
fábrica excludente. Poucos têm acesso aos produtos desse desenvolvimento, gerando-se
uma maioria apartada das possibilidades de acesso à riqueza produzida socialmente e um
caos ambiental que coloca em risco a vida do planeta e das pessoas.

Ianni, em sua última obra, publicada em 2004, assinala que o capitalismo se


configura como uma “fábrica de destruição criativa”. A vocação fundante do capitalismo
em seu processo de avanço político, econômico, social, político e cultural combina
contraditoriamente formas de produzir, reproduzir, criar, recriar, inovar e substituir,
engendrar e destruir. Em outras palavras: a expansão e a renovação do capitalismo - para
poder ser criativo - se fazem por meio da destruição, ou seja, ele cria para destruir, e
destrói para criar. (Ianni, 2004: 144). Ianni se pergunta: a quem interessa
fundamentalmente a destruição criativa engendrada pelo capitalismo? Ela interessa,
sobretudo, aos “detentores do poder econômico, com repercussões muito diferenciadas e
desiguais nos outros setores da sociedade, compreendendo as classes sociais, grupos
sociais, nações centrais, mercados emergentes.” (Idem: 145). Trata-se da lógica perversa
do capitalismo que privilegia poucos por meio da exploração da imensa maioria.
Convive-se, hoje, contraditoriamente, com noções de progresso, cidadania e democracia,
ao lado de noções de decadência, pauperismo, miséria, intolerância e barbárie. No atual
momento de desenvolvimento do capitalismo, vive-se, além da globalização da
economia, a globalização do crime organizado, da exploração, da pobreza, das
desigualdades sociais e das diferentes formas de exclusão social. As mudanças
provocadas pelos avanços tecnológicos, acompanhadas das transformações ocorridas no
processo produtivo e nos processos de trabalho, têm impactos significativos na vida das
pessoas. O processo de globalização se intensifica, e se manifesta não somente nos
âmbitos econômicos, sociais e políticos. Vive-se como nunca a globalização da questão
social, “o que significa também tensões raciais e de gênero, frequentemente dinamizadas
pelas contradições força de trabalho e capital” (Idem: 146).

Como pontua Ziegler, “os cartéis do crime constituem o estágio supremo e a própria
essência do modo de produção capitalista. Eles se prevalecem grandemente da deficiência
imunológica dos dirigentes da sociedade capitalista contemporânea. A globalização dos
mercados financeiros debilita o Estado de direito, sua soberania, sua capacidade de
reagir. A ideologia neoliberal que legitima - pior: naturaliza - os mercados unificados
difama a lei, enfraquece a vontade coletiva e priva os homens da livre disposição de seu
destino” (Ziegler, 2003: PÁGINA). A conivência dos Estados nacionais, dos bancos, dos
órgãos de segurança e justiça com o mundo da criminalidade globalizada salta às vistas.
Os Estados nacionais têm dificuldades para organizar o seu próprio território, no que se
refere tanto à sua vida política e econômica quanto à sua vida social, visto que, no
mercado, a circulação de capitais, de homens e de informações se dá em escala mundial,
em muitas situações sob formas ilegais, como menciona Wieviorká (1997), dando
guarida para o crime organizado internacional. Só para ilustrar, circulam de forma
clandestina, em nível global, por volta de U$ 2,85 trilhões de dólares, sendo que, destes,
U$ 1,5 trilhão são gerenciados[GK2] pelo crime organizado[5].

De onde se conclui que a violência, nas suas diferentes manifestações atuais,


particularmente nas suas formas institucionalizadas, é inerente à forma como se organiza
e estrutura a sociedade capitalista na contemporaneidade, nacional e globalmente. A esse
respeito, pondera ainda Ianni que as cidades apresentam-se como o lócus privilegiado da
“maior parte das tensões e fragmentações, desigualdades e alienações, fermentando
agressões e destruições, atingindo pessoas, coisas e idéias, sentimentos, atividades e
ilusões” (Ianni, 2004: 145)[GK3] . Nas diferentes manifestações da violência e do crime
organizado (assaltos, roubos, latrocínios, tráfico de drogas, seqüestros etc.), há
envolvimento dos mais diferentes sujeitos: desde as vítimas até os beneficiários,
cúmplices e sujeitos coniventes advindos dos mais diferentes segmentos de classes,
vinculados ao comércio, aos bancos, à administração pública, a serviços de lavagem de
dinheiro, à gestão política, aos órgãos de segurança pública e privada, aos consumidores
de droga[6] e ao conjunto da sociedade, que se vê amedrontada e aterrorizada, voltando-
se para formas e mecanismos construídos no âmbito privado, dada a descrença
generalizada dos aparatos jurídicos legalmente constituídos.

Lícito e ilícito, legal e ilegal, justo e injusto se confundem na lógica de construção da


fábrica da destruição criativa. Ianni ainda acrescenta que a criminalidade global
acompanha e se beneficia dos avanços tecnológicos, se qualifica, prepara quadros
profissionais qualificados nas mais diferenciadas formações em conformidade com os
avanços da sociedade capitalista, pois opera como uma grande empresa capitalista. A
violência e a criminalidade modificam “as suas formas e técnicas, razões e convicções de
conformidade com as configurações e os movimentos da sociedade, em geral nacional e
mundial... revela a alucinação escondida na alienação de indivíduos e coletividades.
Nasce como técnica de poder, exercita-se também como modo de preservar, ampliar ou
conquistar a propriedade, adquire desdobramentos psicológicos surpreendentes no que se
refere aos agentes e vítimas. Entra como elemento importante na cultura política com a
qual se ordenam, modificam ou transformam as relações entre os donos do poder e os
setores sociais subalternos (governantes e populações, elites e massas)” (Idem: 169). Em
outros termos, o avanço tecnológico, o desenvolvimento das ciências e da tecnologia, das
ciências e das forças produtivas propiciam, contraditoriamente, a criação de novas e
avançadas estratégias de violência, técnicas de repressão e tirania que são apropriadas
pelos grupos de poder legítimo e ilegítimo, e utilizadas como mecanismos de coerção e
submissão, estimulados pelo medo social que se propaga pela sociedade.

Acuados pelo medo, desacreditados dos aparatos legais e legítimos, a grande maioria se
vê confinada em espaços fortificados, aparentemente seguros, vivendo formas de
sociabilidade empobrecidas, dilapidadoras do capital social. A fábrica de destruição
criativa não mede esforços pra destruir as formas de sociabilidade, as formas de encontro
e de troca de afetos. Ela se especializa em criar e destruir formas de identidades coletivas
e a negar a noção dos direitos. As ações coletivas são sobrepostas pelas práticas
individuais, pois aquelas deixam de ser visualizadas como formas de poder, ou seja,
possibilidades reais de exercício de direitos comuns. Aponta Espinosa que um direito que
não é exercido representa um poder inexistente, é mera virtualidade, pois a manifestação
objetiva de um direito se dá exatamente pelo seu exercício. Espinosa, citado por Chauí,
dirá que o direito natural de um escravo se rebelar só terá existência real no “momento
que ele efetivamente for exercido, rebelando-se” (Chauí, 2003: PÁGINA). Os valores
éticos que estabelecem as formas de sociabilidade são opostos à violência, pois dizem
respeito ao que é justo, ao bem e ao que é legítimo.

Mas de que medo se está a falar? O medo produzido e reproduzido a todo o


momento pela sociedade, que precisa ser desvelado naquilo que tem de imaginário e
naquilo que tem de real. Medo esse, produto da sociedade, fruto de uma sociedade
desigual, discriminatória e segregacionista. Fruto da produção midiática de um lado, e de
grupos de interesse e poder por todos os lados. Fruto de uma sociedade onde o outro se
revela na sua maior estranheza. É o estrangeiro, o diferente que suscita os medos mais
irracionais. O outro (ou outros), que restringe as possibilidades de ir e vir das pessoas,
tornando-as prisioneiras dos seus próprios medos e esgarçando cada vez mais as formas
de sociabilidade, confinando pequenos grupos em espaços altamente fortificados.

O confinamento urbano engendrado pelo medo social é produto de uma sociedade


violenta e das formas como esta sociedade se organiza, valorizando profundamente as
soluções e alternativas no campo do privado, e inibindo as formas coletivas de
enfrentamento e de superação da questão. Trata-se do medo que vem corroendo o capital
social e humano por meio de agressões continuas e da quase ausência de perspectivas
transformadoras, da imponência, da incerteza. Esse medo afeta pessoas e grupos em seu
mundo privado, em seu mundo social e em seu mundo profissional, reduzindo a
capacidade de crescimento do capital social. As possibilidades de crescimento do capital
social, seguindo um contra-fluxo dos processos sociais hoje em andamento, só poderá ser
vislumbrada se a sociedade - tendo clareza de seus conflitos e contradições - conseguir, a
partir de desejos e interesses comuns, ser uma sociedade democrática potencializadora de
caminhos e que possa interpretar o significado e o sentido dos conflitos e dos obstáculos
para poder enfrentá-los e superá-los.

