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m ã rcã s c j iiu is

Sentidos da mestiçagem no
Império do Brasil

Ivana Stolze Uma

Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa • 2001


Prêm io Arquivo Nacional de Pesquisa - 2 0 0 1

C o m is s ã o J ulgadora

Maria do Carmo Teixeira Rainíio (presidente)


Afonso Carlos Marques dos Santos
Antônio Carlos de Souza Lima
Cláudia Beatriz Heynemann
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves
Martha Campos Abreu

Lima, Ivana Stolze


Cores, marcas e falas; sentidos da mestiçagem no
Império do Brasil.
Rio de Janeiro; Arquivo Nacional, 2003.
228p;; 22cm. - (Prêmio Arquivo Nacional de Pesquisa, 18)
“3° lugar no Prêmio Aiquivo Nacional de Pesquisa - 2001”
ISBN: 85-70090-66-8
l.Identidade Racial-Brasil-História, 1831-1833. 2. Brasil-
História, 1831-1833. 3. Negros-Rio de Janeiro (Província)-His-
tória, 1831-1833. 4. Brasil-Império, 1822-1889
CDD 305.8981
PtESIDENOA DA REPCiBUCA

A R Q U IV O N A C IO N A L

Ivana Stolze Lima


C ores, m arcas e falas:
sentidos da m estiçagem no Im pério do Brasil
Copyright © 2003 by Arquivo Nacional
Rua Azeredo Coutinho, 77, 20230-170, Rio de Janeiro - RJ
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Luís Inácio Lula da Silva

M inistro-Chefe da Casa Civil da Presidência da República


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Secretário-Executivo da Casa Civil da Presidência da República


Swedcnbergcr Barbosa

Diretor-Geral do Arquivo Nacional


Jaime Antunes da Silva

Coordenadora-Geral de Divulgação e Acesso à Informação


Maria Isabel de Mattos Falcão

Divisão de Pesquisa e Difusão do Acervo


Reinaldo Cotia Braga

Edição de texto, copidesque e revisão


José Cláudio Mattar

Projeto gráfíco
Giselle Teixeira

Di agram ação
Alzira Reis

Capa
Ângelo Venosa

Foto da capa
Menino em Salvador, de Alberto Henschel, 1869
(coleção Reiss-Museum, Mannheim)
À memória de Sinhozinho Lima.
Ògún á jó
E màriwò
Ògún akòró
E màriwò
Iwò a gba ’lè gb'ònà
Ògún á jó
E màriwò
Màá tú yeye

Ogum dançará
Coberto com a fronde
da palmeira
Ele ocupará a casa e
o caminho
Fronde da palmeira,
cresça
Digam o que disserem os moralistas a este respeito, o entendi­
mento humano deve muito às paixões, que por um comum teste­
munho também lhe devem muito: ê através da sua atividade que
a nossa razão se aperfeiçoa; nós não procuramos conhecer se­
não pelo fato de desejarmos gozar e não é possível compreender
a razão pela qual aquele que não tivesse nem desejos nem temo­
res se daria ao trabalho de raciocinar.

Jean-Jacques Rousseau,.
D iscurso sobre a origem e fu ndam entos da desigualdade entre os hom ens
S um Ario

Prefácio 13

Introdução

M arcas de u m a p allssem ia 17

Capítulo l

As cores dos cidadãos ao teatro do jornalism o;


p o lítica e id e n tid a d e no Rio de Janeira, 1S31'1833 31

A revolução na imprensa e a revolução na rua 34

O teatro, o riso e a polissemia das identidades 37

Os atributos do cidadão mulato âi

A platéia mal comportada Ú7

Uma disputa de símbolos: a noite das garrafadas 71

Um mito se apaga 7Ü

Capítulo 2

In v entário das identidades; os censos e a cor 89

A utilidade da estatística 93

A população e o território 95

Artifícios de classificação 98

Descaminhosr a revolta contra o registro da cor 102

Raças estranhas habitam a província —Rio de Janeiro 109

A odiosa classificação pot cores; a Corte 113


o Censo Geral do Império de 1872 119

Falas e silêncios sobre a cor 121

Capítulo 3

E n tre o tupi e a “gerin g o n ça luso^africana” , eis a lín g u a b rasileira 133

Descompassos entre a população e a nação 140

Dicionários e língua brasileira 144

A língua brasileira: o digno e o indigno 148

índios e língua nacional em José de Alencar 160

A piedade e o medo 171

Um índio e os índios 175

Conflito c morte na história da nação; Gonçalves Dias

A “História pátria”: um manifesto teórico 179

Nações e nação 182

Marabá e os valores incomuns da mestiçagem 185

Nação e escravidão 187

Conclusão 203

Bibliografia 209
P r e f á c io

É um grande prazer prefaciar a versão em livro do belo texto de Ivana


Lima sobre a polissemia da mestiçagem no Brasil oitocentista. Baseado era
pesquisa extensa e original, o trabalho surpreende pela forma inovadora com a
qual aborda essa questão em suas relações com os processos de construção de
uma identidade nacional e de identidades sociorraciais no período. Segundo
Ivana; “De certa forma, a identidade é uma ilusão e uma contingência, apoiada
exatamente na crença de que é uma verdade e uma necessidade”.

0 brilho dessa afirmação, que aparece despretensiosa em meio a um pará­


grafo na introdução do livro, dá bem a medida da originalidade da abordagem que
busca desnaturalizar o processo de construção da identidade brasileira em suas
relações com a noção de mestiçagem racial, recuperando sua historícidade.

As identidades nacionais e raciais como as conhecemos hoje são cons­


truções histõricas do século XDC, freqüentemente naturalizadas nas represen­
tações atuais sobre elas, tal as suas forças enquanto vetores culturais e organi­
zacionais da vida de todos nós. Se a idéia da nação como comunidade imagi­
nada, na feliz expressão de Benedict Anderson, começa a tomar-se usual nas
análises histõricas, a historicidade das identidades e classificações raciais é
tema menos frequentado, porém igualmente central para a compreensão do
processo de formação da identidade brasileira. De fato, creio que se pode afir­
mar, de um ponto de vista mais geral, que a construção das identidades nacio­
nais nas Américas implicou também um processo de racialização de suas po­
pulações. Parece-me urgente desenvolver uma agenda de estudos que permita
recuperar a historicidade desses processos, como única forma de superar os
impasses colocados pelas disputas entre perspectivas essencialistas e univer-
salistas da questão racial no continente.

O Brasil, que pretendia se apresentar como nação independente no século


XDí, precisava forjar sua comunidade imaginada a partir de uma população étni­
ca, lingüística e culturalmente heterogênea. Nascidos no Brasil, escravos e livres
somavam-se a multidões de imigrantes europeus de diferentes nacionalidades, em
especial portugueses, de africanos de diferentes origens e línguas, de indígenas de
diferentes procedências, descidos como administrados ou escravizados em guer­
ras justas, disputando os significados do tornar-se brasileiro.

13
o texto de Ivana acompanha esse processo, mostrando que as noções
de identidade brasileira e de mistura de raças se apresentaram relacionadas
desde a afirmação do Brasil como país independente. Nem uma nem outra,
entretanto, tinham significados precisos e amplamente compartilhados na­
quele período. Ao contrário, foram objeto de disputas de significação pelos
diversos atores sociais que interagiam no complexo cenário social das pri­
meiras décadas após a abdicação de d. Pedro I, quando a perspectiva de rom­
pimento com Portugal tornou-se rcalmente definitiva, deixando como her­
deiro do Império do Brasil, seu filho, nascido em terras brasileiras e por isso
cabra como nós, como queriam alguns dos que foram às ruas para pedir a
abdicação do pai.

Cores, marcas e falas, em três capítulos densos, explora as diversas


dimensões por meio das quais aquela heterogeneidade básica foi crescente­
mente apropriada com conteúdos raciais, nas décadas que marcaram o proces­
so de consolidação do Estado Imperial no Brasil.

O primeiro capítulo abarca um momento em que as cores dos brasi­


leiros e seus sentidos hierarquízantes herdados do Império português apa­
recem como eixo dos combates de muitos dos jornais e panfletos dos cha­
mados liberais exaltados, marcando a emergência de uma linguagem racial
da política. No teatro do jornalism o, construído a partir dos debates produ­
zidos por articulistas anônimos em pasquins exaltados de títulos sugesti­
vos, como O Homem de Cor, O Cabrito, O Brasileiro Pardo, entre muitos
outros, a condição de mestiço podia surgir como signo do verdadeiro bra­
sileiro, diferenciando-o do português colonizador, no limite, tornando até
Pedro II, cabra como nós. As cores dos cidadãos mantinham-se, porém,
como estigma e marca de inferioridade quando usadas contra os exaltados
em panfletos de retórica ultraconservadora. Principalmente, contudo, as
velhas designações dos homens livres de cor (pardo, caboclo, cabrito, ca­
bra, bode, mulato, entre tantas outras) passavam a circunscrever um cida­
dão de cor que lutava pelos mesmos direitos constitucionais que os cida­
dãos brasileiros brancos, combatendo o tráfico negreiro e buscando desra-
cializar a existência legal da escravidão no país, que deveria se manter
apenas em nome do direito de propriedade. “No Brasil não há mais que
escravos e cidadãos” ; “ O título 2 da Constituição não distinguiu o roxo do
amarelo, o vermelho do preto...” ; “no Brasil não há brancos, nem mulatos,
há cidadãos brasileiros, ingênuos e libertos!” são algumas das enfáticas
declarações impressas nos jornais exaltados.

14
Delineava-se, assim, um homem de cor que não se identificava, pois
escrevia usando o recurso do anonimato, e que recusava identificações raciais.
Para ele, a igualdade entre os cidadãos brasileiros só poderia se efetivar atra­
vés do silêncio sobre as marcas hierarquizantes, sentido este expresso desde a
época pombalina, que proibia que os ditos meus vassalos casados com as índi­
as ou seus descendentes sejam tratados com o nome de caboclos, ou outro
semelhante que possa ser injurioso.

Calados os exaltados pela hegemonia conservadora, nem por isso o tra­


balho de identificar e classificar a população do jovem país se tomava fácil. Por
muitas décadas, qualquer tentativa de classificação da população livre por crité­
rios raciais continuou a ser percebida por muitos como armadilha hierarquizante
e disertminadora, trazendo ameaças de (re)escravização no horizonte.

O segundo capítulo do livro traz ao leitor os muitos percalços de se


fazer o inventário da heterogeneidade brasileira, formatando os primeiros cen­
sos e projetos de registro civil da população. Nas listas de população das pri­
meiras décadas após a Independência, as categorias cor e condição apareciam
quase sempre confundidas (listas, por exemplo, em que só constavam as cate­
gorias brancos e escravos ou livres e escravos sem menção à cor, nas quais
não se previa a categoria preto para a população livre etc.). Já no censo de
1872, a noção de raça, como critério de classificação independente da condi­
ção livre ou escrava, aparece consolidada, bem como a decisão de contar a
população mestiça - no sentido biológico - identificada como pardos ou ca­
boclos. Entre os dois momentos, não foram lineares os caminhos trilhados pe­
los órgãos governamentais encarregados de conhecer e classificar a população
do novo país, acompanhados com rigor pelo texto de Ivana. As discussões
sobre as categorias de classificação a serem utilizadas nos levantamentos po­
pulacionais, os motins contra as primeiras tentativas de realização do registro
civil, que muitos estavam convencidos iria servir para escravizar os livres de
cor, o desaparecimento das designações de diferenciações étnicas entre os afri­
canos e seus descendentes diretos, as oscilações das autoridades responsáveis
pelos censos entre registrar ou não registrar a heterogeneidade da população
por critérios raciais permitem desnaturalizar e melhor esclarecer as especifici-
dades do processo de racialização em curso.

Por fim, um atentado terceiro capítulo aborda mais uma arena das apro­
priações da mestiçagem e de sua polissemia, a discussão sobre a língua brasi­
leira, que iria se propor mapear a língua falada no Brasil, buscando os elemen­

15
tos a serem valorizados e integrados à norma culta. Língua mestiça que busca­
va valorizar os vocábulos de origem tupi, mas que repudiava tomar-se uma
geringonça luso-africana. Fazendo parte do movimento romântico, a discus­
são sobre a língua brasileira iria enfatizar a uniformidade lingüfstica como
uma das bases da unidade nacional, de fato reprimindo fortemente os falares
indígenas e africanos, ainda correntes em muitas regiões e grupos sociais do
país. Por intermédio dos personagens mestiços de Gonçalves Dias e de José de
Alencar, Ivana conclui seu trabalho explorando a forma fortemente racializada
através da qual uma certa sensibilidade romântica incorporou a questão da
heterogeneidade sociocultural eda continuidade da escravidão ao processo de
construção da identidade nacional.

Os sentidos da mestiçagem no Império do Brasil, revelados pela leitu­


ra do texto de Ivana, desnaturalizam os significados do termo enquanto mistu­
ra biológica ou hibridismo cultural espontâneo. Hierarquizada ehierarquizan-
te. a mestiçagem se apresenta como tentativa de apreender e atuar sobre a
heterogeneidade sociocultural efetiva que se apresentava como um princípio
de confusão, aos diferentes atores inseridos na cena política do novo país.

Hebe M aria Maííos


Professora deHistória do Brasil da
Universidade Federal Fluminense

1 6
In tro d ução

Marcas de uma polissemia

Cabras, fuscos, caboclos, brancos, mulatos, pretos, crioulos, pardos,


caiados, fulos, cruzados, tisnados. Por que tantas palavras? O que desig­
nam? Que homens e mulheres suportaram essas marcas? A que procedimen­
tos de classificação e identificação obedecem? Que códigos lhes fornecem
inteligibilidade? Questões como essas estiveram presentes no diálogo que
procurei travar com diferentes representações em torno da experiência da
mestiçagem, na época do Império do Brasil, especificamente entre as déca­
das de 1830 e 1860. Deparei-me com uma intensa polissemia da mestiçagem,
que despontava como uma das singularidades daquela sociedade.

O cuidado com o singular e específico daquela experiência afasta­


va-me de uma concepção de mestiçagem que se tornou recorrente a partir
do final do século XIX - como um processo contínuo, articulado, ao qual
se emprestou uma vaga função generalizante. À partir do final daquele
século, em um movimento que adquiriu bastante relevância sobretudo de­
pois da Segunda Guerra Mundial, diferentes funções foram sendo atribuí­
das à mestiçagem: a democracia, o intercâmbio entre os povos, a aliança;
ou então, em uma grade negativa: a degeneração, a criminalidade, ou uma
ameaça às identidades consideradas como autênticas. Nessas atribuições
acoplavam-se projeções sobre o futuro, utopias.’ Pois bem, exatamente
esta perspectiva foi evitada, uma vez que, durante quase todo o Império,
não se atribuiu nenhuma função generalizante ã mestiçagem enquanto um
processo articulado; ela deve ser entendida antes, apropriando-se do dizer
de um contemporâneo, como um “princípio de confusão” .^

Claro que é difícil entender que uma confusão pudesse ter um princí­
pio (no sentido de preceito, regra ou lei), mas nessa dificuldade residem os

17
múltiplos sentidos da mestiçagem. Outras expressões - que não são equivalen­
tes entre si - aproximam-nos também da singularidade da época: “multiplici­
dade das raças’’.’ "povo mesclado e heterogêneo’’,'* “nação composta de raças
estranhas’’,^ "amálgama do sangue, das tradições e das línguas’’.*

O contato com a documentação foi tornando cada vez mais irrelevante e


inapropriada a hipótese previamente formulada, de que se podería investigar neste
momento uma genealogia ou formação do conceito de mestiçagem que conheceu
extrema recorrência a partir da passagem entre os séculos XIX e XX.’ Por outro
lado. foi mostrando elementos muito mais ricos e variados, valorizações, símbolos
c formulações antes insuspeitas. É o que subjaz à idéia de polissemia.

Seria válido agregar essa polissemia, reduzindo-a, e denominá-la


“questão racial” na história do Brasil? A armadilha comida na idéia de
uma "questão racial” que atravessaria a história é exatamente naturalizar
essa "questão", como se ela guardasse uma certa essência, que iria apenas
tomando formas variadas ao longo das mudanças sociais, políticas e cul­
turais. Procurando uma dimensão mais apropriada para analisar os códi­
gos e práticas do momento histórico enfocado, propõe-se uma mudança de
perspectiva. Inicialmente, evitar tomar essa questão como um dado natu­
ral. ou como uma questão invariável. Em segundo lugar, ao invés de per­
ceber a história da formação da sociedade brasileira como composta por
brancos, negros, índios e mestiços, conceber uma história dos termos bran­
co, negro, índio e mestiço e de tantos outros. Outro cuidado é não subesti­
mar o léxico profuso de designações raciais, nem reduzi-lo a termos que
tornem pobre a dinâmica social. Tudo isso aponta, em síntese, para a his-
toricidade e complexidade das percepções e classificações raciais.

Considerar a polissemia da mestiçagem consistiu em considerar a


construção das identidades sociais. Focalizar a construção das identida­
des, seu caráter relacionai e cambiante, leva, mais uma vez, a uma desna-
turalização. De certa forma, a identidade é uma ilusão e uma contingên­
cia, apoiada exatamente na crença de que é uma verdade e uma necessida­
de. No entanto, enfatizar esses aspectos contingentes e um tanto ilusórios
só faz sentido se, ao invés do que se podería supor, os relacionamos às
situações de força em que se estabelecem, às suas implicações sociais, aos
projetos políticos que carregam. Não se trata de um esvaziamento, mas
sim da tentativa de inserir as identidades no contexto —que comporta sua
lógica, linguagem, conflitos e tensões - em que foram geradas.

IK
Além disso, a noção de identidade é bastante ampla; aqui foi conside­
rada a partir de três campos: a política, a população e a nação, relacionadas a
lemporalidades distintas no período que se estende entre as décadas de 1830 e
1860, Em cada um deles a questão da identidade se constituiu de forma dife­
rente; as identidades raciais como tema da política no início do período regen-
cial; o conceito de população como forma de discurso e de racionalidade go­
vernamental, que será enfocado ao longo das referidas décadas; e as reflexões
sobre a nacionalidade, que adquiriram uma notável relevância política e mobi­
lização, sobretudo por volta da metade do século, e que aqui foram abordadas
a partir da problemática da língua nacional. A política, a população e a nação
foram os três campos em que se analisou a polissemia da mestiçagem, a qual
não se distribui simplesmente entre eles, mas também em seu interior. A cada
um foi dedicado um dos capítulos deste livro.

No primeiro capítulo, trabalhamos com a conjunção entre mestiçagem,


identidade e política. Essa conjunção não foi previamente concebida; ao contrá­
rio, ela se definiu no contato com um material vastíssimo, em termos quantitativos
e qualitativos, formado pela imprensa do período regencial (1831-1840). Esse
material passou por várias seleções, e a primeira que se pode adiantar é que traba­
lhei com os jornais publicados no Rio de Janeiro, priorizando o período entre
1831 e 1833. Havia um enigma inicial apresentado por títulos como O Brasileiro
Pardo, O Mulato ou o Homem de Cor, O Indígena do Brasil, O Filho da Terra, O
Cabrita etc. Passando à (dilTcil) leitura e análise dos conteúdos, e incluindo outros
títulos, delineou-se o que pode ser chamado de uma linguagem racial da política.

O período regencial, além de todo o interesse que desperta em termos


de movimentos políticos e sociais, constitui-se em um tempo bastante fértil
para a discussão sobre a produção das identidades. Pode-se seguir a aprecia­
ção que dele faz Gilberto Freyre em Sobrados e mucambos, englobando-o na
primeira metade do século XIX. Aquele foi o momento da

vasta tentativa de opressão das culturas nâo-europcias pela eu­


ropéia, dos valores rurais pelos urbanos, das expansões religio­
sas e lúdicas da população servil mais repugnantes aos padrões
europeus de vida e de comportamento da população senhoril.
dona das câmaras municipais e orientadora dos juizes de paz e
dos chefes de polícia [...] Foi um período de freqüenies conlli-
tos sociais e de cultura entre grupos da população - conflitos

15
complexos com aparência de simplesmente políticos - que todo
ele se distingue pela trepidação e pela inquietação.'

Além de políticos, aqueles foram conflitos sociais e culturais, confli­


tos complexos entre grupos da população. Algo que de fato merece destaque é
que tais conflitos de cultura ultrapassam em muito a tradicional explicação
sobre o período regencial que o apresenta como o das lutas entre “liberais
moderados”, “liberais exaltados" ou simplesmente “exaltados” e “restaurado­
res” ou “caramurus”.

Dessa forma, seria genérico demais falar dessas disputas políticas


de inspiração liberal - a luta que grupos urbanos travaram pelo reconheci­
mento como cidadãos sem considerar um aspecto da cultura política
específica daquele momento, isto é, de seus valores, comportamentos e
experiências singulares; o fato de que eram disputas em torno da identida­
de. Em primeiro lugar, a identidade de “brasileiro” (que era por seu turno
pautada por uma posição política, a defesa da Independência, num mo­
mento em que esta ainda se encontrava em processo de consolidação, e
não só pelo nascimento no território) e, em segundo lugar, uma identidade
“racial”, referida às cores dos cidadãos. O tema, tão presente, das cores
dos cidadãos deve ser entendido não só como atributo físico; o sentido
político do “cidadão de cor”, do “brasileiro pardo" é muito mais rico e
complexo do que a cor da pele. Isso é o que torna ainda mais interessante
esse momento da história, e que contribui para o que se denominou anteri­
ormente de historicidade das percepções e classificações raciais.

Não foi objetivo deste trabalho, e nem seria possível em uma pesquisa
individual como esta, esgotar todo o material constituído pela imprensa dos
anos 1831 a 1833; trata-se de uma documentação extremamente rica e comple­
xa. com uma linguagem que não é exatamente transparente para o leitor atual,
e que ainda está por merecer inúmeras pesquisas que não a submetam a cate­
gorias preconcebidas e que busquem sua própria inteligibilidade.

Considerar os múltiplos sentidos da mestiçagem é considerar a rua.


Na imprensa do período regencial a rua adquiriu “voz”; seus ecos continuaram
nos capítulos seguintes, como horizonte geral da investigação. Tomando como
referência a cidade do Rio de Janeiro, vejamos a rua, não como lugar exclusi­
vo, mas como lugar de evidência da mestiçagem.

20
A Corte do Império do Brasil era marcada por uma população diversifi­
cada e em intenso e constante movimento. A formação da população da cidade,
desde a mais arraigada, fixa, até a mais flutuante, estava em estreita ligação com
suas diferentes funções. Enquanto capital, exercia atração não só sobre homens
de negócio e produção, mas também sobre visitantes involuntários, como os das
“deputações de índios selvagens” para a contemplação do imperador e para o
enriquecimento da coleção do Museu Nacional, com seus exóticos objetos. índi­
os cuja visita seria ainda mais involuntária, porque capturados em “guerra Justa”
nas províncias distantes, eram trazidos para trabalhar em obras públicas. Do
interior vinham também tropeiros, que levavam suas mulas para beber água no
Campo de Santana. Chegavam escravos que fugiam das fazendas, abrigando-se
no anonimato da cidade. “Atravessadores” de escravos vindos de outras provín­
cias encontravam no Rio compradores, ou outros atravessadores. Havia ainda os
que eram vistos como arredios e pérfidos ciganos, que vendiam bugigangas ama­
relas como se fossem ouro, e que tanto preocuparam as autoridades que não
conseguiam sequer enquadrar seu comportamento no Código Criminal.’

De procedências várias eram também os que chegavam pelo Atlântico.


Não se tratava apenas da diferença entre os africanos e os europeus, pois mesmo
em cada um desses grupos havia distinções. Nem todos os homens de raiz africana
trazidos como escravos provinham diretamente da África, ou lá tinham nascido;
vinham também de outras regiões das Américas, como Estados Unidos. Argentina,
Uruguai,'® Cuba, Nem todos vinham como escravos, mas como imigrantes livres."

Entre os europeus também existiam variações sociais, econômicas e


culturais. De financistas ingleses a mulheres estrangeiras sozinhas que volta e
meia envolviam “homens de família" em escândalos.'^ De artistas a modistas e
professores franceses que, cada um em seu campo, difundiam os valores da civi­
lização, o gosto europeu. Havia ainda os operários, carpinteiros, artesãos de
várias nacionalidades. Marinheiros que freqüentavam casas de diversão na re­
gião portuária e eram vigiados de perto pela polícia. Como, enfim, colocar em
uma mesma situação os grandes comerciantes portugueses e os Jovens, ou mes­
mo crianças trazidas de Portugal e que eram prattcamente escravizadas aqui?'^

Sídney Chalhoub desvenda uma dimensão do Rio de Janeiro como uma


cidade-esconderijo, espaço de uma resistência à escravidão, nas práticas mais
diversificadas - desde insurreições, levantes, recusas aos castigos corporais,
fugas, até atos mais rotineiros ou cotidianos, como manifestações culturais,
estabelecimento de relações sociais e afetivas, de uma rede de solidariedade

2 1
social, apesar da escravidão, senão contra a mesma. O conceito de cidade
negra desenvolvido por este autor c um horizonte presente, mesmo que nem
sempre explícito, nesta pesquisa. O que conceitua como cidade negra ocupou
espaços físicos e simbólicos marginais, e apesar de objeto de práticas especí­
ficas de dominação e controle, seus membros devem ser considerados pelo
historiador como sujeitos históricos, em seu sentido micropoIítico.'“

As manifestações culturais cotidianas-sem que o adjetivo cultural dei­


xe de significar político, econômico, social - são privilegiadas para superar o
entendimento das relações raciais e .sociais como dualizadas entre o branco e o
negro, ou entre o senhor e o escravo. Essa dualidade não é falsa, ao contrário,
mas atuou como um modelo, e sua aceitação, pelo historiador, sem questiona­
mentos. deixa perder a dimensão mais complexa da polissemia da mestiçagem -
um jogo de forças múltiplas, de códigos válidos para determinadas situações,
mas não para outras, de regras e transgressões, de combinações entre controle e
tolerância. As manifestações culturais, o comportamento cotidiano, a constitui­
ção de identidades sociais, de laços afetivos, talvez componham as principais
respostas às técnicas de controle impostas à população urbana.'*

Estudando a cultura negrá e as relações raciais nos Estados Unidos, Co-


ieite Pétonnet critica a dicolomia que em geral é usada para caracterizar as rela­
ções raciais naquele país. Essa dicolomia daria lugar, nas relações sociais, políti­
cas, culturais concretas, a um jogo mais complexo de oposições, a uma miríade de
gradações, a posicionamentos entrecruzados. Em primeiro lugar, porque a cor da
pele é uma categoria imprecisa, e as inconstantes tendências da mestiçagem - a
autora fala da “palidez negra” - não são observadas pela dicolomia negro/branco.
E ainda porque um indivíduo que se considera ou que é considerado negro pode
apresentar, dependendo da situação, uma posição "negra" - no caso da militância
política em nome da m inoria-, mas pode também estar absolutamente integrado
em manifestações culturais “brancas”, por exemplo. No entanto, essa complexida­
de é silenciada, pois pairaria aí uma espécie de tabu. que acaba contribuindo para
a manutenção da imagem da dicolomia. Assim, escreve Pétonnet:

Como todos os scres cm situação de dupla cultura, cies (os ne­


gros que entrevistou) resolvera individualmente os constrangi­
mentos por escolhas culturais, oscilando de um mundo a outro
em função de uma personalidade dual cuja história pessoal —a
ascendência e. neste caso. a cor - ê um fator constitutivo. Como
esta cor não é uniforme, a herança varia com as mesliçagens.'*
No segundo capítulo o foco é deslocado para uma lemporalidade mais
ampla, que abrange o processo de formação do Estado imperial a partir de
outra perspectiva: a construção de uma “linguagem oficial” sobre a população,
especialmente em relação à questão da classificação pela cor. A população,
entretanto, não constitui uma realidade prévia, para a qual se atentou após
certo momento da história polftica. Trata-se de um conceito e de um objeto
que foi construído, a partir da economia política e da ciência da estatística, em
um movimento que expressou o sinuoso processo de centralização do Estado
imperial. Enquanto um saber político, a estatística criou realidades, definiu
fronteiras sociais, articulou e sintetizou oposições entre grupos —os livres e os
escravos, os nacionais e os estrangeiros, os cidadãos ativos e os não-ativos, os
brancos, os pretos, os pardos, os índios - em uma sociedade que não apenas
foi marcada pelas hierarquias, mas foi uma sociedade hierarquizante, constru­
indo e reconstruindo essas diferenças, entendidas como naturais.

As vicissitudes e tensões, dentre as diferentes instâncias do Estado, re­


velaram-se no forte investimento da estatística, considerada “luz do governo”.
Isso poderia parecer um paradoxo, mas apenas para aqueles que concebem o
Estado como unitário, e não para aqueles, como advertiu Michel Foucault, que o
tomam como uma “realidade compósita” e uma “abstração mitificada”.” Assim,
a noção de governo manifesta mais concretamente aquela abstração.'* A análise
tomou por base censos populacionais, listas de batismo, casamento e óbitos,
avisos, regulamentos e instruções para recenseamentos, relatórios ministeriais
(das pastas do Império e da Justiça) e memórias e artigos sobre estatísticas po­
pulacionais publicadas, principalmente, na Revista do Instituto Histórico e Ge­
ográfico Brasileiro, órgão que teve uma atuação importante nessa área.

Longe de atuarem como mero recolhimento de dados e informações,


isto é, como um saber técnico, as estatísticas revelam uma dimensão interessante
constituída por diferentes formas de resistência, nascidas entre diversos seg­
mentos sociais, à própria atividade de classificação e ordenação, e, por exten­
são, ao governo. A estatística pretendeu alcançar uma regularidade na popula­
ção, noção complementar à noção de governo, mas, sobretudo em relação ao
nos.so objeto central - a classificação pela cor - , a irregularidade e a inconstân­
cia foram marcantes. Nossa proposta foi analisar em detalhe e minúcia os termos
usados nas estatísticas, sem tentar sobre eles uma atividade também classificató-
ria, isto é, sem agrupá-los em novas categorias, sem traduzi-los. Assim, um mapa
de batismo que está organizado na divisão entre “brancos” e “escravos" não diz
exatamente o mesmo que um mapa que opere a distinção entre “livres” e “escra­

23
vos”, por exemplo. E essa diferença não é casual, ela revela uma dimensão soci­
al tensa. Um dos momentos em que essa tensão tomou a forma de ameaças arma­
das às autoridades foram as revoltas em algumas localidades do Nordeste no
final de 1851, por ocasião do Regulamento para o recenseamento da população
do Império e para o registro civil de nascimentos e óbitos.'®

A análise da documentação mostrou, ainda, como diferentes instânci­


as da administração mantiveram posições múltiplas acerca da classificação da
população pela cor. Nesse sentido, um presidente de província tinha objetivos
diferentes em comparação com um ministro de Estado, o que ficou claro no
confronto entre documentos relativos ao mesmo levantamento populacional,
tal como apresentado por uma e por outra instância. A mesma diferença estra­
tégica foi verificada entre a atuação policial e o discurso ministerial.

No terceiro capítulo passamos a considerar a problemática da língua


brasileira, no bojo da formação da nacionalidade, tendo esta constituído o ho­
rizonte da literatura, bem como da historiografia e das artes, principalmenle a
partir de meados do século XIX. O sentido da palavra “brasileiro", sujeito a
tão acirradas disputas políticas ao longo do processo de emancipação e, espe­
cialmente, nos anos iniciais do período regencial, foi de certa forma pacifica­
do pelo movimento romântico no Brasil. Não porque houvesse absoluta con­
cordância sobre o que significaria ser brasileiro, mas porque as tensões sociais
c regionais do período anterior passaram por certa domesticação. Polêmicas
ocorreram, mas em outro cenário. Quando a palavra foi deslocada para a ques­
tão nacional, saindo do tenso foro político - uma vez que este havia sido am­
pliado pelas revoltas, insurreições, motins e tentativas de certos grupos sociais
de se firmarem como cidadãos ela tomou-se mais abstrata.

Pacificação não significou fim das tensões, porém outras estratégias,


mais ligadas à difusão de um consenso, de um “espírito de associação”, do que
à repressão e à força. O contraste entre o período regencial e a época de mea­
dos do século, aproximadamente, constitui uma imagem recorrente na histori­
ografia produzida na segunda metade do século XIX, imagem essa que contra­
põe uma turbulência, uma tormenta, uma exaltação a uma paz, estabilidade,
vitória da civilização e da ordem. Tratar-se-ia, nessas décadas, do “apogeu do
Segundo Reinado": as revoltas provinciais controladas, a ameaça de “anar­
quia” debelada, o imperador coroado, a conciliação entre os partidos. Porém,
esta constitui muito mais a imagem dos próprios dirigentes imperiais sobre
seu próprio tempo^® do que uma categoria neutra de análise.

24
Segundo limar Rohioff de Mattos, a difusão de um “espírito de associa­
ção” constituiu uma dimensão essencial do que conceitua como ações do gover­
no do Estado sobre o governo da Casa, atuando de modo eficaz e duradouro, na
medida em que procuraria construir um consenso^' em torno da suposta unidade
moral, cultural, histórica da nação, O movimento romântico teve nesse processo
um papel central. A literatura brasileira, a língua brasileira, a história e a ciên­
cia nacionais ajudaram a construir aquela unidade, perturbada (ao menos para
alguns) pela existência das divisões. Aquestão seria como, simbolicamente, con­
ceber essas divisões em uma unidade? A concepção de nação no Império do
Brasil não operava uma união direta entre os cidadãos. Ao contrário, as diferen­
ças não só eram percebidas, mas também entendidas como naturais. Contudo,
nem por isso foi uma operação tranqüila para os românticos, notadamente em
Gonçalves Dias. E tampouco isenta de disputas, tendo deixado 'testígios a serem
recuperados. A questão do terceiro capítulo deste livro interroga exatamente de
que forma o processo de construção de uma língua nacional lidou com a diversi­
dade; como ela fez face à polissemia da mestiçagem?

Como parte do movimento romântico, houve todo um debate a respei­


to da língua nacional, ou, como alguns a definiram, a "língua brasileira”. Esse
debate é privilegiado para discutir a questão da diversidade na reflexão sobre
a nação. A língua foi considerada exatamente o fator de união entre os elemen­
tos do que se pretendia conceber como um conjunto - a nação. Pode-se afir­
mar que a difusão da língua nacional foi uma forma de reduzir os particularis-
mos, de governar pelo caminho da incorporação a uma imagem de unidade ao
Império. Por meio da língua as regiões se uniam, livres e escravos tomavam-se
membros (embora sempre diferenciados) de uma comunidade. À língua brasi­
leira foi atribuído o ambíguo papel tanto de filiação como de emancipação em
relação a Portugal. Nesse sentido, a idéia de uma história própria da língua na
América, bem como da sua relação com essa natureza, tida como singular,
passa a ser alimentada. Houve, ainda, uma controvérsia em relação ao desta­
que que seria dado entre as línguas diferentes do português, ou aos falares
singulares, regionais, como influências relevantes.

