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NEGRITUDE, MÍSTICA SEM LUGAR NO BRASIL

(Entrevista de GILBERTO FREYRE ao "Estado de São Paulo")

A mística da "negritude" é válida para unir uma só bandeira etno-cultural os negros


da África atual, tão divididos pelas suas diferentes atitudes quanto ao que seja "raça" ou
cultura tribal de que a maior das partes dêles provém; mais não serve como artigo de
exportação. É a opinião de Gilberto Freyre, para quem a "negritude", em nações não-
africanas, implicaria em procurar filiar negros com elas identificados, como no caso do Brasil,
a uma tentativa de imperialismo etnico-cultural africano. O sociólogo e historiador, em
entrevista a "O Estado", mostra que não há, e nunca houve, no Brasil, ambiente favorável a
apegos absolutos e etnias, a "raças" ou a culturas fechadas.

Que nos pode dizer a propósito de recente pronunciamento de um


intelectual brasileiro sôbre "deturpações" de estudos antropológicos, sociológicos e
históricos no nosso país, que se estariam verificando com prejuízo do negro?

Que é, no mínimo, exagerado. O Brasil talvez seja a nação multirracial e


multicultural nas suas origens, onde tais estudos se vêm realizando, do ponto de vista
complexamente nacional, com maior amplitude de perspectivas, isto é, com maior inclusão
dos vários elementos etnoculturais que vêm constituindo o todo brasileiro e maior tendência
à valorização de cada um. Não direi haja perfeição na perspectiva. Mas não lhe faltam
amplitude e compreensividade. Isto, aliás, corresponde ao fato de que, sendo uma nação,
repita-se, multirracial e multicultural em suas origens, o Brasil não vem sofrendo, nem sofre
hoje, nesses setores, das tensões agudas, das por vêzes quase guerras civis que ainda
agora, afligem não só alguns Estados-nações da África negra e do Oriente, como na Europa,
a Bélgica, para não falarmos dos Estados Unidos e do próprio Canadá. Ainda não se faz,
talvez, inteira justiça sociológica e histórica ao negro africano como quase colonizador, ao
lado do íbero e, particularmente, do português, êste construtor das bases nacionais do Brasil,
antes de, entre nós, ter vigorado, sociològicamente, com bandeirantes e senhores de
engenho, um processo de autocolonização, mostrando como um colonizador um pré-
brasileiro já mestiço. Mas a verdade é que a presença do negro, como a presença do
ameríndio, na nossa população, na nossa convivência e na nossa cultura, vem merecendo
atenções intelectuais idôneas desde o século XVII. Desde o Padre Antônio Vieira, já, a seu
modo, o negrófilo. E ao grande José Bonifácio não faltou a exata compreensão da
importância dêsses elementos etnoculturais o ameríndio e o negro na formação nacional do
Brasil como nação e cultura em parte extra-européias.

A que atribui a veemência com que alguns intelectuais brasileiros e


estrangeiros estão atualmente abordando o assunto e pretendendo apresentar o
Brasil como "matador de índios" o "detrator de negros"?

Há motivos evidentemente extracientíficos e que nada têm que ver com justiça
sociológica ou justiça histórica. É curioso que alguns dêsses "veementes", sendo
ianquéfobos, estão empenhados em transferir para o Brasil uns "brack studies", ou "estudos
negros", que são ianquises. Como ianquises, podem ter alguma base, para a sua implantação
em caráter de oposição "estudos brancos", nos Estados Unidos. No Brasil, com êsse caráter
população dinâmicamente morena. O Brasil vem de há muito se antecipando a essa
dinâmica: a da mestiçagem, que vem resultando, entre nós, numa vasta população morena,
estèticamente atraente, intelectualmente capaz, socialmente ajustada. Dentro dessa
harmoniosa dinâmica sócio-cultural não há, no nosso País, vez para negritudes ou
branquitudes. O que aqui cada vez mais se afirma é uma nação de gente em grande parte
morena e uma cultura que é síntese de várias culturas contribuintes e não exclusivista.

Fonte: FREYRE, Gilberto. Negritude, mística sem lugar no Brasil. Boletim do Conselho Federal
de Cultura. Rio de Janeiro, a. 1, n. 2, p. 16-23, abr./jun. 1971.

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