Bibliografia

BAIERL, Luzia. Medo Social: da violência visível ao invisível da violência. São Paulo,
Cortez, 2004.

BAIERL, Luzia e ALMENDRA, Carlos Alberto da Cunha. “O crime organizado e seus


impactos no exercício profissional.” Artigo elaborado e aprovado para ser apresentado no
Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais que ocorrerá em novembro de 2007, CFESS.
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em
São Paulo. São Paulo, Editora 34, Edusp, 2000.

CHAUI Marilena, “Sobre o Medo”. In: NOVAES, Adauto. Os sentidos da paixão. São
Paulo, Companhia das Letras, 1995. 6. reimpressão.

CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

IANNI, Otávio. Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro, Civilização


Brasileira, 2004.

ZIEGLER, Jean. Senhores do crime. Rio de Janeiro, Record, 2003.

WIEVIORKA, Michel. O novo paradigma da violência. São Paulo, Revista Tempo


Social/Rev. Sociologia, Universidade de São Paulo, 9 (1): 5-41, 1997.

NOTAS

[1] Professora e doutora da Faculdade de Serviço Social da PUC-SP, co-coordenadora do


Núcleo Temático Violência e Justiça da Faculdade de Serviço Social.

[2] A esse respeito, ver também Marilena CHAUI, “Sobre o Medo” IN: NOVAES,
Adauto. Os sentidos da paixão, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 6a reimpressão.

[3] Ressalta-se que esse setor da economia - o setor da segurança - é um dos que mais
crescem no mundo atual. Ou seja, a “indústria do medo” é altamente vantajosa, é um dos
mercados de maior expansão na atualidade: quanto mais se ampliam os índices de
violência e do medo social, maior os ganhos deste setor. Segundo Teixeira (Baierl, 2004:
68), no ano de 2001, foram gastos R$ 112 bilhões de reais, somente no setor de seguros
privados, o que equivalia a 10,2% do PIB.

[4] A esse respeito ver Luzia Fátima BAIERL, Medo Social: da violência visível ao
invisível da violência. São Paulo, Cortez: 2004, pp 202-3.

[5] A esse respeito, ver o trabalho O crime organizado e seus impactos no exercício
profissional, aprovado para ser apresentado no Congresso Brasileiro de Assistentes
Sociais (outubro de 2007), em Foz do Iguaçu, de Luzia Fátima BAIERL e Carlos Alberto
da Cunha ALMENDRA.

[6] A própria ONU calcula que o narcotráfico tem um faturamento anual de US$ 400
bilhões, crescendo na mesma proporção com que se expande o mercado de 200 milhões
de consumidores de drogas (Freitas Jr., 2004: 10-11).

Luzia Fátima Baierl - Professora e doutora da Faculdade de Serviço Social da PUC-SP,


co-coordenadora do Núcleo Temático Violência e Justiça da Faculdade de Serviço Social.
Grita menino e fala menina,
a voz de vocês é uma arma poderosa

Adriana Oliveira - Estudante de Serviço Social da PUC-SP; André de Santa Cruz Leite -
Assistente Social; Raoni Pereira Jerônimo – estudante de Serviço Social; Rosalina de
Santa Cruz Leite - Prof.da Faculdade de Serviço Social - PUC-SP; Vanessa Faro Chaves
– estudante de Serviço Social; Vinicius Figueira Boim - estudante de Serviço Social.
1-

APRESENTAÇÃO

Neste texto, é apresentada uma reflexão sobre a sociabilidade dos jovens envolvidos com
o ciclo da violência das transgressões e do tráfico por meio da fala de jovens que se
tornam prisioneiros desse ciclo, não encontram saídas para a liberdade, e se escravizam.
Essa reflexão é fruto da convivência cotidiana da equipe de serviço social de um Centro
de Defesa e Proteção desses jovens nomeado “Refazendo Vínculos, Valores e Atitudes”,
campo de extensão Universitária da Faculdade de Serviço Social da PUC–SP em parceria
com a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social da cidade de São Paulo. Nossa
intenção com este texto é publicizar nossa experiência neste espaço ocupacional e dar voz
aos jovens que encontram-se ou já estiveram privados de liberdade, condenados a
viverem anos de suas vidas na Fundação CASA, antiga FEBEM, ou no Sistema
Prisional. Em geral, hoje, é quase um “ pré-destino”, para quem passa pela FEBEM na
adolescência, chegar, na juventude, ao sistema prisional.

Os depoimentos dos jovens apresentados são ilustrativos da vivência dos muitos que
acolhemos, convivemos e aprendemos a amar e respeitar na nossa convivência cotidiana
no Refazendo Vínculos, sem nenhuma pieguice, movidos por sentimentos de indignação,
de justiça e de solidariedade. Os depoimentos falam por si mesmos, são memórias de
meninos e meninas cujo sofrimento nos envergonha a todos, deixa-nos indignados e
exige um compromisso com a transformação desta situação. E mais, leva-nos a refletir
sobre o direito e mesmo o dever que tem cada um destes jovens de rebelar-se da forma
que conhecem e aprenderam nas ruas e becos da sua comunidade. Falamos contra aqueles
que pedem ou até exigem, desses jovens, resignação.

OS MENINOS DO TRÁFICO, O DEBATE


E AS RELAÇÕES COM O PCC.

A juventude é, para todo ser humano, uma das fases da vida de grandes contradições, de
descobertas, de rebeldias, de afirmações de comportamentos e valores diferentes dos
aceitos pelos pais, dos estabelecidos pela escola ou pela sociedade. É um período especial
de formação e de desenvolvimento de habilidades que serão, em grande parte, o alicerce
da vida adulta.

Por outro lado, se isto em parte é verdadeiro, também é verdade que qualquer análise que
envolva jovens deve ser vinculada ao universo econômico e sócio-cultural em que vivem
e se sociabilizam, a sua condição de classe. Pois, juventude é uma categoria histórica, o
que implica não ser possível falar genericamente da juventude, como se fosse um bloco
monolítico. A condição juvenil é determinada, em última instância, pela condição de
classe social, pela posição ocupada na estrutura da sociedade. Como a juventude é social
e historicamente determinada, fatores de várias ordens influem na forma de ser jovem.

A escuta e os vínculos construídos na prática cotidiana de defesa e proteção desses jovens


nos têm mostrado que as violências a que estão submetidos vêm junto com o abandono
em que vive essa juventude privada dos direitos mínimos de cidadania, impossibilitada de
fazer outras escolhas que não sejam a de adesão, em determinados momentos, a
subculturas marginais, do uso ou abuso de drogas, do tráfico ou da prática de atos de
transgressão relacionados a roubos e assaltos.

Tais atos representam, muitas vezes, “estratégias de resistência” destes jovens contra a
exclusão, à qual encontram-se condenados.. Na formação dessa sociabilidade, influi, em
primeiro lugar, a falta de oportunidades e de políticas públicas dirigidas ao jovem em
situação de risco social e pessoal. A convivência com esses jovens nos faz pensar que a
política governamental para essa juventude tem sido, prioritariamente, a construção de
presídios e o reforço da desqualificação e da humilhação social.

O preconceito de agentes policiais, educacionais e de outros profissionais que deveriam


ser os defensores desses jovens, o abandono e a violência familiar, a violência policial e
da sociedade, que muitos enfrentam cotidianamente, têm levado essa juventude, além de
transgredir, a se filiar nas chamadas “facções criminosas”.

Em São Paulo, a mais famosa é o PCC - Primeiro Comando da Capital. Os “meninos”


que freqüentam o Refazendo Vínculos que são próximos ou filiados ao “partido”
chamam-se de “irmão”. Falam de forma semelhante sobre o “sistema”. O PCC, que
também é chamado pelos jovens de “o movimento”, representa, para muitos, a
possibilidade de pertencer a um grupo que tem prestígio e poder. Podemos afirmar que
todos os adolescentes e jovens que freqüentam o Refazendo conhecem o ”movimento” e
têm opiniões sobre ele. Podemos ainda afirmar que todos respeitam o PCC, uns por
simpatizarem com as propostas, outros por medo.

PedrazziniI (2006), no texto “Violência nas Cidades”, apresenta-nos uma reflexão sobre a
relação entre as “gangues” urbanas globais e as comunidades onde existem tais
“gangues”. O autor conclui que:

Não existe uma real separação espacial entre as gangues e as comunidades onde vivem, e
se dissociarmos bandidos e mocinhos, impediremos o avanço de qualquer iniciativa de
compreensão desta problemática. Embora os habitantes da favela sejam as principais
vitimas de sua atuação, eles compreendem que é uma escolha de sobrevivência
(...).(2006: 141).