Essa produção romântica em torno da língua manifestou-se na reflexão


sobre a língua literária - através da qual se discutiu a relação com os padrões
clássicos portugueses - e, também, em um movimento inicial de documentação
da língua falada no Brasil, com o surgimento de dicionários e vocabulários. Neste
trabalho procuramos explorar exatamente as tensões entre a língua literária e a
língua falada: tratou-se de uma relação de aproximação e distanciamento. Hou­

25
ve, de um lado, uma incorporação, procurando transformar um conjunto de lín­
guas em uma língua brasileira e, de outro lado, todo um processo de depuração
do que era considerado indigno de se fazer representar naquela língua, sobretu­
do uma depuração dos africanismos. Daí o título do capítulo evocar, por um
lado, o que foi apontado por um contemporâneo como a “geringonça luso-afri-
cana”, um falar viciado, desprezível, que estaria contaminando até mesmo as
pessoas “de qualidade” e, por outro, as elaborações românticas sobre o tupi e
como isso significava uma exclusão das demais línguas indígenas.

No campo da ficção, a análise de algumas obras permitiu dar vida ao


exame da encruzilhada formada pela vontade de conceber uma nação e pela
diversidade e hierarquia marcantes da sociedade no Brasil imperial. Optou-se
por trabalhar, como forma de complementar a interrogação central, com dois
escritores românticos que tiveram destaque na produção de imagens e repre­
sentações sobre a nação e que. também, se envolveram ativamente no debate
sobre a língua brasileira; Gonçalves Dias e José de Alencar. Por intermédio de
algumas de suas obras indianistas pode-se investigar o sentimento - dimensão
de destaque no olhar romântico sobre o mundo - sobre as raças naquele mo­
mento da história do Brasil.

Este livro é fruto de uma tese de doutorado, defendida no Programa de


Pós-Graduação em História da Universidade Federal FHuminense, em agosto
de 2000. Agradeço aos professores Flávio dos Santos Gomes, Manoel Luís
Lima Salgado Guimarães, Martha Abreu e Hebe Mattos a oportunidade de um
diálogo tão vivo sobre meu trabalho e o incentivo que cada um deles, em mo­
mentos e formas diferentes, têm me concedido. O professor limar Rohloff de
Mattos foi meu orientador, e além da atenção, críticas e sugestões decisivas no
encaminhamento da pesquisa, agradeço mais ainda que ele tenha compartilha­
do comigo o apreço por certos livros, leituras e palavras.

Alguns professores e amigos, uns mais saudosos do que eu gostaria,


apoiaram direta ou indiretamente a conclusão do trabalho. Sinto-me grata a
Mareio Goldman, Margarida de Souza Neves, Maria Manuela Ramos de Sou­
za Silva e Selma Rinaldi de Mattos. E ainda a Ana Paula Meyer Cordeiro,
Claudia Heynemann, Flavia Eyler, Keila Grinberg, Ricardo Freitas, Ricardo

26
Mariella, Simone Rodrigues e, especialmente, à minha irmã Tânia StolzeLima.
A meus amigos da Casa de Rui Barbosa agradeço a carinhosa e estimulante
acolhida. Os funcionários do Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional, Biblio­
teca da PUC-Rio e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foram funda­
mentais para a realização deste trabalho. O CNPq concedeu o auxílio financei­
ro indispensável para a dedicação à pesquisa.

Gostaria de expressar algo que suponho seja compartilhado pela co­


munidade de historiadores do Brasil, que é o lugar desempenhado pelo Arqui­
vo Nacional na divulgação científica. Anos de pesquisa cotidiana, minuciosa,
lenta, ganham visibilidade e a possibilidade de compor a memória social do
país. Ao Arquivo Nacional agradeço a publicação deste trabalho.

E finalmente ao Francisco e à nossa (agora presente) muito querida Laura.

27
N o tas

1 “Se quisermos eviiar a incompreensão, a guerra, o genocfdio, ê preciso preparar os povos e as


culturas para a única via possível de paz e justiça, que não é outra senão a da mestiçagem”.
Jacques Le Goff, entrevista a Juan Carlos Vidal. Folha de São Paulo, 28 d setembro de 1997.

2 A expressão faz parte do discurso de Nicolau Rodrigues dos Santos França e Leite, na funda­
ção da Sociedade Conma o Tráfico e Promotora da Colonização, e Civilização dos Indígenas.
O Philantropo, n* 76, de 13 de setembro de 1850.

3 idem.

4 José Bonifácio de Andrada e Silva, Representação à Assembléia Geral Constituinte e


Legislativa sobre a escravatura. Paris, Firmin Didot. 1825, p. 123-126.

5 Leopoldo Cesar Burlamaque, apud Célia Azevedo, Onda negra medo branco: o negro no
imaginário das eliles no século XIX, p. 43

6 José de Alencar, Pós-Escrito ã segunda edição, tn Iracema, edição do Centenário, p. 244.

7 Essa recorrência foi o tema da minha dissertação de mestrado: Ivana Stolze Lima, O
Brasil mestiço: discurso e prática sobre relações raciais na passagem do século XIX
para o século XX.

8 Gilberto Frcyre, Sobrados e mucambas, p. 389-390.

9 J, B. Debrel, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, p. 7-8; Mary Karasch, Slave life in
Rio de Janeiro(IS0S-I850), p, 7; Thomas Kolioway, Polícia no Rio de Janeiro, p. 22 e 129;
Sidney Chalhoub, W.iõej, da liberdade, p. 50 e segs.: Gilberto Frcyre, op. cit., p. 256-257 c 460.

10 Um ofício da Secretaria de Polícia da Corte (Arquivo Nacional, IJ6 204, 25 de abril de 1845)
cita o caso de três mulheres provenientes de Montevidéu e que, provavelmente, tendo sido
abolida a escravidão naquele país em 1842, foram trazidas para serem vendidas como escravas.
O caso suscitou também o problema do regresso de escravos levados para fora do Brasil, uma
vez que a lei de 1831 proibia a entrada de escravos. No Diário do Rio de Janeiro (2 de
Janeiro de 1850, n. 8.290), existe referência a quatro “orientais", da República Oriental do
Uruguai, que estariam sendo escravizados ilegalmente na Corte, o que sugere que isso tenha
sido um problema comum.

11 Mary Karasch, op. cit., p. 3 e 9. Acredito porém que se deva ler cuidado com a conclusão
da autora, pois o estatuto de imigrante livre, embora não seja impossível, pode ter sido um
subterfúgio de comerciantes ou proprietários para burlar a lei de 1831, que proibia a entra­
da de escravos no país.

12 Secretaria de Polícia da Corte, op. cit.. Arquivo Nacional, IJ6 204, 1845.

13 Gilberto Preyre fala dos “escravos quase louros que aqui chegavam, das aldeias portuguesas,
uns inocentes de oito, nove anos”. O autor cita outros exemplos colhidos de anúncios de
jornal, oferecendo-se ou procurando-se portugueses enlre dez e 14 anos. Gilberto Freyre,
o pcit.,p, 271-272 e.134- ”

28
14 “A cidade negra é o engendramento de um tecido de significados e de práticas sociais que
politiza o cotidiano dos sujeitos históricos f...] no sentido da transformação de eventos
aparentemente corriqueiros no cotidiano das relações sociais na escravidão em aconteci­
mentos poKUcos que fazem desmoronar os pilares da instituição do trabalho forçado. Castigos,
alforrias, atos de compra c venda, licenças para que negros vivam ‘sobre si’, e outras ações
comuns na escravidão se configuram então como momentos de crise, como atos que são
percebidos pelas personagens históricas como potencialmente transformadores de suas vidas
e da sociedade na qual participam, Em suma, a formação da cidade negra é o processo de
luta dos negros no sentido de instituir a poUtica ~ ou seja, a busca da liberdade - onde
antes havia fundamentalmente a rotina”, S. Chalhoub, op. cit., p. 186.

15 Sobre esse tema, as seguintes obras de Martha Abreu constituem referências fundamentais:
Festas religiosas no Rio de Janeiro: perspectivas de controle e tolerância no século XIX, p.
183-203; c O império do divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro -
1830-1900.

16 Colette Pélonnet, La pãleur noire: couleur et cullurc aux Etats-Unis, p. 201.

17 Michel Foucault, A governamentalidade, in Microfísica do poder, p. 292.

18 Sobre a experiência de governar no processo de formação do Estado imperial ver limar


Rohloff de Mattos, O tempo saquarema, p. 117.

19 É importante ainda ressaltar que as reflexões de Hebe Maria Mattos acerca dos signiFicados
da cor na sociedade escravista do século XIX constituem referencias importantes no desen­
volvimento deste trabalho. Hebe Maria Mattos, Das cores do silêncio: os significados da
liberdade no sudeste escravista - Brasil século XIX; e Escravidão e cidadania no Brasil
monárquico.

20 Para a crftica a esta imagem de apogeu do Segundo Reinado nas décadas de 18S0 e 1860,
ver Sidney Chalhoub, Diálogos políticos em Machado de Assis, p. 103-104. E também
limar Rohloff de Mattos, op. cit., especialmente p. 83, 116 e 128.

21 limar Rohloff de Mattos, op. cit., p. 157.

29
C apItulo 1

As cores dos cidadãos no teatro do jornalismo;


política e identidade no
Rio de Janeiro, 1831-1833

“Cabra genlc brasileira


Do gentio da Guiné
Que deixou as cinco chagas
Pelos ramos de café”'

Esta paródia do Hino da Independência, que circulava na época das


lulas desencadeadas pela emancipação, leva-nos a indagar sobre as repre­
sentações em torno da identidade nos anos iniciais do período regencial,
quando alguns segmentos da população urbana procuraram participar ati­
vamente da política, não só vivendo, mas sendo responsáveis por um con­
texto de expectativa de transformação do poder e da cultura política, de­
sencadeado pela Independência e pela Abdicação. De forma mais direta, a
questão colocada é a seguinte: como entender publicações intituladas O
Brasileiro Pardo, O Homem de Cor, O CriouUtiho, O Indígena do Brasil,
O Filho da Terra, O Meia Cara, O Cabrito, entre outras, vindas à luz na
cidade do Rio de Janeiro entre 1831 e 1833?

No duplo movimento em que grupos urbanos perceberam-se como


atores políticos c procuraram representar-se por meio de um conjunto de
imagens e valores, confrontaram-se discussões sobre a nacionalidade; e,
subjacentes a esta, tematizações em torno de identidades raciais. Existiam
certas figuras mestiças - o crioulo, o pardo etc. - que eram utilizadas ora

31
como auto-imagem positiva, ora como xingamenio ou insulto, ora como
desqualificação. Há uma historicidadcda questão racial.~e neste momento
encontramos uma forma própria de invenção do tema das diferenças raciais,
preenchendo de significados políticos palavras como “mulato” ou “branco”
—algo que acontecia simultaneamente aos conteúdos reivindicados para o
atribulo “brasileiro”.

As lutas de representações em torno da identidade nacional relacio­


navam-se à formação da sociedade política, ao seu direcionamento, aos
dispositivos de inclusão e exclusão nesse corpo político. Havia diferentes
eixos de tensões; os portugueses, aos quais se podia negar ou confirmar o
título de “brasileiros adotivos", tanto nos vários conflitos localizados que
compõem o movimento que levou à abdicação do imperador d. Pedro I,
como, posteriormente, nas disputas pela ocupação de postos militares, pelos
empregos públicos, pelo mercado de trabalho urbano; outro eixo de ten­
são era o governo regencial, do qual se reprovavam os atos considerados
traidores da aliança que fez com que seus membros chegassem ao poder. A
alteridade podería assim ser atribuída tanto aos que eram considerados
estrangeiros, como aos que não seriam suficientemente brasileiros.

Ao se procurar a singularidade daqueles impressos, a sua gramáti­


ca própria, relativa ao tema da identidade, uma postura se faz cada vez
mais obrigatória. Trata-se de, ao invés de contar a história da formação da
sociedade brasileira como composta por brancos, negros, índios e mesti­
ços. supor uma história dos termos branco, negro, índio e mestiço. Essa é
a perspectiva que será adotada.

Nela, a primeira operação consiste em alargar o conjunto desses


signos, isto é, não empobrecer o léxico tão profuso de designações raciais
que de alguma forma é uma marca cultural daquela história. Trata-se de
um inventário de designações.^ A segunda operação consiste em velar pela
sua variação histórica. Nenhuma designação racial tem um sentido trans-
histórico ou invariável. Como terceiro passo, deve-se procurar o envolvi­
mento com o próprio contexto histórico. Toda forma de denotar carrega
um conjunto de objetivos, de interesses, de usos e finalidades, que obede­
ce tanto a lógicas variáveis segundo o sujeito que profere o discurso -
uma conversa informal e privada, as diversas instâncias da justiça, o cen­
so populacional, o exercício da disciplina etc. - como ao próprio contexto
histórico vivenciado.

32
o tempo que será aqui considerado, os anos de 1831 a 1833, é ainda
marcado pelo processo da consolidação da emancipação do Estado, iniciado
em 1822, bem como pela formação de uma sociedade política cujos núcleos
serão titulados como cidadãos, seguindo os preceitos daquela época liberal. O
liberalismo não existe em forma pura, existe apenas referido a certos usos, e
sua ocorrência, mesclada a muitas outras formas de entender e imprimir valor
ao mundo, não é menos material por isso. Por outro lado, não foi apenas o
corpo de doutrinas, valores e mecanismos de representação política do libera­
lismo que influiu na construção das concepções de identidade nacional e das
designações raciais produzidas por certos campos discursivos.

É muito comum tratar essa época como a da disputa entre liberais


moderados, liberais exaltados, e restauradores ou caramurus. Mas o histo­
riador, ao invés de tomar essa classificação como uma categoria neutra de
análise, pode entendê-la como parte do jogo político da época. Esses ter­
mos foram mais utilizados como forma de desqualificação e insulto do
que pelos supostos grupos que tais termos evocam, grupos estes que nem
sempre se compreenderam e se organizaram enquanto tais. A violência,
um dos estigmas lançados sobre os “exaltados” , foi utilizada também pe­
los “moderados”. Veja-se o exemplo de Diogo Feijó, ministro da Justiça
em 1831, e primeiro responsável pela manutenção da ordem pública na
Corte; sua atuação foi sobretudo no sentido de reprimir a “anarquia”, isto
é, a dissidência política e a ameaça social por ela expressada. Outro pro­
blema é que a oposição que aquela classificação apresenta entre os dois
grupos liberais, de um lado, e o grupo restaurador, de outro, quase obriga
a excluir qualquer traço de liberalismo entre os restauradores, o que tam­
bém não é totalmente exato. Sem dúvida é importante verificar a ocorrên­
cia daqueles termos, mas enquanto um jogo de acusações mútuas e de iden­
tidades relativas, construídas no calor dos embates,*

O foco será antes lançado ao processo que forjou uma espécie de


linguagem racial das disputas poh'ticas.’ Em busca dessa gramática, das
regras dessa linguagem, a análise do período foi organizada a partir de
alguns aspectos destacados.

Dentre os muitos lugares de produção discursiva e os distintos pro­


cessos sociais de produção da identidade, a imprensa será neste capítulo
focalizada. Uma torrente de publicações - periódicos - percorreu o Rio
de Janeiro e outras cidades e províncias do Império naqueles anos.®

3.T
A revolução na imprensa e a revolução na rua

Houve uma pequena revolução da palavra impressa. Revolução no


conteúdo do que se imprimia, como conceito e valor utilizados. A “nossa
revolução” era principalmente a “sempre gloriosa revolução do 7 de abril”
cuja memdria será disputada naqueles anos e nos seguintes, ou a “Revolu­
ção regeneradora de 7 de abril de 1831”.^PoderÍa ter sentidos diferentes,
como atesta a Aurora Fluminense ao argumentar contra aqueles que pre­
tendiam que “nossa revolução" deveria ter o mesmo rumo que “a Revolu­
ção Francesa de 1789” :

Para pôr a derradeira m ão de sem elhança, o sr. J. B. de Q ueiroz


tom a □ epiieio de Jurujuba. para o dar confusam enle àqueles
indivíduos que na França .se enfciiavam com o apelido de sans-
ciiUoilcs, e a outros que se intenta agora am algam ar sem razão
algum a com os sans-cullotes do Brasil, sú porque em m atérias
políticas pensam talvez com algum a e.xageração, mas cujo cora­
ção não vai para o crim e,’

O jornal O Jurujuba dos Farroupilhas começara a ser publicado


cm 7 de setembro de 1831. Ainda mais perigosa seria a “revolução do
Haiti" com a qual mesmo um periódico como o Nova Luz Brasileira, que
se preocupava em divulgar um novo vocabulário político oferecendo em
suas páginas definições de “povo" e “nação”, não queria se confundir.'®

Mas ao lado da disputa sobre o sentido da revolução, houve uma


espécie de revolução no acesso à produção da palavra impressa. Ainda
que não tenha sido acompanhada de uma transformação no mesmo ritmo
no acesso ao domínio da escrita, as transform ações da produção impres­
sa supõem o aumento da cultura letrada, ao menos em algumas das maio­
res cidades, como o Rio de Janeiro. Não seria, porém, rigorosam enie
necessário saber ler para estar envolvido com a prática da escrita. Leitu­
ras coletivas em torno de pasquins afixados em praças ou largos eram
atos que faziam parte do cotidiano daquelas disputas, não raro classifi­
cados como "m otins” ou “assuadas” pela redobrada vigilância policial
supervisionada de perto pelo m inistro da Justiça em 1831, Diogo Feijó.

Íi4
M ultiplicava-se o alcance da palavra im pressa." Nesses casos a dimen­
são coletiva dos pasquins torna-se evidente. Esses impressos não se des­
tinavam apenas a uma leitura individual ou isolada, mas sim a uma ence­
nação pública. Em 1832, houve um motim que reivindicava a volta de
um ministro:

[No dia 12 dc seiembroj houve no largo do Paço, na Porta do


Correio, um ajuntamento ilícito com motim e assuada; pedindo
os amotinadores a reinlegração por meios ilegais do ministro de
três de agosto, e a queda do ministro nomeado; afixando-se pro­
clamações impressas na Tipografia do Diário na parede do Cor­
reio a seu fim chamando ãs armas os cidadãos [...].

Uma das testemunhas do caso contava que viu "um fulano conhe­
cido por Fuão que parece ser branco" e que "na parede do Correio afixara
uma proclamação convidando os povos às arm as”. Naquele dia, outros
impressos foram também distribuídos à multidão.'^

Referindo-se às transformações em que houve estreita participa­


ção da imprensa ao longo da época moderna, Roger Chartier faz a seguin­
te indagação: "Como, entre os séculos XVI e XVIII, nas sociedades do
Antigo Regime, a multiplicada circulação do escrito transformou as for­
mas de sociabilidade, permitindo novos pensamentos e modificando as
relações de poder?”.*^

Mantenhamo-nos atentos ã historicidade das práticas da escrita e


aos indícios de que esses periódicos não existiram apenas para serem li­
dos individualmente e em silêncio, mas eram também comprados em lo­
cais determinados; eram portados e isso, na cidade de ânimos tão acesos,
não devia passar despercebido; eram provavelmente brandidos, como ar­
mas invocadas.

Como salientou Laurence Hallewell. a introdução oficial, e efeti­


va, da imprensa em 1808 foi um ato paradoxal, pois após a proibição de
séculos, a própria Metrópole, em sua figura máxima, trazia, no bojo da
transferência da Corte, a Impressão Régia. Mesmo tendo o monopólio de
tudo que pudesse ser impresso, não se pode avaliá-la como mero instru-

35
mento burocrático. Publicava-se nela, ainda que sob a condição da censu­
ra prévia dos manuscritos, muito mais que papéis oficiais, leis e avisos.

Em 1821 teve fim o monopélio da Impressão Régia. As cortes de


Lisboa decretaram a liberdade de imprensa. No Brasil, foi formulado em
1823 um projeto de regulamentação do tema,'* e no ano seguinte a Consti­
tuição do Império dedicou-lhe um parágrafo no artigo 179, excluindo a ne­
cessidade de censura prévia: “Todos podem comunicar os seus pensamentos
por palavras, escritos, e publicá-los pela imprensa, sem dependência de cen­
sura, contanto que hajam de responder pelos abusos, que cometerem no exer­
cício deste direito, nos casos, e pela forma que a lei determinar".

Novas leis de imprensa se sucederam a essas, como a de 1830,


expressando já a preocupação manifestada pelo imperador, e mesmo por
alguns homens da imprensa, com o perigo dos abusos da liberdade de pu­
blicar. O anonimato foi preservado - algo que, se incomodava, era tam­
bém cômodo a muitos —, sendo porém obrigatória a menção ao lugar, tipo­
grafia e data de impressão. Estabeleciam-se detalhadamente os procedi­
mentos para a acusação de abuso da lib erd ad e.''A medida contudo não foi
capaz de fazer recuar a torrente de periódicos-

Á mudança não se manifestou só no campo das leis, mas também


no das tipografias. No mesmo ano de 1821, decisivo para a história de
Portugal e seu Império, o diretor do Diário do Rio de Janeiro obteve li­
cença do regente para imprimir seu jornal, montando uma tipografia pró­
pria, a Tipografia do Diário, que se tornou uma das maiores do Rio. O
próprio Diário do Rio de Janeiro era uma novidade, não só pela sua peri­
odicidade, mas por publicar anúncios particulares e notícias locais: “até
então, quando se tinha que anunciar qualquer coisa ou novidade, pregava-
se o anúncio manuscrito nas esquinas das ruas ou nas portas das igrejas,
ou apregoava-se pelas ruas o que se queria vender, alugar ou comprar”.'*
O número de tipografias multiplica-se rapidamente desde então, em diver­
sas províncias do Império.

Conjugam-se intimamente duas transformações, a da imprensa e a


da política. A estas se acrescentam e mesclam-se representações de identi­
dade. Lançar um jornal não era simplesmente um ritual de iniciação na
arena política —como muitos fizeram mas em si mesmo uma forma de
compor uma identidade política.”

36
o teatro, o riso e a polissemia das identidades

A imprensa, como a política, era um teatro. Em outras palavras; a im­


prensa, ela própria uma forma de representação do drama social, e funcionan­
do como uma cena em que cada título constitui um ator-personagem. com suas
falas, imprecações, notícias, denúncias, zombarias econvencimentos, teatrali-
zava a política. Sem que haja sucessão temporal, mas simultaneidade, pode-se
dizer que a política era tomada pública pela imprensa. De uma teatralização
em um cenário privado, como na sociedade de corte, surgia uma ampliação do
jogo - uma platéia que podia se tornar ativa, uma proliferação de autores, uma
enxurrada de impressos fazendo da rua um lugar de política.

Infelizmente, restam poucos vestígios históricos da produção propria­


mente dita, que poderíam permitir recompor o funcionamento das tipografias,
qual a relação entre impressores, donos de tipografias, e editores —que eram
na época chamados de redatores - dos periódicos. Falta sobretudo informação
sobre os que tomavam a iniciativa de publicação dos periódicos efêmeros, que
permaneceram anônimos.’®Dado o número de tipografias e o de títulos, publi­
car um periódico provavelmente tenha sido uma atividade relativamente aces­
sível, Como muitas vezes o ramo se confundisse com o das livrarias, não fica
difícil imaginar também as tipografias como sendo mais que um simples dis­
positivo mecânico, propiciando uma produção intelectual, encontros e deba­
tes. Ao menos uma figura histórica pode ser citada como exemplo: Francisco
de Paula Brito, membro fundador da Sociedade Petalógica. Funcionando na
praça da Constituição, a loja de Paula Brito tornou-se um ponto de encontro
literário entre as décadas de 1840 e 1860.”

Situada na rua dos Pescadores, a livraria de Pedro da Veiga, irmão de


Evaristo, era também um lugar de debate político, sem dúvida mais seletivo e
moderado que os encontros em tomo dos pasquins.

Dentre os vários dramas representados nesse “teatro do Jornalismo e da


política”, encontraremos o das imputações c reivindicações de identidades raciais.
Antes de abordá-lo diretamente, tratemos de algumas práticas essenciais a esse
teatro. Um primeiro elemento consistia em sempre tomar como alvo ou referência
um outro periódico. Uns comentavam os atos dos outros, publicavam trechos, cri­
ticavam-nos, procuravam apoios. Sem sombra de dúvida, a Aurora foi a campeã
.seja das críticas, seja dos apoios. E o periódico respondia às imputações recebi-

37
das, bem como os demais. Aliás, é notável o tempo c o espaço dedicados a polêmi­
cas que quase só diziam respeito à própria vontade de polemizar.

A noção de “teatro do jornalismo” foi delineada pelos próprios redato­


res.’” Para bem explicar sua relevância nos anos próximos a 1831, pode-se citar
os adjetivos que atribui ã imprensa Stanley Stein: prolifera, vociferante, desen­
freada.^* E verdade que ela também era moderada e elegante. Mas a primeira
marca sinaliza a própria dinâmica desse jogo; a proliferação de títulos, em meio
aos títulos mais estáveis. A quantidade é essencial pois é o que desequilibrava o
jogo, indicando não o efêmero negativo (o que não persiste, ou que perece), mas
um efêmero que carregava a novidade ou o inesperado. A mobilidade, a trans­
mutação. a novidade, mesmo que acontecendo dentro de um certo horizonte de
expectativas, possibilitavam a entrada cm cena de personagens novos.

Nem sempre eram absolutamente conhecidos os autores, e especula­


ções e imputações eram comuns. Na seção “Ferroadas” do jornal O Lafuenie,
publicava-se: “O R. [redator] do Indígena [do Brasil] declara que ele não es­
creve O Cabrito porque sendo inimigo deles, como bastante mostrou insultan­
do com esse apelido o sr. Lafuente no ato de sua prisão, não havia [de] pôr no
periódico, que é a menina de seus olhos, um título que detesta”.^

Em estilo jocoso, o Sete de Abril publicava uns versinhos sobre João Ba­
tista de Queiroz, atribuindo-lhe a autoria de alguns títulos, que terminavam assim:

Lá vai ele! Está feroz!


Lá vai o enredador;
Tareco restaurador
João Batista de Queiroz!
Pela pena e pela voz.
Não sabe mais que insultar,
Sc por doido quer passar,
Agarre-sc o mariola.
Vistam-lhe uma camisola,
E vá nas palhas berra.^

Outro trecho de especulações mescladas a imputações e insultos: “O


redator do Homem de Cor, do Adotivo, do 7 de Setembro, será o mesmo que

ás
escreveu o Verdadeiro Patriota, e muito nos insultou chamando-nos Cabelos In­
subordinados? Quem disto souber, e nos queira esclarecer, receberá al víssaras”.**

Se o anonimato não fosse uma das armas desse teatro, isto é, se


todos soubessem implicitamente quem eram os autores, tais preocupações
não leriam relevância.

A legislação sobre a imprensa paulatinamente forjou a noção de autor,


imputando-lhe a responsabilidade pelos escritos. Não qualquer material escri­
to, mas sim o material impresso, e que exatamente por isso fosse lido por certo
número de pessoas.^’ Foi uma “apropriação penal dos discursos”, indicando
um processo em que a afirmação da identidade do autor esteve ligada à censu­
ra e à proibição dos textos considerados perigosos.’®Esse fato não pode deixar
de ser relacionado a uma dimensão essencial do anonimato: seu envolvimento
com as expectativas na definição do cidadão político. O anonimato forjava
brechas, ainda que arriscadas, nas tentativas de controle sobre a imprensa.

A dimensão efêmera é difícil de ser avaliada mais exatamente na do­


cumentação. uma vez que as coleções atualmente disponíveis são incompletas.
Se por um lado pode ser próprio dos pasquins o número único, há indícios de
uma duração um pouco maior para títulos dos quais só restou o número inicial.
E curioso que o termo periódico tenha sido, apesar de tudo, constantemente
empregado. Alguns títulos definiam-se mesmo pela liberdade na periodicidade.

Por meio de levantamento na coleção de periódicos raros da Bibliote­


ca Nacional e do Arquivo Nacional, chegamos aos seguintes números de títu­
los existentes na cidade do Rio de Janeiro, em cada ano, entre 1830 e 1833: 12
em 1830; 45 em 1831; 36 em 1832; 51 em 1833. Após o ápice do último ano,
a proliferação cedeu lugar a um silêncio.

Atuar no “teatro do jornalismo” era o caminho para a atuação no teatro


político. Freqüentemente, o título de uma folha equivalia ao nome de seu autor-
ou “redator” como era mais comum ocorrendo uma personificação dos títulos.
AAurora Fluminense, OJurujuba dos Farroupilhas, O Cabrito, O Independen­
te etc. não eram meros títulos, mas figuras, personagens da “cena periódica” e
portanto da cena política. Reclamava o jornal O Exaltado - que curiosamente
procurava um "estilo popular” e uma “linguagem franca” - de um desconcerto
dessa cena: “Os Republicanos vão de encontro ora a estes, ora àqueles: a Astréa
fala: a Nova Luz prega: o Tribuno grita: o Independente ralha: a Aurora intriga;

39
cada um no tom. que llie insinua a comunhão a que pertence. Reina a intriga,
continua o Despotismo, tudo são paixões particulares...”.^’

Ainda sobre a personificação dos títulos, um indício digno de nota é a


forma como a documentação judicial sobre as “garrafadas”, em março de 1831.
designou dois dos envolvidos; não pelo seu nome. mas como “o Repúblico” e
"o Tribuno".^* Tanto o relato da autoridade policial como algumas das teste­
munhas assim se referem a essas duas figuras, ou a esses personagens. Publi­
car um jornal era uma espécie de batismo político; ganhava-se um nome.

Olhando por outro viés, as “publicações incendiárias'” ’ tornavam pú­


blicas as questões políticas, e o próprio jogo político. A forma mais explícita
desse mecanismo era quando se publicavam os debates na Câmara dos Depu­
tados, discursos de certos membros, posicionamentos sobre os projetos discu­
tidos. Publicavam-se também decretos, leis (como o Código Criminal em 1830).
Mas o impresso não era simples intermediário, sobretudo quando os usos da
política se diversificavam, e quando se pretendia ser mais que espectador.

Como nas novelas machadianas. freqüentava-se o teatro não tanto para


ver, mas também para se fazer visto, e a platéia expressava seu próprio charme
teatralizado. Se, por um lado, os atores da imprensa representavam entre si e
os personagens eram a própria platéia, por outro a materialidade das tiragens,
das publicações, das permutas, das a,ssinaturas, dos pontos de venda, a leitura
coletiva e mesmo a afixação em lugares públicos, continuando costume anti­
go. indicava que a platéia era mais difusa. Como a do teatro, podia ser uma
platéia pouco ou nada comportada. A palavra impressa formava opinião, exi­
gia participação e cumplicidade, captava apoios.

As ruas da cidade invadiram a política. Ou foi uma forma supostamente


nova de fazer política que invadiu as ruas?’®Dessa tensão surgiram os empregos
de “mulato”, "homem de cor”, “pardo”; surgiram as cores dos cidadãos.

Ao mesmo tempo em que pretendia contribuir para a divulgação de um


ideário de participação política, a Aurora Fluminense estranhava e temia sua
vulgarização. Em uma de suas edições, o texto lamentava o comportamento de
pretensos cidadãos que. em vez de se ocuparem com a riqueza da nação, aceitan­
do para isso a contribuição européia, e seguindo o exemplo dos “americanos do
Norte” . g.astavam seu tempo com atitudes condenáveis: o “nosso patriota por
excelência, nos armarinho.s, nas boticas e mesmo nos botequins, de manhã, de

40
tarde, à noite, vive na ociosidade mais profunda discorrendo sobre política; e
que política!".^' O mesmo estranhamento era expresso em outros periódicos,
como se. fora de espaços delimitados e de certos códigos compartilhados, falar
de política fosse uma pretensão descabida. Já não se podia, porém, conter uma
onda da qua! a imprensa retirava sua razão de existência. Seria importante, aos
olhos das posições semelhantes à da Aurora, temperar a linguagem. A livraria
resguardava-se da desordem do teatro da rua: os botequins, armarinhos, boticas...

A metáfora do teatro poderia transformar-se quase em um gênero da


imprensa periódica, como parece ser o caso de O Teatrinho do Sr. Severo.^^ O
formato de periódico (tamanho, cabeçalho, periodicidade) confundia-se então
com este texto organizado em diálogos, cenas, atos, personagens. Estes eram:
Xico Bandurra (“militar e alta personagem”) e sua esposa d. Fufia. Os criados
chamavam-se Severo e Lagartixa. Outra “alta personagem” era João Buiro, ao
lado de Ripanso (“conselheiro privado”). Aurélio e Marinho (“ministros con­
fidentes”) e Vergoto (“ministro discordante”). Personagens apenas semifictí-
cios^^ eram antes caricaturas através das quais se ludibriavam a incompetência
política, o desleixo, a rede de influências e presentes recíprocos; sobretudo
escarnecia-se da hierarquia militar, não em seu princípio - pois o cômico nem
sempre contesta a ordem quando a pinta em cores ridículas mas por estar
desviada, associada ao enriquecimento ilegítimo, como seria o caso de Xico
Bandurra. ou “gato ruivo”, como o próprio apelido indicava. (Bandurrear
significa viver ociosamente, vadiar, locar bandurra). Lagartixa, a criada, é
quem sugeria: “E que mal ia a meu amo, sem meter prego nem estopa, e só
por ter entrado como tolo em revoluções, achar-se-ia senhor de uma soma,
que nunca seu bisavô ganhou em toda a sua vida”.

Sem qualquer aptidão intelectual, bebendo cachaça, Bandurra seria


apenas manipulado por Ripanso, um “vende folhinhas”. Aliás, a alcunha Ri­
panso (que significa preguiçoso^"*) aparecia em outros periódicos como O Eva~
m ro” e O Meia Cara. A esposa aflita teme que a reforma da carreira militar do
marido possa levá-lo à ruína, junto com João Burro, passando a ser tratados
“como negro.s”, o que provavelmente significava que seriam tratados como
escravos, mas no sentido político que em geral essa palavra assumia nos dis­
cursos da imprensa: ausência de liberdade e autonomia.

Vem da criada, mais uma vez, a opinião sensata. Condenando as ações


da família a que serve. Lagartixa diz; “esta gente parece que perdeu toda a
vergonha, são mais escravos do que negros”.

41
Os criados ocupam, entre os personagens, o papel da sabedoria e do
equilíbrio, Um deles é o dono do teatrinho, e lhe empresta o nome. O tcatrinho.
aqui, é impresso, simulacro de vários outros teatros particulares espalhados pela
cidade, mantidos por amadores, como o Teatrinho do Largo de S. Domingos,'* o
Teatrinho do Largo do Rocio, que entre 1815 e 1817 disputava a audiência com
o Real Teatro de São João, e a Sociedade do Teatrinho da Rua dos Arcos.'’

