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COMO E PORQUE SOU E NÃO SOU SOCIÓLOGO

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Prefácio
Gilberto Freyre dispensa um tipo (o mais comum) de prefácio, que êle, tantas vêzes,
redigiu com generosidade e elegância. Refiro-me ao prefácio-apresentação, introduzindo no
mundo intelectual certas figuras novas ou desconhecidas e recomendando-as à atenção de
todos.

Não tem cabimento uma apresentação do autor, já acolhido e consagrado por um


côro internacional, desde os primeiros trabalhos. Nêles, logo se fixou a imagem daquele
escritor que oferece u'a associação equilibrada dos ingredientes "vividos", em têrmos de
"região" e "tradição", e, simultâneamente, enquadrados em têrmos dum cosmopolitismo de
formação e informação, sempre atualizadas.

Mas essa própria complexidade, finamente assinalada e glosada pelo arguto Wilson
Martins, traz a sugestão de outro tipo de prefácio, talhado para servir à obra, que, todos,
admiramos. É o prefácio-interpretação, ao qual há de ser aplicada uma diretriz metodo,
lógica de auspiciosa afinidade com a orientação cientifica do autor. Nêle, a tônica é de cunho
nítidamente culturalista, desenvolvido com firmeza e originalidade; requer, portanto, um
prefácio-compreensão, na linha que parte de Dilthey, com o "hineinversetzen, nachbilden,
nachleben" (transferir, reproduzir, reviver), para livrar-se, gradualmente, da primitiva nota
de mera "einfühlungi" subjetivista - sobretudo a partir de Max Weber. O método de
compreensão já ganhou vigorosas sistematizações, desde as teses de Aron e o grito de
Monnerot na França, ou a prática sociológica de "reconstrução imaginativa" de Mac Iver
e da apreensão do conteúdo da realidade cultural em seus aspectos imateriais, com
Znaniecki. Duas revisões atualizaram os procedimentos: a de Perpiña Rodriguez, laureada
com o prêmio Sturzo, e, recentíssima, a de Rickman, que Gordon Macrae definiu como
"chave de muito do que é importante no passado da sociologia e igualmente chave do que,
com tôda probabilidade, será de importância no seu futuro imediato".

Não estou certo de que Gilberto Freyre tenha sido compreendido, sobretudo entre
nós, apesar de algumas contribuições isoladas, que, embora lúcidas e sugestivas, mais
convidam à análise de tôda a obra multidimensional do que realizam, adequada e
exaustivamente, essa tarefa .

Quando o ilustre prof. Edson Nery da Fonseca (ilustre, mesmo, devolvida à palavra
gasta tôda a prístina carga semântica) resolveu sugerir que eu redigisse êste prefácio,
pretendia, decerto, que oferecesse a execução dum velho projeto. Há muito, penso escrever
um longo ensaio sobre Gilberto Freyre, discutindo sua construção epistemológica, tanto no
sentido mais comum desta palavra, como naquele em que oportunamente insiste Lalande, no
seu clássico vocabulário, ligando a epistemologia à teoria, da ciência. Comecei a reunir fichas
de leitura e anotações esparsas, mas os compromissos da vida universitária não me
permitiram, ainda, levar a têrmo o empreendimento. Limitei-me, portanto, a fazer
constantes referências ao veio cuja riqueza pretendia explorar. Assim é que, no meu livro
mais recente, documentei, por exemplo, a fecundidade da abordagem interrelacionista, que
insurgente e agora colaborador do Presidente De Gaulle num govêrno, sob vários aspectos
revolucionário que se vai estabilizando em regime revolucionário-conservador. Foi o caso dos
escritores Franklin e Jefferson na organização dos Estados Unidos num nôvo tipo de Estado-
Nação. Foi o caso do escritor Lenine na reorganização da Rússia como outro tipo nôvo de
Estado-Nação. Foi, no México, o caso de Vasconcelos com relação a nova política indigenista
de cultura para a gente mexicana. O caso de Masarik e o de Benes, na Tchecoslováquia. O
caso, entre nós, do já citado Augusto Frederico Schmidt que ficará na história da política
exterior do Brasil como um dos reorientadores dessa política. O escritor pode tornar-se, em
tais casos, um quase político, sem sacrifício nem da sua vocação nem da tendência de todo o
escritor autêntico para criar, pensar, sentir e atuar, independentes de quanto seja excessiva
pressão de instituições ou de sistemas ideológicos sôbre sua criatividade.

Sem um domínio sôbre as palavras que se defina de modo mais incisivo, ou menos
incisivo, em estilo, e sem um sentido epifânico no uso não só de palavras como até na
combinação de vogais com consoantes, no ritmo de frases que, através de pontuação
também rítmica, passem a caracterizar êsse todo ou êsse complexo chamado estilo, não há,
evidentemente, escritor. Até que ponto, no meu caso, haverá um ensaista e agora também
um seminovelista, que, além de descritivo, sejá epifânico? Ignoro. Sei que não me
contentaria, nunca -se dependesse de mim - de ser simplesmente descritivo no que escrevo.
Nem simplesmente descritivo nem apenas expositor de conhecimento ou de saberes
adquiridos de livros, ou de mestres, ou de estudo sòmente linear dêste ou daquele objeto. E
sim um tanto mais do que isto. Sugestivo. Evocativo. Interpretativo. Provocante. Epifânico.

É por êsse afã, ou por essa capacidade, que um indivíduo vai além do saber, racional
ou intuitivo, em que é, de algum modo, especialista, seja êsse saber o acadêmico de um
Huxley, sôbre ciências biológicas, ou o folclórico, de um Simões Lopes Neto, sôbre coisas
gauchescas; e se torna ou se afirma escritor. E como escritor adquire uma força que não
atingiria como especialista, mesmo quase perfeito, mas desprovido da virtude - virtude no
sentido básico da palavra - de escritor.

Fonte: FREYRE, Gilberto. Como e porque sou e não sou sociólogo. Brasília: Universidade de
Brasília, 1968. 189p.

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