Não podemos ignorar que, na favela de Heliópolis, por exemplo, a linha divisória entre os
jovens que transgridem e aqueles que não transgridem é tênue, e que a convivência entre
os vários grupos num mesmo território produz uma mesma sociabilidade, com
microprojetos diversificados.

Entretanto, nem todos os jovens que moram numa mesma comunidade têm a mesma
relação com o PCC. Além do mais, não é fácil ser aceito no Partido, como é chamado o
PCC.

Um dia, o B., então com dezessete anos, chegou para mim e pediu “um particular”.
Fomos para a sala de atendimento, e B., muito sério, foi logo perguntando:

...“Rosa, você me ajuda a entrar pro Partido? Surpresa, perguntei: “B., você se interessa
muito por política?” Ele, mais sério, disse-me: “É o PCC, Rosa. Vou precisar de R$
500,00. Já tive duas indicações de pessoal de dentro do movimento e que sabe de mim.”
Meio sem jeito, acrescentou: ”já tenho credibilidade.” Argumentei: “B., sei que você tem
muitas dificuldades, mas o PCC é morte, você tá querendo morrer?” Ele me respondeu:
“Não, Rosa, eu quero é sobreviver. Se eu entrar, vão me respeitar na favela, e se vou
preso, tô protegido, minha família, também.” (B., 19 anos, atualmente preso, acusado de
participar de um assalto, em depoimento a Rosalina Santa Cruz)

Desta conversa com B e de outras que tivemos com os meninos do tráfico, que quando
foram presos, se aproximaram do PCC, pudemos inferir que essa organização
“criminosa”.transformou as relações no sistema prisional e do crime organizado nas
favelas. A organização tem código e leis severas, tem hierarquia e poderes. Por isso
mesmo, pode dar pertencimento, status e proteção a quem a ela faz adesão; desde que
cumpra as regras, poderá usufruir dessas regalias. É claro que se trata de uma
organização com códigos rígidos, autoritária, hierarquizada e regida por relações de
poder ambíguas. Entretanto, os jovens que passaram ou estão nos presídios acreditam que
organizações como o PCC vêm cumprindo um papel importante no controle e na
organização nos presídios e nas comunidades.

Lá dentro é melhor com lei do que sem lei, e a lei dos irmãos é mais certa. (N., 21 anos,
dois anos internado na FEBEM, e dois anos no sistema prisional).

Entretanto, essa posição não é unânime, pois outros jovens falam do PCC como uma
nova prisão:

... se você entra nisso aí tá perdido, fica escravo... Tô fora. (J., 24. Cumpriu três anos
de prisão, onde travou relações próximas com o PCC.)

POR QUE OS JOVENS SAEM DO TRÁFICO, E O QUE


PENSAM QUANDO NELE ESTÃO TRABALHANDO?

Tem sido muito instigante discutir esta questão. Isso se deve ao fato de que essa
experiência não é igual para todos, nem a entrada para trabalhar numa “biqueira”,
tampouco a saída. Vou narrar um caso, que serve para ilustrar essa relação.

J. R. ficou feliz quando se empregou realmente no tráfico. Começou a chegar ao projeto


ostentando posses, com dinheiro, celular com câmera fotográfica e até de moto. Mas,
com o passar do tempo, chegava exausto, só dormia. Estava triste, ansioso e preocupado.
Um dia, a coisa estourou. Chegou ao projeto pedindo ajuda: o rosto pálido, os olhos
vermelhos não de fumar, mas de chorar, e nos contou a seguinte história:

...fui preso ontem, os homens me pegaram e foi aquela pressão, fiquei cinco horas com
eles lá dentro do camburão, aquele sufoco, eles sabiam que eu estava trabalhando na
boca... Já estavam na espia e queriam dinheiro, tudo. Eu tinha três mil reais que estava
juntando com meu “patrão” (o traficante), uma parte estava em casa, outra consegui
emprestado com ele... Os policias pegaram minha namorada e ela foi buscar o bagulho, a
grana. Dei pra eles, também, um revólver que, desde a prisão do meu irmão, alugava pra
ganhar um dinheirinho... E a moto que eu estava dirigindo quando eles me prenderam...
Agora vou parar de qualquer jeito, mas o difícil não é parar, é se livrar da policia. Agora
eles sabem que podem cobrar pedágio de mim, e vão exigir que eu vá trabalhar pra
pagar... (J. R., 17 anos).

Perguntamos para ele: “E o traficante deixa você sair, assim?” J. R. respondeu, de pronto:
“Claro que sim, desde que seja uma pessoa como eu, que não esteja devendo nada, se
conhece os esquema... Só pode sair se for limpo. Entendeu? Desde que você saia limpo,
sem dever nada, pode sair,desde que seja confiável...”

Em alguns casos, como o deste menino, as relações com o traficante são mais fáceis do
que com a polícia. Para comprovar essa afirmação, essa história ainda não acabou. J. R.,
depois deste episódio, desapareceu. Ninguém sabia dele na favela. No início, pensamos
que havia sido preso, mas ele não pediu ajuda jurídica. Até que, um dia, uns três meses
depois do episódio já narrado, J. R. veio ao Refazendo todo bem vestido, sorridente, e nos
falou:

Sabe gente, não tô vindo mais aqui porque tô na mesma vida, sem saída, né? Porém, fui
transferido para trabalhar numa biqueira lá na zona Leste, por causa daquela treta com a
polícia.

Esse jovem se sente protegido pelos “irmãos” e pela rede do tráfico. Porém, não é assim
para todos. As regras são rígidas, e um pequeno deslize pode levar à morte do jovem e até
a da família.

Um dia, a família de M., de dezesseis anos, nos procurou desesperada. Naquela


madrugada, um grupo, a mando do gerente da “biqueira” onde M. trabalhava, invadira a
casa deles de madrugada para matar a todos, diziam.
Perguntamos o porquê de tanta violência. Respondeu-nos a irmã de M., com a filhinha no
colo:

É que o M. aprontou, tava trabalhando lá. (...) a gente não queria, mas ele foi, e o dono
contou que ele pegou um pouco de todas as trouxinhas que ele vendia para usar. Só não
mataram porque um deles nos conhece desde pequenos, acho que ficou com dó, mas
quase que a gente morre tudo... A gente combinou que vai pagar, mas a gente precisa de
ajuda para o M. fugir por um tempo. Ir para o norte... Por favor, ajude a nós, pois meu
irmão já deve ter ido para o “debate”.

Outro caso de julgamento absurdo é o de Z., dezesseis anos, com problemas de cognição.
Z. nunca aprendeu a ler, nem escrever. Além da defasagem escolar, Z. não tem noção de
perigo; é como se não compreendesse a realidade. A mãe e o pai, apesar de serem muito
pobres, sempre se preocuparam com a busca do diagnóstico e com um tratamento para o
filho. Quando Z. ficou adolescente, começou, como muitos adolescentes da sua
comunidade, a se aproximar das “biqueiras” e a se envolver com atos de transgressões.
Porém, sem nenhuma noção das regras, roubou de um traficante, e foi para o “debate”.

Seu pai, conhecido na comunidade, foi avisado, e se dirigiu até o local. Quando chegou,
foi reconhecido por alguns dos presentes, e conseguiu que parassem o julgamento e
libertassem seu filho, que estava muito machucado, com a perna esfaqueada. O pai supõe
que o adolescente sofreu abuso sexual.

Outro relato que mostra como os códigos das biqueiras são variáveis e dependem do tipo
de conflito é o que segue. Uma mãe que não é moradora da favela foi encaminhada pelo
Conselho Tutelar para o projeto, pois sua queixa envolvia drogas. A mãe fez o seguinte
relato.

Começou a perceber que o filho estava usando drogas, apresentando comportamentos


estranhos. Em face desta suspeita, a mãe resolveu seguir o filho, e viu que ele ia à favela
buscar drogas. Desesperada, decidiu segui-lo até a “biqueira” e intervir de uma forma
mais direta, falando com o gerente do ponto de venda de drogas.

Ao chegar à “biqueira” logo depois do filho, pediu ao traficante que não vendesse mais
drogas para ele, que as drogas estavam destruindo a vida dele etc. O traficante não teve
dúvidas. Agarrou o adolescente, e começou a espancá-lo com tal violência que a mãe
pensou que o filho não resistiria. Implorou, chorou, pedindo para que ele parasse, mas ele
só parou quando o adolescente quase não mais conseguia andar. Então, conta a mãe, o
traficante falou, olhando-a com um olhar extremamente ameaçador: “Agora ele não virá
mais aqui, e a senhora, também.”.