No mesmo teatrinho impresso do sr. Severo seria representado um en-


tremez. As obras de Santa Engrácia. cujos personagens são igualmente figu­
ras da hierarquia militar e política. Gerebita, também bandurra, também be-
berrão, será mais uma vez personagem desse entremez (peça burlesca que ter­
mina em música) e é ele quem comandará, ao final, não propriamente a músi­
ca. mas uma divertida e nada inocente ‘"embigada”. Seus interlocutores são;
Burro Mono (“colega de Gerebita, e grande personagem” ). Estouvado (“co­
mendador, ministro dos chã-chãs”). Orelhão (“dito da chicana”). Cachorro
Grama (“dito do interior”), novamente o preguiçoso Ripanso (“conselheiro, e
progndstico"), Saturno ("militar d’água doce, irmão de Orelhão”), Mestre Bento
(“caboclo assassino, empreiteiro de valas e picadas”), Pó Fulminante (“mes-
tre-dc-obras”), Mandu Tamina’®(“dito”). Mestre Trino (“pedreiro”). Travesso
("apontador”), Paulo Baeta (“chichisbéu, e caudatário de Saturno”), João da
Pólvora (“artista”) e Um aprendiz de pedreiro.

A cena é uma “sala ricamenie mobiliada”, onde acontece uma conversa.


Ao lado dos temas da corrupção, da inépcia que ridiculariza os “grandes persona­
gens” (“a nossa pátria c a nossa mãe. e com seus filhos deve ela repartir boa fatia”,
dizia um dos convivas), a farsa apresenta vários trechos picantes, como este, em
que à interpelação de Ripanso sobre o silêncio de Burro Mono, este responde;

O que tinha eu de dizer, sr. Ripanso. se tudo o que observo nesta


companhia é tão moral, que nic enche as medidas: Já não conhece
o meu gênio? Eu sou calado, com minha comadre c vizinha da
rua mesmo eu nunca converso senão para pedir-lhe a boceta a
cada passo; agora cu esiou-me lembrando disso: o sr. Gerebita dá
a pixolcta pela sua pinga (do que eu também gosto), porém, sr.
Ripanso, o labaquinho dc minha comadre tem um sainele que logo
mc faz chegar o catarro à venta; com isto me ocupo, e assim vou
moralizando esta gente, eu c o nosso Cônego, que coitado lera
sele bocetas dc óleo vermelho, para si, e para dar aos amigos.

42
E o Conselheiro acrescenta: “É justo; uma pitada boa tem seu lugar, e
quando é em boceta alheia tanto melhor!”. Além dessas pitadas, a pinga circu­
lava: Gerebita não cra o único beberrào. Ripanso procurava encaminhar me­
lhor a reunião:

(...) vamos sempre tratar de objetos legais, que interessam cá aos nos­
sos: cá eslá 0 nosso financeiro presente, e o seu novo colega que deve
ser ensaiado na matéria; temos também aqui vários liberais entendi­
dos no negócio; ele é de espalhar capitais; isto de capitais empatados
não nos convém, porque são o mesmo que bens em mão de frades.

Em determinado momento, Paulo Baeta sai para chamar Mandu


Tamina, “bagaço de cana chupado pelo Chalaça” . “Jesuíta”, “findinga ta-
baquento” e “corcunda” , que estava jogando cartas com pedreiros e apren­
dizes, em provável referência à maçonaria que permite advinhar o sentido
da palavra “obras” no título.

Após a reunião de “trabalho”, todos terminam em uma indecente farra,


com laivos sensuais entre Estouvado e Ripanso. Pauto Baeta foi o mestre-sala,
distribuiu os instrumentos, pois era entendido no assunta f“Ah! bom tempo
que passei na fazenda de meu pai, que belas embigadas dei. era um fado rasga­
do toda a noite com a escravatura que tenho.”). Estouvado, ministro dos chã-
chãs, dançava com o Conselheiro;

Muito gosto de dançar... assim meu bem... venha saindo meu


Ripanso, quebra meu negro, derrete candinha... miudinho,., miu­
dinho... moderado... moderado... furrundu... furrundu... fumm-
du... iraca... traca... Iraca... huhu... por baixo ladrãozinho... es­
ses pezinhos... a barriguinha... a barriguinha... toma côco ioiô..,
assim meu bem... meu Ripansinho... machuca meu negro... es­
maga-me este palacar... que tenho aqui no peito... assim... der­
rete-me todo Já... toma embigada... gangula [sic].

Acaba eni êxtase coletivo a farra, aqui expressa em uma linguagem


que trocou o discurso indireto por uma fala ritmada, cheia de sensualidade

43
através de palavras que dançam. O fato de tratar-se de uma peça, de um discur­
so organizado em forma de diálogos, cenas, um pequeno enredo, não deve
obliterar sua materialidade de palavra escrita, que talvez nesse caso seja o
próprio fim deste discurso. Dizendo de outra maneira: esse discurso não tem
como finalidade uma única encenação, que lhe completaria o objetivo; mas,
cm si, parece ser um uso pouco convencional da palavra escrita e impressa.

Não é simplesmente uma peça de teatro que foi impressa, é uma práti­
ca cultural - o teatro burlesco - que se apropria da crescente difusão dos peri­
ódicos. Por outro lado, a linguagem dos periódicos é invadida por essa orali-
dade e dramatização.

Tais pecinhas em forma de periódico, farsas ou entremezes, encontra­


ram sua fonte em tradições culturais praticadas no Rio de Janeiro desde o tem­
po colonial, prezando as farsas burlescas, que difundiam o “chiste desbragado
insultuoso e baixo”.” Os teatrinhos eram comuns, e gozavam de popularidade.
Assim, os pasquins talvez transponham, para a linguagem e materialidade pró­
prias, uma cultura de zombaria da política, das hierarquias sociais, do parado­
xal liberalismo que era encenada nas comédias que compunham o variado pro­
grama teatral. Os entremezes, de origem lusitana, apresentavam pequenos en­
redos “descosidos”, segundo Vilma Arêas, na medida em que não havia uma
unidade dramática mais consistente, e que terminavam nesses números de dan­
ça sensual ritmada. A transposição vale também para os lundus, ou fados, em-
bigadas, números meio musicais e dançantes que também faziam parte da pro­
gramação. Na primeira "peça” citada, há uma “cantata gostosa" e um “lun-
dum”, este cantado por Severo e Lagartixa, tematizando a inversão da hierar­
quia social. O estilo indica que tal texto seria oralizado, dramatizado:

Severo:
Victor sério Lagartixa!
Leve o diabo paixões!
Imitemos nossos amos
Não sejamos toleirões!

Ora taque tataques


Vamos tafular.
E que viva quem sabe
Bem vasconcelar.

44
Lagartixa:
Eu não posso meu Severo
Ter uma alma de cortiça
Se a Igreja vai por terra
Adeus pechinchai Adeus missa!

Severo:
Vasconcelar, minha bela
É coisinha delicada!
É pechincha que tem feito
Muita gente moderada!

Ora taques tataques.

Severo:
Eu quase estalo de riso
Quando vejo no Brasil
As mil caras que tem feito
Certa gentinha d’Abril.
Ora taques tataques.

Lagartixa;
Quando a aleluia chegar
Que coisinhas se verão!
Uns a correrem sem sangue
Outros de calções na mão.
Ora taques tataques

Severo:
Então nós ambos unidos
Por um laço verdadeiro
Veremos esses bandalhos
Como porcos no chiqueiro.

Ora taques tataques


Vamos tafular
E que viva quem sabe
Bem vasconcelar."*®

45
Mais um indfcio da cultura política no teatro é a comédia de Martins
Pena, O juiz de paz na roça. escrita, segundo Darcy Damasceno. em 1833.
embora não tenha sido logo encenada, pois o autor, então com 18 anos, tecia
temido pela sua ambição de desfrutar um emprego público (o que ele, ironica­
mente. conseguiu poucos anos depois). Seu desfecho é um festivo fado, cujo
anfitrião declara: “Essa casa não é agora do juiz de paz - é de João Rodri­
gues” .'*' Em seu decorrer, vários movimentos da presença do Estado (o recruta­
mento, a guerra para garantir a unidade nacional, as eleições, a “justiça" do juiz
da paz, a Constituição, a Assembléia Provincial) tornam-se matéria de riso.

O célebre periódico Aurora Fluminense respondia aos pasquins lança­


dos quase a cada dia ou semana, bem como procurava dar conta do que se
publicava, por todo o Império, em termos de folhas mais sérias. De alguma
forma, este deboche parecia eficaz. Não era Ripanso, o “vende folhinhas”,
uma sátira lançada ao próprio Evaristo da Veiga?*^

O ridículo era um meio para se fazer ouvir na Corte. Uma forma de


encarar a política, que criaria uma cultura política singular, em um momento em
que os limites do escárnio não estariam fechados em colunas, seções, ou mesmo
folhas específicas. Mikhail Bakhtin, a partir de sua própria concepção de histó­
ria. vislumbrou as diferentes manifestações da cultura popular, marcadas pelo
gosto do baixo, do grosseiro, do escárnio, como exercendo uma força que em
seus critérios adjetivava de revolucionária, uma vez que gestava a mudança, a
transformação, direcionando suas forças contra a cultura oficial séria e sóbria.'*^

O ridículo não seria uma forma de conhecimento? Martins Pena. espe­


cialista no tema, questionava (e afirmava) a relação entre riso e verdade: “Se
não nos podemos guindar à lírica sublimidade ou à grandíloqua eminência da
epopéia, fiquemos na rasteira e singela narração da verdade... Mas como, se a
verdade aqui parece peta?... Como, se a verdade aqui, para não provocar in­
dignação, carece de ser auxiliada provocando bom frouxo de riso?".'**

Complementam-se a ambigüidade do riso, a incerteza da ironia (ou


sua posição oblíqua) e as indefinições da classificação racial, nacional, étnica
etc. Através do riso, o pasquim tematiza a identidade, explora a incerteza das
origens sociais. Ainda que esse não .seja necessariamente seu objetivo fmal
(que poderia sei reconstruir uma identidade, ou restaurar uma moralidade, na
medida em que a ironia sempre se reveste de um tom sobranceiro, uma pergun­
ta feita por quem já conhece a resposta), a brecha é inevitável. A ironia é a

46
dúvida, é um racha na estrutura do mundo, na clássica natureza ordenada. Como
sugere Georges Balandier, o biifáo indica que “as classificações impostas pela
sociedade e pela cultura podem ser confu.sas”,'*’

A ordem social parece ler todas as regalias, compreendida a cum--


plictdade das consciências, fora dos períodos críticos. No entanto,
elaé vulnerável: detrás da fachada das aparências, trabalha a desor­
dem, o movimento transforma c a usura do tempo degrada. O jogo
da verdade é niuiio perigoso; embora o bufão tenha licença para
dizê-la. ê o modo dairrisâo que a torna menos ofensiva. Os pintores
durante muito tempo tiveram como temas as ‘cenas de poder’, in­
troduzindo grotescos, doidos, bufões ou mascarados. Isto é o rever­
so do aparato, do poder seguro dc si mesmo e de sua grandeza.
Entretanto, essas figuras não permanecem somente como nascidas
do artificio e da arte, elas restituem uma realidade que não é própria
nem dc uma época nem de uma civilização.**

A linguagem bufona dos pasquins e correlates tematizava a desigual­


dade racial (mesmo sem tematizar diretamente as raízes desse problema, os
fundamentos da hierarquia social). Formulava questões sobre como deverá
existir a sociedade política, dados os desiguais sentidos do ser brasileiro.

Sob o formato comum do periódico, encontram-se diferentes gêneros,


ou diferentes formas de dispor do discurso escrito: a disposição formal, os te­
mas. o tratamento dado aos temas. Pelo viés do sério, pelo ridículo, pela zomba­
ria. Caçoar o comportamento. Ou elevar a linguagem e escrever com decência,
como preferia Evaristo da Veiga. Procurar convencer ou procurar deleitar os
leitores. Dentro do estilo cômico, encontra-se igualmente tanto um texto que na
disposição formal não se afasta demais do discurso sério (um texto que se subdi­
vide cm seções, por exemplo), como a forma do diálogo entre personagens fictí­
cios, ou peças na forma teatral (como vimos, com personagens, atos, cenas, diá­
logos. e um enredo). Também se encontram versos satíricos, como as séries de
Simplício Poeta. Um deles intitulava-se Siinplício Poeta, jornal sem data, sem
hora e sem preço certo, publicado em benefício dos doidos f E havia ainda o
Simplício da roça. A verdadeira mãe do Simplício ou a Infeliz viúva peregrina,
O neto do Simplício (estes do ano de 1831) e Afilha única da mulher do Simplí­
cio (de março a abril de 1832). Este soneto é do primeiro título:

47
Os perversos aos quais dói o cabelo,
Por causa das ações mal enroladas,
Com gritos, e palavras enfeitadas.
Aos bons querem quebrar o tornozelo.

A América do Norte é seu modelo,


Mas, da sua eloquência nas rajadas.
Vêm-se na mesma arenga encasioadas
Pretensões de homem livre, e de Camelo.

Consultando somente seus botões


Jamais à reflexão dão exercício,
E obram sempre quais fofos toleirões.

Farinha eles não fazem c’o Simplício,


Que com suas jocosas mangações
Desmascara estes rábulas do vício.

Alguns temas que aparecem nesses versinhos são recorrentes. Por exem­
plo, a junção do cabelo a ações “mal enroladas”, sugerindo cabelos enrolados,
sinal físico possivelmente atribuído a quem não fosse branco. Insulto semelhan­
te foi o de “Cabelos Insubordinados”, em trecho já citado.^* Vemos também a
crítica tanto à violência das “rajadas”, quanto à inspiração norte-americana.

Vejamos outro exemplo em que ao ato de construir uma identidade


sucedeu uma zombaria e desqualificação. O Filho da Terra, publicado em 7
de outubro de 1831, e prosseguindo até fevereiro do ano seguinte, teve como
resposta o título O Veterano ou o Pai do Filho da Terra. O primeiro propu­
nha em sua epígrafe o direito à insurreição nos casos de um governo tirano,
citando o artigo 35 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão:
“Quando o governo viole os direitos do povo. a insurreição é para o povo, e
para cada porção do povo, o mais sagrado dos direitos, e o mais indispensá­
vel dos deveres” .'*®

O número inicial considera o episódio dos “tiros no teatro”, que tinha


acabado de ocorrer em 28 de setembro. O Filho da Terra responsabiliza o juiz de
paz Saturnino Oliveira (conhecido na cultura periódica como “Saturnino Oleré”)
pelo crime de ter atirado contra a multidão, atingindo mulheres e crianças.’”

48
Como em muitos outros periódicos, n atuação dos militares é uma importante
reivindicação de O Filho da Terra. Trata-se, em suma, de tentativa séria.

Alguns dias depois era publicado O Veterano, ou o Pai do Filho da


Terra, vendido na loja de livros de Evaristo da Veiga, indicativo de sua posi­
ção de proximidade diante do governo regencial, bem como da inquietação
quanto ao defendido direito de insurreição do “povo”. Tudo se passa na forma
de um diálogo entre o Veterano e seu Amigo. O primeiro teria aparecido repen­
tinamente na Corte, e confessado estar ali em função de um filho, até então não
conhecido pela sociedade como tal, mas sim como seu afilhado. O Amigo en­
tão pergunta (afirmando): “que o dito seu afilhado era filho de uma preta sua
escrava que levou tanta surra por comer terra? Não era v. m. o mesmo, que lhe
chamava o filho da terra, por ser filho da dita preta, e a quem chamavam a
terra por alcunha?".

O Amigo fica surpreso ainda por ser o tal veterano “tão branco" e seu
filho ter saído “tão fusco”. O Veterano responde que a verdadeira mãe do me­
nino não era a escrava, e sim uma sua amante, “alva como a neve”. (Parece que
nos deparamos aqui com um furo no roteiro, pois como teria o menino saído
"fusco”? A não ser que seu objetivo fosse afirmar que mesmo com pais bran­
cos tal possibilidade existiria.)

O menino foi criado com toda a atenção pelo Veterano. Foi mandado à
escola, mas o mestre não lhe ensinou as primeiras letras, pois ocupava todo o
seu tempo em “ler gazelas” e discutir política com “alfaiates”. Após algumas
aventuras educacionais, o Pai tencionava mandá-lo a Paris para estudar, po­
rém “toda sua inclinação e vontade era aprender a sapateiro”. Logrando em­
barcar o filho, tampouco teve sucesso seu zelo paterno:

Depois de andar por lá mais de seis anos. e de me gastar mais de


seis contos de réis ein toda a qualidade de extravagâncias, segun­
do exalamente me foi informado pelo meu correspondente, veio
pior ainda do que foi; porque ames de ir era louco por mulheres,
debochado, c extravagante; mas agora veio com presunções de
sábio, tão vaidoso, e açucarado, que me parece um Narciso. Gas­
ta segundo me consta horas e horas ao espelho; perfuma-sc com
essências de rosas, traz espartilho segundo o costume das mulhe­
res. enfim vem um asno quadrado, um perfeito papelão.

49
Chegara porém em algo modificado, agora “sua mania é querer ser
escritor público"'.

Ora. seria essa. na perspectiva zombeteira, a identidade do “Filho da Ter­


ra”; uma origem obscura, um ignorante de gramática, efeminado, um filho ingrato.
Em suma. um desqualificado para a carreira de “escritor público”. O Veterano
inquietava-se, julgando ocorrer uma vulgarização da produção escrita, mas não de
qualquer escrita e sim da escrita pública, coletiva, política. Não é ausente de signi­
ficado o fato do jornal ser vendido na livraria “moderada” de Evaristo da Veiga.

Clube no melhor sentido era a livraria da rua dos Pescadores,


pela qualidade da gente que a frequentava, pelo tom das conver­
sas, pelos assuntos preferidos, pela urbanidade, pelo respeito
recíproco. [...] Dele fde Evaristo] não se aproximariam os rapa­
zes da facção exaltada, adeptos da República e da federação e
tão xenófobos que lançavam a moda dos chapéus de palha de
taquaraçu, como sinal de repulsa às coisas estrangeiras.’*

A origem social obscura, a bastardia, a acusação de ser mestiço, a falta


de uma ascendência honrada compõem temas prediletos da ridicularização.
Outro diálogo em forma de escárnio, em relação à identidade racial de um
notável {escondida pelas reticências), foi publicado no Martelo:

- João. por que és tu ingrato para com o senhor..., a quem deves


os maiores benefícios, pois le elevou aos grandes cargos, que
hoje ocupas?
- O benefício maior que eu tenho recebido desde que vim ao
mundo, foi de meu pai, que nascendo eu escravo, apresentou-se
ali na freguesia de Santa Rita, e deu algumas poucas de loiras
pela minha liberdade, na ocasião em que me batizei.
“ Mas depois desse benefício. João. que mais tc fez teu pai?
- Mandou-mc para Portugal, onde estudei à sua custa.
- E depois. João, o pai do senhor... não foi quem principiou a dar
impulsos a lua carreira, que depois o filho tanto abrilhantou?
“ Ora, é boa história; até vai v. ra. buscar defuntos para meier
na conversa! Meu amigo, o pai, Já morreu, e o filho hoje não

50
voga: esia é a lática que lenho seguido desde que me entendo; e
não me tenho dado mal com ela,
—Porém, João, e se... se...
-A h! ah! ah! ah! ah! Para então já eu lenho feito cálculos; e v, m.
verá como hei de ir com vento em popa. Olhe. quando sc tratou
das nomeações de S.... çu tive inimigos, que votaram a meu fa­
vor; tais foram meus artifícios! Contar-ihe-ci ura caso, que vem
a propdsito. Minha mulher, logo depois do nosso casamento,
entrou a parecer desgostosa, por me não ouvir nunca falar em
pais c avós etc. etc.; receando que (pobre inocente!) quem me
não conhecesse a ascendência {é boa asneira!) supuseste não ser
eu oriundo das principais famílias do Brasil: porém hoje está
tão crente no [sic| meu puritanismo. que fala em farroupilhas, e
em gente ordinária, com uma frescura, que faz gosto! Meu ami­
go. esta é a grande vantagem que eu tenho tido nos meus negó­
cios; dc maneira que sempre saio com partido cm todos eles.”

Esses temas voltarão a nos acompanhar.

Os atributos do cidadão mulato

Nos periódicos, os termos que designavam identidades raciais conti­


nham muito mais que suportes naturais. Acredita que não havería maior inte­
resse em desvendar no signatário do periódico intitulado O Homem de Coros
sinais naturais de uma determinada ascendência. Antes, interessa-nos como o
termo foi dotado de certa significação, como foi preenchido de valores, atribu­
tos. e se tornava o caminho para uma certa ação política. O termo “'homem de
cor”, ou “mulato”, foi investido de certa força, em um processo que recriou um
signo, retirando-o do lugar comum e repetitivo.

A epígrafe do jornal era a citação de um artigo constitucional; “Todo


cidadão pode ser admitido aos cargos públicos civis e militares, sem outra
diferença que não seja a de seus talentos e virtudes”.

O redator procurava combaler uma afirmação de Manuel Zeferino dos


Santos, então presidente da província de Pernambuco, que continha críticas à

31
qualificação dos oficiais da Guarda Nacional, e propunha a separação entre os
batalhões "segundo os quilates da cor”. O mesmo usara expressões curiosas para
retratar as clivagens sociais, opondo “habitantes pacíficos e que têm a perder",
que "fogem de ajuntamentos populares”, de um lado, c, de outro, o eufêmico
"gente que lisonjeia o povo”. Ora, um dos principais interesses defendidos pelo O
Homem de Cor era exatamente a participação naquela instituição, e a essas cliva­
gens e divisões replicava com o seguinte argumento: “o título 2" da Constituição
marcando os cidadãos brasileiros não distinguiu o roxo do amarelo o vermelho do
preto, mas o ditador Zeferino, na pátria dos Agostinhos, e Camões, ousou em me­
noscabo da grande Lei cravar agudo punhal em os peitos brasileiros”.

O jornal duvidava da possibilidade de se dividir a Guarda em “intitu­


lados brancos”, “mulatos” e “pretos”, e procurava lamentar a falsa aliança dos
“moderados”: “Quando se há mister dos homens, todos somos patrícios, a ter­
ra é nossa, fingem-se cartas de liberdades, forças no arsenal; quando servidos:
mulatos e pretos tomai vosso lugar, sois maioria atrevida, gente de chinelo e
cacete”. O Homem de Cor declarava ainda a harmonia em que têm vivido os
"exaltados" e os “brancos não moderados”.^^ Aqui vemos a comum associação
entre a cor e a posição na política. Em termos maís específicos (ou corporati­
vos), a preocupação do Mulato é o desprezo a que estariam submetidos alguns
oficiais, verdadeiros patriotas em seu entender, citados lextualmente: o briga­
deiro Paula, o alferes Bacelar, o capitão Solidônio. Rangel, Pimenta e outros.*^
O periódico O Evaristo também citava esses nomes, que deveríam ser resguar­
dados em função de sua “honra militar”.*’

É curioso que o argumento que garantiría a inexistência da divisão dos


cidadãos pelas suas cores não incide sobre o campo racial ou natural, mas sim
surge do processo liberal, legal. O descarte do argumento racial em benefício
do argumento político está no cerne dos fundamentos teóricos do discurso do
jornal, tornando este uso bastante especial em comparação com a visão pre­
sente da hierarquia da sociedade como naturalmente instituída.

Uma pequena nota procurava esclarecer o lugar que assumiria no tea­


tro do jornalismo, como era comum acontecer com um periódico inaugurado:
“O Homem de Cor como é livre sairá quando quiser sem licença do branco
presidente de Pernambuco; salvo se algum Roldão acutilar o redator!”.’*

Fazia, com essa advertência, referência ao assassinato do redator do


Brasil Aflito, Clemente José de Oliveira,” pelo filho do regente Francisco de

52
Lima e Silva, Carlos Miguel de Lima (e irmão do futuro duque de Caxias. Luís
Alves de Lima e Silva, que desde 1831 ocupava um posto de comando na orga­
nização policial), episódio que ocupou as páginas impressas de vários jornais,
dividindo os partidos de opinião. A Aurora Fluminense procurou retirar o con­
teúdo político do assassinato, ao afirmar que era do campo da honra familiar,
ferida pelo redator, que teria dado tempos antes um depoimento a uma autorida­
de Judicial no qual as irmãs do regente leriam sido caluniadas. AAurora tentava
equilibrar a lei pública e a lei familiar: “Nós não podemos aprovar uma ação que
as leis condenam, mas perguntamos a qualquer pai, esposo, ou irmão o que fa­
zia, se acerca do que lhe é mais caro, de pessoas de um sexo que não tem defesa,
um bandido, um insolente usasse da linguagem que usou em público, perante um
juiz, o indivíduo que foi acutilado pelo sr. Carlos Miguel de Lima?!”.’*Ao contrá­
rio, O Homem de Cor refutava o conteúdo e a própria existência desses documen­
tos, eprocurava denunciar a impunidade de crime injusto. Mais uma vez procura­
va afirmar sua identidade: “Criminoso seria o homem de cor, se na crise mais
aniscada, na ocasião em que os agentes do poder desembainham as espadas dando
profundos golpes na Constituição, na Liberdade, e em tudo que há de mais sagra­
do no enjeitado Brasil, guardasse mudo silêncio, filho da coação, ou do terror”.’*

Foram frequentes tais momentos de violência, sempre envolvendo di­


mensões políticas, hierárquicas, identitárias, mostrando que o discurso liberal
não era seguido à risca, como a Aurora involuntariamente nos faz perceber. O
Homem de Cor contrapunha à violência a “espada justiceira da opinião públi­
ca” O Evaristo fazia afirmação semelhante: “Pensará o sr. Lima que com a
sua faminta espada, impará silêncio à Liberdade de Imprensa?”.*’

Em 1833, também foi tema de grande agitação na Corte e na cena


periódica a prisão de Mauncio José de Lafuente, outro “escritor público”. Além
de detido na presiganga, foi ainda recrutado para a Marinha: “teve o infeliz
homem de cor a sorte de ser marinheiro, depois de ter sido cadete, e depois de
ter exposto sua vida era defesa da liberdade".**

No ano anterior, Lafuente já havia sido detido e submetido a processo


judicial pela acusação de ter se envolvido em um “motim e assuada” no largo
do Paço, onde se defendia a volta do gabinete de 3 de agosto, mesmo que para
isso fosse necessário ir o “povo às armas", e onde um impresso, contendo a
proclamação, afixado na porta do correio, foi o ponto de referência do movi­
mento. Sob a vista grossa do juiz de paz gritaram-se vivas ao próprio juiz, à
“memória da Câmara dos Deputados” e à “maioria do Senado”. Uma das teste-

53
munhas afirmou ter o impresso saído da Tipografia do Diário.*’ Essa referên­
cia ê importante, pois quando um impresso anônimo tivesse seu teor conside­
rado subversivo, o tipógrafo é que deveria indicar o autor ou ser responsabili­
zado pelo “abuso da liberdade de imprensa”.

Segundo O Homem de Cor, Lafuente teria a "pecha de ser mulato” -


algumas testemunhas do processo de 1832 também o haviam classificado como
pardo - e este seria, complementando a perseguição que sofreu por comparecer
ao funeral do redator do Brasil Aflito, sendo mesmo demitido de seu cargo no
Arsenal da Marinha, o "único motivo que deu origem à sua prisão, pois foi feita no
dia em que a Restauração apareceu tratando-o de bode, farroupilha etc.”. Nova­
mente aparecem os insultos: "bode”, “farroupilha”. Inadmissíveis também por­
que, como o redator faz questão de lembrar, Lafuente não só desfrutava do título
nobre de cadete, como era um bem-sucedido negociante na cidade. Esses atributos
devem ser vistos em conjunto, pois assim é que aparecem no texto do jornal.

O governo mantinha-se obstinado em "fazer guerra aos mtilaws", e


mesmo tendo "raça misturada” não desistia de "exterminar a gente de cor”.
Resta de alguma forma dar o devido peso a esse extermínio: a exclusão políti­
ca, corporificada nas eleições e nos “empregos públicos” .

Nas eleições tivemos o exemplo, não há um representante das


nossas cores, nos empregos públicos, e de ioda a parte nos exclu­
íram, e vós ó escravos, que mamando na tela de tais feras lhes
estais dando força, desenganai-vos pois os moderados não fazem
caso de vós por serdes mulatos, deixai de uma vez esse partido
infame, e antibrasileiro que vos julga menos que seus escravos, e
vinde de novo alistar-vos nas nossas exaltadas fileiras."

Este outro trecho levanta novamente a que.stão da diferença de cor e


dos princípios jurídicos afirmados na Constituição do Império, agora tratando
da atividade do recenseamento;

Não sabemos o motivo porque os brancos moderados nos hão


declarado guerra, há pouco lemos uma circular em que se decla­
ra que as listas dos cidadãos brasileiros devem conter a diferen-

54
J
ça de cor e islo enlre os homens livres! A Constituição tantas
ve/es desflorada pelos moderados, é hoje apenas letras de que
apreço nenhum fazem os liberais por excelência. Seria melhor
que tomassem o conselho do Homem de Cor. que não exaspe­
rassem os mulatos sempre amigos da Ici e da ordem, e se deixas­
sem de distinções que em verdade são fatalíssimas. mormente
quando a nação brasileira se acha dilacerada pelos partidos

Expressa-se aí a reação ao projeto de designar, nos cen,sos, a cor


dos cidadãos livres. Duas décadas depois, projeto semelhante gerou re­
voltas no Nordeste que adiaram por outras duas décadas o primeiro censo
geral do Império, e dificultaram o registro civil.^" O Homem de Cor, o
Mulaio, são acima de tudo livres, É importante esclarecer que o termo
escravo não é um dos que irão compor o campo semântico de “m ulato” ou
“homem de cor”. A escravidão não estava em questão. Mas antes, que no
grupo dos livres não houvesse distinções. O homem de cor definia-se a
partir de oposições. Contrário aos “brancos moderados”, mas aliado dos
“brancos não-moderados”. Não se confundia çom “escravos". Defende a
sua leitura dos princípios liberais da Constituição. E defende também o
prestígio militar. Envolvendo-se em diferentes disputas, perserutando pos­
síveis mudanças legais, ofícios, circulares, procurava seu lugar na cena
política.

A questão da participação de indivíduos que não fossem brancos


na Guarda Nacional, recorrente em outros periódicos como O Brasileiro
Pardo, abordado adiante, parece ser ainda nebulosa. Jeanne Berrance de
Castro afirma que, na primeira fase da instituição, que se estendería até
1850, houve uma “integração racial", e que inexistia qualquer preconceito
de cor. Contrapondo-se a essa análise, os três autores da obra A Guarda
Nacional no Rio de Janeiro afirmam que os libertos foram impedidos de
participar da milícia, bem como o preconceito de cor orientou o alista­
mento e a qualificação. Esse livro considera que a Guarda Nacional, fun­
damentalmente, teve a função de “delimitar a cidadania” ; participar da
milícia significava ser reconhecido como cidadão, processo complemen­
tar à exclusão de todos aqueles que ficariam sujeitos ao recrutamento for­
çado para outros corpos militares. A Guarda Nacional funcionaria como
reafirmação da hierarquização da sociedade.*’ A partir dessa interpreta­
ção, a questão da cor pode ser repensada. Talvez não tenha havido nem só

55
"integração" (perspeetiva que diluí os conflitos de identidade tão fortes
nesse momento), nem s6 ‘‘preconceito’’. Ainda que de forma tensa, nesses
anos iniciais do período regencial e da Guarda Nacional, encontra-se, como
os jornais indicam, a tentativa de participação dos autodesignados "cida­
dãos mulatos", íncluindo-se a possibilidade de participação dos libertos.''*

O Meia Cara fez uso do termo mulato para designar o correligionário


Maurfcio Lafuente, e no mesmo gesto indicar que mulato é o oposto de deso­
nesto: "Mas enfim Lafuente é mulato, e esses ladrões que têm roubado a nação
a maior parte são brancos, e pertencem ao partido dos liomens, que não sendo
de cacete e punhal, roubam sem piedade".^® O termo meia-cara, muito comum
nas comédias de Martins Pena, significava o escravo introduzido através de
contrabando, sem pagamento dos impostos devidos: neste duplo sentido da
ilegalidade e da identidade incompleta atua a ironia do título. Mais uma vez, a
escravidão aparece na forma de metáfora política.

AAurara Fluminense mantinha-se relativamente afastada dos signifi-


cantes de cor, seja como lermos de autodenominação, seja como qualificação
de aliados ou adversários. Talvez procurasse, com esse relativo silêncio, esca­
par àquela linguagem racial, embora isso fosse inevitável, como, por exemplo,
quando usava a expressão “periódico do Haiti’’™ para designar o Nova Luz
Brasileira (algo que este jornal, tido como dos mais importantes na difusão do
vocabulário liberal, recusa veementemente: ele não queria se confundir com a
"revolução do Haiti!” ). De toda forma, há contraste entre uma fala e um silên­
cio, atravessando as maneiras diferentes de se entender a nacionalidade. O
.silêncio nem por isso deixava de ser estratégico.

O Babosa prossegue no seu afã de que o espera colher bom re­


sultado [,.,J Quer ele provar no seu n* 2 que as razões das sau­
dades por d. Pedro, são os erros e crimes do atual governo. E
quais são estes erros e crimes? [...] a guerra fcila aos homens de
cor, vermelhos, pardos, pretos, e morenos. Muito se cansa o
Babosa, e todos os colegas da sua crença, para dar corpo a esta
miserável Intriga, e fazer sublevar contra o governo e contra a
ordem atual de coisas a gente de cor (...].
[,,.] felizmenie, no Brasil, sempre a tal respeito os prejuízos foram
muito mais apagados do que no resto da America, e nunca ouvimos
apontar o sr V, dc Cayru, como saindo fora das idéias comuns,'’'

5o
Analisando o pensamenio liberal reformista do período que se es­
tende entre 1827 e 1837, Thomas Flory nota a mesma atitude de negação
por parte de Evaristo da Veiga a respeito do “descontentamento de grupos
livres de cor” . Segundo Flory, os liberais procuravam criar uma visão de
coesão social; “Reconhecendo seu ponto mais fraco, a imprensa liberal
fez um débil intento para convencer seus leitores (ou a si mesma) de que
os grupos racialmente ‘impuros’ compartilhavam os interesses sociais co­
muns de um Brasil basicamente harmonioso”. Essa “intriga de cores” era
também designada como “haitianismo” pelos liberais moderados. Aquele
autor, embora não tenha aprofundado a investigação sobre os jornais por
ele apenas citados, como O Mulato ou O Brasileiro Pardo, chama a aten­
ção para um “vocabulário simbólico” expresso nestas disputas sobre a raça:
“Grande parte destas discussões sobre raça podiam ser vistas mais exala-
mente como parte de um vocabulário simbólico em que se debatia a ques­
tão mais geral das classes”.’^

Acredito que se tratou mesmo de um vocabulário simbólico, mas que


teve uma especificidade maior do que Thomas Flory percebeu.