Outros jovens comentam sobre a ação do PCC nas comunidades da seguinte forma:

A favela hoje está na maior paz, diminuíram as chacinas e mortes devido à ação dos
irmãos, pois controlam a guerra entre os malucos, pois ninguém morre à toa, nem sai
matando assim. Se ele age assim, sem obedecer a ordem, pode morrer, pois está
desobedecendo as regras. (Z., dezoito anos, já foi segurança numa biqueira.)

O “debate” geralmente está relacionado aos conflitos oriundos do “mundo do crime”,


como dizem os meninos. Entretanto, afirma-se que esse mecanismo é usado, também,
para resolver outros problemas da comunidade. O “debate” é convocado, geralmente,
pelos gerentes das biqueiras. Quanto maior o ponto de venda e quanto mais dinheiro nele
circule, mais legitimo será o debate e o seu gerente.

As relações de poder e o seu exercício pelo PCC e seus similares, tão criticados pela
sociedade, obedecem à mesma lógica da ordem burguesa capitalista, e o poder paralelo
do crime organizado se estabelece com a mesma lógica do poder do capital. Portanto,
perguntamos: a violência que é exercida pelos donos dos pontos de venda de drogas é
menos ou mais truculenta do que a exercida pelos agentes do Estado contra os pobres que
transgridem? E quanto à ética, não será a mesma do Capital? Qual é mais danoso ao ser
humano e à sociedade: o terrorismo do narcotráfico ou o terrorismo de Estado? Serão
diferentes a exploração e a opressão dos poderosos donos do Capital nos impérios
industriais e a dos “poderosos” donos de pontos de venda nas favelas? Essa pergunta só
teria sentido se uma não fosse parte da outra.

Sabemos que isso não justifica a barbárie da violência urbana, mas é preciso buscar as
raízes, compreender a lógica da barbárie em sua totalidade e como ela produz e reproduz
a lógica do capital. Se não, estaremos, como sempre, descrevendo os fenômenos socais,
horrorizando-nos com a naturalização do inaceitável, e buscando soluções que penalizam
o indivíduo, mas que não enfrentam as causas reais do problema e suas contradições.

Em face desse quadro, políticas de proteção e defesa desses meninos e meninas são
essenciais. Não basta, porém, a assistência do Estado; são necessárias condições reais de
formação politico-ideológica para a transformação profunda desta realidade. Trata-se de
formular políticas públicas que ofereçam possibilidades de efetivação de uma real ruptura
desses jovens com a sua trajetória de vida anterior. Há um conceito muito comum nas
áreas ambientais e tecnológicas, denominado "dependência da trajetória”, ligado à
construção de um determinado padrão técnico para se realizar uma atividade. Uma vez
que se tenha difundido amplamente esse padrão, alterações de curso são difíceis e
demandam um grande tempo; assim é com os meninos que, para se transformarem
realmente em cidadãos de direitos e de desejos, precisam que lhes sejam oferecidas
possibilidades reais de transformarem sua trajetória de vida para viverem em sociedade
com outros valores. Essa é uma travessia longa e difícil.

A identidade se constrói ao modo de um espelho, e esse espelho é o olhar do outro, é o


reconhecimento do outro. Esses adolescentes são vistos com preconceito e estigmatizados
pela sociedade como ”bandidos”, “vagabundos”, “pessoas de má índole”, “perversos” etc.
É difícil que esses meninos e meninas possam contar com a generosidade do olhar do
outro; com o olhar que eleva a auto-estima, que nos valoriza e nos identifica como
capazes e bons. Dessa forma, transgredir torna-se uma estratégia de vida,.e a falta de
oportunidades, o desejo de consumo e a desqualificação social são, sem sombra de
dúvidas, fortes fatores de formação de transgressores.

Pedrazzini (2006), ao analisar o fenômeno globalizado das “gangues” nas sociedades


contemporâneas, refere-se às violências urbanas cujos protagonistas são jovens, pobres,
pouco escolarizados e moradores de áreas de risco social. O autor faz referência à
“eclosão em todo o mundo capitalista de ‘novas classes perigosas’ que vêm
desencadeando nas favelas uma luta de classes pós-moderna, cujos perdedores são
sempre os jovens, os pobres, os pequenos infratores, os miseráveis, os condenados da
terra urbana.” (2006: 145).

O autor.aponta, mais adiante, que o desafio estaria em pensar o futuro das cidades com
eles, perguntando-lhes que soluções apontariam para a resolução da violência de que são
acusados, propondo-lhes os princípios de uma real participação nos “projetos
estratégicos” como atores sociais e políticos na perspectiva da construção de um real
protagonismo juvenil.

O PROJETO ÉTICO, POLÍTICO E PEDAGÓGICO


DO REFAZENDO VÍNCULOS.

Proteger, defender e educar, para nós, do Refazendo Vínculos, significa recorrer na ação
cotidiana à afetividade, ao diálogo, à liberdade e à construção da autonomia de meninas e
meninos envolvidos no ciclo da violência, com a intenção de os instrumentalizar para
compreenderem a dinâmica da sociedade em que vivem, se reconhecerem como sujeitos
de direitos, capazes de construírem estratégias individuais e coletivas de retomada e
ressignificação dos vínculos rompidos ou esgarçados com a família, a escola e a
comunidade.

Assim, ao reconhecerem a lógica da sociedade que vivem, ao se sentirem respeitados e


acolhidos, esses jovens passam a refletir sobre sua sociabilidade e se instrumentalizam
para serem capazes de se situar de forma crítica e pró-ativa na sociedade.

Paulo Freire, na carta pedagógica intitulada “Do direito e do dever de mudar o mundo”,
afirma que homens e mulheres devem e podem mudar o mundo, mas só o podem fazer
referenciados na realidade concreta, e não em ações fundadas em devaneios, falsos
sonhos sem raízes na realidade, puras ilusões. Por outro lado, não é possível sequer
pensar em mudar o mundo sem sonhos, sem utopias ou sem projetos.

Acreditando nessa premissa, construímos uma proposta educacional para o Refazendo


Vínculos fundamentada numa concepção de homem e de sociedade e na aplicação do
método do materialismo histórico e dialético, que reconhece as contradições nas relações
entre capital e trabalho como o eixo gerador da questão social e da vulnerabilidade.
Permite aos sujeitos envolvidos no processo socioeducacional o conhecimento sobre a
realidade e sobre eles mesmos. Nega qualquer relação de dominação, por privilegiar uma
relação entre educadores e jovens construída no respeito mútuo e na troca de saberes.
A Educação Libertária, desde os anarquistas do socialismo utópico, como Proudhon
(1809-1865), Michael Bakunin (1814-1876) e Peter Kropotkin (1842-1921), até os
marxistas e os contemporâneos como Paulo Freire, Moacir Gadotti e Mario Sergio
Cordella se contrapõem a educação burguesa tradicional, baseada na acomodação à
realidade, na reprodução das estruturas cruéis de dominação e exploração, na doutrinação
dos jovens para exercerem a competitividade e se submeterem, se disciplinarem,
valorizando as atitudes e a ideologia que dão sustentabilidade à sociedade vigente. São
induzidos a ocuparem seus lugares predeterminados nesta sociedade, sem revoltas ou
contestações.

Por outro lado, a educação libertária defende o empoderamento dos jovens pela
compreensão da dinâmica da sociedade, pelo reconhecimento das relações contraditórias
que determinam sua sociabilidade, pelo acesso às informações e aos mecanismos de
garantia de direitos sociais e de defesa dos direitos humanos. Em vista disso, a Pedagogia
Libertária tem um nítido corte de classe, está a serviço da transformação, despertando
nos indivíduos a consciência da necessidade de profundas transformações sociais e
individuais.

A proposta de ação pedagógica adotada pela equipe do Refazendo Vínculos envolve


interação, afetividade e diálogo. Porém, não trabalhamos com orientação ou
aconselhamento, mas com reflexão e crítica, sendo os educadores os facilitadores deste
processo, tanto no trabalho com os grupos como no atendimento individual. O objetivo é
a busca da consciência, da ressignificação dos vínculos sociais e afetivos, da descoberta
de novos campos de interesse e de prazer e da valorização da vida individual e coletiva.
Com base neste pressuposto, desenvolvemos o trabalho jurídico-social, a formação
política para o mundo do trabalho, grupos temáticos de relações de gênero, de redução
de danos ao uso de drogas, grupos de discussão dirigidos e apoio individual .

A verdadeira produção de um novo conhecimento só se faz com liberdade, sem a falsa


máscara da "neutralidade", na contramão das idéias preconcebidas. Educar para a
liberdade supõe o exercício do pensar, do questionar e do indignar-se para compreender e
construir um novo conhecimento sobre a realidade com a intenção da ação
transformadora.