Um dentre os vários periódicos com o título Sentinela da Liberdade reba­


tia as acusações de “rusguentos, fuscos, mal vestidos, homens de faca na manga,
anarquistas, farroupilhas” dirigidas aos “patriotas de boa-fé, os que queriam mu­
danças de coisas, e não só de pessoas, os exaltados enfim”. As acusações teriam
sido publicadas na Aurora Fluminense, bem como a de procurarem seus inimigos
construir uma “república de tanga e alfanje”.” Embora a defesa da identidade
política dos mulatos persista, o argumento do redator se baseará na concepção de
que não há uma diferença essencial na cor em si. A igualdade entre os cidadãos
baseia-se no fato de que a cor seria um “acidente”, ou, textualmente, um "simples
acidente da cor”. O viés da diferença é, portanto, mais uma vez, político.

O Jornal, após a curiosa notícia de que Evaristo da Veiga, depois do


atentado que sofrerá, teria se filiado a uma ordem religiosa de “mulatos”,
procurando angariar sua simpatia política, mas podendo contar apenas com
“um ou outro mulato tolo”,” arrisca teorias sobre o tema. Para ele, não havería
grande distinção entre ser ou não mulato, ainda que isso pareça contraditório.
Parece que a palavra poderia servir para desqualificar quem é “mulato” ou
"pardo” —como no caso do redator do Independente, constantemente comba­
tido pelo Sentinela, e que usaria o termo como desqualificativo contra o “ve­
nerável ancião Barata" - ou para qualificar uma posição política. O trecho é

L 37
de “estilo emaranhado”/* e apresenta mais uma variação das figuras raciais;
cruzador. Nascer mulato seria um ivisie acidente.

Eis aqui ü alimento da Aurora! O jcsuilismo, a hipocrisia e a


intriga,., onde achou cia, que o Sentinela assf?pta a discórdia?
Em chamar miilaio ao redator do Independente? E não somos
nós também mulato? Na nossa Sentinela n. 4 tivemos de nos
admirar, que o redator do Independente sendo pardo insultasse
ao venerando Barata chamando-o cruzadar, e se isso é assoprar a
discórdia, então queixe-se do seu discípulo filho do cruzador P. A.,
que se cruzador não fora. certamente não angararia [sic] o redator
do Independente tal qual ele c. isto quer dizer mitlaro:, o que não é
dito por irrisão, por nos competir igual sorte, do que se não nos
pejamos, porque não é uma má qualidade do espírito, e nem fomos
consultados antes; porquanto então sc podia lançar cm rosto o não
termos escolhido melhor cor, e mesmo formosura mais atrativa, com
que mais facilmente simpatizaria a Aurora como donzela loura.’’

Dependendo do argumento, portanto, o termo mulato poderia ter ora


um sentido, ora outro, oposto. Se aqui aparece como acidente infeliz, se em
geral o Seniinela repete o artigo constitucional afirmando a única diferença de
“talentos e virtudes” entre os cidadãos, o mulato também aparece como perso­
nagem vitorioso na história da nova nação. E qual o espaço ocupado por esse
personagem? O espaço da atuação militar, inicialmente como soldados do 4“
Batalhão, todo composto por homens de cor. Esse batalhão foi o que defendeu
o imperador, diante da infidelidade possível dos primeiros regimentos. Seriam
soldados bravos, fortes, honrados, acima de suspeitas, que “fizeram pois a
guerra da Independência, libertaram sua pátria na esperança que restituídos
aos foros de homens, pudessem pretender mais alguma coisa, que não fosse
mestre alfaiate, carpinteiro ou pedreiro” .A p ó s a Independência, podendo ser
nomeados oficiais, a opção da carreira militar parecia ser o caminho de uma
participação ativa, de um reconhecimento social. A carreira militar, bem como
a Igreja e a burocracia civil, era ainda a opção de prestígio em um momento
que parecia apontar, ao contrário, para os novos princípios liberais. Os lugares
da tradição eram deslocados, ou eram reocupados. O acesso aos cargos milita­
res, aos “empregos” (públicos) e a categorias de nobreza associadas, consti­
tuía para o redator o acesso à identidade, e mesmo à humanidade. Após 1822,

58
“viu-se pela primeira vez uma promoção de mulatos, para oficiais de linha
[...); nomearam-se presidentes, e secretários mulatos: foram dignitários, ofi­
ciais e cavaleiros da nova ordem do Cruzeiro, c de outras assim o mulato
teve de crer. que já era homem".

A história posterior leria. entretanto, começado a vetar esse caminho


aos mulatos, sobretudo após o “trinta de julho”, em que os antigos “bons sol­
dados” passaram a ser considerados “caramurus”."'*

O discurso ora define linhas demarcadoras do ser mulato, ora as apa­


ga. A Ordem da Conceição e Boa Morte parece não ter gostado das referências
feitas pelo Sentinela (de que seria uma “ordem de mulatos”) e com ou sem
intenção planejada achou um advogado no Jornal do Comércio que procurou
tirar a limpo o que foi considerado ofensa, publicando que um processo seria
aberto. Defende-se o Sentinela recorrendo à ciência (que aliás mesmo em situa­
ções menos urgentes era por ele prezada);

Porém para acalmar esta cólera, em que ficaram, é preciso que


esses srs. se convençam, primeiramenie (como já dissemos), que
somos - mulato -, c que isso não é coisa indigna, nem infame; e
em segundo lugar, que saibam que a palavra - Mulato - Mttllalus -
derivada de niulus tem sido empregada pelos naturalistas para
designar os indivíduos da espécie humana, gerados de uma raça
branca, ou européia, com outra dos prelos.

Afirma ainda que a palavra “pardo” não teria o mesmo efeito escanda­
loso, e que, em compensação, não “tem nenhum sentido, e não designa coisa
alguma com precisão". Neste trecho também bastante emaranhado, surge um
matiz novo, trigueiro:

Se se toma que é injúria dizcr-sc que F. é mulato, por que não


seria igualmente injúria dizer-se que B. c branco? A palavra pardo
não designa senão que se é trigueiro, c pode então acontecer
que um branco trigueiro seja pardo, como um mulato alvo seja
branco sem que com isso ele deixe de ser mulato, assim como o
outro deixe de ser branco, ainda que trigueiro.*'

Uà 59
Essas afirmações um tanto confusas, emaranhadas, de alguma forma
advogavam pela incerteza racial, pela mobilidade das definições, pela gradua­
ção, mais que pela essencialização. O Sentinela, procurando fazer com que a
gente mulata fosse “lembrada” após o 7 de Abril, contestava a afirmação da
Aurora de que haveria representantes dos “homens de cor” no Colégio Eleito­
ral, no Júri, na Magistratura e no Clero. Não se encontrariam nessas funções
senão três nomes textualmente citados.*’ Mais uma vez defende a Constitui­
ção: “no Brasil não há brancos, nem mulatos, há cidadãos brasileiros, ingênu­
os ou libertos!! Esta é a frase da Constituição; e é a Constituição de fato que
quer o Sentinela” .** A Carta “não trata de cores”, e por isso deve ser extinta a
“jerarquia fsic]e aristocracia de cores”. Afinal, os mulatos são “cidadãos reco­
nhecidos”, que vivem empenhados em “conservar a boa ordem” entre “ho­
mens igualmente filhos de Deus, e todos cristãos”.*'*

Nesse periódico nota-se, enfim, que a noção de mulato passa não só


por um preenchimento, mas por uma série de restrições. O mulato imaginado é
liberal, cristão, amigo da ordem, pode ser militar ou ter uma função pública e,
assim como na concepção do jornal O Homem de Cor, não se confunde com
escravos. Por um lado, parece apenas um acidente. Por outro, é personagem da
história da liberdade da pátria. A noção retira seu sentido de certo Jogo de
declarações sobre si e sobre o outro, e envolve inúmeras variáveis além da
identidade de nascimento. Participar da política do período regencial envolvia
construir essas identidades distintas. A palavra mulato, longe de ser apenas um
atributo natural, tinha uma direção, era uma interpelação.

Outra das querelas que atravessou a imprensa consistiu na memória e


desdobramento do 7 de abril de 1831, adjetivado de “gloriosa revolução”, ou
“revolução regeneradora".** Entre os exaltados a data era encarada como o
grande malogro a que foram submetidos pelos liberais moderados, cm virtude
da falsa aliança, das falsas promessas de mudança que agora levavam a reivin­
dicações específicas como a obtenção dos “empregos nacionais”, que a parti­
cipação da Guarda Nacional não operasse distinções entre livres por nasci­
mento e libertos - que além de significar o estatuto simbólico e político de
cidadão liberava do recrutamento obrigatório para os outros corpos militares e
policiais - e também propostas mais amplas como a federação enquanto prin­
cípio de organização política. Mas nesse mesmo movimento, criticava-se o
discurso liberal moderado sobre a nacionalidade e a identidade. Segundo al­
guns representantes dessa proposta, a “união das raças” para derrotar os “ini­
migos do Brasil” poderia ser matéria de questionamento, mais do que uma

60
bundeíra a ser levantada eom obediência. Isto é, o discurso antilusitano dos
moderados era visto como falso e ilusório. Assim escrevia O Brasileiro Pardo'.

0$ tais patriotas, daqueles tempos, gritavam contra os adotivos


em todos os seus discursos, gazetas, conversações; e eu, pobre
patinho, ia caindo no logro, e à semelhança do carneiro, seguia a
direção dos então pastores: amigo dg meu país, extremoso pelos
princípios livres, e zeloso por o que eles então chamavam nacio­
nalidade, já aborrecia os adotivos, e ainda que não fosse acostu­
mado a chamar ninguém por alcunhas, contudo em vendo um ado­
tivo quase que já estava na minha mão o deixar de o chamar —
marola, marinheiro, chumbo etc. - vieram as garrafadas. e eu R-
quei doido de todo! O Melo M iranda, o Guerra, o Areias, e outros
que tais que. segundo a fama, então se dislinguiram, se eu os hou­
vesse pilhado, não sei o que teria feito: os nossos Evaristos grita­
ram-nos em gazetas —sangue pede sangue - o caboclinho Repúr
blico berrava - mata chumbo —numa palavra, para encurtarmos
razões, que todos sabem, a tal coisa de chumbo, maroto e m ari­
nheiro, levou as coisas ao ponto de d, Pedro abdicar.**

0 jornal zombava da imagem de união nacional e fazia isso ao temati-


zar o preconceito racial, bem como a relação entre critério social e critério de
cor, O título desse pasquim pode servir a algumas questões, A noção de brasi­
leiro era noção em construção, que precisava ser defendida. No caso de O
Brasileiro Pardo, o primeiro termo não se ligava por exemplo à defesa do
Estado-Nação e às noções de território, soberania, unidade, na medida em que
se admitia outras formas de ser brasileiro; “brasileiros adotivos”, “brasileiros
natos”, “brasileiros brancos”. O segundo atributo do título, pardo, talvez seja
a mais interessante expressão ligada à identidade. Em primeiro lugar, porque é
indefinível de forma fixa e acabada, do mesmo modo que é impossível tentar
atribuir significados precisos e compartilhados, constantes a termos como ca­
bra, caboclo, curiboca, mulato. Um dos sentidos que a palavra pardo adquiriu
décadas mais tarde*’ foi o da união das “três raças”, o resultado homogêneo, a
síntese, o amálgama, Não é esse o sentido do título do pasquim, pois o Jornal
não quer a “união das raças”, mas sim uma união explicitamente política entre
vários brasileiros que permanecem com seus atributos de especificidade (ado­
tivos. natos, brancos, pardos) contra as orientações moderadas.

61
A abundância das designações, das formas de ideniificação, compõe
uma linguagem racial na apresentação das disputas políticas. Porém, não pare­
cia referir-se a uma pura ou evidente identidade étnica natural. O Cabrito fala­
va em “brasileiros mulatos”, “cabrito vosso patrício”, “malvados chumbeiros”;
O Brasileiro Pardo, em “homens de minha classe”, “homens de minha cor",
“gente da classe média”, “nós, os pardos”. Há uma espécie de jogo de xinga-
mentos e atribuições de identidades. Tratando de contexto diferente —Salva­
dor na década anterior —. João José Reis comenta a guerra de símbolos entre
setores da população, e os in.sultos de “cabras” e “caiados”:

Na troca de insultos, frequentemente se lançava mão da lingua­


gem racial como dispositivo de combate, Para os portugueses,
todos os baianos eram cabras ‘indignos da Costa da África’,
Conforme qiicixava-se o ofendido branco baiano Bento de França,
filho do deputado às cortes, senhor de engenho e marechal de
campo Luís Paulino. 'Cabra' significava, no vocabulário racial
da época, alguém de pele mais escura que um mulato e mais
clara que um negro. Brancos reais, brancos sem dúvida, só eles
portugueses. Talvez por isso os manifestantes baianos os cha­
massem de 'caiados', gente exageradamente branca como a cal.
Ser branco demais virava assim um estigma no discurso patrió­
tico popular, e 'caiado' seria, mesmo após a Independência, o
insulto racial predileto de negros contra brancos.**

Disputas em torno do uso autêntico das identidades aparecem no Jor­


nal O Crioulinho. Este apresentava-se como contestador de uma folha chama­
da O Crioulo (provavelmente fictícia), que a princípio teria causado grande
esperança, pois parecia algo contrário aos “escribas brancos, que se dizem
redatores das Auroras, Correios Oficiais, Verdade, e de todos os outros pape-
lários e papelicos da moderação jacobina, fazendo ver ao público, que entre
crioulos há também quem saiba pensar, e ajuizar [...]”.

No entanto, o autor foi tomado de desgosto, vendo no jornal o ataque à


“honra e probidade dos beneméritos cidadãos, sem escapar-lhes o nosso jovem
imperador”. Percebe-se aí que era possível combater o discurso “oficial" e a “mo­
deração” sem transcender os limites dos “beneméritos cidadãos” e mantendo-se a
adesão à Monarquia. Segundo O Crioulinho, O Crioulo teria como objetivo apenas

f>2
aproximar-se dos “homens de cor, enquanto se persuadirem, que dali se possa tirar
partido em proveito chimangal", da mesma forma como fizeram no “7 de abril”:

[...] se assim não fora, os moderados da época, ou chimangos.


imediatamente depois de 7 de abril, não designariam patriotas
de faca, e cacete aqueles mesmos sujeitos, a quem dantes os li­
berais por excelência, ou libcralões (trata-se dos corifeus. e não
dos iludidos) convidavam para se unirem às suas fileiras, cora o
prazenteiro nome dc Irmãos, e cidadãos dignos de tudo, e por
tudo; dizendo c protestando que marchavam firmemente a fran­
quear-lhes a entrada para os primeiros empregos nacionais: e
por último em ajuste dc contas babau... nunca mais apareceu um
emprego para um crioulo, e nem um crioulo para ura emprego.”

A controvérsia iniciada por O Crioulinho era bastante comum nos de­


bates impressos, Não foi verificada a existência de O Crioulo, o que indica
uma zombaria dupla, provavelmente procurando atingir um outro título. Atitude
semelhante, como vimos, foi a resposta ridícula que teve a folha O Filho da
Terra: alguns dias depois de seu lançamento, publicou-se O Veterano, ou o Pai
do Filho da Terra, escarnecendo sua identidade, sua origem social e racial, sua
descabida pretensão de ser “escritor público”.™

A mesma articulação entre a obtenção dos cargos ou empregos pú­


blicos e a suposta autêntica identidade que combateria um fingimento é
tematizada por O Cabrito. Esse periódico dedicou-se ciosamente a outra
das datas que devem ser memoradas: as noites de meados de março de 1831.

Brasileiros mulatos, um cabrito vosso patrício é quem vos vai


falar; não é um filho dc cacheu, que se finge pardo para vos
iludir; é ura cabrito que hoje ainda tem manchas no corpo rece­
bidas nas ruas da Quitanda. Pescadores. Rosário etc. etc.: é um
cabrito que não é moderado, e que não se unirá a eles enquanto
forem protetores dos malvados chumbeiros; é um cabrito, que
ainda conserva era memória as expressões de que se serviram os
insolentes garrafislas de março na sua exposição dos aconteci­
mentos de 11 a 15 de março de 1831. e que vai transcrever nesta

63
folha alguns pedaços da mesma exposição, para lembrá-las a
alguns que já se tiverem esquecido.”

A construção política da identidade articulada por O Indígena do


Brasil operava uma articulação entre o combate à restauração, a disputa
pelos postos militares, a campanha pela destituição de José Bonifácio como
tutor de d. Pedro II e os interesses de comerciantes:

Existem já alistados em diversos batalhões 6 a 8 mil papeletas,


e fazem parcialmenie o manejo e exercício, para se apresenta­
rem no dia marcado do rompimento [e] assassinarem os brasi­
leiros liberais, defenderem o comércio e ladroeira dos seus pa­
trícios de meia cara, e rodearem com baionetas estrangeiras o
Augusto, e imortal Pedro 1” fundador da imoralidade [...] mui­
tos negociantes têm vendido suas mercadorias com o trato de
pagar-se-lhes quando d. Pedro reassumir a coroa brasileira.’-

Combater esses males seria o dever dos “exaltados” em nome dos


verdadeiros “brasileiros” ;

Os moderados não deixam de nos chamar ã união, isto é, que­


rem que abandonemos nossos princípios, e passemos a ser mo­
derados, como remédio para obstar a restauração de um L... ao
trono brasileiro: nós combinaremos na união uma vez que se
acabem os motivos da nossa divisão, isto é, quando os chumbos
largarem as armas que só pertencem aos brasileiros natos; quan­
do forem castigados aqueles que insultaram a nação brasileira
em março de 3 I; quando os empregos ocupados por caramurus e
por brasileiros de meia cara forem ocupados pelos patriotas do
dia sete de abril; quando o Conselho Supremo Militar composto
de sevandijas for composto somente dos militares amigos da li­
berdade; quando forem processados os infames traidores minis­
tros do sultão Bergantino, e seu Conselho d’Estado, quando não
virmos um Paranaguá, desonra do nome brasileiro, presidindo a
Assembléia Geral: quando o governo tiver a mesma energia com

64
os caramurus, que leve, e lem com os exaltados, contem com
eles l—]. Contudo fazei justiça aos verdadeiros exaltados: ficai
certos, que, quando esse príncipe galego vier às nossas praias,
os exaltados formando ura corpo separado, mostrarão que sa­
bem baier-se cm defesa da pátria e da liberdade, e preferem
morrer livres a ser escravo d’um lusitano.

O teor geral dessas palavras é repetido em inúmeras variações na docu­


mentação examinada. Outras implicações da disputa em torno da nacionalidade
diziam respeito à lei de naluralização.*^ No tredio abaixo, apresentado como cor­
respondência de um leitor, o vocábulo “mulatinho” serve a dois usos opostos: um,
que se atribui ao senadorAlencar, dedesqualificaçãoda nacionalidade, ou de uma
nacional idade incompleta, mal associada à característica de mulatinha; o outro, de
afirmação da nacionalidade, não da própria mulatinha, mas de seu irmão, cunha­
do, sobrinho etc. A construção da nacionalidade supunha a especificidade em rela­
ção ao tratamento legal dado ã diferença racial, por oposição ao que acontecia nos
Estados Unidos, onde se excluíam os "mulatinhos” de forma explícita. Mais uma
vez, os princípios liberais dos “talentos e virtudes” são defendidos.

Na discussão da Lei de Naturalização de Estrangeiros no Senado,


o sr. Alencar combateu para que ela não fosse avante, servindo-
se para isso de grandes argumentos, entre os quais ela foi que
qualquer estrangeiro casando com um a m ulatinha era im edia­
tam ente cidadão brasileiro! Por ventura o mulatinho. irmão da
mulatinha, não é cidadão brasileiro pela nossa Constituição? E
sendo assim, que dúvida tem S. Mee. que os sobrinhos, e o cu­
nhado desse mulatinho também o sejam? Será porque a Consti­
tuição da República dos Estados Unidos, que aliás tanto se nOs
mele a cara, exclui os m ulatinhos dos direitos políticos? Ora
pois: 0 ex-imperador era tirano, queria suplantar os direitos do homem
& & &. e deu-nos essa Constituição, que nenhuma diferença faz senão
dos talentos, e virtudes e □ sr. Alencar liberal por excelência, quer que
os mulatinhos nada valliam na sociedade, e que até passe o ridículo,
que S. Mee, lhes aupôe |siej, a quem com eles casarem!! 1...
Sou, sr. redator, seu atento venerador.
Um mulatinho muito amigo da Constituição, que o põe ao nível do sr.
Alencar, sem nenhuma outra diferença mais que talentos e virtudes.’*

k. 65
A defesa dos direitos dos ‘‘mulatinhos”, porém, parece servir a dois
intuitos. De um lado, o trecho traz a defesa dos “talentos e virtudes”, e de
outro ironiza a frase do senador, e defende a lei de naturalização.

Associava-se em estilo zombeteiro e difamador figuras públicas à pro­


ximidade com a “negraria" ou com “pretos". O Evaristo o faz em relação ao
jornal Sete de Abril e a Bernardo Pereira de Vasconcelos, um de seus redato­
res; “Avisa-se a todas as quitandeiras e quanta negraria existe, que encontrarão
no ‘7’ de Abril [periódico] um acérrimo defensor, as suas páginas não são só
oferecidas ao José Calabar, mas a algum pretinho da Costa de Guiné, que se
preparem a sustentar a moderação, e o 30 de Julho”.”'’ Tal proximidade seria
suspeita. No mesmo número, gozava o redator;

Está doido. Qual doido nem pcra doido. Outro dia o sr. Vasconcelos
dando o seu passeio a pé por não ter sege, porque desgraçadamenie
é um dos homens que entrou pobre para ministro da Fazenda, e saiu
pobríssimo, c como o sr. Vasconcelos é achacado de moléstia nas
pernas (o que tem causado não pequeno número de lágrimas aos
homens de bem longe) e anda tropicando, vinha por acaso atrás do
dito sr. um preto tocando rebeca Moçambique, pois logo o sr. má
língua disse que o sr. Vasconcelos vinha da floresta,’* e que todos
os dias ia a este lugar aprender a dançar a contradança da valsa
tirada da marcha do rei da França com o mestre Lucas. Ah! bom
Feijó, que só tu és capaz de acabar com esta corja.”

A desqualificação dos membros do governo regencial era correlata,


nesse periódico, à defesa da “honrosa classe militar", a única garantia da inde­
pendência e verdadeira arma contra os “governos absolutos”.”*

Tal como é definido por Roland Barlhes, o conceito mítico é uma “con­
densação informal, instável, nebulosa, cuja unidade c coerência provêm sobre­
tudo da sua função’’.”” Ao operar a aproximação entre tal conceito e os usos
encontrados nas polêmicas da imprensa, não se espera esvaziar seu significado,
mas sim singularizar formas de representação da política que parecem ter se
perdido com o avançar da década de 1830, e as exclusões no acesso ao título de
cidadão no processo de consolidação do Estado imperial. Barthes afirma ainda:
“O mito não esconde nada e nada ostenta também; deforma; o mito não é nem

66
uma mentira nem uma confissão; é uma innexão".“* Outros mitos sucederam-
se, passando a privilegiar, na nacionalidade, as formas de homogeneidade e uni­
dade, em detrimento da reflexão sobre as diferenças e clivagens sociais.

A platéia mal comportada

"Todo mulato esfarrapado imaginava que era príncipe, porque a


seu ver o nobiliiava o 'eu sou brasileiro verdadeiro’ que pro­
nunciava com orgulho".'®'

O ponto de vista de um estrangeiro, militar alemão, mercenário, com­


plementa os usos das definições raciais, bem como sua teatralização. Segun­
do a imagem formada por Carl Seidler, os mulatos —termo que aplica de
forma bastante generosa —tiveram sua emergência política propiciada pela
abdicação de Pedro 1, Parece-nos que para Seidler o termo não serviu apenas
para designar uma característica física negativa, ou um certo grupo social,
mas funciona como uma espécie de conceito, por meio do qual o militar ale­
mão construiu a inteligibilidade dos acontecimentos históricos em que se viu
envolvido. Isso é o que pode explicar a abrangência dos temas que ele clas­
sifica como próprios de uma identidade mulata. Do ponto de vista de um
alemão, exterior, era mais fácil interpretar todas aquelas disputas através de
uma homogeneização.

Os membros da Câmara dos Deputados apareciam-lhe quase todos


como “mulatos, gente da mais baixa plebe, verdadeiro fermento dum povo
radicalmente viciado, que por excessos de toda espécie requestavam o aplauso
de seus patrícios da mesma cor”, pois imaginavam-se desprezados pelos bran­
cos. O destino das votações manchava-se com tal aberração da natureza, não
havendo meio adequado de atuar na Câmara, pois estes mulatos como “maus
atores teatrais" apenas grilavam, uma vez que careciam de “espírito". Seidler,
que detestava ter sido demitido do seu cargo de militar, após ver dissipado seu
sonho de uma vida tranquila na corte de Pedro I, exclamava; “Que mais se
poderá dizer da nação que se faz representar por semelhante gente?”.

Além da Câmara de Deputados, a decadência alcançaria o teatro,


divertimento prezado por Seidler no tempo do rei, quando havia bailados

67
e óperas italianas, companhias contratadas em Paris e representações clás­
sicas. Como acontecia aos militares estrangeiros, os atores, cantores, dan­
çarinos estavam sendo demitidos e substituídos por “atores nacionais, em
geral mulatos" que “infelizmenle colhiam patriótico aplauso". Compunha-
se um “drama popular” em que “predominavam completamente os mulatos;
arranjavam, como melhor podiam, alguns dramas modernos, traduziam hor­
rivelmente as novidades estrangeiras, e nunca esqueciam de condimentar
exageradamente esse mingau dramático com as mais ridículas alusões aos
funestos dias de abril, qual pimenta malagueta, tornando o prato totalmente
intragável para paladar europeu” . D e s s a forma, o teatro foi tomado (as­
sim como as ruas) pelos assuntos políticos, e pela própria política.

Na sentença de Seidier —“O teatro imperial tornou-se o teatro do


novo drama nacional" a oposição entre imperial e nacional é cheia de
significados. O “teatro imperial” era para ele (e para outros) não só o nome
da sala de espetáculos, mas uma certa forma de representar, frequentada
por um certo público, onde os laços com a Europa seriam rememorados,
ou pretensamente vividos. Era o teatro do Império, de uma certa hierar­
quia social, de um conjunto de valores, dentre os quais a honra de ter sido
reconhecido como partícipe daquela corte. Cora a destruição de sua essên­
cia, emergia o “drama nacional”, “drama popular” ou mais especificamen­
te “drama popular m ulato", cuja característica que mais parece desgostar
era o fato de todos terem se tomado atores, todos participarem dele, no
palco ou nos bastidores.

Aliás, o próprio nome do estabelecimento foi modificado: o teatro


passou a ser designado como Teatro Constitucional Fluminense. Seria in­
teressante ter acesso a essas peças representadas então; infelizmente dis­
pomos apenas de alguns prováveis títulos como O príncipe amante da li­
berdade ou a independência da Escócia e O chapéu de palha, representa­
das por João Caetano nesse e em outros teatros naqueles anos.'®^ Especifi­
camente no momento da mudança de denominação e de ocupação do Tea­
tro do Largo do Rocio, apresentou-se o drama O dia de júbilo para os
amantes da liberdade ou a queda do tirano, de Camilo José do Rosário
Guedes."** Vilma Sant'A nna Arêas traz informações mais próximas ao cli­
ma da época, afirmando que a mudança de nome foi feita sob a pressão de
grupos “exaltados” que invadiram e depredaram o teatro.

Carl Seidler continua seu relato:

ÕS
desde que o ícatro assumira carâier político, os espectadores
não estavam seguros da vida. O povo tinha sacudido os grilhões,
como um urso dançarino escapa a seu guia; sofrerá fome e sede,
pois na sua selvageria domada não sabia aiimentar-se por si mes­
mo; procurava novo senhor, melhor, mas não podia decidir-se na
escolha. O teatro imperial tomou-se o teatro do novo drama nacio­
nal. Toda geme participava na representação, no palco, atrás dos
bastidores, na platéia, nos camarotes, nas galerias; na tola loucu­
ra do entusiasmo da hora todos se supunham artistas natos.""

A representação parece que tinha saído dos limites em que deveria ser
contida, perdendo sua marca. A insegurança alcançava um momento delicado
no episódio conhecido como “tiros no teatro*’, que ocorreu em 2S de setembro
de 1831.''” Esse episódio foi cuidadosamente rememorado pela imprensa, tan­
to lamentando os mártires, como atacando o "Saturnino Olerê”, ou Saturnino
Oliveira, juiz de paz responsável pela “matança do teatro". Já segundo a A«ro-
ra Fluminense, tudo foi tramado pelos ‘^agentes, ou soldados da Nova Luz, e
do Jurujuba. Estes apenas reúnem qualquer pequena força, saem logo com o
negro braço assassino”. O acontecimento é assim narrado por Seidler;

Anunciara-se novo drama popular mulato. Isso não me haveria


atraído, mas Madem. Ricardína [sic], depois de longa ausência, ia
novamente dançar. Acabara-se o fandango; eu ia sair para tomar ar
e refrescar meu sangue tumultuante, mas não pude abrir caminho
no aperto da massa jubilante. Fui forçado a assistir à horrível peça
crioula. Confesso com franqueza adormecí docemente e meus pen­
samentos dançavam o fandango dos sonhos. Súbito desperto aos
gritos de: ‘Viva a República!’ E cem vozes repetiam: ‘A Repú­
blica! A República!' Era um eco muito significativo, mas que mais
tarde os fatos desmentiram. ‘Viva d. Pedro II!’ reboava do lado
esquerdo a resposta dos peralvilhos, os gritos das moçoilas. ‘Viva
d. Pedro H' era o brado dos camarotes e da platéia.

A confusão que já se formava precipitou-se quando o juiz de paz pro­


curou silenciar esses vivas, e um jovem animado respondeu de forma original:
“exibiu de suspensórios arriados e indecentemente aquilo que aqui não posso

69
exibir e o comentou com breve monólogo”. O juiz procurou impedir que as
pessoas deixassem o recinto, para prender os “desordeiros”, no entanto os sol­
dados, ao chegar às portas, foram alvo de tiros da platéia, “e a multidão furiosa
avançou sobre eles como a maré tempestuosa”. Segundo Seidier, o juiz de paz,
desgastado, ordenou que se atirasse contra a multidão, o que resultou em “mais
de trinta mortos e feridos”. Dentre estes, o único lamentado por Seidler é um
negociante suíço “a quem com certeza era sumamente indiferente que o Brasil
fosse república ou monarquia" e que provavelmente “depois de afinal curado
[...] nunca mais ele foi ao teatro no Rio de Janeiro”.'®

Passava-se, assim, a uma representação confusa, infame, desde a Câ­


mara até o Teatro. O mulato politizado é uma aberração, que só poderia acon­
tecer numa terra como o Brasil. Seidler, usando seu próprio conceito, tinha
nos “mulatos” seus adversários diretos, como aqueles que iriam substituir as
tropas estrangeiras por forças militares nacionalizadas. Em contraste, logo após
a abdicação, vemos, no Nova Luz. o teatro repleto de “patriotas”:

Na representação teatral de sexta-feira esteve tudo ótimo [...] a


platéia estava toda cheia de bravos defensores da pátria, e pos­
suída do mais vivo, c decente entusiasmo. Tudo esteve tão óti­
mo que até a canalha da cascadura-verde-negra-recamada que
aluga os camarotes da ordem chamada nobre, e também os no­
turnos camarotes da Gávea, envergonhados, não tiveram ânimo
de comparecer com sua presença a uma tão brilhante reunião de
figurinhas patriotas.’"’

Outros trechos complementam a avaliação de Seidler sobre as caracte­


rísticas da nação naquele contexto, e sua provável desilusão diante das ima­
gens do Brasil como lugar de natureza generosa.'"

No Brasil o negro verdadeiramente não é melhor que um irracional


e não se deve iraiá-lo como homem, por mais que semelhante afir­
mativa pareça inumana.”’

Os mulatos jd são de nascença apenas obra de remendo da natu»


reza. por isso são peritos remendões.”’

7(1
o Brasil é a icrra malriz da natureza e do mundo das fadas, terra
da fantasia e da insensatez, da anarquia, da especulação, terra
de macacos, frades e mulatos, o Estado imperial de um arlequim
de traje multicor, que com a sua vara de condão transforma ouro
em papel, pão em pedra, homens era animais, e que na velha
pantomina ‘Juca. o macaco brasileiro’ mostra sua ascendência
sobre súditos quadrúpedes.'*^

Uma disputa de símbolos; a noite das garrafados

Os conditos que tiveram como cenário algumas áreas do centro da


cidade do Rio, entre 11 e 15 de março de 1831, conhecidos como “noite das
garrafadas", compõem um momento privilegiado para se perceber a relação
travada entre disputa política e os mecanismos de construção e atribuição de

l identidades. Houve muitas pessoas feridas, mas o episódio não se reduziu a


meras agressões físicas, demonstrações de força e tumultos e desordens, tal
como foi apresentado pela documentação policial."* Até porque houve mo­
mentos que mais lembravam uma festa: havia bandas de música, movimenta­
ção pelas ruas da cidade, empolgação e fogueiras. Foram utilizadas ou brandi­
das armas mais ou menos perigosas como chuços, pedaços de pau. armas de
fogo. fundos de garrafa; mas talvez o que decidia de fato a briga eram os gritos
de viva dados ao imperador Pedro I pelos “portugueses” ou à “República”, à
“Federação” e ao “imperador, enquanto constitucional” pelos “brasileiros”.
Mesclava-se a legalidade à inversão, a ponto de mesmo a polícia confundir-se
sobre os que mereciam ser capturados e de oficiais militares serem os mais
predispostos aos ataques. Antecedendo em algumas semanas a abdicação do
imperador, a 7 de abril, as “garrafadas” foram um êxtase de identidades, em
1
que a nacionalidade de portugueses e brasileiros envolvia fatores mais com­
plexos que o lugar de nascimento, e ali apareceram contingentes sociais exclu­
ídos da participação política no sentido estrito.""