Nesse aspecto, a formação política para a cidadania que trabalhamos com os jovens
envolvidos no ciclo da violência fundamenta-se na obra de Marx, que inaugura um modo
radicalmente novo de compreender a sociedade capitalista, que é o de compreendê-la do
lugar dos oprimidos. Assim, a teoria de Marx tem como objeto a compreensão da
sociedade capitalista, com o objetivo não só de compreendê-la de um determinado lugar -
o da classe trabalhadora - mas também de buscar caminhos para a transformação radical
desta sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Este trabalho é dedicado a todos que, como os jovens que, sem perspectiva de futuro, sem
possibilidades de inserção no mercado formal de trabalho, fora da escola e seduzidos
pelos ícones de consumo da sociedade capitalista globalizada, rompem com a ideologia
dominante da submissão e resistem transgredindo.

Entretanto, contraditoriamente, esses mesmos jovens, quando entram para o mundo das
transgressões, tornam-se escravos e submissos a outros códigos e regras, tão opressivos e
alienantes como os conhecidos e legitimados pela sociedade capitalista contraditória e
excludente, que gera e reproduz o desrespeito à vida.

Trabalhar com esses jovens na perspectiva da garantia de direitos e da emancipação


humana supõe a construção de uma política pública dirigida à juventude em situação de
risco envolvida com o ciclo da violência, formulada e executada de outro ponto de vista,
o do projeto da classe trabalhadora.

Supõe trabalhar de forma integrada, com a participação efetiva dos jovens indo, além do
diálogo, da afetividade e da construção de vínculos ao trabalhar com o individuo, com
sua trajetória pessoal, intransferível, única, priorizando conteúdos que levem esses
adolescentes e jovens a conhecerem a lógica da sociedade em que vivem e a adquirirem
uma consciência política e crítica.

O mais importante é preparar esses adolescentes e jovens para atuarem de uma forma
crítica e pró-ativa sobre os mecanismos que geram e reproduzem a pobreza e a
desigualdade, para que assim encontrem oportunidades reais de se tornarem protagonistas
de sua própria história.

BIBLIOGRAFIA

AMORIM, C. Comando Vermelho - A historia secreta do crime organizado. Rio de


Janeiro, Record, 1994.
_________ CV-PCC: a irmandade do crime. Rio de Janeiro, Record, 2003.
CALDEIRA, T.P.R. Cidade de muros - Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São
Paulo, Ed. 34/Edusp, 2000.
CALLIGARIS, C. Lei e comunidade: com algumas propostas. In: PINHEIRO, P. S. et al.
São Paulo sem medo - Um diagnóstico da violência urbana. Rio de Janeiro, Garamond,
1998, p. 59-72.
CASTELLS, M., ROBERT, W., LUIZ, Mariângela B. A Desigualdade e a Questão
Social. São Paulo, EDUC, 1997.
CHRISTINO, M. Por dentro do crime: corrupção, tráfico, PCC. São Paulo: Escrituras,
2003.
DOWBOR, L. (Org.). Desafios da Globalização. Petrópolis, Vozes.
FEFFERMANN, M. Vidas Arriscadas. Petrópolis, Vozes, 2006.
HOBSBAWN, E.. A Era dos Extremos. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
SANTOS, B. O Social e o Político na Pós-Modernidade. São Paulo, Cortez, 1995.
SOARES, L. T.. Os custos sociais do ajuste neoliberal na América Latina. São Paulo,
Cortez, 2000.
LESBAUPIN, Ivo. Para entender a conjuntura atual – Neoliberalismo. Petrópolis, Vozes,
1996.
VANUNNUCHI, P. e NOVAES, R.. Juventude e Sociedade. São Paulo, Instituto de
Cidadania e Perseu Abramo, 2004.

Adriana Oliveira - Estudante de Serviço Social da PUC-SP e educadora do projeto


Refazendo Vínculos, Valores e Atitudes; André de Santa Cruz Leite - Assistente Social;
Raoni Pereira Jerônimo – estudante de Serviço Social; Rosalina de Santa Cruz Leite -
Prof.da Faculdade de Serviço Social - PUC-SP; Vanessa Faro Chaves – estudante de
Serviço Social; Vinicius Figueira Boim - estudante de Serviço Social.
A aguda fabricação do modo
de produção vigente
a população em situação de rua

Márcia Accorsi Pereira


Assistente Social e Professora da Faculdade de Serviço Social da PUC-SP
1-
Em agosto de 2004, aconteceu na região central da cidade de São Paulo uma série de
assassinatos do segmento da população em situação de rua, fato que gerou protestos de
parcela da população. A PUC-SP, por meio da Faculdade de Serviço Social, organizou
um ato de repúdio, com a presença de vários representantes da sociedade civil, quando
Padre Júlio Lancelotti proferiu a seguinte frase: “Eles são a pedra de tropeço da nossa
sabedoria”.
Para a sociedade em geral, a população em situação de rua constitui um problema. A
coletividade sente-se incomodada com a miséria estampada com a qual convive a cada
instante. Borin, estudiosa do assunto, afirma:

Os moradores de rua são muito estigmatizados pelos cidadãos da cidade. Eles despertam
medo, nojo e descaso. As relações sociais dominantes cultuam a idéia da intolerância
frente aos “diferentes e/ou aos desiguais”, prevalecendo os interesses consumistas e
individualistas que giram ao redor do mundo das coisas em proporção inversa à
valorização dos homens. A própria condição de não identidade leva ao conformismo, que
faz dessa “população” um objeto passivo de coerção. (2003:122).

Assim, um morador em situação de rua nos atinge profundamente, presentificando o


incômodo que a pobreza causa. Pode-se afirmar que o diferente causa mal-estar. Então,
cerca de dez mil pessoas parecem um exército de desvalidos a ser combatido nas mais
diversas frentes.

O fato de ocasionar incômodos traz referências e posicionamentos diferenciados por parte


das pessoas: rejeição, compaixão, repulsa, medo, solidariedade, paternalismo,
assistencialismo, raiva, comparações e juízos de valores. Enfim, a sociedade age de
acordo com valores coletivos, refletindo e condicionando a sua visão pessoal. Em termos
numéricos, pode-se ressaltar como minoria aqueles que vêem a população em situação de
rua como cidadãos detentores de direitos.

Em São Paulo, o transeunte mais atento pode sentir como seres humanos vivenciam a
humilhação social, a partir de algumas cenas cotidianas: pessoas perambulando pelas
ruas, deitadas nas calçadas, pedindo ajuda, mexendo nos lixos, carregando sacolas de
plástico com vestes humildes, empurrando ou puxando carroças de lixo, embriagando-se,
amando-se. Enfim, sobrevivendo.
Os espaços da cidade, territórios aparentemente livres, mas contendo barreiras
intransponíveis, inviabilizam qualquer perspectiva de que uma pessoa em situação de rua
ali adentre. Da mesma forma, outros espaços públicos apresentam muralhas invisíveis e
intransponíveis para aqueles que se encontram em condições materiais diferenciadas da
população em situação de rua.

Nas duas situações, são verdadeiros guetos, onde os seres humanos são apartados da
sociedade. Contudo, há alguns momentos de encontro na dinâmica urbana da cidade.
Quando isso acontece, os sentimentos variam da compaixão à repulsa e à indiferença.

Fato freqüente, nas grandes cidades, refere-se às crianças e adultos nos semáforos,
reinventando a cada dia novas estratégias de sobrevivência, passando pela esmolaria, pela
precariedade do trabalho, vendendo balas, limpando pára-brisas de carros, fazendo
malabarismos, acrobacias e outras atividades circenses.

Os transeuntes, apressados, esperam pela abertura dos semáforos para se livrarem da


situação, com receio de que tudo isso seja mais uma nova modalidade de assalto. Ou, até
mesmo, com uma indiferença total, como se o fato não lhes dissesse respeito, somente
desejando chegar aos seus destinos da melhor maneira possível, ou seja, sãos e salvos.

Assim, é preciso esforço para entender que se tratam de seres humanos, que fazem das
ruas o palco de sua vida cotidiana. Afinal, sobreviver é imperioso. O aspecto a ser
enfatizado diz respeito às conseqüências dessa condição de “pobres”, que os torna seres
sem qualificação, sem lugar na sociedade.

Por outro lado, pode-se perceber a opulência de outros, freqüentadores de locais


proibitivos para os moradores em situação de rua, embora nenhuma cerca ou grade os
impeça de entrar. São shoppings, igrejas, cinemas, lojas, restaurantes, teatros e lugares
públicos que funcionam como verdadeiras torres protegidas por muros invisíveis,
carregando discriminações, impedindo-os de terem acesso a essas verdadeiras fortalezas
dos melhor dotados financeiramente.

A partir dessas constatações para a compreensão do problema, a análise que privilegia as


causas estruturais presentes na sociedade capitalista parece não ter a ressonância
necessária na sociedade em geral. A problemática continua preponderantemente
personificada na figura do morador de rua. É como se houvesse um dedo em riste,
dizendo-lhe: “A culpa é sua”.