Tudo aconteceu por ocasião do retorno à cidade de d. Pedro I, que


vinha da província de Minas Gerais, onde, infrutiferamente, fora buscar
apoio político para seu já combalido governo. Aliás, lá encontrara antes a
memória revoltada do assassinato do jornalista Libero Badaró no ano an­
terior. No Rio. alguns grupos de “portugueses” e “brasileiros adotivos”
decidiram homenageá-lo. usando a tradicional fogueira, fogos de artifí-

71
cio, cantoria e iluminação das casas. Era costume antigo da cultura portu­
guesa grupos se reunirem em torno da viola e da fogueira; competidores
que conseguissem destruir tanto um como outro enchiam-se de orgulho.’*^
Pois bem, aqui uns procuravam destruir fogueiras alheias, enquanto tentavam
gritar mais alto seu próprio viva.

Segundo narra John Armitage, em 11 de março “uma porção de


mancebos pertencentes ao partido exaltado, reunidos a outra de oficiais
militares (pois que a desafeição geral se havia comunicado até ao próprio
Exército), percorreram as ruas dando vivas à Constituição, à Assembléia
Geral, ao imperador enquanto constitucional etc.","* Assim o faziam, exa­
tamente para provocar aqueles que se reuniam em torno das fogueiras.
Nessa mesma noite, um sapateiro chamado José Antônio, que portava o
laço nacional, de cor verde e amarela, distintivo da Independência, e que
estava sendo orgulhosamente portado por muitos na cidade, passava acom­
panhado de “duas pardas” pela rua da Quitanda, local de concentração dos
portugueses e de “gente empregada no com ércio”, quando estes o interpe­
laram e ofenderam, ordenando-lhe que tirasse o laço e dirigindo ao grupo
vários insultos.

Os acontecimentos mais graves aconteceram no dia 13. Acompa­


nhando o relato da autoridade policial, pode-se perceber como em dife­
rentes pontos da cidade os conflitos ocorreram, havendo dois “campos”
distintos, um na área próxima à rua da Quitanda e outro no Rocio, rebati-
zado de praça da Constituição, atual praça Tiradentes, onde os “brasilei­
ros” se concentraram, e que o relato apresenta como “bando formado no
Rocio de geme de diferentes cores". A autoridade policial relata que en­
controu grande tumulto na citada rua, e para lá enviou o comandante das
Armas, Seguiu pela rua do Lavradio onde encontrou um homem que dizia
que havia ido com companheiros à Igreja da Lampadoza, vizinha ao Rocio,
para tocar a rebate (isto é, tocar o sino apressadamente para avisar sobre
um perigo)- Para lá também enviou um oficial que rondava a Casa da Su-
plicação. Ele ouviu, sem distinguir muito bem, “uns vivas", para o lado da
rua do Piolho. Tendo notícia de que mesmo policiais estavam sendo mal­
tratados pelo “bando” do Rocio, decidiu para lá enviar o Juiz de paz da
freguesia do Sacramento. Andando em direção contrária pela rua do Ouvi­
dor, encontrou um outro grupo gritando “vivas a Sua Majestade" e “morra
ao.s fedcralistas e republicanos" que tencionava exatamenie ir ao campo
inimigo. Fez com que esse grupo retornasse e fosse vigiado por alguma

72
tropa. Voltou em seguida ao Rocio e achou “dois grupos de povo" a quem
ordenou que se recolhessem “já que não eram horas próprias de andarem à
rua", mas estes começaram os vivas: também a “Sua Majestade o impera­
dor", porém acrescentando um decisivo “constitucional” e vivas à Assem­
bléia Legislativa e aos “deputados liberais” . Queixaram-se ainda que “os
portugueses tinham derramado sangue dos brasileiros e que devia ser vin­
gado [sic]". Uma das testemunhas descreve um dos grupos que gritavam
pela federação como “uma porção de homens quase todos pardos de ja ­
quetas armados de pau” e com “muito poucos homens brancos” . Nova­
mente um “grande bando com músicos” vem pela rua do Ouvidor, dizendo
que iam “acabar com os republicanos e federalistas”, a quem a autoridade
faz retornar, dessa vez com uma escolta de cavalaria e infantaria. Voltan­
do ao Rocio, a autoridade foi atingida por uma pedra. A confusão perma­
neceu ainda durante algum tempo. Os grupos se enfrentaram com fundos
de garrafas e outros objetos. Muitos foram presos (como, por exemplo,
“os pretos José Honório, José Bernardes, Antônio José Lopes, Egídio
Manuel, Manuel Francisco, e os pardos Elias de Sousa, Bonifácio José,
Alexandrino Antônio. Albino Joaquim da Costa, e o francês Pedro Lior-
de”, e um escravo que mentiu dizendo ser forro). A polícia atirou sobre a
multidão, mas provavelmente o que de fato dispersou os rivais tenha sido
o temporal que se abateu sobre a cidade. Dentre os muitos feridos, um
cadete de prim eira linha, Luís Carlos Cardoso Cajueiro, natural do M ara­
nhão, a quem o coronel Frias prendeu para evitar que morresse das paula­
das que recebera, pois, ao observar as luminárias, um grupo de homens se
aproximou dando vivas ao imperador e ele respondeu o fatídico “constitu­
cional”. Teve a cabeça quebrada por isso.

Consta ainda entre os episódios desses dias, a queixa dada por um


homem que havia sido ferido por um sujeito que, além de gritar “federa­
ção”, portava no chapéu “um laço que chamam federação” , objeto este
levado à presença da polícia e acrescentado ao processo.

Na noite de 14 de março, a polícia encontrou uma “multidão de


perto de mil homens armados de paus, e outras armas [...] que deram mui­
tos vivas a Sua Majestade constitucional e à Constituição do Império”.
Dessa vez não se limitavam ao Rocio, mas estavam também no Paço. Ura
homem, que acabou preso e remetido ao juiz criminal, gritava ao desem-
bainhar sua espada: “Brasileiros vamos a eles” . Outro preso, no dia 15, foi
Rodrigo Paz de Amaral, comissário da Esquadra Nacional: na rua Direita,

i 73
atual Primeiro de Março, e próxima ao campo “português” , ele dava vivas
à Federação direcionados à tropa que ali se encontrava, isto é, aliciava os
próprios mantenedores da ordem.

Um episódio bastante revelador do sentimento que orientava esses


conlTontos envolveu vários oficiais: um capitão do Batalhão de Caçado­
res, um tenente do Batalhão do Imperador, e dois alferes, um do Batalhão
de Granadeiros e outro do Batalhão de Caçadores. Presos, estes oficiais,
desacatando as autoridades, tentaram aliciar a guarnição, “ofendendo a
sagrada pessoa do imperador” (lembre-se, de passagem, que a Abdicação
ainda não aconteceu). Junto a eles, o “redator do Tribuno” ia também pre­
so e participando da mesma atitude. Diziam à guarnição do Escaler, onde
,se encontravam e que era “composta de pretos e pardos”, que "só eles é
que eram sua gente e que todos quantos eram brasileiros adotivos sem
exceção de um só deviam ser passados à espada”. Tais palavras eram pro­
va, para a polícia, da "má índole de tais indivíduos e seus péssimos senti­
mentos”.

Segundo uma testemunha, gritou-sc também vivas à “liberdade de


imprensa”. Outro grito de guerra, este sem dúvida bastante repetido, era o
insultuoso “mata, mata que é cabra”, algumas vezes acompanhado de gol­
pes de chuços ou garrafas sobre algum “brasileiro” infeliz, a quem em
gera! tirava-se também o chapéu que portasse o laço nacional. Contra os
“adotivos” replicavam com um "mata chumbo” . O insulto de “mata que é
cabra” foi dirigido também a um livreiro (atividade que não podia ser neu­
tra naquele contexto) chamado Silvino José de Almeida, com loja na “pra­
ça da Constituição”, segundo o próprio fez questão de nomear, à diferença
de todos os outros depoimentos que usaram ainda o termo da época colo­
nial, Rocio. Designado como pardo pela documentação, presenciou, acua­
do em sua loja fechada, uma confusão e ajuntamento de pessoas. As jane­
las foram quebradas e ouviu os grilos de “mata, mata que é cabra” . Essa
mesma loja será, ainda no ano de 1831, ocupada por Francisco de Paula
Brito, primo de Silvino, e sua Tipografia Flum inense."’

Todas as expressões que indicam os grupos e a identidade racial


foram citadas entre aspas, mantendo-se a preocupação com os discursos
originais, porque nenhuma delas deve ser entendida sem a aura política que
as acompanhava, tratando-se seja do relato policial (que evidentemente não
é imune aos valores e tensões da época), seja das testemunhas. Muitos dos

lA
que se autodesignaram “brasileiros” não nasceram necessariamente no Bra­
sil. Muitos dos “cabras” ou “pardos” não eram forçosamenle de pele escura.
Exaltados de Salvador, na mesma época, defendiam a substituição do impe­
rador por seu filho, afirmando que Pedro II é “cabra como nós”,'*''

Além disso, esses confrontos não colocavam cm questão apenas a


permanência ou não do monarca. Eles expressavam, ainda que indireta-
mçnte, tensões e conflitos sociais latentes, de uma sociedade há pouco
liberta do jugo colonial, mas que manteve as estruturas básicas da coloni­
zação; a escravidão, a grande propriedade, a economia agroexportadora, a
acentuada hierarquização. Escravos participaram das “garrafadas”, tendo
sido preocupação da polícia investigar, dentre os “pretos e pardos” pre­
sos, aqueles que eram dessa condição, para que fossem encaminhados a
seus proprietários. Outrossim, naquele momento, os grupos intermediári­
os formados por artesãos, boticários, barbeiros, alfaiates, soldados, traba­
lhadores das oficinas tipográficas etc. vislumbraram a possibilidade tanto
de uma participação política como de uma ascensão social, empolgados
com palavras de ordem como “nação", “constituição”, “liberdade”.

A história das percepções raciais parece portanto ser “cinza”, n a


medida em que trabalha usos e variações que se distribuem em um sem
número de situações. Na documentação sobre a noite das garrafadas, por
exemplo, tanto da polícia quanto da imprensa, a palavra pardo parece uma
espécie de coringa; foi utilizada para um escravo, um livreiro, um sujeito
que era perseguido, e para os heróis da nacionalidade. Nenhum oficial
teve a cor mencionada na documentação policial sobre o episódio. A refe­
rência à identidade racial é correlata aos momentos em que é silenciada.
Compõe-se de vestígios, incertezas, mobilidades, precisões sempre cir­
cunstanciadas. Essa é a condição de possibilidade para que aparecessem
os periódicos com títulos como O Brasileiro Pardo, O Homem de Cor, O
Cabrito, bem como os conteúdos de difamação através da ascendência, ou
de seu acoplamento a certas posições políticas.

A história da palavra “pardo” não merece ser reduzida a sinônimo


de quem não é livre ou escravo. Ou, quando afirmamos um certo conjunto
como composto de “brancos, pretos e pardos” é necessário fazer com que
de cada uma dessas definições irradiem matizes, que acabem mesmo, ao
menos como possibilidade, com as próprias definições. Houve situações
específicas em que cada um desses termos seria - ou não - proferido.

L 75
Um mito se apaga

Nos primeiros dias de dezembro de 1833, calorosas disputas mais


uma vez tomavam as ruas, seu palco, tanto quanto a imprensa. Em meio à
real ou fictícia ameaça restauradora, o governo regencial teria insuflado
uma "multidão" a atacar a Sociedade Militar, destruir tipografias e, no
mesmo clima, destituir José Bonifácio do cargo de tutor. Joaquim Manuel
de Macedo assim descreve os acontecimentos;

[...I ainda na capital do Império, houve novos tumultos, desta


vez provocados pelo partido moderado, que sustentava a Re­
gência: fundara-se no Rio uma Sociedade Militar, à qual se atri­
buira o propósito de trabalhar pela reposição de d. Pedro I ao
trono do Brasil; a 5 de dezembro o povo assaltou a casa era que
se reunia esta sociedade, assim como várias tipografias da cida­
de, inutilizando os prelos, e ferindo várias pessoas; esse mesmo
grupo, açulado pelo governo, cercou a 15 do mesmo mês o paço
de S. Cristóvão, prendeu José Bonifácio de Andrada e Silva,
tutor de d, Pedro II, e conduziu o jovem imperador para o paço da
cidade: José Bonifácio, suspenso das funções de tutor, foi obri­
gado a residir, fora do centro da capital, na ilha de Paquetá.'“

A julgar pelo relato feito sobre o ataque às tipografias, pela Auro­


ra Fluminense, a interpretação de Macedo sobre o incentivo do governo
regencial parece se confirmar. O redator relaciona os “tumultos” a outros
ocorridos em 2 de dezembro, aniversário do pequeno imperador, em tomo
da habitual iluminação das casas quando se tratava de comemorar algo. Já
no dia 5, o ajuntamento de uma multidão para combater a Sociedade Mili­
tar, sediada no largo de São Francisco, contava com "mais de 1.000 pesso­
as, decentemente trajadas”; a excitação acontecia por causa da leitura de
"infames papéis caramurus". A Aurora diz que espectalmente uma folha
publicada naquele dia suscitara a indignação, mas não explicita seu título.
Até que “levados do furor do momento, iludindo a vigilância dos juizes de
paz, partiram sobre as duas tipografias - a do Diário e a Paraguaçu
aonde fizeram estragos, espalhando os tipos, quebrando as caixas e outros
utensílios, que eram deitados à rua”, ' ” A matéria é concluída com a tran-

76
qüilização do restabelecimento da “paz”, mas também aproveitando para
lembrar a conveniente “confiança no governo”.

Evidenteroente, esses episódios devem ser lidos com cautela, no


que diz respeito à ameaça de restauração, uma vez que a pecha de restau­
rador ou caramuru era lançada pela Aurora a quase todo movimento de
oposição. A Tipografia do Diário, pioneira tipografia particular desde 1821,
que imprimia o Diário do Rio de Janeiro, contava entre seus trabalhos
títulos de variadas correntes políticas, como O Catão, exemplo de libera­
lismo culto c moderado, c O Crioulinho, contrário à “moderação jacobi-
na” e à Aurora Fluminense, reivindicando empregos para os “crioulos”,
mas que não pode ser classificado de restaurador, sendo ao contrário de­
fensor do “nosso jovem imperador” , B e m diferente era a Tipografia Pa-
raguaçu, a começar por seu proprietário, Davi da Fonseca Pinto, com quem
a Aurora manteve acesas contendas. Naquele período, entre outros títulos,
havia publicado As obras de Santa Engrácia, O Teatrinho do Sr. Severo,
O Esbarra, O Brasileiro Pardo, O Lafuente, 0 Torto da Artilharia. No
entanto, a violência contra as tipografias, que pode ter atingido outras além
das duas citadas pela Aurora Fluminense, como a Fluminense de Paula
Brito, não significava tanto a animosidade contra cada tipografia particu­
lar, até porque não há como recompor as tendências políticas exclusivis­
tas desses estabelecimentos. Combatia-se antes o conteúdo dos impressos.
Destruir as tipografias seria, assim, destruir os meios mais materiais das
palavras. A se confirmar a informação de que a Tipografia Fluminense foi
também atacada,*^’ torna-se significativo que o estabelecimento tenha pu­
blicado títulos como O Homem de Cor. O Evaristo, O Meia Cara, O M es­
tre José, O Sentinela da Liberdade, O Brasil Aflito, entre outros.

Ao lado dessa primeira destruição, surgiram paulatinamente formas


de limitar a liberdade de imprensa. Ainda em meados daquele ano havia sido
apresentado ã Assembléia Geral um projeto de lei instituindo a obrigatorieda­
de de uma fiança de quatrocentos mil réis para publicar um periódico preven­
do os casos em que, aberta uma acusação, os responsáveis fugissem. Parecia
uma espécie de direito censitário à liberdade de expressão. A quantia aliás
equivalia à exigida aos eleitores da Corte. Outro ponto do projeto seria acabar
com o anonimato, elemento crucial da guerra das impressões dado o Jogo das
atribuições, das injúrias, dos desmentidos, das identidades criadas ou fingi­
das. O projeto, de autoria de Aureliano de Sousa Oliveira Coutinho, não se
transformou em lei, mas a tentativa já foi bastante significativa.*"

77
Aureliano Coutinho era o ministro da Justiça em 1833, e em seu
relatório defendeu a reformulação dos critérios e práticas para a repressão
à imprensa:

Não é também indiferente para a manutenção da segurança in­


terna a repressão legal dos abusos da liberdade de imprensa.
Quando a lei é tão defeituosa, que constantemente é iludida, o
resultado da exasperação pública será o que desgraçadamente
vimos nesta Corte em 5 de dezembro passado. [...| Além de que
6 sabido, que fora do Império projeta-se lançar mão desta arma,
enviando-nos emissários assalariados, e assalariando-se outros
no Brasil, para promoverem a publicação de escritos incendiários.
Sabe-se bem até que é só promovendo a anarquia, e a guerra
civil no pais. que este poderá vir a ser dominado pela desunião,
e enfraquecimento dos naturais.'^

Antes disso, Diogo Antônio Feijó, ou Jeifó na linguagem pasqui-


nesca, ministro da Justiça em 1831, lutava por medidas semelhantes. A lei
da imprensa vigente seria ainda insuficiente para conter o “abuso de es­
crever”, pois dificultava a imputação e a pena:

Srs., outra causa não menos fecunda cia imoralidade é a licença


de escrever. Povos ainda ignorantes; uraa mocidade fogosa, cu­
jos anos vão despontando no horizonlc de uma liberdade ainda
mal firmada e pouco esclarecida, abraça com precipitação, e
sem o menor exame, tudo quanto pelo prestígio da imprensa se
ofereça à sua inespena razão. Qualquer homem sem letras e sem
costumes espalha impunemente princípios falsos, ataca a vida
particular e pública do cidadão honesto, inflama as paixões e
revolve a sociedade, (grifo meu)

Acrescentava ainda: “Cautelas devem ser tomadas, para que o


escritor nem possa iludir a boa-fé dos leitores, ocultando seu nome tal­
vez bem desprezível, nem escape ao pronto castigo de sua tem eridade”,
Afinal, eram indivíduos “sem educação” os que alimentavam as “calúni­

78
as” e '‘injúrias” , e o alarme precisava ser soado pois “um abismo horro­
roso está a um só passo de nós", e apenas o governo poderá “salvar o
Brasil”. O ministro da Justiça alertava para os diferentes meios de que o
escritor dispunha para escapar à responsabilidade. A sua proposta con­
sistia em que as injúrias, calúnias e ameaças, classificadas como crimes
policiais, fossem do mesmo modo consideradas quando aparecessem na
forma de impressos,

Todo esse período de frenesi foi pontuado por processos judiciais


contra escritores públicos, muitos movidos pelos próprios pares. O reda­
tor do Brasil A flito, assassinado poucos meses depois, conta que foi acu­
sado por um promotor e levado à presença do juiz municipal, bem como
“nosso colega o redator do Par de Tetas" . P o u c o antes, o mesmo recla­
mava da parcialidade da Justiçar

Como cabe no possível, que o sr. promotor do Júri tenha julga­


do os periódicos exaltados, com criminalidade, deixando em si­
lêncio e impune a impudente, e intrigante Aurora; o atrevido, e
estúpido Sete de Abril; a mentirosa, e abjeta Verdade; o inepto,
e sujo Independente etc. etc. Cujas indignas folhas, conslante-
mente têm atacado o Corpo Legislativo, isto é, o Senado; e como
pois o sr. promotor não tem para com estas cumprido com o [pa­
rágrafo] 1 do art. 37 do Código do Processo?'^”

A parcialidade prevaleceu. Dezembro de 1833 parece ter sido o


fim de uma época, e da configuração desse mito em torno do brasileiro c
da cidadania política.

Em 1836 c 1837, alguns acontecimentos marcam de forma ainda


mais derradeira esse fim. Leis de limitação à liberdade de imprensa foram
criadas. A renúncia de Feijó do cargo de regente, anos após sua decisiva
atuação como ministro da Justiça em 1831, da qual já tivemos uma amos­
tra, era simultânea à formação do regresso conservador. Morria também o
moderado Evaristo da Veiga. Era o “fim" da imprensa vociferante e o iní­
cio da época de predomínio mais definido da classe senhorial. Suceder-se-
iam outras formas de gramática da mestiçagem e de participação na gesta­
ção da nacionalidade.

79
N otas

1 Apud Bernardino José de Sousa, Diciatiária da terra e da gente do BraMl, "Onomás-


líca geral da geografia brasileira", p. 73-74.

1 Max Weber, Relações eomunildrias e dtnicas. As reflexões do sociólogo alemão desnatura­


lizam a noção de eomunídade élniea, apontando as diversas condições - que se acrescentam
e combinam à origem racial - para que se produza o sentimento de comunidade c a crença
na comunidade étnica.

5 Sobre a ação do inventário como atividade do historiador que evita impor seus próprios
conceitos como eternos, e que por isso preza a histori cidade, a des continuidade reconhe­
cendo as tensões entre passado e presente, ver Paul Veyne, O invemário das diferenças.

4 A historiografia produzida na segunda metade do século XIX sobre esse período, que
usou depoimentos orais e documentos, representada principalmenle por Moreira de
Azevedo, é muito parcial em defesa dos valores de sua própria época política, e do
desenrolar político do processo de formação do Estado, em concepção semelhante à de
Justiniano José da Rocha: encontram-se pouquíssimas observações sobre os grupos
sociais ali interessados em fazer política e mesmo sobre seus objetivos c projetos. Os
seguintes artigos são de autoria de Moreira de Azevedo (ver bibliografia); Os tiros no
teatro; motim popular no Rio de Janeiro; Motim político de 3 de abril de 1832 no Rio de
Janeiro; Sedição militar de juiho de 1S3U Motim político de 17 de abril de 1832 no
Rio de Janeiro; Origem e desenvolvimento da imprensa no Rio de Janeiro; Motim político
de dezembro de 1333 no Rio de Janeiro. No que concerne ao horizonte teórico em que
esses movimentos foram enquadrados, bem como a posterior ordem política consoli­
dada, teve papel fundamental o autor Justiniano José da Rocha cm seu célebre panfleto
Ação, reação, transação. Escreve ele; “A anarquia foi comprimida!". In Raimundo
Magalhães Júnior, Três panfletários do Segundo Reinado, p. 178-180. Sua concepção de
história, que revela sua representação sobre seu próprio tempo, ê analisada por limar
Rohioff de Mattos, O tempo saquarema, p. 133 e segs.

3 A expressão foi utilizada por João José Reis que, referindo-se ã guerra da Independência na
Bahia, em 1822 e 1823, explora de forma interessante os insultos de "cabra" e "caiado",
apontando uma "linguagem racial como dispositivo de combale". O jogo duro do Dois de
Julho; o ‘Partido Negro' na Independência da Bahia, in João José Reis e Eduardo Silva.
Negociação e conflito, p. 85. Esse artigo será retomado adiante.

6 A ortografia dos periódicos foi atualizada, embora tenha sido mantida a pontuação original,
mas não o uso de minúsculas e maiúsculas. Todos os grifos que aparecem são originais;
nenhum grifo foi acrescentado. Optei por não enfatizar nenhuma citação dos periódicos, pois
diferentes formas de grifo faziam parte da diagramação original desses impressos (itálicos,
negrito, palavras inteiras em maiúsculas e, ãs vezes, os tipos invertidos de ponta-cabeça).
Procurei ainda, na medida do possível, ser fiel a esses grifos originais.

7 O Indígena do Brasil, o” 3, 16 de outubro de 1833.

8 Tribuno do Povo, n" 29, abril 1831.

9 Aurora flum inense, n“ 532, 19 de setembro de 1831.

80
10 N o v a L u z B r a s i l e i r a . a° 14S, S de ju n h o de 1831.

II Roger Chartier recuperou os variados u.sos populares da palavra escrita para o contexto
europeu. As práticas da cscríla, in Roger Charlier e Philippe Ariès (orgs.). História da vida
privada, v. 3: Da Renascença ao sdculo das Luzes, p, 147,

12 Processo Lafuente (Autos de sumário... pelo motim e assuida, ajuntamemo ilícito no largo du
Paço e lugar do Correio no dia doze de setembro da pane que faz culpa ao réu Maurício
José Lafuente. 1832). Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos. (Grifo meu)

13 Roger Chartier. A ordem dos livros: leitores, autores r bibliotecas na Europa entre os
séculos XIV eX V lIl. p. 12.

14 Liberdade de imprensa • projeto para Constituinte, 1823. Biblioteca Nacional, Seção


de Manuscritos.

15 Lei de 20 de setembro de 1830, sobre o abuso da liberdade de imprensa. Coleção das leis
do império do Brasil, 1830. p. 35-49. Arquivo Nacional.

16 Moreira de Azevedo, Origem e desenvolvimento da imprensa no Rio de Janeiro, p. 186.


Obra clássica sobre o lema é a de Nelson Wcrneck Sodit História da imprensa no Brasil.

Ver o artigo de Alfredo de Carvalho, Gênese e progresso da imprensa periódica no Brasil.


O volume da RiHGB publicado cm 1908 contém catálogos de periódicos das províncias,
onde se nota, espccialmenie no caso do Porá, Maranhão e Pernambuco, grande proximidade
com o que ocorreu no Rio de Janeiro: a articulação entre atuação políbea, cultura cômica e
terrnos de identidade.

IS Não foi possível localizar praticamenie nenhuma documentação (como recibos de assinaturas
ou pedidos de impressão) produzida pelas tipografias p r iv a i. Sobre a Tipografia Nacional
(nome que recebe a Impressão Real apôs 1822) encontram-se alguns ofícios no Arquivo
Nacional: Ministério do Reino e do Império. Tipografia. Ofícios. 1822-1849,

19 Laurence Hallewell, O livro no Brasil (sua histâria), p, 80-81.

20 Por exemplo Sentinela da Liberdade, n" 2, 24 de novembro de 1832; “Triste e bastante


ridículo € o caráter que representa no teatro do jornalismt- um escritor, quando vendido a um
partido qualquer exprime não a linguagem do bomem probo, isto é, a linguagem da convicção:
cie loma-se o órgão daqueles a cujo soldo está sujeito“ Acrítica era dirigida ao redator do
Independente.

21 Stanley Stein, A historiografia do Brasil, 1808-1889. p. 100.

22 O Lafuente, n“ 1, 16 de novembro de 1833.

23 Sete de Abril, n“ 86, 1833, apud José M. Vaz Pinto Coelho. Cancioneiro popular
brasileiro, p. l l t .

24 D, Beãro II, n“ 1. 14 de novembro de 1833,

25 A esse respeito, a lei de 1830 operou uma mudança importante, consolidada em 1837
quando um decreto estreitou o eerco aos "abusos de exprimir os pensamentos”. As duãs

81
nonnas imputavam ainda o tipógrafo, caso o autor não fosse designado por este. Lei de
20 de setembro de IS30. sobre o abuso da liberdade de imprensa, op, d l., p. 35 a 49; e
decreto de 18 de março de 1837, dando instruções sobre o processo c sentenças nos crimes
por abuso de liberdade de imprensa. Coleção das leis do Império do Brasil, 1837,
parte 11, p. 11-13. Arquivo Nacional.

26 Michel Foucault. A ordem do discurso, p. 26-37; Roger Charticr. A aventura do livro:


do leitor ao navegador, p. 23 e 31-38.

27 O Exaltado. n“ 1, 4 de agosto de 1831.

28 Traslado do processa a que deu fsic] motivo os tumultos das garrafadas do dia 13, 14 e 15
de março de 1831. Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos.

29 A expressão c de John Armitage, História do Brasil, p. 219.

30 Muitos e diferenciados foram os momentos de conflito no Rio de Janeiro naqueles anos


de 1831, 1832 e 1833. Ainda antes da Abdicação, as “garrafadas" era março; a sedição
militar de julho do mesmo ano; os "tiros no teatro"; a rebelião da ilha das Cobras: os
motins políticos em abril de 1832; a destruição de tipografias e a invasão da Sociedade
Militar em dezembro de 1833 são alguns mais conhecidos. Ver os seguintes artigos de
autoria de Moreira de Azevedo; Os tiros no teatro: motim popular no Rio de Janeiro,
op. cit.; Motim político de 3 de abril de 1832 no Rio de Janeiro, op. cit.; Sedição militar
de julho de 1831, op. cit.; Motim político de 17 de abril de 1832 no Rio de Janeiro,
op. cit.; Motim político de dezembro de 1833 no Rio de Janeiro, op. cit.

31 Aurora Fluminense, n” ilegível, 22 de agosto de 1831.

32 Dos números 1 a 6, apenas o n° 5 é datado; 29 de outubro de 1833. A autoria é atribuída


pelo Sete de Abril a João Batista de Queiroz.

33 Segundo Hélio Vianna. esses personagens eram caricaturas de Francisco Lima e Silva,
João Brãulio Muniz, Evaristo da Veiga. Aureliano de Sousa e Oliveira, Joaquim José
Rodrigues Torres e Nicolau P. C. Vergueiro. Hélio Vianna, A pequena imprensa na
Regência Trina Permanente (1831-1835).

34 Os significados aqui citados para certos termos têm como referência o Novo dicionário
Aurélio, 1* ed., Nova Fronteira, s.d.; Antônio Moraes e Silva. Dicionário da língua
portuguesa recopilado.

35 Nesse jornal, embora sem haver a opção exclusiva pelo estilo cômico, aparecem per­
sonagens parecidos; “Teatro particular da Floresta
Terça feira 12 do corrente por ser dia de S. Diogo haverá o seguinte divertimento dividido da
seguinte maneira, depois que a orquestra tiver executado a bem aceita sinfonia intitulada a morte
dos grilos, terá lugar um elogio da composição do Mané Mendes Pangaio. no qual aparecerá o
retrato do herói da chimangada Jeifó, com um coroa de c... Findo o elogio terá lugar a bem aceita
comédia da composição do Pemeira. intitulada a Emigração dos quatrocentos contos, no fím do
primeiro ato, o goiaba da rua dos Pescadores, dançará a caxuxa, [ilegível] o Jeremias cantará a
ária fúnebre da queda do 30 de Jullio; o pinto carranca tocará um concerto de bodoque, acompa­
nhado de puila pelo cônego Ignez. e finalizará o divertimento, com u roubo do [ilegível] dos
Órfãos, da composição do mesmo Pemeira, onde se verá boas mágicas arranjadas pelo general
fêmea, c o Almirante Genebra executará ao vivo a parte de um oficial bêbado.

82
É Esle o divcrlimento com que a Sociedade pretende festejar o memorável dia de S. Diogo".
A “Floresta" era o apelido da chácara dc um dos membros do governo regcncial. O
Evarisio, n" 5, 15 de novembro de 1833.

36 Lafayette Silva, flisrâria da teatro brasileira, p. 33.

37 J. Galante de Souza. O teatro no Brasil, p. 145,

38 Támina, segundo o Aurélio, origina-se do quimbundo ritainma, "tigela" de ração dos escravos,
podendo significar também a própria ração, e a porção de água que em época de seca podería
scr retirada por cada pessoa das fontes públicas. Nesse caso. não há sentidos figurados, pejora­
tivos, indicados pelo dicionário. A palavra mandu vem do tupi e seu uso popular expressa
"tolo". O mesmo sentido para a palavra tamina aparece em Antdniú Moraes e Silva, op. cit.

39 J-, Galante de Souza. op. cit., p. 128.

40 O Teairinlw do Sr. Severo, n“ 3, 1833.

41 Martins Pena, Cotíiót/tai. p. 54

42 Vejamos essa caricatura textual publicada no Evaristo (n° 5, sexta-feira, 15 de novembro de


1833): “Ah! sr. Ripanso. venha cá escute, onde vai tão aflito, sem pescoço, com esse colelinho
de três polegadas? V, S. anda de aposta a fazer rir o público, pelo módico preço de meia
cara? [...] náo apareça em público por preço tão módico, mande arranjar no museu um quar-
linho, encaixe-se lá todas as quintas-feiras, e quem se quiser rír à sua custa, pague dois vin­
téns. a concorrência há de ser fortíssima, não d€ o cavaco se lhe disserem alguma coisa porque
agora não há remédio senão ter paciência, o público tomou-o ã sua conta, meu goiaba”.

43 Mihhail Bakhtin, A enfiara popular na Idade Média e no EenásciineiUO', o contexto de


François Rabelats.

44 Martins Pena, Folhetins, apud Vílma Sant'Anna ArSas, Na tapera de Santa Cruz: uma
leitura de Martins Pena. p. 43.

45 Georges Balandier, O poder em rena. p, 30.

4È ibidem, p. 25.

47 Simpiíeio Poeta, n" 6, 26 de fevereiro dc 1832.

48 O. Pedro //, n” 1, 14 de novembro de 1833.

49 O Filho da Terra, n“ 1. 7 de outubro de 1831.

50 O episódio do teatro será novamente abordado.

51 Otávio TarqQtnio de Sousa, llisfdria dos fundadores do Império do Brasil, v. 9, p. 143.


li 52 O Martelo, n“ 4. 22 de setembro de 1832.

53 O flomem de Cor, n" I, 14 de setembro de 1833. A partir do n" 3. o Iftulo muda para O
áfjífíiío ou 0 Homem de Cor.

83
54 O Mulato ou o Homem de Cor. n" 3, 16 de outubro de 1833,

55 O Evarisio, n” 3, 12 de outubro de 1833.

56 O Homem de Cor, n“ 1. 14 de setembro de 1833.

57 A epígrafe do Brasil AJUlo ganhou retrospeclivamente um peso sinistro; "Quem passa a


vida, que eu passo / Não pode a morte temer; / Pois a morte não assusta / A quem está
sempre a morrer. (Por Frei Caneca, mártir era 1824)", N° l, 20 de abril de 1833.

58 Aurora Fluminense, o° ilegível, 13 de setembro de 1833.

59 O Mulato ou o Homem de Cor, n° 4, 23 de outubro de 1833.

60 O Mulato ou o Homem de Cor, n“ 3, 16 de outubro de 1833.

61 O Evaristo, n° 1, 26 de setembro dc 1833.

62 O Mulato ou o Homem de Cor, n° 4, 23 de outubro dc 1833.

63 Processo Lafuente (Autos de sumário... pelo motim e assuada, ajuntamento ilícito no largo
do Paço e lugar do Correio no dia doze de setembro da parte que faz culpa ao réu Maurício
José Lafuente. 1832). Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos.

64 O Mulato ou o Homem de Cor, n° 4. 23 de outubro de 1833.

65 O Mulato ou o Homem de Cor, n° 5, 4 de novembro de 1833.

66 Joaquim Norberlo de Sousa e Silva, Investigações sobre os recenseamentos da população


geral do Império, p. 14-15. O movimento é abordado no segundo capítulo.

67 Jcanne Berrance de Castro, A Guarda Nacional; Edmilson Rodrigues, F. Falcon e M. S.,


Neves, A Guarda Naeional no Rio de Janeiro, 1831-1918.

68 Sobre esse último ponto, ver o prefácio de Sérgio Buarque de Holanda ã obra de Jcanne Berrance
de Castro, A milícia cidadã, in Livro dos prefácios, São Paulo, Companhia das Letras. 1996.

69 O Meia Cara, n" 2, 15 de dezembro de 1833.

70 Aurora Fluminense, n“ 538, 24 de agosto de 1831, A Nova Luz 8ra.siieira utilizava a mesma
injúria: "os membros grandes criminosos do gabinete secreto, os homens que estão senhores
dessa manobra haitiana". N" 145, 8 de junho de 1831.

71 Aurora Fluminense, n’ 818. 20 dc setembro de 1833.

72 Thomas Flory, El juez de paz y el jurado en el Brasil imperial, p. 49-50.

73 Sentinela da Liberdade, n® 1, 20 de novembro de 1832.

7 4 Segundo o jornal, seria uma promessa que Evaristo da Veiga íeria feito “se escapasse". T>ata-sé
provavelmente do atentado que sofrerá, em 8 de novembro de 1832: tiros Oatingiram quando
estava na sua livraria. Segundo Nelson Wemccfc Sodré. a responsabilidade coube ao “campo

84
cararnuru”, e "Davi da Fonseca Pinto, escriba dos Andradas, chegou a lastimar que Evaristo
tivesse escapado". Neison Wenteck Sodré, ffhtória da imprensa tio SroJií. p. 142.

75 Sentinela da Liberdade, n“ 7, 15 de dezembro dé 1832,

76 A expressão aparece no Aurora Fluminense de 9 de setembro de 1833.

77 Sentinela da Liberdade, n” 8, 20 de dezembro de 1832.

78 A referência a essas profissões deve ser interpretada com cuidado, pois se numa leitura mais
direta pode-se entender que este "mulato” gostaria de alcançar atividades mais vantajosas que as
citadas profissões, por outro lado estes eram termos ligados à maçonaria, e talvez baja aí uma ironia.

79 Sentinela da Liberdade, n° 8. 20 de dezembro de 1832.

80 No dia 30 de julho de 1832 houve uma tentativa de golpe do governo regencial, após a
derrota no Senado do projeto para a destituição do tutor José Bonifácio. Paulo Pereira de
Castro, A "experiência republicana", 1831-1840.

81 Sentinela da Liberdade, n’ 8, 20 de dezembro de 1832.

82 Sentinela da Liberdade, n“ 9, 27 de dezembro de 1832.

83 Sentinela da Liberdade, n" 10. 2 de janeiro de 1833.

84 Sentinela da Liberdade, n° 11, 5 de janeiro de 1833,

85 O Indígena do Brasil, n° 3, 16 de outubro de 1833.' “Contudo fazei justiça aos verdadeiros


exaltados: Hcai certos, que. quando esse príncipe galego vier ãs nossas praias, os exaltados
formando um corpo separada, mostrarão que sabem bater-se em defesa da pátria e da
liberdade, e preferem morrer livres a serem escravos de um lusitano”, O redator dava mostras,
assim, da ameaça de volta da situação anterior ã abdicação.

86 O Brasileiro Pardo, n" 1, 21 de outubro de 1833.

87 Por exemplo em Euclides da Cunha, em Os sertões, que parecia traduzir um sentido compartilhado.

88 João José Reis, O jogo duro do Dois de Julho: o ‘Partido Negro' na Independência da Bahia,
in João José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito, op. cit., p. 85.

89 O Crioulinho, n“ 1. 30 de novembro de 1833.

90 O Filho da Terra, n” 1, 7 de outubro de 1831; O Veterano ou o Pai do Filho da Terra, n ' 1,


24 de outubro de 1831.

91 O Cabrito. n° 1, 7 de novembro de 1833.

52 O Indígena do Brasil, n° 3, 16 de outubro de 1833.

93 Cladys Ribeiro teceu uma exaustiva análise sobre a questão da naturalização de estran­
geiros, sobremdo no caso da imigração portuguesa, mapeando os conflitos sociais aí envol-

85
vidos. A liberdade em ctm,\lrm:ão: identidade nacional e ccmriitos aiuílusíunos no
Primeiro Reinado.

94 O Maneio, n“ 3, 14 de setembro de 1832.

95 O Evarista, □“ 2, 3 de outubro de 1833.

96 Referia-se assim à chácara onde habitava um dos membros do governo regencial.

97 O Evarísía, n° 2. 3 de outubro de 1833.

98 O Evarislo, n“ 4,29 de outubro de 1833. Em todos os números pesquisados há referências


a militares injustamente perseguidos.

99 Roland Barthes. Mitologias, p. 141.

100 ibidem, p. ISO.

101 Carl Seidler, Dez anos no Brasil, p. 322.

102 ibidem, p. 51-53.

103 Lafayette Silva, op. cit., p. 173.

104 J. Galante de Souza, op. cit., p. 153.

105 Vilma Sant'Anna Arêas, op. cit., p. 28.

106 Carl Seidler, op. cit., p. 54.

107 Ver artigo de Moreira de Azevedo. Os tiros no teatro: motim popular no Rio de Janeiro, op. cit,

108 Aurora Fluminense, n° 541, 10 de outubro de 1831.

109 Carl Seidler, op. cit., p. 54-55.

110 Nova Luz Brasileira, n° 133, 22 de abril de 1831.

111 Flora Sussekind, O Brasil não é longe daqui.

112 Carl Seidler, op. cit., p. 58.

113 ibidem, p. 52-53.

114 ibidem, p. 43.

115 Traslado do processo a que deu motivo os tumultos das garra fadas do dia 13, 14 c 15 de
março de 1831, Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos.

116 Oladys S. Ribeiro, op. cit.

117 John Armitage, História do Brasil, p. 249.

86
118 ibidcm. p. 217.

119 Laurencc Hallcwell. op. cil.. p. 83.

120 A expressão é citada por Sluart Schwartz.The formation of a colonial idenlily in Brazil.

121 A expressão é de Michcl Foucauh, em artigo onde procura criticar uma concepção de his­
tória que acreditaria na possibilidade de reconstituir gfneses lineares, origens e continui-
dades: “A genealogia é cinza: ela 6 meticulosa e pacicniemenic documentária. Ela trabalha com
pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos". Nictzschc. a genealogia c a
história, in Microfisica do poder, p. 15.

122 Joaquim Manuel de Macedo, Lições de história do Brasil, p. 368.

123 Aurora Fluminense, n” 851, 9 de dezembro de 1833.

124 O Crioulinho, n° 1, 30 de novembro de 1833.

125 Thomas Hallewell afirma que Francisco de Paula Brito, proprietário da Tipografia Flumi­
nense, resistiu no dia 2 de dezembro de 1833 a uma multidão que tentava invadir seu esta­
belecimento, furiosa com a publicação de O Restaurador. Thomas Hallewell, op. cit., p. 84.

126 Diário de Anúncios, n” 10, 15 de junho de 1833.

127 Relatório do ministro da Justiça. 1833. Rio de Janeiro. Tipografia Nacional, 1834.

128 Relatório do ministro da Justiça. 1831. Rio de Janeiro. Tipografia Seignot-Plancher, 1832.

129 O Brasil Aflita. n° 4, 17 de maio de 1833.

130 O Brasil Aflito, n° 3, 9 de maio de 1833.

131 Decreto de 18 de março de 1837, dando instruções sobre o processo e sentenças nos crimes
por abuso de liberdade de imprensa. Coleção das leis do Império do Brasil de 1837, parte
11. p. 11-13. Arquivo Nacional.

87
C apítulo 2

Inventário das identidades: os censos e a cor

Bode s.m., fig., mulato, mestiço. “Quanto às minhas betas qua­


lidades físicas, é franqueza, sou moreno na língua d'aqueles que
julgam que não me conheço n’este ponto; na linguagem oficial,
sou pardo-, e na minha, sou bode ou cabra-, mas fiquem também
sabendo que tenho o sangue vermelho” {MonUor Sul Mineiro,
periódico da Campanha. Minas Gerais, 2 de abril de 1884),
A metáfora, de procedência portuguesa, funda-se na catinga pró­
pria da raça africana comparada com o bodum dos cabritos. ‘

O texto acima manifesta as clivagens entre os gestos de designar e de


designar-se. Do criativo manancial da imprensa a uma forma nova de conceber e
conhecer a população, passa-se a outras finalidades nas atribuições de identidade.
A irônica passagem, meio século após o período regenctal, parecia conservar ain­
da aquela intensidade contida no ato de proclamar-se “sou bode”. Zombava-se ali
das várias linguagens e códigos subjacentes aos termos moreno, pardo, cabra e
outros, desvendando um jogo de perspectivas. A palavra moreno - que provavel­
mente não era muito comum na década de 183CP - seria lançada, segundo o “Bode”,
pelos dissimuladores aos que não se conhecem, aos inconscientes da própria iden­
tidade. A diferença entre moreno e bode consistiría no fato de que o segundo termo
é Intencional, é um ato de escolha e não de atenuação. Pardo é a forma como a
linguagem oficial o vê e classifica. E o sangue, vermelho como o de qualquer bode
e qualquer homem. O essencial na fala publicada no periódico mineiro é a trans­
formação da injúria - o bodum, a catinga - em afirmação de identidade.^

A variação dos designativos raciais e de identidade obedecia a práti­


cas específicas. Da teatral imprensa aos censos populacionais, os termos tive-

L 89
ram «sos diferenciados. Palavras como pardo foram usadas nos censos como 1
categorias de classificação e quantificação, não mais como forma de fazer
política. Tratava-se de um saber técnico que pretendia esvaziar o seu prdprio
sentido político. Práticas de identificação, os censos procuraram ordenar a
população em um discurso - ou em alguns discursos, fragmentados ou isola­
dos. que partiram de combinações entre um leque de princípios: a condição, a
naturalidade, o sexo, a idade, a cor. O eixo deste capítulo trata dos termos
utilizados no.s censos e outros documentos estatísticos sobre a população, no
processo de formação do Estado imperial; investiga como tais termos foram
relacionados enquanto complementares e opostos, formando em cada tabela
ou quadro um sistema de classificação; observa a questão da menção ou não
da cor. da sua imbricação com a condição social e jurídica, e sua relação com
as categorias de classificação. Pode-se dizer, como o desconhecido autor auto­
denominado “bode”, que nosso objeto é agora a “linguagem oficial” .

Em meio a variados suportes e instâncias administrativas - desde listas a


serem preparadas pelos inspetores de quarteirão a relatórios ministeriais a rela­
ção do Império com as cores de sua população oscilou segundo o olhar do recen­
seador, que foi constrangido por diferentes variáveis e .situações, e estava longe de
ser um seguidor fiel de instruções. Organizar o recenseamento era atividade que se
distribuía entre distintos braços da administração, como párocos, subdelegados,
juizes, presidentes de província. Ao longo do tempo, tais braços mostraram-se
inermes. Chefes de família, que teriam a tarefa de preencher as fichas, também
resistiam a estas, bem como ao olhar do recenseador. Na verdade esse olhar, su­
postamente como olhar central, muito pouco viu, apesar da insistência de minis­
tros e outras autoridades, sempre atentos ao que começavam a entender e gerir
como população. Os números difícil e inconstantemente chegavam ao ministro,
deixando de ser enviados pelos presidentes provinciais. Por sua vez, estes não
recebiam as informações solicitadas. Também inconstante foi o envio dos mapas
de batismo, casamento e óbito, cuja responsabilidade cabia aos párocos.

índios, mulatos, pardos, crioulos, pretos africanos, nacionais, livres,


escravos, brancos são agora peças de tabelas manuscritas e impressas, ou en­
tão objeto de casas reservadas às “observações” onde se procurava dar conta
do que parecia insubmisso à ordenação.

Entre os representantes do governo houve muita resistência ou indolên­


cia para preparar tabelas, conferir informações e, sobretudo, fazer com que elas
fossem dadas, assim como entre os habitantes, que se esquivaram, temendo im-

vo
postos, recrutamento, ou às vezes - quem sabe? - a própria classificação. Pode
ser o caso revelado no trecho em que o jornal 0 Homem de Cor combatia o
desígnio político de fazer, no meio da população livre, uma divisão por cores.
Talvez não fosse demais citá-lo novamente;

Não sabemos o motivo porque os brancos moderados nos hão


declarado guerra, há pouco lemos uma circular em que se decla­
ra que as listas dos cidadãos brasileiros devem conter a diferen­
ça dc cor e isto entre os homens livres! A Constituição tantas
vezes desflorada pelos moderados, é hoje apenas letras de que
apreço nenhum fazem os liberais por excelência. Seria melhor
que tomassem o conselho do Homem de Cor que não exasperas­
sem os mulatos sempre amigos da lei e da ordem, e se deixas­
sem de distinções que em verdade são fatalíssimas. raormente
quando a nação brasileira se acha dilacerada pelos partidos |...).''

A “guerra” a que se refere o trecho anterior consistiu nas disputas


pela participação na sociedade política, advogando especialmente para que
não houvesse distinção de cor entre os cidadãos livres. Já o conjunto de
esforços do governo para transformar a totalidade de habitantes em uma
população procurava atingir um contingente maior, subdividindo-o em
categorias para melhor geri-lo e para restaurar as hierarquias sociais. Não
se tratava mais, portanto, da definição da sociedade política, uma vez que
aproximando-se o final da década de 1830, as animadas disputas foram
subjugadas em nome de mecanismos mais restritos desta definição. Estava
era jogo delimitar subconjuntos no conjunto da população; a sociedade
civil, os escravos, outros contingentes suscetíveis de serem aproveitados
como mão-de-obra, os estrangeiros, os índios. Nessa problemática procu­
raremos acompanhar especificamente a classificação pela cor, em suas vi-
cissitudes e descaminhos, apostando no quanto a própria dinâmica da so­
ciedade constituiu uma forma de resistência a esta ordenação.

A perspectiva mais fértil será entender o Estado não como um apare­


lho forte previamente dado, mas como um poder cuja constituição dependia
desse tipo de prática e representação em tomo da ordenação da população. E
significativo que os esforços para organizar os censos populacionais tenham
se tornado mais presentes após o contexto de expectativa e incerteza política

VI
do início do período regencial. No caso da Corte, em 1834 houve uma tentati­
va de contagem do número de habitantes que acabou fracassada. Pouco mais
tarde, em 1838, novo recenseamento de alcance também restrito. De certa for­
ma, o conhecimento da população era virtualmente paralelo ao processo de
centralização política c administrativa. limar Rohloff de Mattos situa este co­
nhecimento no conjunto mais amplo daquele processo:

Mas a construção do público —que aqui se confunde, em larga


medida, com a constituição de um Poder administrativo - impu­
nha ainda um esquadrinhamenío. Do território e dos homens
que ele continha. Mapas, plantas, cartas topográficas e corográ-
ficas foram elaboradas, permitindo a delimitação do território,
das circunscrições administrativas, judiciárias e eclesiásticas;
possibilitando um conhecimento mais detalhado das potenciali­
dades do território imperial; tornando mais ágil a movimenta­
ção dos agentes da centralização e, assim, franqueando os limi­
tes da Casa. Informações estatísticas foram levantadas, procu­
rando-se articular a 'riqueza' de cada uma das províncias às ne­
cessidades materiais do governo do Estado.’

Michel Foucault relaciona a objetivação da população à gênese de


um saber político que denomina “governo dos homens”, ligada à emergên­
cia da “razão do Estado”, iniciada em fins do século XVI e começo do
seguinte. Guardando certa continuidade com esse processo, mas era con^
texto marcado pelo liberalismo, o autor investiga o nascimento da “biopo-
lítica” a partir do século XVIII, acentuado no século seguinte, e que defi­
ne como uma forma de racionalizar, em termos de prática governamental,
os “fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos como.
uma população” . A saúde, a higiene, a natalidade, a longevidade, as raças
seriam alguns desses fenômenos.^

Pode-se agora considerar o quadro teórico e político, no contexto da


formação do Estado no Brasil, onde foi definida a noção de população. As
diferentes práticas orientadas por essa noção construíram uma realidade soci­
al, consistindo em um processo bera mais complexo do que o mero recolhi­
mento de informações. Concentrar a atenção nesse quadro teórico e político
explicitará as bases da “linguagem oficial” sobre as cores da população.

92
i
A utilidade da estatística

Em 1849, o dr. Roberto Haddock Lobo tecia suas “Considerações gerais


sobre a utilidade da estatística’’ em texto manuscrito que acompanha o Recensea-
mento da população do município neutro, dirigido por ele naquele ano. Ali, de­
fendia sua concepção acerca dessa ciência e expunha seus princípios e utilidade.^

A estatística seria uma forma de governo. Sua ausência expressaria


ignorância e barbárie. Seria não simplesmente uma ciência, mas a “verdadeira
ciência dos fatos sociais representada por termos numéricos” . Haddock Lobo
procurava ainda assim defender sua utilidade, comparando-a à história e à ge­
ografia, ciências Já reconhecidas, e que seriam mesmo superadas pela estatís­
tica. Esta trataria não de “fatos exteriores e passados” como a história, mas da
“vida íntima e civil”, de “elementos misteriosos da economia da sociedade”,
em seu “movimento e situação”. Mais que a “descrição dos lugares”, da qual
se incumbe a geografia, a estatística “calcula e analisa” e, complementar à
economia política, seria capaz de orientar “pela razão e certeza todos os pode­
res políticos e administrativos”. “A economia política convence pela audácia
com que marcha pelas regiões mais elevadas dos sistemas especulativos; a
estatística demonstra por meio de cifras as necessidades dos povos, seus pro­
gressos diurnos, e todas as particularidades felizes ou infelizes de seus desti­
nos". Acrescentava o autor que a estatística envolve-se tanto com a vida públi­
ca quanto com a vida particular. Esse conhecimento supostamente tão onipre­
sente e altaneiro abrangería o destino da população, a riqueza, a segurança, a
defesa, a comunicação, a salubridade. O “recrutamento que organiza a força
pública", o estabelecimento dos impostos, o conhecimento sobre a produção
agrícola, industrial, comercial, os “progressos da instrução pública”, as “me­
didas que regem os estabelecimentos de beneficência ou de repressão para o
interesse das classes inferiores” são as preocupações constantes da adminis­
tração e onde se torna indispensável o socorro da estatística.

Segundo Haddock Lobo, o recenseamento da população seria o passo


inicial de qualquer conhecimento estatístico mais sólido. Ele lamentava que
no âmbito do Império sequer tivesse sido realizado até aquele momento. Note-
se que a ausência permanecerá até 1872, ano em que finalmente foi realizado o
Recenseamento geral da população do Império do Brasil. Ao longo deste capí­
tulo, teremos a oportunidade de acompanhar alguns aspectos dessa longa his­
tória que antecede o censo de 1872.

93
Denire as diferentes aplicações da estatística apontadas por Haddock
Lobo, dava-se atenção especial às estatísticas médicas, criminais e de instru­
ção pública, publicadas, embora sem regularidade, nos relatórios ministeriais.

A preocupação em conhecer numericamente a população não é exclusi­


va do século XIX. Em 1776, a orientação sobre a relação anual dos habitantes da
capitania da Bahia, "dividida nas dez classes insinuadas”, procurava cumprir
“um ponto de tanta importância como é o de saber Sua Majestade o número de
vassalos que habitam nos seus domínios”. As dez classes mencionadas seguiam
o critério de idade e sexo, e o número de nascimentos e mortes naquele ano.
Talvez porque se tratasse de “vassalos”, não há referência a lugar de nascimento,
cor ou condição social (livre ou escravo).® Afinal, uma primeira divisão Já estava
estabelecida, pois a relação incluiría apenas os vassalos. O exemplo da época co­
lonial contrasta com o tipo de preocupação que orienta o Estado Já autônomo no
século seguinte; a noção de população como algo global - que por isso mesmo
precisaria ser distinguida com mais profundidade quanto à condição, nacionalida­
de e, eventualmente, à cor seu comportamento, sua equação com a produção da
riqueza, o número de eleitores, os impostos, o recrutamento militar. Enfim, a po­
pulação como algo cujo fluxo e movimento deveríam ser organizados.

Afinai, 0 uso da estatística foi paralelo à soberania do Estado imperial


sobre um território e uma população. Tentava-se articular, ainda que burocrati-
camente. a centralização das instituições mais locais (como o pároco e o juiz de
paz). O interessante na história desse processo, é que ele não foi desprovido de
turbulências, descentralizações, descaso, oposições e formas de resistência.

Indispensável seria a “estadfstica”, tal como era a palavra usada por


Bernardo Pereira de Vasconcelos ao apresentar o censo da população da Corte
empreendido era 1838, e que teve resultados bastante limitados. Reconhecia
de toda forma as dificuldades de tão precioso conhecimento:

Não quero eu dizer que possamos desde já ter uma estadística


completa, porque é ela obra de muitos anos, de muitos desve­
les. de muitas combinações, e estudos, e exige uma extensão
enciclopédica de conhecimentos, para o que é necessário o em­
prego de muitos talentos, e de muitos materiais: quero sim, que
se principie a corrigir os elementos, que hão de pouco a pouco
ir formando o grande volume deste interessante trabalho.’

04
Ao governo cabia pois a tarefa de implementar os meios de uma
estadística. forma da “força e grandeza de um país”, e para isso solicitava
o apoio da Câmara. “ Sem ela ou falham, ou dificuliam-se todos os cálcu­
los financeiros, e administrativos, e mal podem avaliar-se, e mesmo co­
nhecer-se os melhoramentos morais, físicos, científicos e políticos, que se
devem fazer na organização social, e nas suas diversas partes, e relações".'®
A palavra traduzia, portanto, a intrínseca relação entre aquele tipo de co­
nhecimento e 0 Estado.

A população e o território

Um dos elementos da gestão da população seria velar pelo seu cres­


cimento. tornando-a correspondente à “grandeza do Império". Fazer com
que a população crescesse dependia de seu controle e direcionamento. O
ministro do Império em 1834, Joaquim Vieira da Silva e Sousa, definia
meios “internos” de crescimento da população, que consistiam em ofere­
cer benefícios aos homens casados com renda superior a quatrocentos mil
réis para que obtivessem os “empregos" - leia-se empregos públicos - que
garantiríam o sustento de sua família. Mas também as "famílias de campo­
neses indigentes” teriam seu quinhão, sendo encaminhadas à formação de
“colônias nacionais” cm terras devolutas, próximas a estradas e rios nave­
gáveis. Os efeitos da gestão da população disseminavam-se: seleciona­
vam-se assim os empregados públicos, e a pobreza rural era transformada
em adequada ocupação territorial."

As palavras "população” e “colonização” conjugavam-se nos discur­


sos ministeriais.'® No conjunto dos relatórios evidencia-se que gerir a popu­
lação seria, entre outras medidas, transformá-la pela via da colonização. Co­
lonos seriam mais que simples habitantes ou unidades da população. Poderí­
am ser nacionais ou estrangeiros - ainda que cada vez mais tendessem a ser
preferidos os estrangeiros - e seriam, além de “braços para a lavoura”, com
"amor ao trabalho” , vetores de uma ordenação na ocupação territorial. Pre-
lendia-se que as colônias fossem lugares de ordem, dotadas de indivíduos
honestos, dedicados à agricultura. Ainda que tenham de certa forma fracassa­
do, considerando os principais eixos da economia do Império (sobretudo a
estrutura fundiária),'® a atenção constante do governo, expressa nos relatóri­
os, indica a importância do projeto. Os colonos eram entendidos como “bra-

i 9S
ços livres”, ao passo que os escravos seriam eternamenie escravos, ainda que
0 tráfico terminasse, e houvesse um aumento do número de alforrias.

Foram muitos os planos e idéias de transferir a população, de organizar


seu movimento caótico em benefício da ordem, retirando das cidades ou dos
campos seus segmentos “indolentes”, moldando-os ao progresso do Império. A
estatística procurava conhecer a população em seu movimento, e parecia não
haver, por parte das autoridades ministeriais, limitações para os projetos de como
traçar tais movimentos. Até porque o próprio tráfico, sendo lembrada sua proibi­
ção nos relatórios posteriores a 1831,'^ era uma questão de movimento. Movi­
mento populacional inconveniente, ao menos na aparência. Chegou-se a propor
o movimento inverso, de que o Brasil seguisse o exemplo da “Libéria dos ame­
ricanos”, e criasse um território para os africanos emancipados que aqui vaga­
vam, à mercê de ambiciosos exploradores, para quem eram distribuídos, mas
que não cumpriam suas obrigações. O que os tornava, contudo, perigosfssimos
era sua “opinião de livres entre os mais escravos”.*’ Tal afirmação ocorria em
ura contexto de apreensão, e mais especificamente no início de 1835, mesmo
ano da revolta dos escravos em Salvador, conhecida como Revolta dos Malês,

Porém, poucos anos antes, em 1827, a preocupação estatística era dis­


tinta, sendo o tráfico visto como elemento positivo na ocupação territorial. A
Comissão de Diplomacia e Estatística, condenando a convenção com a Ingla­
terra sobre o prazo para o fim do “comércio” de africanos, eiencava os prej,UT
ízos econômicos que daí advirtam, dentre os quais a dispensa do positivo flu­
xo, algo nefasto ao Brasil, na medida em que outras nações possuiríam Já uma
numerosa população. Traduzia-se o tráfico de escravos como “recrutamento
de gente preta”. Não antes de um remoto tempo futuro, e ocorrendo uma “mis­
tura de castas”, poderíam surgir daí benefícios maiores para a pátria.

É prematura [a convenção com a Inglaterra] por não termos por


ora no Império do Brasil uma massa de população tão forte, que
nos induza a rejeitar um imenso recrutamento de gente preta, que
pelo decurso do tempo, e pela mistura dc outras castas, chegafia'
ao estado de nos dar cidadãos ativos e intrépidos defensores da
nossa pátria. É extemporânea, por ser ajustada em uma época em
que a Câmara dos Deputados havia apresentado um projeto para
diminuir gradualmenie a importação da escravatura para o Bra­
sil; e por não nos pertencerem mais as Ilhas dos Açores, dc onde

96
Á
iios podia vir um imenso número de colonos infatigáveis, que
povoassem a beira*rnar, e os sertões do nosso Império.'*

Se não temos “colonos infatigáveis", fiquemos mesmo com a “gente


preta", esperando benefícios da “mistura de outras castas".

Ao contrário, o bacharel em direito Henrique Jorge Rebelo, em 1836, enfa­


tiza a opinião que parece começar a se tornar corrente, e que o ministro da Justiça já
defendera. Para ele, a reforma da população incluía a colonização por “nações civi­
lizadas", preferencialmente os alemães, suíços, irlandeses; como complemento, de­
veria ser providenciado o retorno dos “desgraçados africanos”, “entes sem cultura e
civilização", à África. Mais do que o desordenado crescimento numérico da popula­
ção, Rebelo defendia o aumento do número de “indivíduos cidadãos” :

Abandonar o infame contrabando de africanos, porque não é o


seu numero que fará aumentar a população do Brasil; essa não
nos convém. Deve introduzir as máquinas, sofrer ao princípio
algumas privações e incômodos, para depois perceber maior uti­
lidade, Não é 0 aumento de indivíduos o que faz a boa popula­
ção de um pais. é o aumento de indivíduos cidadãos. [...]

Sim, vão outra vez habitar as áridas margens do Senegal esses fi­
lhos de incultos campos, esses selvagens dignos da compaixão da
humanidade... Se o Brasil quer aumentar sua população, mande vir
colonos alemães, suíços e outros de outras nações civilizadas, que
os podem dispensar. Desta maneira não sentiremos a falta dos africa­
nos. e nossa civilização se engrandecerá. É preciso porém que o Bra­
sil faça adaptar as colônias a lugares próprios à sua manutenção.*’

Conhecer a população - entendendo essa ação como criadora de certa


realidade política - seria algo simultâneo à sua regulação e ordenação. No
caso da formação do Estado imperial as políticas para a composição da popu­
lação se faziam necessárias, administrando os fluxos internos e externos. A
noção de população é subsidiária da economia política, e o instrumento princi­
pal de objeiivação desta realidade seria a estatística, trazendo regularidade e
racionalização à ocupação soberana do território.

i 97
Artifícios de classificação

Em 1835, embora sem regularidade, mapas de batismos, óbitos e casa­


mentos passaram a acompanhar os relatórios ministeriais, procurando dar con­
ta do que se conceituava como movimento da população (nascimentos, mor­
tes, crescimento etc.). Um artifício de distinção e exclusão estava no cerne
mesmo dessa prática, na medida em que apenas os indivíduos batizados entra­
riam no conjunto supostamente universal da população. Periodicamente, a au­
toridade central organizaria um mapa tomand por base as listas locais enviadas
por cada freguesia. A idéia seria partir dos mapas das freguesias ao mapas
municipais, dos mapas municipais aos mapas provinciais, bem como, no tem­
po, elaborar, a partir dos mapas semestrais, mapas que abrangessem períodos
anuais. Os casamentos, batismos e óbitos seriam distinguidos entre livres e
libertos, de um lado, e escravos, de outro. Ou seja, a estatística ajudava a cons­
truir a realidade da divisão da população segundo o ser ou não escravo.

Todavia, às vezes faziam-se necessárias algumas curiosas observações,


sobre casamentos entre categorias diferentes, que escapariam ao modelo idea­
lizado: “Houve mais dois casamentos, a saber: um de homem livre com mulher
escrava, e outro de escravo com liberta”.'* Aliás, praticamente todos os mapas
sobre a população, tanto manuscritos quanto os modelos impressos, traziam
uma coluna à direita dedicada às “Observações”, onde se procurava adaptar o
inclassificável, que parecia assim constitutivo, sendo essa a melhor indicação
de que as divisões operadas não eram perfeitas nem absolutamente regulares.

O mapa organizado em 1835, relativo ao município da Corte, pode ser


assim esquematizado:*’

Casamenlos Batismos Óbitos


Freguesias Livres e Escravos Ui vres e Escravos Livres e Escravos
libertos libertos libertos

Não havia porém regularidade nas questões inquiridas por tais mapas.
Embora o mais comum fosse o esquema acima, consolidado pela distribuição de
formulários impressos, em algumas freguesias, mesmo na Corte, novo arranjo sur­

98
gia. Consultando outro conjunto documentaP (as listas originais enviadas ao mi­
nistro) percebemos tal dimensão. Três áreas rurais exemplificam esta variação. Na
Fazenda Nacional de Santa Cruz, o mapa operava as seguintes distinções:

Brancos Livres Escravos Total


Pardos Prelos Pardos Pretos
Nascidos masculinos
Nascidos femininos
Mortos masculinos
Mortos femininos
Casamentos

Esta tabela mesclava de forma curiosa a condição e a cor. Os brancos


estariam, nesse caso, explicitamente acima da inquirição sobre a condição. Ser
branco já dispensaria dessa classificação. Por outro lado, entre “pardos” e “pre­
tos” toma va-se importante distinguir quem era livre e quem era escravo, linha que
se tornava cada vez mais tênue, à medida que avançava o século e a crise da escra­
vidão.^* Digno de nota é que a categoria libertos não esteja definida nessa tabela.
Essa relativa indefinição, pelo aumento do número de homens livres e pobres, foi
aliás um dos grandes problemas da segurança policial urbana.^ Acarretou ainda,
segundo Hebe Mattos, mudanças nas formas de conceber e conquistar a liberdade:

A liberdade era, a princípio, um atributo do ‘branco’ que potenci­


alizava a inserção social e a propriedade. Durante a segunda me­
tade do século XIX, entretanto, esta representação da liberdade
começa a ter suas bases solapadas. O crescimento demográfico
de negros e mestiços, livres ou libertos, já não permitia perceber
os nâo-brancos livres como exceções controladas.^

Referente à Ilha do Governador, área também rural, em um mapa do mes­


mo ano, encontramos variável ainda mais rica, pois aparece uma coluna dedicada
â categoria índios. É o exemplo que mais regularmente faz uma distinção racial,
pois as grandes divisões iniciais são “brancos”, “índios” e “pretos”. Apenas em

99
relação ao último grupo distinguiam-se os libertos e os cativos, donde se deduz
também que aí não cabia a possibilidade de ser ‘'livre”. Neste caso, não apareceu
a categoria pardos. O mapa manuscrito estipulava a seguinte fórmula:

Brancos índios Pretos


Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres
libertos libertas cativos cativas
Batizados
Falecidos
Casamentos

Na freguesia do Engenho Velho dispensou-se a difícil tabela, optando-


se por uma simples lista com os batismos, óbitos e casamentos de “livres e
forros” e de “escravos” . Aparecem as seguintes categorias: branco, pardo, cri­
oulo, preto, preto de nação. Notamos a diferenciação entre os tres últimos ter­
mos. Quem organizou tal lista, se deparou com uma multiplicidade e preferiu
não reduzi-la às categorias mais gerais:

Batismos livres e forros; (...) brancos; (...) pardos


Dos escravos: (...) pardos. (...) crioulos, (...) pretos

Óbitos dos livres e forros; (...) brancos adultos, (...) pardos, (..,][
pretos dc nação
Escravas; (...) crioulos, (...) pretos de nação

Casamentos de livres e forros; (...) brancos, (...) pardos


Escravos: (...) pretos de nação

Ao constituir os mapas que constariam dos relatórios, o ministério pro­


curava criar uma regularidade, vencendo essa variação. Para perceber isso, bas­
ta comparar o primeiro mapa antes citado, e estas listas enviadas pelos párocos.

Ainda para ilustrar certa descentralização (mais de falo do que por princí­
pio) na organização dos levantamentos sobre a população, e procurar inventariar

100
os designativos empregados, consideremos alguns mapas ou quadros provinci­
ais.^'* Nas províncias havia também grande variedade nas expressões utilizadas.

O “Mapa estatístico da província de Sergipe de El Rey no ano de 1834"


apresentou uma divisão da população entre brancos, pardos, pretos e índios,
organizada, portanto, primordial mente, em função das cores ou raças. Em re­
lação a pardos e pretos fez-se uma distinção entre ingênuos (isto é, aqueles
que não nasceram escravos), libertos e cativos. Não se explicitou a categoria
de livres, o que indica novamente que esta seria o atributo de brancos.

Embora isso não pareça fazer parte de uma estratégia declarada, algu­
mas listas trataram apenas da população livre. O “Quadro estatístico da popu­
lação livre da província do Rio Grande do Norte organizado segundo os mapas
dos delegados de polícia nos diferentes termos da província", de 1849, classi­
ficava a população em brancos, pardos c pretos, e cada uma dessas categorias
em sexo, estado civil e idade.

Também não foi abrangida a população escrava em um mapa sobre 14


municípios da província da Bahia, de 1848, organizado pela Secretaria de Po­
lícia. A divisão se fez entre sexos e as "qualidades” brancos, pardos ou pretos,
Note-se a omissão da “qualidade” índio, que aparece em outras listas das pro­
víncias do Nordeste. Dispomos porém de curiosa observação: “Na cifra dos
indivíduos brancos estão compreendidos 676 índios de ambos os sexos, sendo
244 do termo de Nazareth, 96 da vila do Conde, e 336 da vila Verde”. Os
índios foram aqui incorporados, mas em lugar à parte, na categoria “brancos”.