A partir dessa constatação, acontecem os julgamentos e juízos de valor, que se refletem


nas ações postas à disposição dessa população. Então, tornam-se de fundamental
importância as lutas e conquistas políticas presentes no seio da sociedade, para alterar
significativamente essa realidade.

Vieira, em referência a esse segmento, afirma: “Quando se fala de população de rua


ninguém tem dúvida de que este segmento social expressa uma situação-limite de
pobreza, por mais diferente que seja a conceituação que se desenvolva” (1992:17).
Enfim, limite, porque rompe barreiras socialmente convencionadas, ocasionando espanto
e pasmo diante da possibilidade de continuarem vivendo e sobrevivendo em precárias
condições. A situação-limite é então colocada, tendo como parâmetro o que foi
convencionado como aceitável, ou seja, o de viver com a mínima dignidade. Parece que a
expressão “situação limite” aponta para uma realidade inaceitável como perspectiva de
vivência do humano.

O trabalho com o tema população em situação de rua evidencia a complexidade da


questão, pois quando se procuram as referências, observa-se a situação como síntese de
inúmeras problemáticas.

De maneira geral, a população em situação de rua apresenta as seguintes características,


além da perda do trabalho: grupo familiar fragilizado ou rompido; convive com modelos
fora da lei e pratica atos ilegais; é responsável pelo seu sustento; agencia drogas;
necessita de acolhimento; passou por perdas e começa a acreditar que de alguma forma
foi responsável por essas perdas; tem debilitada a auto-estima; no cotidiano, sofre
agressões; apresenta doenças psicossomáticas.

É a síntese de várias ausências ou flancos que carecem de alternativas totalizantes, ou


seja, de políticas mais abrangentes e trans-setoriais.

Parte-se do pressuposto de que não há dúvida sobre a relação entre pobreza, exclusão,
desigualdade e população em situação de rua. Entretanto, nas ruas, a pobreza vivenciada
por todos, de forma indiscriminada, cria níveis diferenciados, como vários autores e
profissionais já assinalaram anteriormente. Na pioneira publicação População de rua:
quem é, como vive, como é vista, coordenada por Rosa e Vieira, tem-se uma contribuição
esclarecedora, que já se tornou clássica:

A rua pode ter pelo menos dois sentidos: o de constituir num abrigo para os que, sem
recursos, dormem circunstancialmente sob marquises de lojas, viadutos ou bancos de
jardim, ou pode constituir-se em um modo de vida para os que já tem na rua o seu habitat,
e que estabelecem com ela uma complexa rede de relações. Seria possível identificar
situações diferentes em relação à permanência na rua: Ficar na rua (circunstancialmente);
estar na rua (recentemente); e ser da rua (permanentemente). (1992:93).

Essas situações permitem identificar a população em situação de rua de forma


heterogênea. A partir dessa heterogeneidade, várias ações foram concretizadas a partir da
constatação de que o “problema” deveria ser enfrentado.

No início da década de 1990, quando a população em situação de rua foi caracterizada


como um problema, houve uma mudança na maneira de encarar a questão, pois, até
então, havia uma idéia de que os que perambulavam pelas ruas, isolados e sós, o faziam
por opção. Na década de 1970 e nos primeiros anos de 1980, os poucos que andavam a
esmo, possivelmente, tinham essa conotação, não se esquecendo dos aspectos
relacionados ao alcoolismo e aos distúrbios psíquicos.
Ainda nessa década, dom Paulo Evaristo Arns, na edição de 25 de novembro de 1984 do
extinto jornal Notícias Populares, assim se manifesta:

A Prefeitura tenta, com o fechamento dos viadutos e espaços vãos, ocultar de todos nós
esse estado de miséria em que se encontram nossos irmãos, que representam a grande
parte de nossa população, composta de favelados, cortiçados, desempregados, etc. Viver
na rua é um sofrimento muito grande. Essa gente não tem emprego, não tem perspectiva
de um futuro melhor.

O quadro começou a se agravar a partir de meados da década de 1980. Os fatos


relevantes dessa época, quando se deu o crescimento desse contingente populacional,
foram a implantação do modelo neoliberal e, em termos globais, a mundialização da
economia e a reestruturação produtiva.

A pobreza, até aquele momento, era evidente, porém situava-se nas favelas e cortiços,
encontrando-se abrigada nos lares brasileiros, no âmbito privado. Todavia, ao tomar as
ruas, já não pode mais ser escondida. A ocupação das ruas das grandes cidades tornou-se
então um fenômeno cuja dimensão não pode mais ser ignorada.

No início da década passada, em dezembro de 1990, uma grande revista de circulação


nacional, Veja, dedicou ao assunto sua capa e um volumoso artigo. A tônica da análise
publicada pode ser condensada no seguinte trecho:

Depois do milagre econômico de Médici – A economia vai bem e o povo vai mal; da
recessão de Figueiredo – Minha preocupação são os mais necessitados; do desastre geral
de Sarney – Tudo pelo Social; os pés descalços e os descamisados do presidente
Fernando Collor estão entrando na grande Calcutá brasileira da década de 90. Eles são
cada vez mais numerosos. Há hoje 60 milhões de brasileiros classificados como
miseráveis com renda familiar inferior ao salário mínimo... Há trinta anos eram 30
milhões e residiam no campo. Há vinte, eram 45 milhões, apareceram nas cidades, e
foram construir as favelas na periferia. Há dez, começaram a chegar à rua – e nos últimos
tempos suas presenças nas calçadas, jardins e viadutos tornou-se mais visível do que em
qualquer outra época, transformando os grandes centros urbanos em territórios dos
desesperados sociais.

Com a administração da prefeita Luíza Erundina, a cidade de São Paulo pôde vivenciar
um período em que os setores empobrecidos tiveram a oportunidade de minimamente ter
as suas demandas reconhecidas e encaminhadas.

No início da gestão municipal, o apelo foi grande no sentido de refletir e propor


alternativas sobre a população em situação de rua. Esse fenômeno, detectado nas grandes
metrópoles, teve em São Paulo a oportunidade de desenvolver ações pioneiras,
procurando romper com o instituído, ou seja, intervenções assistencialistas.
Assim, foi possível detectar avanços, considerados como resultados de um amplo
processo de negociação, criação de alternativas e propostas de intervenção, envolvendo
inúmeras forças, lideradas pelos profissionais da PMSP: entidades sociais, assessorias,
ONGs, usuários, Igrejas, Universidades como a PUC-SP e a USP etc.

A intervenção na área procurou, a duras penas e pressões, se desvincular de ações


repressivas, autoritárias, incriminadoras dos seus protagonistas, realizando intervenções
cujo ponto analítico apontava para a idéia de que essas pessoas são vítimas de um modo
de produção econômica que as fabricava. Não havia a perspectiva de culpá-los
individualmente.

Porém, obviamente, esse pressuposto não era hegemônico na sociedade, nem no interior
dos órgãos públicos municipais. Foi uma construção difícil.

A partir de 1993, empossado o prefeito Paulo Salim Maluf, com propostas políticas e
ideológicas antagônicas à administração anterior, a cidade sofreu uma outra intervenção.

No período de 1993 a 1996, a administração malufista assumiu a denominada “limpeza


das ruas”. Com essa finalidade, até jatos d’água foram utilizados para retirar as pessoas
de seus locais de abrigo, como marquises de lojas e bancos e viadutos. A repressão voltou
a imperar nas ações.

O ano de 1994 foi pródigo em ações repressivas à população em situação de rua, criando
retrocessos nas conquistas. Várias ações foram estimuladas pelo poder público, sob o
argumento de higienizar o espaço público. A reportagem do jornal Folha de S. Paulo, do
dia 21 de setembro de 1994, trouxe a seguinte manchete> “Maluf diz que limpeza
continua”.

A expressão “limpeza das ruas” denota como as pessoas foram tratadas, ou seja, como
lixo ou entulho. Na mesma reportagem, o então Presidente do Conselho Estadual de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana assim se manifesta: “Constatamos pessoalmente a
situação de abandono em que vivem essas pessoas. (...) os sem-teto estão sendo tratados
como insetos e não como seres humanos (...). Uma higienização desse tipo só teve
precedentes na Alemanha nazista”.

Com o término da administração malufista e a entrada de seu sucessor, Celso Pitta, que
seguia a mesma linha política, algumas ações foram retomadas, baseadas nas
intervenções petistas efetuadas entre 1989 e 1992, mas observa-se que a precariedade
imperava, sem que houvesse o avanço desejado para o enfrentamento da questão.

A administração de Marta Suplicy procurou incorporar reivindicações conquistadas por


meio da Lei proposta pela vereadora Aldaísa Sposati, durante a gestão malufista, mas só
sancionada no início da gestão petista.