A palavra mulato aparece em três mapas, todos relativos ao Nordeste


(Alagoas, Ceará e Maranhão), mas de um período anterior: final do século XVIII
e início do XIX. No “Mapa dos habitantes que existem na paróquia de Atibaia
no ano de 1805", além da idade, as categorias de cor utilizadas foram; brancos
(divididos por estado civil e sexo), pretos (divididos entre livres e cativos, e
apenas em seguida classificados nos mesmos itens dos brancos) e mulatos, divi­
didos da mesma forma que os pretos. Mais uma vez, não foi utilizada a categoria
Libertos. Essas listas demonstram que onde aparecesse a palavra mulato, não
ocorrería o termo pardo. O segundo termo porém se torna preponderante, nos
casos em que houve inquirição da cor. São estes também os termos utilizados na
lista do Maranhão, de 1798. No “Mapa da população da capitania do Ceará”, de
1813. aparecem os mesmos critérios, acrescentados de uma coluna relativa a
índios, que como os brancos não são inquiridos sobre condição cativa ou livre.

101
1
Verifica-se desse variado conjunlo de mapas sobre a população algu­
mas conclusões. Há uma intrínseca participação da cor e da condição na clas­
sificação; ambas aparecem imbricadas, de forma que certas cores limitam o
que pode ser inquirido sobre os grupos a que se referem. O grupo “índio”, que
não se define como uma cor, aparece como um grupo distinto de população,
um certo lado de fora, que parece incorporado, quando isso acontece, de for­
ma marginal. No que toca à terminologia empregada, os seguintes termos fo­
ram encontrados no conjunto aqui composto: brancos, pretos, pretos de nação,
pardos, crioulos, mulatos, índios; ressalte-se que não ocorre o termo mestiço e
nem, nos textos que eventualmente acompanham alguns quadros estatísticos, a
expressão mestiçagem. Uma última conclusão se impõe: a oposição entre li­
vres e escravos é a primordial, por ser a única que está sempre presente, mes­
mo no caso de mapas que tenham computado apenas a população livre. A irre­
gularidade da distinção da categoria dos libertos deixa transparecer uma ques­
tão política essencial do regime escravista no Brasil monárquico, no que diz
respeito aos estatutos de cidadania desse grupo. No capítulo anterior foram
examinados alguns exemplos de disputa dos “cidadãos de cor” pela participa­
ção no funcionalismo público e na Guarda Nacional, o que equivaleria a ter
sua cidadania reconhecida. A ausência de distinção entre os que nasceram li­
vres e os que, tendo nascido escravos, obtiveram a liberdade foi uma das ques­
tões decisivas que contribuíram para que não tenha existido o que Hebe Mat­
tos define como uma “justificativa racializada" da escravidão no Brasil.“

Descaminhos: a revolta contra o registro da cor

A primeira observação que nos interessa sobre os censos, legislações,


regulamentos e tentativas de censos durante o século XIX é a irregularidade
quanto à inclusão do registro da cor.

Embora só tenha havido ura censo geral do Império em 1S72 (no


sentido de uma contagem dos habitantes), várias tentativas anteriores de­
monstram a preocupação com essa questão. Na verdade, houve sucessivos
fracassos. De toda forma, no âmbito provincial e da Corte, vários arrola-
mentos da população foram realizados. Comecemos pelo âmbito geral, na
medida em que este foi o objetivo que orientou os demais, apresentando-
se o governo imperial imbuído da necessidade de conhecer a população
por meio desse mecanismo.

102
Um texto precioso foi escrito em 1870, anexado ao relatório do ministro
do Império, Paulino José Soares de Sousa, com o título Investigações sobre os
recenseamentos da população geral do Império e de cada província de per si,
tentados desde os tempos coloniais até hoje, por Joaquim Norberto de Sousa c
Silva, que além de ser então chefe de seção daquele ministério, era também histo­
riador, escritor e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Nas pági­
nas que se seguem, procuraremos utilizar e analisar as informações compiladas
pelo autor, confrontando e complementando seu texto com outros documentos do
período. As suas reflexões sobre a estatística compõem também o contexto teórico
e político aqui visado, como esta, expressa já na abertura do texto, com uma epí­
grafe assinada por Forjaz Sampaio sobre a ciência ali tentada: “A estatística é a luz
do legislador, do ministro de Estado e do diplomata; a prova e comentário de toda
a história, e o único fundamento seguro dos cálculos do porvir”.^*

Ainda na época da dominação portuguesa, na segunda metade do sé­


culo XVlll, manifestou-se a preocupação da Metrópole em conhecer a Colô­
nia. em sua riqueza e movimento da população. Mais tarde, a carta régia de 8
de julho de 1800 incluiu os levantamentos estatísticos entre as incumbências
do vice-rei. O aviso de 16 de março de 1808, por d. Rodrigo de Sousa Couti-
nho, ordenou o levantamento populacional, solicitando principalmente infor­
mações militares, cujo resultado final avaliou em quatro milhões de indivídu­
os a população da Colônia. Antes da emancipação política, houve o estudo do
conselheiro Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira, de 1819, A Igreja do Bra­
sil, reunindo diferentes materiais, não só da Igreja, mas mapas enviados pelos
capilães-mores à Intendência da Polícia em 1814, e mapas enviados pelas ou­
vidorias ao Desembargo do Paço em 1809, e entre 1815 e 1818, Nessa obra, o
conselheiro fez cálculos temporais de comparação do número da população, e
acrescentou números hipotéticos e estimativas. A população foi apresentada
como dividida entre livres e escravos; não houve informações sobre a cor.
Esses exemplos são interessantes para perceber os procedimentos tentados para
os levantamentos estatísticos iniciais: as fontes de informação, o uso das esti­
mativas e o tipo de preocupação, sobretudo econômica, militar c religiosa.

Em 1851, o senador Cândido Batista de Oliveira fez um cálculo sobre


a população do Império tendo como baseas eleições de 1834 para a Regência.
Aliás, um dos objetivos dos censos era exatamente estipular as bases da repre­
sentação política; já em 1821, o censo do Rio de Janeiro havia servido às elei­
ções para as Cortes Gerais de Lisboa. Em 1834, segundo o senador, como a lei
definia que haveria um eleitor para cada cem fogos (residénciasj. e o levanla-

lOJ
menlo feito chegou ao número de seis mil eleitores, haveria seiscentos mil
fogos e. tendo cada fogo a média de seis pessoas, o Império contaria então
com 3.600.000 habitantes. O autor lançava mão, em seguida, de extrapolações
sobre o tempo necessário para que houvesse uma duplicação desse número,
comparando o Brasil aos Estados Unidos, onde isto aconteceria no espaço de
20 a 25 anos, e calculou também a proporção da população escrava (um escra­
vo para cada dois habitantes livres), chegando afinal ao número de 5.520.000
livres e 2.500.000 escravos, perfazendo oito milhões de habitantes. Acrescen­
temos a observação de que os índios foram excluídos do cálculo. Está aí uma
amostra do que poderiamos chamar uma espécie de ‘"recenseamento de gabi­
nete”, notando porém que tais cálculos nunca eram dispensados mesmo quan­
do houvesse a realização do recenseamento. O estudo foi apresentado no Ins­
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, um dos muitos exemplos que indicam
a preocupação deste centro cora essa forma de conhecimento.

Uma série de atos legislativos acompanhou a ausência de um recense-


amenlo geral até 1872. Em 1823, estipulava-se que aos conselhos provinciais
caberia a organização de estatísticas; em 1826, se procurava criar “tábuas es­
tatísticas por um sistema uniforme”; nesse momento, esperavam-se resultados
prontos em maio do ano seguinte, na abertura dos trabalhos da Assembléia
Geral. O prazo foi pequeno, e nada foi apresentado. Em 1829, instituía-se a
Comissão de Estatística Geográfica, Natural, Política e Civil, formada por Jo­
aquim de Oliveira Alvares, José Maria da Silva Bittencourt, José Saturnino da
Costa Pereira, Conrado Jacob Niemeyer e Raimundo da Cunha Mattos; porém
a comissão foi extinta cinco anos mais tarde, em 1834, quando foi decretado o
ato adicional que transferiu a tarefa às assembléias provinciais, e à Assembléia
e ao Governo Gerais. Joaquim Norberto lamentava, todavia, a extinção da co­
missão, pois elu é que velaria pela uniformidade exigida:

Assim, debaixo de um plano bem combinado se colheríam si­


multaneamente, e por ioda a parte, os dados, empregando-se toda
a fidelidade e escrúpulo, que requer semelhante matéria, e exa-
minar-se-iam depois em comum, a fim de serem sistematicamente
coordenados. Ter-se-ia assim seguido uma marcha uniforme e
fácil, e em vez de um limitado número de trabalhos sem nexú>
sem a menor harmonia de idéias, ensaiado em períodos irregu­
lares, leriamos já excelentes subsídios que servissem de ponto
de partida, e de comparação para mais suados trabalhos.’’

KM
A dificuldade da centralização política e territorial expressava-se tam­
bém nesse aspecto.

Em 1830, em consonância com outras decisivas mudanças legais e


sociais que aconteceram naquele ano, como o fim do tráfico de africanos e a
Lei de Terras, a lei n“ 586 autorizava o governo a fazer os gastos necessários
para o censo geral. No ano seguinte, foi estabelecido o Regulamento para a
organização do censo geral do Império. Simultaneamente, foi criado o Regula­
mento para o registro dos nascimentos e óbitos, que só seria implementado em
1888. Mobilizava-se a estrutura burocrática, criavam-se cargos específicos e
remunerados, no âmbito geral, provincial, municipal e em cada freguesia. O
cronograma, envolvendo desde a distribuição das fichas impressas aos chefes
de família até os sucessivos e cada vez mais gerais mapas preparados pelos
vários agentes, era também estabelecido. Não estipulava a inclusão da cor na
identificação da população.

Art. 11 As listas deverão conter:


1° Os nomes de todas as pessoas da família, menos dos escra­
vos, dos quais bastará referir o número por sexo;
2® O estado (casado, solteiro, ou viúvo);
3®A idade;
4° A condição (ingênuo, liberto ou escravo);
5° O lugar do nascimento;
6° Se é estrangeiro, de que nação. Sendo brasileiro se fará de­
claração do cidadão naturalizado, e do que o não é. Sendo indí­
gena (caboclo) será feita menção da tribo a que pertence;
7®A profissão ou modo de vida;
8®A qualidade que representa na família (cabeça de família, mulher,
filho, parente, agregado, ou outra qualquer qualidade, por que se re­
pute fazer parte da família): tudo na conformidade do modelo n” l.“

O fracasso acabou sendo inversamente proporcional ao cuidado e à cla­


reza da proposta, os quais não ficaram intactos diante da realidade política e
social que os recebeu. Tanto o regulamento sobre o censo quanto o regulamento
sobre o registro civil foram suspensos já em janeiro de 1852, com um novo
decreto. A lei de 1846 que estipulara que o censo deveria acontecer a cada período
de oito anos ficava também sem cumprimento. A causa da suspensão teriam sido

i 105
revoltas contrárias, não especificamente ao censo, mas ao registro dos nasci­
mentos e óbitos, cm diferentes localidades do Nordeste. Segundo o relatório do
ministro do Império, as "manifestações criminosas"’ e "reuniões armadas" foram
fruto de um “boato arteiramente espalhado | ...J de que o registro só tinha por fim
escravizar a gente de cor". Em Pernambuco, tai boato "atraiu maior número de
desvairados, que em frenético deltVio o apelidaram —lei do cativeiro”.”

Ora. setores da população revoltaram-se contra o registro civil, asso­


ciando-o a uma tentativa de escravização. O episódio exige um exame mais
detalhado, pois o registro de nascimentos e óbitos não estipulava que a popu­
lação livre tivesse sua cor cilada; esta era exigida apenas para a população
escrava. Diante disso, é interessante investigar os acontecimentos. O decreto
n“ 798, de 18 de junho de 1851, estipulava que em cada distrito o Juiz de paz
leria um livro para o registro dos nascimentos e outro para o de óbitos. O
primeiro deveria ocorrer dez dias depois do nascimento, constando do livro,
caso se tratasse de homem livre, “a hora, dia. mês e ano, e lugar do nascimen­
to; 0 sexo, e nome que tiver, ou que houver de se dar ao recém-nascido; os
nomes dos pais, sendo filho legítimo, e não o sendo, o nome da mãe somente,
ou também o do pai que o reconhecer".

No caso de um recém-nascido que fosse escravo, constariam da lista;


“o nome do senhor, o dia e lugar do nascimento, o sexo, a cor, os nomes dos
pais. se estes forem casados, ou somente o da mãe, sendo ela solteira. E se
neste ato for conferida liberdade, is.so mesmo se declarará, portando o escri­
vão por fé a identidade da pessoa do senhor”.

Portanto, apenas para os escravos se exigiu a cor, nao para os livres. O


mesmo era válido para o registro de óbito.

Ainda assim, sendo um "boato” que afirmava que esta seria uma "lei
do cativeiro", é de se notar que um boato exige alguma veros.similtiança. Atra­
vés de diferentes relatos de algumas autoridades de Pernambuco, de finais de
dezembro de 1851 e primeiros dias de 1852, pode-se distinguir os contingen­
tes sociais envolvidos. O juiz de paz de Santo Antão falava em “povo mais
miúdo”, “pessoas incautas”, entre os quais se teriam espalhado “idéias bastan­
te anárquicas" com ameaças claras às autoridades. A resposta a ele dirigida
pelo presidente da província considerava a necessidade de se dissolver “os in­
fundados preconceitos" contrários ao Regulamento, “que em nada ofende, antes
protege os direitos e garantias dos povos”. Por essa negação, pode-se suspeitar

lo r.
que estivesse cireulundo exatatnenle esta idéia, de que os “direitos e garantias
dos povos" estavam sendo ameaçados. O presidente dirigia-se também aos pá­
rocos, dentre os quais alguns pareciam ser indiferentes, no mínimo, a esses mo­
vimentos. Aposição dos párocos comporta uma ambiguidade, pois eles próprios
eram funcionários do Estado; por outro lado, como membros da Igreja, talvez
resistissem a não mais controlar uma atividade que por séculos lhes coube.

A resistência vinda da Igreja se fez presente em outras instâncias. No


final de 1851, era publicado um pequeno artigo no Diário da Rio de Janeiro
assinado pela “Tribuna Católica”, com o título “Os batismos e o regulamento",
onde se condenava a ordem de que todo padre só poderia batizar as crianças
após estas terem sido registradas no registro civil, abrindo-se exceção apenas
para crianças moribundas. O artigo era concluído com a sentença; ‘Trossiga o
governo nas suas investigações estatísticas, e deixe à Igreja a sua liberdade”.’*

O delegado do termo de Pau d’Alho testemunhou uma “sublevaçâo da


plebe”, fundada na idéia de que “esta lei é para os cativar”, O subdelegado da
freguesia do Divino Espírito Santo advertiu ao chefe de Polícia que se acredita­
va na iminente impressão de um “papel” cujo conteúdo seria uma “declaração de
escravidão”, e que havia grupos que impediríam que este papel fosse tornado
público, com a ameaça de que "o leitor do papel morria [morrería]”. Nota-se aí
daramente uma recusa à escrita enquanto representação do poder. Nesse caso o
relato traz alguma precisão sobre os envolvidos, referindo-se a um tanoeiro, a
um carpinteiro e a um “Tomás cabrito” como líderes do “sublevado grupo”, que
tocando viola, marcharam armados pelas ruas da localidade, sendo aplaudidos
pelos moradores. Essa autoridade policial classifica o movimento como uma
“insurreição”, crime definido no Código Criminal. Outro relato, do delegado
suplente da mesma localidade, aborda também um suposto “edital” e a ameaça
da “gente baixa” de que “quem primeiro morre é o vigário e o escrivão”.

O proprietário de um engenho em Lage queixou-se de que os “mora­


dores” estariam sendo insuflados por alguns a atentarem contra sua vida e a de
sua família, “dizendo-lhes que os filhos destes, de quem ultímamente fui pa­
drinho, estavam lançados no Itvró do vigário como meus escravos”. Nesse caso,
o próprio vínculo do compadrio, cliente!ista e paternalista, estaria sendo rom­
pido.’^ Esse mesmo proprietário, que era também o diretor-geral dos índios,
insinuou que aqueles episódios talvez tivessem alguma continuidade com os
movimento.s de 1848 naquela província, pois fala em “revolução” ed o tempo
em que morreram tantos pernambucanos.

i 107
A idéia de que o decreto “tem por objeto escravizar a todos os recém-
nascidos e aqueles pardos que forem batizados com as formalidades prescri­
tas” fez-se presente também em Nazaré, onde apareceram “mais de quarenta
indivíduos armados para se oporem ã fixação do edital”, um número muito
superior ao da força policial com que contava o delegado daquele lugar.^^

A intensa mobilização, armada, contra o registro de nascimentos


indica que a ameaça de escravidão sentida por aquele “povo mais miúdo”
ligava-se não a uma ignorância, mas a uma forte indisposição com a lin­
guagem oficial que os classificaria como pretos, pardos ou cabras. Indica
também a percepção de que a atividade estatística não era neutra, e que de
alguma forma consistia em uma dominação, a qual concretizava-se na es­
crita, no registro - o “edital” , “a impressão de um papel” cujo leitor mor­
rería, o “livro do vigário" instrumento de poder que pretendería fixar
uma situação, exorcizando quaisquer r a o b ilid a d e s ,A escrita desempe­
nha aí a função de veículo das decisões da Justiça, representa o poderj
além de ser elemento de seu ritual. O registro de nascimentos só foi reto­
mado novamente após a Abolição da Escravidão, em 1888.

Igualmente infecundo projeto de centralização das informações sobre


a população surgiu em 18SS, com a Sociedade Estatística do Brasil, que aca­
bou dissolvida. As províncias continuaram entregues a medidas improfícuas, e
seus censos “eivados de vícios e inexatidões”. O governo geral encontrar-sé-
ia, assim, paralisado.

As autoridades teciam considerações sobre a necessidade urgente de


realizar tal projeto, sugerindo algumas medidas, como criar cargos específicos
para cuidar do censo e “ilustrar” a população para que não sucedessem nova­
mente acontecimentos como os do Nordeste.

Sc lemos tomado parle nos festins da indústria celebrados pelas


nações de além-mar, porque também não iremos sentar-nos nO
congresso estatístico das nações? [...| É vasto o nosso Império e
quase tão extenso quanto a Europa. A sua população, notável
pela heterogeneidade das raças e condições sociais, que a conS"
liluem, acha-se disseminada pela imensa área de seu território,
que a não ser assim, seria Já mui suficiente para nos dar mais
força, e para incutir maior respeito.^’

108
o primeiro recenscamemo geral do Império acabou sendo realizado
em 1872, Seguindo a tendência que se pode depreender do relato de Joaquim
Norberto. bem como do exame dos relatórios do ministério do Império do
período que se estende entre as décadas de 1830 e 1870, não houve inquirição
sobre a cor da população. Pode-se arriscar a hipótese de que, no âmbito do
discurso imperial mais central, na figura do ministro, não cabia explicitar a
diferença da população nesses termos. A partir de acontecimentos como as
revoltas no Nordeste, pode-se suspeitar o porquê dessa opção pelo silêncio,
Esses acontecimentos indicam, também, que havia diferentes motivações para
a resistência à estatística e ao que ela representava, não apenas entre os “che­
fes de família", mas também entre a “gente baixa”.

Raças estranhas habitam a província - Rio de Janeiro

Vejamos a história dos censos no âmbito da província do Rio de Janei­


ro, continuando a acompanhar o texto de Joaquim Norberto de Sousa e Silva -
tanto fonte de informações como revelador de seus valores e dos valores de
sua época acerca do tema. Embora em relação à profusão às vezes confusa de
leis haja semelhança com as tentativas de recenseamento geral, quanto ao que­
sito cor despontou uma perspectiva diferente na província do Rio de Janeiro.

Ainda antes da realização do primeiro recenseamento na província


em 1840, sob o governo de Paulino Soares de Sousa, a Assembléia Provin­
cial estabeleceu por meio da lei n“ 11, de 4 de abril de 1835, um “aparato-
so elenco” , segundo Joaquim Norberto, que iria nortear o ensaio de uma
estatística em um ou mais municípios. O autor critica porém seus critéri­
os, afirmando-os ultrapassados. Incluía-se a divisão em cores, bem como
a abordagem da população em “seu caráter, seus hábitos, costumes, vícios
e enfermidades”, e em relação aos indígenas, além do levantamento numé­
rico, “seu aproveitamento e razões de sua apatia” .^* A complementaridade
entre o governo da população, a economia política, e o que poderiamos
chamar de comportamento moral ou cultural fazia parle da própria gênese
dessa ciência. Como Já discorria Jean-Jacques Rousseau sobre a economia
política: "Governar um Estado significará portanto estabelecer a econo­
mia ao nível geral do Estado, isto é, ter em relação aos habitantes, às ri­
quezas, aos comportamentos individuais e coletivos, uma forma de vigi­
lância. de controle, tão atenta quanto a do pai de fam ília” .^'’

too
Na Memória e considerações sobre a população do Brasil, texto es­
crito em 1836 e republicado pela revista do Instituto Histórico em 1867, Hen­
rique Jorge Rebello demonstrou compartilhar do mesmo olhar sobre a popula­
ção, que deveria, antes de mais nada, ser reformada em sua “corrupção de
costumes’’, sua “indolência natural ou adquirida”, sua cobiça, sua “incontinên-
cia pública” ou “libertinagem”. Tais aspectos fazem parte, ao lado de questões
como propriedade, impostos, recrutamento, de sua concepção de "estadísti-
ca”.^* Joaquim Norberto compartilhava o cuidado com tal dimensão da popu­
lação, assim como os dirigentes imperiais inquietavam-se com o ócio, a vadi­
agem, a desordem, a presença indesejada. Mas deveria reconhecer a dificulda­
de de implementar tais quesitos (inclusive o da cor) em um recenseamento.
Podemos supor que. para ele. caberiam tais tarefas a outras técnicas de gover­
no mais precisas e imediatas, como a polícia e a medicina pública. Pode-se
citar, como exemplo, a estatística médica, que incluía entre seus objetivos co­
nhecer a população em sua “índole e costumes”.^’

O presidente da província do Rio de Janeiro apresentava o censo orga­


nizado em 1840: “Nesse mapa encontrareis a totalidade da população de cadà
freguesia ou curato, de cada município e comarca, e bem assim a da livre e
escrava da província, da branca, indígena, parda e preta, com especificação de
sexo. Vereis que a totalidade apurada remonta a 407.212 almas”.

São acrescentados alguns números e cálculos, como o da população


da Corte e a estimativa sobre as localidades que não entregaram os mapas
solicitados. O presidente da província não dissimulava as dificuldades encon­
tradas, a falta de preparo dos inspetores de quarteirão e Juizes de paz, o temor
de "pessoas da família” quanto ao recrutamento e novos impostos, e advertia
que, sendo os censos periódicos elementos utilíssimos para o governo, mesmo
imperfeitamente eles deveríam .ser realizados, pois dessa forma “habituaremos
nossa população a não desconfiar de pesquisas”.^® Percebe-se que o que ele
denomina desconfiança, e que talvez possamos denominar a resistência de gru­
pos sociais às "pesquisas”, era algo constante.

Também no censo de 1848 houve a classificação da população da pro­


víncia em "condições, raças, sexos, idades, nacionalidades, estados e ocupa­
ções”. Nesse caso, propunha-se que cada mapa seria dedicado a uma raça,
embora esta sempre fosse referida à condição social; brancos, indígenas, par­
dos livres, pretos livres, pardos escravos, pretas cativos. De uma divisão por
cores passamos a uma classificação por raças.*' Mas a mudança não era defi­

no
niliva. havendo antes uma variação entre os termos, de toda forma predomi­
nando 0 uso da noção de cor no conjunto dos levantamentos. Como será nota­
do adiante, a partir de 1872 o conceito “raça” assume importância nos censos.

Em 1850, foi criado o Arquivo Estatístico com a incumbência de orga­


nizar de quatro em quatro anos o recenseamento da população da província.
Seguiriam exatamente as mesmas disposições do Regulamento de 1851 sobre
o censo geral do Império que, como já explicitado, não estabeleceu inquirição
sobre a cor da população. O primeiro dos censos, feito naquele mesmo ano sob
a direção de Ângelo Thomaz do Amaral, é considerado por Joaquim Norberto
um dos melhores já realizados no Império.'*^ Após apresentar metodicamente
não só o número total da população - que como os outros engloba cálculos,
estimativas, somas hipotéticas - , mas também a proporção entre população
livre e população escrava, articulada ao número de homens e mulheres, o faz
também para a composição racial, assim justificada por Ângelo do Amaral:
“Não sendo, porém, a nossa população homogênea, mas composta de raças
que existem debaixo de condições diversas, convém estudá-las separadamente”.

Abre-se um tópico sobre a população livre, seguindo-se o número de bran­


cos, divididos entre homens e mulheres, com notação sobre a “Relação do número
de homens para o das mulheres” e o mesmo para indígenas, pardos e pretos. Acer­
ca da população escrava apresenta os números de pardos e pretos, sempre com a
relação entre o número de homens e o de mulheres. As tabelas são comentadas:

Os precedentes algarismos entre outros resultados deixam ver: 1®


que a classe livre é inferior em número à escrava; 2”que na popu­
lação branca e na escrava tanto parda como preta há mais homens
do que mulheres, o que é contraditório ao fato que alguns estatís­
ticos dão, como averiguado, de estarem as mulheres em maioria
por toda a parte; 3® que entre os indígenas, os pardos livres e os
pretos livres avultam mais as mulheres do que os homens.

A questão da superioridade numérica da população escrava em com­


paração com a população livre constituiu um tema polêmico entre os respon­
sáveis pelas estatísticas, pois colocava em ameaça a segurança, além de gerar
um retrato um tanto incômodo sobre a população.^^ O recenseador Ângelo do
Amaral, após indicar essa característica na província do Rio de Janeiro, cuida-

III
dosamerte acrescenta que houve ou há países em que a população escrava
representava ainda maior proporção, chamando a atenção para o problema do
recrutamento em um país escravista.

O exemplo torna-se ainda mais relevante quanto às práticas de identi­


ficação aqui visadas se confrontado com o relatório ministerial: o ministro
suprimiu as informações sobre a composição racial da população, apresentan­
do o número de livres e escravos, divididos entre os sexos.'*'' Omitiu os dados,
já apresentados, sobre as “raças”.

A regularidade dos recenseamentos provinciais, estabelecida em dife­


rentes leis, nunca foi cumprida. Em 1852, a cólera era o obstáculo da vez. O
censo seguinte, incompleto, realizado em 1856, mas apresentado pelo presidenr
te da província apenas em 1858, articula de forma múltipla a condição e a cor. A
população livre, 224.946 almas, foi dividida em ingênuos (211.441) e libertos
(13.505). A distinção entre ingênuos e libertos articulava-se com as fronteiras
entre a sociedade política e a sociedade civil. Os ingênuos eram considerados
desde a Constituição de 1824 como parte dos “cidadãos brasileiros”. Quanto aos
libertos, inúmeras restrições se acumulavam, como a sua exclusão da Guarda
Nacional em 1850. Outra divisão articulada por aquele censo foi entre brancos,
indígenas, pardos e pretos, seguindo o padrão anterior; também se indagou so­
bre o estado civil e a nacionalidade. Já a população escrava, de 184.243 indiví­
duos, foi dividida em pardos e pretos; em crioulos e africanos e em estados. As
somas induzidas, porém, faziam chegar a ura resultado mais expressivo;

Não andará entretanto errado quem a orçar por mais de SOO.OQO


almas, pois, como é sabido, no nosso país ainda se não compre­
endem as vantagens de um recenseamcnto de seus habitantes, ,e
muitos se furtam a dar os menores esclarecimentos, quer sobre
as pessoas livres de que se compõem suas famílias, quer sobreo
número de escravos que possuem; receando, quanto às primei­
ras, que os dados que forneceram se prestam para obrigá-los aos(
serviço do Exército e da Armada, e quanto aos segundos, qúe
sejam motivos para novas imposições.*’

Mais uma vez uma autoridade manifestava sua inquietação diante de


uma resistência ao recenseador, motivada pelo medo do recrutamento e do fisco.

112
A partir dessa amostra dos censos na província do Rio de Janeiro per­
cebe-se um maior detalhamento, em comparação seja aos censos que se tentou
realizar, seja às estimativas sobre a população geral do Império. Esse detalha­
mento incluiu a inquirição das cores ou das raças. E confrontar a relação que
diferentes instâncias do Estado imperial mantiveram com essa inquirição cons­
titui uma interrogação que parece útil levantar.

A odiosa classificação por cores: a Corte

Na capital do Império, a seqüéncia de malogros se repete, embora


tenha sido ligeiramente menor devido, talvez, ã função política da cidade.
Em 1834, conta-se uma tentativa fracassada^ que, segundo Mary Karasch,
inquiriu a população a partir da cor, da ocupação e da nacionalidade. Se­
gundo as categorias apresentadas pela historiadora, a classificação teve
os seguintes termos; brasileiros livres (brancos e pardos), negros livres de
nações diversas, estrangeiros, escravos. Naquele momento do período re-
gencial ceriamente a expressão “brasileiros livres” linha um significado
especial, merecendo nomear uma das categorias do censo; afinal, se já
havia uma categoria de estrangeiros, a notação de brasileiros não era es­
tritamente necessária. Outro ponto que chama a atenção é que em relação
aos escravos a nacionalidade não constituía uma questão. Esse arrolamen-
to não foi referido por Joaquim Norberto em seu texto, o que indica que
sua análise operou seleções. Em 1838, sob os auspícios do ministro do
império, Bernardo Pereira de Vasconcelos, e à luz da “estadística”, foi
feito um recenseamento. As principais colunas apresentaram os seguintes
títulos: “Homens”, “M ulheres”, “Escravos” (apenas em seguida divididos
entre homens e mulheres) e “Estrangeiros”.'*^ O fato de que as duas tenta­
tivas da década de 1830 não tenham definido a categoria dos libertos pode
ser mais um indicativo das tensões que tal distinção poderia trazer.

Em 1845, um ofício da Polícia estipulava uma “Instrução para se


regularem os inspetores de quarteirão na confecção do mapa do arrola-
mento dos habitantes do mesmo município". Embora eu não tenha encon­
trado nenhuma outra referência à realização de um arrolamento naquele
ano, as categorias, formas de classificação e módulos utilizados são ex­
pressivas da sua própria arabigüidade. Cada uma das “casas” exigia res­
salvas, exceções, explicações, apontando para o que era incluído e exclu-
ído em cada uma. No item “Pessoas existentes na famíiia’’. se esclarecia
que não deveriam ser incluídos escravos ou africanos livres. No grupo dos
“Brasileiros” seriam compreendidas “todas as cores inclusive pretos li­
vres (crioulos) nascidos no Brasil”. Sobre os escravos, se deveria incluir
"os de todas as nações ainda mesmo os nascidos no Brasil". Percebem-se
algumas oposições reveladoras: os escravos não poderiam ser considera­
dos “ Brasileiros”, Por outro lado, a própria ressalva de que os “pretos
livres", se aqui nascidos, poderiam entrar na contagem dos “Brasileiros”
indica que esse era um tema de dúvida. Quanto aos “Estrangeiros", a ins­
trução policial advertia que aí seriam computados “todos os que não fo­
rem brasileiros sejam de que nação forem incluindo mesmo africanos li­
bertos". Uma última observação indica ainda outras dúvidas; "Os africa­
nos vão só englobadamente mencionados na casa respectiva; os seus fi­
lhos porém nascidos no Brasil devem vir na casa 'Pessoas existentes nas
fam ílias’ - com as demais declarações que estas pessoas Esse do­
cumento é um vestígio rico das tensões do trabalho cotidiano do recense­
ador diante da complexidade da população da cidade.

O Ministério do Império, naquele mesmo ano de 1845, encaminhou


um pedido para que fosse feita uma relação dos índios existentes na Corte.
Em diferentes anos dos relatórios ministeriais, a preocupação com os índios
englobava o conhecimento de seu número.'** A Câmara Municipal responr
deu afirmando que o pedido deveria ser encaminhado ao chefe de Polícia,^®
A preocupação com os índios ancorava-se na tentativa declarada de evitar a
exploração ilegal da mão-de-obra indígena. Assim o ministro anunciava 0
resultado no tópico "Catequese e civilização dos indígenas":

O governo tem dado as convenientes providências para melho­


rar a sorte dos indígenas, que, por abusos dc remota data, se
acham em muitos lugares quase reduzidos à condição dc escra­
vos. Segundo uma relação organizada na repartição da Polícia
desta Corte, no respectivo município existem cinquenta e dois
de ambos os sexos, e dc diferentes idades cm casas particulares,
uns a título de agregados, outros a título de se educarem, outros
porém mui poucos, vencendo algum salário, mas todos sem ajuste
por escrito, e talvez bem poucos com ele mesmo vocal. Aquela
relação foi transmitida ao Juiz dc úrlaos. para fazer proceder
aos convenientes contratos de locação de serviços.*'

lu
0 recenseamento de 1849. organizado por Haddoek Lobo, não teve
questionamento sobre a cor. Haveria na cidade 116.319 livres, 10.732 libertos
e 78.855 escravos, totalizando 205.906 habitantes. A apresentação final dis-
tinguia a população entre sexo, as condições livre, liberto ou escravo e a naci­
onalidade (nacionais ou estrangeiros). No entanto, as listas a serem feitas por
cada inspetor de quarteirão sobre cada residência ou “fogo" trariam mais algu­
mas informações, como idade, estado e profissão. Muitas dificuldades citadas,
como por exemplo a numeração irregular das ruas, talvez não tenham sido
mais difíceis de serem vencidas que a imposta por “chefes de famílias remis-
sos e que não podem ser compelidos a este dever em consequência de tal ou
qual consideração, que gozam inerente aos lugares que exercem” . No texto
que acompanha o manuscrito do recenseamento, o responsável justifica: “aban­
donamos a classificação por cores” porque, “além de odiosa, deveria sair mui­
to imperfeita pela infidelidade com que cada indivíduo faria de si próprio a
necessária declaração; contudo poder-se-á saber muito aproximadamente qual
é a soma da gente de cor, se diminuírem da totalidade todos os indivíduos
escravos, libertos e mais um terço dos livres.”

Embora tenha dado uma fórmula sobre a questão da cor, Haddoek Lobo
não apresenta as bases que a sustentariam. Ou seja, além do número dos escra­
vos e dos libertos, por que razão um terço dos livres seria parte da população
de cor? Mais expressivo é que o próprio poderia ter apresentado tal cálculo,
porém parece ter realmente procurado se eximir de apresentar o resultado: o
número de “gente de cor” superaria o dos demais, totalizando 167.133, contra
apenas 38.773 brancos.