No entanto, observou-se a dificuldade de trabalhar políticas sociais voltadas para essa


população, pois parece ser um esforço infrutífero, quando se enfrentam, sem uma visão
de totalidade tais problemáticas. Ao contrário dos moradores das favelas, que se
encontram segregadas em seus territórios específicos, a população em situação de rua
vive em espaços de uso dos segmentos médios e das elites da população, ocupando
viadutos, por onde transitam os veículos particulares e coletivos, marquises de bancos e
lojas, bairros residenciais, entre outros.

Assim, a população se vê na contingência de conviver com essa face extremada de


miséria. Isso causa diversos sentimentos, que vão desde a caridade até um desconforto
contido ou incontido. Há sempre um incômodo.

A população em situação de rua demonstra cruamente, em todos os momentos, pelo


menos para alguns, a incapacidade de resolver esse problema, que atinge a todos de
forma indiscriminada. Então, se torna impossível ficar imune a uma realidade gritante.
Mesmo que haja uma certa banalização e naturalização, a população em situação de rua,
vivendo em condições sub-humanas, sem nenhum limite entre o público e o privado,
causa situações que vão desde o constrangimento até a repulsa.

A situação descrita tem respaldo no binômio formado por pobreza e exclusão, e é fruto da
desigualdade social. Os dados recentes apontam isso como a maior violência que atinge
milhões de brasileiros. A população em situação de rua, pela sua visibilidade, pela sua
transparência ao figurar como uma triste vitrine, denuncia essas gritantes diferenças.
Enfim, não é possível ignorá-la.

A população em situação de rua constitui a síntese de um modelo perverso de injustiça


social, que penaliza os mais frágeis, com escassas oportunidades de sobrevivência digna.
Nesse sentido, Borin afirma:

No Brasil, sem dúvida, os moradores de rua expressam uma situação limite de pobreza,
provocada por uma trajetória perversa de inclusão social, que acarretou falências e
desvinculações sociais, conduzindo à precarização de suas condições de vida, na qual não
encontraram suporte nem no âmbito privado e nem tão pouco no público, para que
pudessem reagir, embora pela Constituição Brasileira, todo cidadão tenha direito a uma
vida digna (2003:59).

É fundamental analisar a problemática população em situação de rua com a perspectiva


de denunciar a face perversa do modo de produção capitalista. Martins afirma, em
referência a esse segmento a esse segmento:

Eles são apenas o trabalhador potencial, o resíduo crescente do desenvolvimento


econômico anômalo. Quando muito, são trabalhadores dos setores secundários e
irrelevantes da produção. Por isso são excluídos. Não só, nem principalmente, excluídos
das oportunidades ativas do fazer História. (...) São descartáveis. Esse é o extremo
histórico da coisificação da pessoa e de sua alienação (2002:35).
Até o momento, não foi possível abordar a violência, pois essas reflexões pretendem
afirmar que a maior delas se refere ao modo de produção capitalista, o produtor dessa
triste faceta da realidade.

A situação vivenciada no momento vincula-se aos aspectos estruturais, estando articulada


com o mais geral da humanidade, que, nas últimas décadas, apresentou um grau de
inovações jamais visto. Entretanto, isso gerou a pobreza e a destruição, causando cada
vez mais contrastes e desigualdades.

Ressurgem novas e velhas práticas, em que a razão está sendo posta à prova, com
indícios de barbárie. Barbárie expressa na violência cotidiana, indo além da matança e
atos indiscriminados que se multiplicam pelas ruas. É outra essa violência, é corrosiva,
lenta e gradual, atingindo significativa parcela da população, retratada na fome, no
abandono, na ausência de moradia, educação, saúde e, principalmente, trabalho.

É a violência materializada no cotidiano. Essa população, então, é duplamente vítima.


Vítima dos aspectos estruturais, no âmbito econômico, e vítima dos aspectos
conjunturais, que se agravam cada vez mais. Pois, sem dúvida alguma - e as estatísticas
são pródigas em noticiá-lo -, atinge, nos dois casos, prioritariamente, aqueles sem
condições suficientes para enfrentar a situação.

Em face desses pontos, poder-se-ia supor que a análise aponta somente para um caminho:
a superação dessa ordem de coisas, ou seja, a própria supressão do modo de produção
hegemônico. Embora o pano de fundo seja esse, são consideradas de fundamental
importância ações sociais para minimizar a pobreza, a exclusão e a desigualdade social,
para a ampla parcela da população que não tem condições de superá-las.

Nesse contexto, move-se a sociedade brasileira, apresentando inúmeros desafios a serem


enfrentados. A pobreza, a exclusão e a desigualdade social, chagas do mundo
contemporâneo, atingem parcela considerável da população do País. Vitimada por esses
perversos resultados do modo de produção capitalista, destaca-se a população em
situação de rua.

O presente texto é uma síntese da tese de doutorado ( PUCSP/2005), intitulada:


“Caminhos em construção: encontro entre população em situação de rua e o MST”.

BIBLIOGRAFIA

BORIN, Marisa do E. S. Desigualdades e Rupturas Sociais na Metrópole: os Moradores


de Rua em São Paulo. Tese de doutorado em Ciências Sociais, PUC-SP, 2003.

MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo. Novos estudos sobre, exclusão,
pobreza e classes sociais. Petrópolis, Vozes, 2002.
NETTO, José Paulo. Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. São Paulo, Cortez, 1993.

OLIVEIRA, Francisco de. Vulnerabilidade social e carência de direitos (mimeo).

PEREIRA, Marcia Accorsi. A população de rua, as políticas assistenciais públicas e os


direitos de cidadania: uma equação possível? Dissertação de Mestrado, Programa de
Estudos Pós-Graduados em Serviço Social - PUC-SP, 1997.

ROSA, Cleisa M. M. (Org.). Vidas de rua, destino de muitos. Dissertação de


mestrado, PUC-SP, 1999.

VIEIRA, Maria Antonieta da Costa e outras (organizadoras). População de Rua -


quem é, como vive, como é vista. São Paulo, Hucitec, 1992.

CD-ROM. Vidas de Rua, destino de muitos. São Paulo, Instituto de Estudos Especiais -
IEE/PUC- SP, 1999.

Márcia Accorsi Pereira


Assistente Social e Professora da Faculdade de Serviço Social da PUC-SP
Vidas nuas... mortes banais
uma conversa de mulheres sobre homicídios

Isaura Isoldi de Mello Castanho e Oliveira


Professora da Faculdade de Serviço Social da PUC-SP
1-
Com o objetivo de subsidiar a política pública de atenção aos familiares de vítimas da
violência, uma pesquisa financiada pela FAPESP e realizada entre os anos de 2001 e
2003 pelas profs. Graziela Acquaviva Pavez e Isaura M. Castanho e Oliveira, sob
coordenação da Prof. Regina Marsiglia[1], traçou o perfil dos homicídios em São Paulo,
nos anos de 1998 e 1999, por meio da fala das famílias de suas vítimas.

O trabalho traçou o perfil das vítimas, tornando possível compreender o grau de


criticidade de seus familiares sobre o próprio crime, o conceito de vida e sua eventual
ressignificação, a convivência com a violência em suas distintas manifestações e seu
caráter natural ou naturalizado, a influência (ou não) da migração, as diferenças entre as
regiões da cidade, o perfil do crime, a disseminação da violência e seu potencial de
contágio, a banalização e a banalidade da vida e da morte, o perfil da vítima, o conceito
de justiça e as demandas das famílias vítimas de violência.

Além do Relatório Executivo e de um caderno especial com todas as tabelas e gráficos,


os resultados da pesquisa foram apresentados por meio deste texto contador de estórias,
que sintetiza o perfil das famílias visitadas e se propõe a servir como material pedagógico
para o trabalho das organizações sociais e populares envolvidas com a questão da
violência.

Estivemos na casa de 1.263 famílias que faziam parte de nossa amostragem (1, 2 e 3 ).
Pudemos entrevistar apenas 391, pelas seguintes razões: 327 se mudaram de casa depois
do evento do homicídio; de 367, não foi possível localizar o endereço; 124 famílias se
recusaram a conversar sobre a violência sofrida; 27 famílias tiveram seu acesso
dificultado pela área de risco em que viviam; algumas dessas famílias apareceram na
entrevista de outros, e 14 delas eram usuárias do CRAVI. Estivemos também nas casas de
27 vítimas cujo homicídio não foi consumado, isto é, que sobreviveram. As entrevistas
foram realizadas em 226 bairros, na jurisdição de 3 Delegacias Seccionais de Polícia da
Capital de São Paulo, nas regiões Norte, Sul e Oeste.

Esta é a história dessas famílias contadas de um fôlego só:

Era uma vez...

D. Maria é mãe de José, vítima de homicídio em São Paulo; ela conhece Vera e Lucia,
respectivamente, esposa e irmã de outras vítimas. São mulheres com idades que variam
entre 31 e 60 anos. Nasceram na Capital de São Paulo, onde foram criadas (elas nos
contaram que muitas de suas amigas que também perderam parentes por homicídio foram
criadas em outros estados). Pudemos perceber que essas mulheres são pardas e assim se
declararam; chamou-nos a atenção que nós as percebemos pretas em número maior do
que elas se consideram.

Maria, Vera e Lúcia têm crença religiosa e são católicas, mas muitas de suas amigas são
evangélicas ou não têm crença alguma. Todas, com certeza, vivem de acordo com seus
preceitos, ainda que poucas participem de atividades de evangelização, de difusão de suas
crenças. Elas não participam de atividades comunitárias, mas nos disseram que muitas
amigas participam.

Essas mulheres são casadas, solteiras e viúvas, e moram com seus companheiros afetivos
ou só com seus filhos.

Quisemos saber mais um pouco sobre o perfil social dessas mulheres: elas sabem ler e
escrever; tiveram filhos e perderam um ou mais, principalmente por homicídio. As
famílias dessas mulheres sobrevivem principalmente do trabalho ou da aposentadoria de
um de seus membros.

Maria, Vera e Lúcia têm parentes em São Paulo. Muitos deles, em números que chamam
a atenção, morreram por morte violenta.

Prestamos atenção nos bairros onde essas mulheres e suas famílias moram há mais de dez
anos, principalmente porque compraram casa própria, ainda que muitas delas tivessem se
mudado para estar perto de seus parentes. A relação com os vizinhos é amigável, ainda
que significativamente tenham referido uma relação apenas formal. Como resultado,
ainda que possa contar com a ajuda emocional e material de seus vizinhos, Maria revelou
que Vera e Lúcia não contam.

Os serviços de água, esgoto e energia elétrica estão presentes, ainda que seja significativa
a incidência de esgoto clandestino e aquele que vai diretamente para o rio.

Foi bastante expressiva a informação da incidência de equipamentos ausentes da


dinâmica dos bairros, como farmácias, supermercados e bancas de jornal. Essa ausência
não reflete o número de bares disponíveis para o encontro, a bebida e as relações: mais de
quatro por quilômetro quadrado! Apenas metade dessas famílias conta com atendimento
médico dentro do bairro, e a maioria não dispõe de Convênio Médico. Os bairros não
contam com centro esportivo, praça pública, cinema, teatro ou biblioteca.

Quanto à segurança, é muito significativa a informação de Maria quanto à ausência de


Delegacia Policial, Base Comunitária e Ronda Policial.

Maria, Vera e Lúcia expuseram seu sofrimento falando de José e João, lembrando que
eram pardos, quase sempre nascidos em São Paulo, metade vivendo com elas, metade
vivendo com suas próprias famílias. José tinha filhos, mas João não os tinha. Ambos
eram solteiros.
José e João sabiam ler e escrever. Cursaram até a oitava série, e estariam ainda
estudando. José tinha profissão, mas João não a tinha. Maria, Vera e Lúcia nos
informaram que José sobrevivia com seu trabalho, enquanto João vivia da ajuda da
família ou de bico. Nenhum dos dois tinha carteira assinada, e ambos conseguiam entre
um e três salários mínimos por mês.

Maria lembrou que João tinha crença religiosa, mas José não tinha fé alguma. Apesar da
crença referida, ficou claríssimo que eles não participavam das atividades de
evangelização ou das comunitárias. Ainda assim, metade deles costumava participar dos
cultos religiosos e dirigia a sua vida de acordo com os princípios ditados por suas
crenças.

Da mesma forma que Maria, Vera e Lúcia, José e João, naturalmente, tinham outros
parentes em São Paulo, com quem mantinham um relacionamento amigável que, em
metade das vezes, significava efetivação de ajuda, especialmente a emocional.

A infância de José foi tranqüila, mas a de João foi muito sofrida... José não teve
passagem pela FEBEM ou por Casas de Detenção, mas João, ah! João teve!

Para conhecer o sentido da vida, quisemos conhecer os hábitos e gostos de José e João,
que saíram da estrada da vida e correram para as vielas da morte: gostavam de dança,
música, televisão, viagens, sair com amigos, usar álcool, cigarro e outras drogas, mas não
gostavam de ler. Maria não conta tudo, e diz que João gostava de bares, mas José, não;
ainda assim, acredita que a droga influenciou a vida de ambos!

O sofrimento de Maria, Vera e Lúcia é maior quando lembram da morte de José e João
por homicídio, ainda que nos contem que Luiz e Mário morreram em latrocínio ou em
chacinas. Vera e Lúcia não esperavam a morte de José, mas Maria vivia sobressaltada,
esperando a morte de João, que morreu na rua, segundo vieram lhe informar amigos e
vizinhos, enquanto Vera e Lúcia foram avisadas por outras pessoas... Não houve
problemas para encontrar o corpo, eis que o homicídio é mesmo uma prática aberta. É por
isso que Maria diz conhecer o autor do crime, e diz que era o vizinho (algumas vezes, o
traficante), ao contrário de Vera e Lúcia, que pareceram surpresas.

Nossas mulheres contaram com variadas ajudas após a morte de seus homens,
principalmente dos parentes, vizinhos e da Santa Madre Igreja. Feito o boletim de
ocorrência, Maria foi procurada pela polícia, mas Vera e Lúcia, não! Não sei bem se por
causa disso mesmo, Maria acompanhou a constituição do inquérito policial, mas Vera e
Lúcia, não! Provavelmente por isso, Maria sabe que já foi aberto o processo judicial,
Vera sabe que não foi aberto e Lúcia não sabe se foi ou não! Você já sabe: só Maria
acompanha o andamento do processo; Vera e Lúcia não estão conseguindo! Até porque,
elas não sabem o que foi feito em relação ao processo, e as que sabem, entendem que a
solução dada não agradou. Maria, Vera e Lúcia entendem que o caso ainda não foi
resolvido, ainda que, para a Justiça, os casos tenham tido os encaminhamentos previstos
estritamente em Lei, sem nenhum esforço adicional.
Conversamos também com Marieta, vizinha da mãe de Flávio; com Luzinete, vizinha da
irmã de Roque e com Joana, vizinha da mulher de Sandro, famílias que não conseguimos
encontrar. Elas nos deram informações preciosas, motores de novas investigações sobre a
dinâmica da cidade. Disseram que a mãe de Flávio mudou-se depois de sua morte,
abandonando a casa; deixaram escapar que as mães de Roque e Sandro ficaram aliviadas
com suas mortes, porque tinham uma vida que consideravam muito marginal... Luzinete
nos contou, bem baixinho, que o irmão de Roque vendeu a casa e se mudou, mas ela
soube que ele está preso, não tem jeito mesmo! Joana, penalizada, nos contou que a
família de Sandro ficou muito assustada porque ele tinha sido confundido e morto por
engano; voltaram para a Bahia. Marieta nos contou muitas histórias que mobilizam nossa
curiosidade intelectual e nossas opções políticas: disse que o assassino de Flávio ainda
mora no mesmo local, todo mundo sabe! E o assassino de Roque... ah! O assassino de
Roque era seu próprio irmão, igual à história de Caim e Abel. Joana é discreta, mas nos
contou outras histórias... Lembrou que o assassino de Pedro também morreu, e que todo
mundo sabe quem matou o Alexandro, o Zezinho, o Da Silva e o Negão! Muitos falam
que tem muitas brigas nos bares, que levam à morte. Marieta lembrou de nos contar que
falam muito que o Garotão foi morto pela Polícia, que o Salomão estava fugido quando
morreu, e que tinha dois que morreram porque eram irmãos de traficantes, dois quais ela
não se lembra do nome... eu, heim! Por falar em traficantes, Luzinete contou que muitos
homens são mortos por traficantes, nem é bom falar; são muitos! De repente, Marieta se
lembrou que um rapaz ficou famoso porque já tinha matado quatro, e alguém veio atrás...
Morreu!

No final de nossa conversa, Maria, Vera e Lúcia se juntaram para falar sobre a polícia e
também sobre suas dificuldades após a morte de José e João, principalmente as
psicológicas e financeiras, e as dificuldades com os setores da Segurança Pública e do
Judiciário.

E aqui chegamos nós, sabendo que Maria, Vera e Lúcia acham necessário um serviço de
atendimento às vítimas de violência.

E você? O que acha?

[1] No âmbito do Núcleo de Violência e Justiça da Faculdade de Serviço Social da PUC-


SP

Isaura Isoldi de Mello Castanho e Oliveira


Professora da Faculdade de Serviço Social da PUC-SP e Coordenadora do Núcleo de
Violência e Justiça da Graduação

Você também pode gostar