“Odiosa” seria a atitude de classificar a população em suas “cores”.


Infelizmente, Haddoek Lobo foi muito discreto em relação à sua opinião, não
acrescentando os valores que o moveram. Mas é interessante examinar sua
atitude ao desempenhar uma outra função pública. O médico atuou como sub-
delegado no Rio e, nessa atividade, não hesitou em falar em “ajuntamento de
mais de duzentos pretos" e em “pretos armados”, quando narrou um ingrato
episódio de repressão a um batuque na freguesia do Engenho Velho. Um dos
escravos de Haddoek Lobo. além dos quatro que reforçaram o exíguo número
de três policiais de que dispunha na ocasião, acabou ferido e um transeunte
que tentou ajudar a polícia foi morto. Em desvantagem, a força repressiva teve
no fundo uma surpresa, pois se tratava da chácara de algum cidadão conheci­
do, o que impedia os soldados de imaginar tão numerosa e perigosa reunião de
“pretos". Autoridades superiores organizaram então, cautelosamente, uma in-

115
tervenção maíor e com investigações prévias. Afinal, conseguiram reprimires
pretos minas reunidos em volta de orações e rufar de tambores. Na ocasião
foram apreendidos escritos indecifráveis que causaram profunda apreensão.*^

Em relação a esse tipo de prática da polícia, os segmentos sociais vi­


sados como suspeitos, e de toda forma os submetidos ao patrulhamento, eram
específicos. Como se, nesses grupos, não houvesse grande variação. Estabele­
cida a classificação por cores no censo, esta seria odiosa na medida em que
podería criar embaraços em outros segmentos. Sem contar a suspeita de que ã
“gente de cor” seria mais numerosa.

A segunda razão apresentada por Haddock Lobo para a ausência da


inquirição da cor seria a “infidelidade” era que cada indivíduo incorreria em
sua declaração. O recenseador reconhecia o lapso entre a precisão de sua ciên­
cia e a burla, dada praticamente como certa, quando cada indivíduo devesse
fazer a declaração sobre si próprio, É como se o silêncio sobre a cor estivesse
baseado numa vontade comum e considerada inevitável de dissimular a pró­
pria identidade.

Durante 21 anos esses foram os números disponíveis sobre a popula­


ção da Corte, uma vez que a tentativa de 1856 fracassou por culpa de subdéle-
gados de algumas freguesias que ou não fízeram o recenseamento ou o fizeram
de forma incompleta. Dessa vez, também não houve classificação das cores na
organização do censo.’^

Em 1870, Paulino Soares de Sousa, então ministro do Império, estipula­


va as instruções para o arrolamento a ser feito em 17 de abril desse mesmo ano:

Sua Majestade o imperador, atendendo à conveniência de proce­


der-se desde já a um arrolamento da população do município da
Corte, com especificação da condição, idade, religião, estado e
profissões dos habitantes, trabalho este que, interessante sob vá­
rios aspectos para o estudo e apreciação de muitos fatos sociais, é
imprescindível para regular-se convenientemente a distribuição
do ensino primário garantido pelo art. 179 § 32 da Constituição,
c para efetuar-se uma melhor divisão e organização administrati­
va do mesmo município: há por bem que na execução do referido
trabalho sejam observadas as seguintes instruções

116
Criava-se toda uma seqUência burocrática (comissão central, distrital,
subcomissões) para driblar os já conhecidos obstáculos. Procurava-se ainda
regularizar as listas com as informações:

Art. 9“ Cada lista conterá:


I" Os nomes de todas as pessoas que ocuparem habitualmcntc
aquela morada, tanto as que propriamente constituem a familia,
como os agregados e escravos:
2° O sexo, condição, idade, religião, nacionalidade, estado e
profissão de cada uma: [...].

Não haveria portanto distinção por cor. Merece comentário a utiliza­


ção das categorias centradas na família e na casa: “pessoas da família”, “agre­
gados”, “escravos”, em contraste com as já comuns práticas do “viver sobre
si", ou seja, tanto da moradia separada quanto de certa e limitada “autonomia”
econômica dos escravos de aluguel.’®Enfim, como tal modelo seria preenchi­
do cm um cortiço? Os escravos, ainda que morando longe do proprietário,
seriam registrados nas fichas preenchidas pelos “cabeças da família”? São
questões da tensão entre o recenseador e as vicissitudes da história das últimas
décadas da escravidão. O modelo distribuído para ser preenchido era o seguinte:

Lista dos moradores da casa n... da rua..., quarteirão... do... distrito da


paróquia de... do município da Corte

Nomea Idade Religião Nacionali­ Estado Profissão Observações


dade (viúvo,
solteiro ou
casado)
Pessoas da família
Agregados
Escavos

Assinado por Jerônimo Martiniano Figueira de Melo e demais mem­


bros da comissão, o relatório comentou as informações, traçando proporções
entre habitantes rurais e urbanos, número de fogos, número de habitantes era

117
cada fogo ou edifício, número de escravos e livres, menores e maiores, ho­
mens e mulheres, estrangeiros e nacionais etc. Procurou-se enfim o “movi­
mento da população” a partir dos mapas de batismos, óbitos e casamentos, e
1
traçando paralelos com os censos de 1838 e 1856. Curioso é que não tenha
sido feito senão uma referência ao censo de 1849, desqualificando sua veraci­
dade (o que em geral é contestado exalamenie para os dois levantamentos cita­
dos, sobretudo o de 1856). Talvez isso se explique porque a comissão defendia
a tese da diminuição progressiva do número de escravos em 1838,1856e 1870,
Os censos poderiam, portanto, servir a uma concepção de direcionamento ou
mesmo evolução da história do país. Um olhar sobre o tempo, a partir da no­
ção de “movimento da população”, que em 1870, final da Guerra do Paraguai,
véspera da Lei do Ventre Livre, talvez tivesse pouquíssimo interesse em gerar
um retrato da população marcado pela face escrava. O total apresentado é o de
que haveria 235.381 habitantes, sendo 50.092 escravos e 185.286 livres; não
foi feita a distinção dos libertos. Segundo os autores desse relatório, o recen-
seamento de Haddock Lobo teria superestimado o número de habitantes do
município da Corte.’’

Tomando por base certos cálculos e estimativas, a comissão pretendia


mostrar que o censo de 1856 poderia ser validado. E, à diferença do que teria
acontecido em 1849, dessa vez o censo seria exato;

É verdade que algumas pessoas, levadas por má vontade ou fal­


ta de zelo c amor do bem público, ou mesmo por temores de que
com o serviço do recenseamenlo se envolvesse alguma medida
militar ou do fisco, deixaram de entregar as listas pedidas; mas
a comissão pode asseverar que o número dos recalcitranies não
é elevado, e que sua omissão, aliás prevista e prevenida pelas
ditas instruções, foi em geral satisfatoriamente suprida pelos
inspetores de quarteirão com as informações que chegaram ao
seu alcance, e não lhes era difícil conseguir, uma vez que ti­
nham em seu poder as listas de família dos seus respectivos quar­
teirões na forma das ordens em vigor.’*

O êxito teria dependido sobretudo da postura dos habitantes diante dos


censos. Embora os recalcitrantes ainda existissem, aquele momento parecia (se­
gundo os recenseadores) estar marcado por uma população mais obediente;

118
1...] os habilames das freguesias do município da Corte conven­
ceram-se dc que o censo, que se tratava de organizar, nâo tinha
por fim agravar impostos, ou o serviço militar, mas somente
conhecer a população real, que até então era um mistérii), o qual
cumpria desvendar, pois motivava apreciações e deduções errô­
neas, de que eram vítimas não somente o governo, mas também
os particulares.”

A instrução pública, seguindo as recomendações do ministro, é


apresentada a partir da insuficiência do número de “menores” que estava
na escola em relação à população total. Aliás, se no campo do recensea-
mento a estatística enfrentou tantos obstáculos, isso não acontecia em re­
lação à instrução, sobre a qual foram formulados constantes e numerosos
quadros e mapas, nos diferentes níveis e localidades.

Esses recenseamentos populacionais relativos à cidade do Rio de


Janeiro são indícios das disputas e cisões internas ao que apenas aparente­
mente seria unitário, o Estado. E de que a linguagem oficial sobre a popu­
lação também não foi unitária.

O Censo Geral do Império de 1872

A primordial forma de classificar a população do Império entre


livres (quase oito milhões e meio) e escravos (um milhão e meio) não só
se mantinha intacta neste censo, como se resguardava pela distância de
dois “quadros" distintos para cada um dos grupos. Menos óbvia, e portan­
to digna de nota, é a ausência, ao menos no resultado final,“ da categoria
libertos, seguindo a tendência do arrolamento de 1870 do município da
Corte, apesar do crescente número de alforrias então verificado.

Mas há algo que, mesmo não sendo então absolutamente inédito,


destoava dos censos até então produzido.s. Trata-se da categoria “raças”, ã
qual se dedicou uma tabela específica dentre outras que compõem o “Qua­
dro geral da população livre considerada em relação aos sexos, estados
civis, raças, religião, nacionalidades e grau de instrução, com indicação
dos números de casas e fogos”.

114
Raças
Dos liomcns Das mulheres
Brancos Pardos Prelos Caboclos Brancas Pardas Pretas Caboclas
Município 06.255 22.762 14.198 665 55.544 22.083 14.268 258
neutro
Império 1.971,772 1.673.971 472,008 200.948 1.815.517 1,650.307 449,142 186.007

A primeira linha de niimeros refere-se ao município neulro e a segun­


da ao Império. Pela primeira vez, portanto, tal eixo de distinção aparece tão
explícito em um quadro populacional. Não foi inquirição exclusiva dos habi­
tantes livres. O “Quadro geral da população escrava considerada em relação
aos sexos, estados civis, raças, religião, nacionalidades e grau de instrução"
apresenta também uma tabela de “raças", embora marcada pela ausência dos.
termos branco e caboclo.

Raças
Dos homens Das mulheres
Pardos Pretos pardas Pretas
Município 5.275 19.611 5.786 18.267
neutro
Império 252.824 552.346 224.680 480.956

Os índios foram transformados em caboclos, termos que poderíam ser


utilizados como sinônimos, ainda que o segundo pudesse ter um sentido mais
abrangente. Na verdade, exataraente essa transformação dos índios, no sentido
mais estrito, em caboclos, designando já a “domesticação” pela via dos aldea-
mentos, ou pelas diferentes vias tentadas, incluindo a força e a guerra mais ou
menos explícitas, era importante preocupação do Império quanto à sua popu­
lação e. nesse caso, sobretudo em relação à questão da t e r r a .P o r volta da
década de 1870, a Comissão de Demarcação das Terras Públicas utilizava o
argumento da mestiçagem para extinguir os aldeamentos, redistribuindo seus
limites territoriais. Quase sempre, chegavam à conclusão de ura grau de mistu­
ra demasiado, e a substituição do termo índio pelo termo caboclo - e, mais
tarde, sua inclusão na categoria pardo (como aconteceu na maior parte dos
cen.sos realizados no século X X " ) - sem dúvida fez parte desse projeto de
transformação e extinção."

120
o censo de 1872 indica uma mudança iniciada na forma de conceber e
gerir a população, orientada cada vez mais por certo entendimento - ainda que
sempre indefinido - do conceito de raça; o que não significava, evidentemente,
deixar de lado a cor, mas ancorá-la em suporte pretensamente mais rígido. Com a
crise mais acentuada da escravidão e do regime monárquico, e o conseqüente
empobrecimento dos pilares, tidos como naturais, da distinção social, a cor e a
raça tornavam-se quase obrigatórias. Se, como vimos, os ministros imperiais ope­
ravam certas traduções nos documentos sobre a população enviados por outras
instâncias da burocracia, em geral silenciando sobre a cor, outras traduções com
novas tendências ganhavam vez ao aproximar-se o final do século XIX. Em 1889,
Fávilla Nunes impunha conceitos novos ao recenscamento de 1872: segundo seus
lermos a população do Brasil dividia-se em “raça caucasiana” (3.787.289), “raça
africana" (1.959.452), “raça americana” (386.955) e “mulatos e mestiços”
(3.801.702). Claro, não apresenta os critérios para tal tradução, uma vez que não a
apresenta enquanto tal. Mas se fizermos os cálculos, notamos que para “raça cau­
casiana” ele somou o número de “brancos”; o número da “raça africana" soma os
livres e escravos “pretos”; transformou “caboclos” em raça americana; e os par­
dos, tanto livres como escravos, foram transformados em “mulatos e mestiços”.'”
Nesse momento, não interessavam mais as fronteiras entre livres e escravos.

Falas e silêncios sobre a cor

O silêncio sobre a cor nos discursos ministeriais, a oscilação entre dividir


ou não as cores da população nos censos, ao lado da persistente oposição entre livres
e escravos, são aspectos que evidentemente não excluíram a existência de uma polí­
tica voltada à composição da população e à ordenação de seu movimento. Nos rela­
tórios dos titulares da Justiça e do Império, os “braços livres” para o progresso da
agricultura são os braços vindos de algumas regiões da Europa, e a colonização não
serviría para substituir o sistema escravista em si - uma vez que este permanece e é
reafirmado ao longo de sua própria crise mas para suplementar o braço escravo.

Embora de contexto temporal e político anterior, pode-se citar uma


das medidas tentadas pelo marquês de Pombal referente à prática da injúria. O
alvará de 4 de abril de 1755, que concedeu privilégios aos que no Brasil casas­
sem com índias naturais, estipulava: “E outrossim proibo que os ditos meus
vassalos casados com as índias ou seus descendentes sejam tratados com o
nome de caboclos, ou outro semelhante que possa ser injurioso".®*

121
Na verdade, a mancha de sangue consistia em um dos procedimentos
hierárquicos da sociedade escravista colonial,“ e o decreto pombalino, dando
às avessas prova de sua força, pretendia revogá-la apenas em relação a um
certo grupo, o dos vassalos casados com índias e seus filhos. A Constituição de
1824, como observa Hebe Mattos, revogou o preconceito de sangue, abran­
gendo, na qualidade de cidadãos, os homens livres na sociedade civil, operan­
do nesta a distinção dos que participariam, díferenciadamente, da sociedade
política, a partir do critério da propriedade.^’

Poucos anos após a emancipação política e a outorga da Constituição,


uma discu.ssão parlamentar revelava o tom da linguagem oficial sobre a ques­
tão do enunciado da cor. A sessão da Câmara dos Deputados do dia 4 de agosto
de 1826 votava projeto relativo ao recrutamento, preferindo retificar não uma
indelicadeza, mas palavras que restringiríam o número de soldados.

Passou-se a discutir o projeto de lei sobre o recrutamento, prin­


cipiando-se pelo art. 3", cujo teor c o seguínie:
An, 3°. Ficara sujeitos ao recrutamento todos os homens brancos sol­
teiros, e ainda pardos libertos, de idade de 18 a 35 anos, que não
tiverem a seu favor as exceções, de que logo se tratará. Depois da
discussão, procedeu-se à votação, e venceu-se a matéria na conformi­
dade do artigo, ficando suprimidas as palavras - brancos e pardos - e
substituindo-se a palavra - cidadãos brasileiros - à palavra homens."

Não falar sobre a cor, em determinados discursos, não indica não agir,
em outras instâncias, a partir de uma série de critérios associados à distinção
de cor: a condição social, proveniência, as práticas culturais etc.

Se nas estatísticas criminais organizadas pela chefia da Polícia não exis­


tem menções à cor, isso não significa que a prática cotidiana da polícia não a
utilizasse como critério de suspeição, vigilância, punição e, afinal, na identifica­
ção dos envolvidos, A diferença é que a estatística, ao criar realidades e não
apenas desvendar informações, constrói também um retrato da população. A partir
da documentação aqui analisada, percebe-se que talvez o problema do olhar do
recenseador não fosse exaiamente mascarar uma realidade, mas a dificuldade,
imanente à dinâmica social, de mapear claramente a divisão por cores. Manten­
do, porém, a ressalva de que, nos casos em que a cor fosse evidente, como no

122
exemplo dos “prelos armados” de Haddock Lobo e na cotidiana função da polí­
cia. sequer a questão de enunciar ou não a cor seria colocada.

Que os critérios de suspeição e vigilância utilizados pela polícia da Corte


estivessem baseados na cor, nada mais correspondente ao tipo de instituição poli­
cial planejado pela sociedade escravista, em que sobretudo cabia velar peia “ame­
aça vertical", nos termos de José Luiz Werneck da Silva, constituída pelo incerto
conjunto de homens livres e pobres, misturados aos escravos,^ Os inúmeros ma­
tizes de cor, claro que sempre combinados a outros fatores de identidade, marca­
vam o mundo da suspeição policial. Carlos Eugênio Líbano Soares, em sua inves­
tigação sobre os capoeiras no Rio de Janeiro, trouxe à luz com precisão essa hete-
rogeneidade. Os livros de matrícula da Casa de Detenção informavam, entre ou­
tros dados, a origem e a cor, tanto para livres como para escravos, e é curioso
observar como algumas características tornam supérfluos outros aspectos. Asstm
os escravos Manuel, cabinda, ou Tomás, bcngucla, têm nesses atributos quase o
resumo de sua condição, ao passo que Anastácio, pardo, ou o preto e crioulo Ri­
cardo são designados pela cor. Já Bemardino, africano livre, perdeu a denomina­
ção específica da nação, como se agora bastasse para ele a categoria genérica de
africano, embora ainda assim tenha sido sua prisão registrada no livro dedicado
aos escrav o s.A considerar esses exemplos, o termo pardo parece por si só indi­
car Q nascimento no país, o que não acontecia para o preto, qualificado, a bem de
um dado relevante para a segurança pública, também como crioulo.

Dentre os homens livres que praticavam a capoeiragem. a variedade atra­


vessa um leque ainda mais amplo. Nas palavras de Eugênio Soares: “Imigrantes,
pretos, sertanejos, caboclos, pardos nordestinos, portugueses, eles formavam uma
babel de línguas e costumes que coloriu a vida citadina durante muitas décadas”.’’ A
capoeira se manteve e disseminou adquirindo novos adeptos a partir de sua origem
escrava. Mas não se deve entender a convivência de distintas proveniências étnicas
e sociais como pasteurização das diferenças, uma vez que os lugares permaneciam
marcados, e as tensões sempre recriadas através das disputas das maltas. O que não
havia na capoeira era a dicotomia simples, por exemplo entre escravos e imigrantes.
As hierarquias porém pareciam se inverter, sendo os africanos mais velhos-os que
ás vezes não representavam senão um fardo para os senhores - os mais respeitados,
os tesouros da tradição. Na perspectiva da polícia a suspeição se complicava:

As condições sc misturavam na babel de cores, e não se sabia


mais quem era livre, liberto, fugido, resultando numa inevitável

123
dor de cabeça para os mantenedores da ordem. A clareza da cor,
como indicativo da condição, abria caminho para a suspeição
generalizada, único meio de coibir o trânsito entre livres e es­
cravos; todos são suspeitos até prova em contrário.

Claro que a suspeição não ultrapassava os limites das “pessoas no­


toriam ente conhecidas e de probidade”.’’ E dentre as variegadas cores
utilizadas no registro policial surge novo termo de imprecisão: Joaquim
da Trindade, nascido era Santa Catarina, foi designado como de “cor fula’V
Esse termo poderia designar africanos originários da Guiné, “de cabelos
encarapinhados e de cor mais ou menos baça”, ou ainda, no uso brasileiro,
o “mestiço de negro e mulato, pardo”.’^

A variação podia Se concentrar em um só indivíduo, como no caso


de José Eça da Cunha, detido 15 vezes entre 1876 e 1882 por diversos
motivos, e que mais parecia um camaleão, tomando-se por base seis fichas
recolhidas por Eugênio Soares:

No carnaval de 1881, o catraieiro José Eça, com seus 20 anos,,


morador no largo da Batalha, branco, cabelo à escovinha, cpm
seu chapéu de lebre, ainda vadiava em busca de ocupação, O
motivo talvez de sua prisão como ‘vagabundo'.
Dois meses depois, refletindo a alta rotatividade ocupacíonaj
da sociedade fluminense do final do século XIX, o criado José
Bça da Cunha é preso por ‘ofensas físicas em flagrante’, e enviado
pelo 3“ delegado para a Casa de Detenção. Para complicar ainda
mais a instabilidade dos padrSes de cor vigentes na época, e tam­
bém a insegurança de certos dados da Casa, o ‘branco’ do dia 20 de
fevereiro se tomou ‘pardo’, e. o que é pior, de cabelo ‘carapinho'»
No dia 20 de setembro, o ‘moreno’ José Eça da Cunha foi detido
na freguesia da Candelária por ‘promover desordem armado de
faca’, um ato de delinqUênda bastante comum para capoeiras.
Antes, já tinha sido preso por ‘ser capoeira’ na freguesia de São
José, desta vez morando na rua da Misericórdia 86, seu endereço
definitivo. Em 27 de março de 1882, o catraieiro branco José Eça
da Cunha volta a visitar as dependências da Detenção, vestindo cal­
ça prcia, camisa branca, paletó escuro, chapéu de palha, uma vestl-

124
menta algo mais elaborada do que a calça de casimira de cor, e a
camisa de meia da sua última estadia, em 20 de setembro.”

A identificação policial, mesmo que sempre necessária, não era


por isso inequívoca.

A cor que não é enunciada será a do cidadão, em todas as tensões


desse título, ou seja, a cor do cidadão não será questionada. Esse era o
problema levantado implicitamente pela opção do recenseador de 1849;
contra isso revoltara-se, anteriormente, o jornal O Homem de Cor. Para
aqueles rebeldes do Nordeste, no final de 1851, registrar em linguagem
oficial a cor poderia significar colocar em xeque sua liberdade. Note-se
sempre que se trata de diferentes m otivações para a resistência.

A experiência das injunções entre a cor e os significados da liberdade


foi analisada por Hebe Mattos. A partir de meados do século XIX, nota-se o
desaparecimento da menção à cor. Escreve a historiadora sobre a ausência da
“discriminação da cor dos homens livres nos registros históricos disponíveis.
Processos cíveis e criminais, registros paroquiais de batismo, casamento e
óbito, na maioria dos casos, não fazem menção à cor e mesmo nos registros
civis, instituídos em 1888, em muitos casos, ela se faz ausente".’*

O fenômeno, conceituado pela autora como silêncio sobre a cor, estaria


relacionado não à imposição de uma ideologia do branqueamento - desenhando
certa imagem da população -, mas à construção de significados de liberdade ligada
a xima série de práticas de resistência à escravidão, como a constituição de laços de
parentesco, a mobilidade social e espacial, as tensas relações sociais entre escravos,
homens livres e pobres e classe senhorial. O crescimento da população de procedên­
cia africana e de mestiços destruía a sinom'mia entre ser branco e ser livre; modifica­
va a situação prevalecente até então, era que todas as testemunhas livres da docu­
mentação judicial eram qualificadas como brancas ou pardas, criando uma situação
semelhante à que foi vista em relação aos censos: excluía-se os negros da questão de
serem ou não livres. Mas, é evidente que esse era um mecanismo discursivo de
identificação, não dizendo respeito à cor da pele ou ao grau de mistura ou “pureza”,
e sim 3 um jogo de “diferenciação social, variável conforme o caso, na condição
mais geral de não-branco”.” Indivíduos poderíam tornar-se pardos, mais do que nas­
cer assim, a partir de relações pessoais, comunitárias, e de certos atos. Há casos em que
a identificação sofria uma alteração, de acordo com a mudança de condição social.

125
A liberdade era. a princípio, um airihuto do ‘branco’ que poten­
cializava a inserção social e a propriedade, Durante a segunda
metade do século XIX, entretamo, esta representação da liber­
dade começa a ter suas bases solapadas. O crescinienlo demo-
gráíico de negros e mestiços, livres ou libertos, já não permitia
perceber os não-brancoa livres como exceçôe.s controladas.”

O qualificativo branco não necessitaria, portanto, de nenhum comple­


mento, ao contrário do que acontecia com o termo pardo que exigia a menção
à condição social. Isso é o que muda em consonância com outras mudanças
sociais e econômicas, como a estrutura da propriedade escrava e territorial. A
liberdade leria deixado de ser branca mesmo que os termos negro e escravo
continuassem intercambiáveis, sendo esse segundo aspecto algo de que os dis­
cursos ministeriais dão uma mostra ainda mais conseqilente, uma vez que a
política de mão-de-obra não incluía em seus horizontes a possibilidade de qtie
os escravos viessem a ser livres. Braços livres deveriam ser os de determina­
das regiões da Europa, com determinadas experiências profissionais e com
uma determinada conduta moral (o amor ao trabalho, a família etc.). Em rela­
ção aos braços não escravos aqui existentes, os “nacionais”, predomina tam­
bém um certo silêncio na política de mão-de-obra, afora alguns projetos isola­
dos e raros de colônias de nacionais, que tinham um objetivo mais vinculado à
ordenação do espaço urbano e rural do que à produção econômica.

Essas flutuações do critério da cor. sempre embebida em uma iden­


tificação social, variável, estratégica, contrastam com o período do final
do século XIX e início do século XX, marcado pelo fim do regime monár-
quico-escravista, em que o conceito de raça ganha uma pretensa firmeza
ou determinação. Segundo Hebe M attos, a noção de cor

herdada do período colonial, não designava, preferencialmente,


matizes dc pigmentação ou níveis diferentes de mestiçagem, mas
buscava definir lugares sociais, nos quais etnia e condição esta­
vam indissociavelmente ligadas. Desta perspectiva, a cor ine­
xistente antes de significar apenas branqueamento era um signo
de cidadania na sociedade imperial, para a qual apenas a liber­
dade era prccondição, Que este princípio se efciivasse nas prá­
ticas judiciárias, para além de sua afirmação genérica na Cons^

126
í
lituição imperial, aparlirde meados dos oitocentos, rellete uma
transformação social que sc apropriava e tornava efetiva aquela
disposição legal,’'

A tendência dos censos e outros procedimentos em relação ao emer­


gente conceito de população, marcados pela inconstância da menção à cor,
passa por uma inflexão que começa a ser esboçada na década de 1870, inici­
ando-se então uma mudança sem dúvida relacionada a uma série de transfor­
mações, como a crise do regime monárquico-escravista, os novos paradig­
mas teóricos cientificistas, a reconstrução da concepção de nacionalidade,
entre outras. A razão daquela inconstância não pode deixar de ser referida à
fragilidade da centralização e às diferentes formas de resistência ao censo,
inclusive dentre os que seriam os representantes do Estado. Mas será apenas
isso? A estatística pretendia ser um instrumento de conhecimento científico,
exato, que iluminaria as ações do governo etc. No entanto, o retrato apresen­
tado poderia sofrer ajustes, e vimos ministros modificando ou atenuando re­
sultados. Seria simplisrao exagerado avaliar tais ajustes e silêncios como
cintilações de uma ideologia do branqueamento, sobretudo se esta for enten­
dida apenas como ato de esconder certa realidade subjacente. Esses ajustes e
silêncios compõem estratégias mais complexas em que talvez não falar sobre
a cor em uma instância mais central seja complementar a uma série de outras
práticas mais imediatas em que a cor. como um dos elementos constitutivos
da condição social, era algo indelével.

O argumento de Haddock Lobo, no recenseamenio sobre a capital do


Império, perguntava: para que referir a cor de cidadãos ou chefes de família?
Até porque eles dissimulariam sua cor. Nesse ponto, seria preferível certo si­
lêncio, certo tabu, resguardando as ambigüidades da sociedade com espaços
multirraciais (se havia dissimulação é porque ha veria algo a ser dissimulado).

Percebe-se, a partir da linguagem oficial - expressão que não deve


carregar qualquer razão única, ao contrário a estreita imbricação entre cor e
condição social, sem que haja, porém, uma equação absoluta entre os termos.
Essa mobilidade, incerteza, imprecisão, bem como a constante necessidade de
anotar as exceções não devem ser desprezadas como simples incapacidade
burocrática, a ser aperfeiçoada com o decorrer do processo de centralização.
Deve-sc atentar para o fato de que a própria dinâmica social impunha essas
características à atividade do recenseamenio.

i 127
N o TA5

1 Antônio Joaquim de Macedo Soares, Dicionário brasileiro da língua portuguesa, p. 98.

2 A única menção que conseguimos registrar desta palavra nos periódicos analisados no pri>
meiro capfiulo se deu no Aurora Fluminense, n” 818, de 20 de setembro de 1833.

3 A coleção áo Monitor Sul Mineiro existente na Biblioteca Nacional tem início apenas em 1892,
o vigésimo primeiro ano de publicação daquele jornal. Por isso não foi possível localizar o
texto da citação. Porém, a partir dos exemplares consultados, deve ser notado que era um
periódico diário, de provável signiricatíva difusão na região, contendo diferentes seções,
desde as informativas até anúncios locais. Outro indicabvo da difusão do periódico foi, no fitiaj
do século XIX, uma campanha realizada em benefício da construção da estátua de José
Alencar, encomendada a Rodolfo Bernardelli, ainda hoje exposta no Rio de Janeiro.

4 O Mulato ou o Homem de Cor, n" 5, 4 de novembro de 1833.

5 limar Rohioff de Mattos, O tempo saquarema-, a formação do Estado imperial, p, 210-211.

6 Michel Foucauh, Sécurité, lerritoire et population, e Naissance de Ia biopolitique, in Résutné


des cours, 1970-1982, p. 101-102 e 109.

7 Recenseamento da população do município neutro organizado no fim do ano de 1849 pelo ác


Roberto Jorge Haddock Lobo. Biblioteca Nacional. Seção de Manuscritos.

8 Mapas da população das províncias. 1815-1844. Ministério do Reino e Império. Caixa 761.
pacote I. Arquivo Nacional.

9 Relatório do ministro do Império sobre o ano de 1837. Rio de Janeiro. Upografia Nacional, 1838.

10 ibidem. Outro exemplo da grafia de estadística encontra-se em texto publicado pela primeira
vez em 1836, de Henrique Jorge Rebello, Memória e considerações sobre a população do
Brasil, RIHGB, tomo 30. 1867.

11 Relatório do ministro do Império, ano 1834. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1835.

12 No relatório do ministro do Império, ano 1835, o dirigente comentava a "afinidade” destas duas
rubricas, tratando delas em um só tópico. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1836.

13 Cf. limar Rohioff de Mattos, op. ciL, p. 220; e também o prefácio de Sérgio Buarque de Holanda
a Memórias de um colono no Brasil, 1850, de Thomas Davatz, in Livro dos Prefácios,
espccialmente p. 11 e 18.

14 A cada ano dedicava-se, no relatório do ministro da Justiça, um tópico ao "Contrabando


de africanos".

15 Relatório do ministro da Justiça, ano 1834, op. cit. Alguns anos mais tarde, a proposta ainda era
válida, a ouvir O Filantropo. “O Brasil deve quanto antes tratar de fazer a aquisição de uma pe­
quena porção de terreno nas costas da África: deve para aí enviar os libertos e proporcionar-lhes
todos os meios de moral e de religião." O Filantropo, ano I, n“ 3, sexta-feira, 20 de abril de 1849.

128
16 O pareeer é assinado por Rainrando José da Cunha Mattos, em 9 de junho de 1827, do Paço da
Câmara. Pareeer da Comissão de Diplomada e Estatística sobre n convenção da abolição do
comércio da escravatura, celebrado entre S, M. 1, e... britânica. Tipografia Nacional, 1827.
Biblioteca Nacional. Seção de Manuscritos.

17 Henrique Jorge Rebello, Memdria e considerações sobre a população do Brasil, op, cil„ p. 37.
18 Relatório do ministro do Império, ano de 1835, op. cit.
19 ibidem. Ê necessário esclarecer os critcrios por mira utilizados na apresentação das tabelas
deste capítulo. Todos os termos utilizados são literais, bem como a sua disposição nos mapas
ou quadros originais, Algumas informações foram suprimidas, por não interessarem dire-
tamenie ao objeto cm análise. Também os dados numéricos não foram citados, a não ser
quando lançassem luzes sobre a própria classificação.

20 Mapas das freguesias da província do Rio dc Janeiro, ! 835. Inclusa no documento "Mapas da
população das provfndas". 18J5-1844. Arquivo Nacional,

2i Sidney Cbalhoub, Vaões da tibeidade\ uma história das últimas décadas da escravidão na Corte.

22 As atividades policiais, ao procurar consolidar uma ordem pública, procuravam limitar as


brechas entre o mundo da escravidão e o mundo livre e pobre, cada vez mais largas, velando
portanto pela estabilidade do trabalho escravo. Thomas Holloway. Polícia no Rio de Janeiro.
capítulo 2.

23 Hebe Mattos, Dos cores do silêncio, p, 33

24 Mapas da população das províncias. 1815-1844. Arquivo Nacional. Esses mapas não são
regulares, nem existem para todas as províncias. Essa documentação manuscrita, do fiindo do
Ministério do Reino c depois do Império, não constitui um conjunto homogêneo. Contam-se
também relações de arraiais, freguesias, vilas e cidades, relações de aulas públicas e particu­
lares, informações sobre colégios e distritos eleitorais, bem como as listas de casamento, nas­
cimento e óbito da Corte, citadas anteríormente. A minha lista é, portanto, também uma lista
possível, para examinar as categorias utilizadas no levantamento sobre a população.

25 Hebe Mattos. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 23 e 35-54.

26 Joaquim Norberlo de Sousa e Silva, Investigações sobre os recenseamentos da população


do Império.

27 ibidem, p. 11-12.

28 Decreto n° 797, dc 18 de junho de 1851. que manda executar o Regulamento para a organi­
zação do censo geral do Império. Coleção das leis do Império do Brasil, 1851, p. 161 e segs.

29 Relatório do ministro do Império. 1851. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional. 1852, p. 16-17,

3ü Decreto n° 798, de 18 de junho de 1851, que manda executar o Regulamento do regis­


tro dos nascimentos e óbitos. Coleção das leis do Império do Brasil, 1851, op. cit., p.
168 e segs.

Jl DiVírio do Rio de Janeiro, n” 8.875, sábado, 20 de dezembro de 1851.

129
32 Richard Ofaham faz breve referência às revoltas, siluando-as numa incerteza, quanto aos
laços clicntelisias, sentida pelos homens pobres: "O protesto era provável sobretudo se
os de cima transgredissem as regras de comportamento consideradas corretas. Os pobres
de cor, por exemplo, não hesitavam cm recorrer ãs armas quando sc sentiam ameaçados
pela escravidão". Richard Graham, Clientelisiiia e poliúca nn Brasil tiii xéailo XIX. p. 59,

33 Ofícios dos presidentes da província de Pernambuco para ministro da Justiça. 1831-1852.


Arquivo Nacional —IJ1-824.

34 Roger Charticr analisa uma hostilidade coletiva contra o controle e domínio da escrita
enquanto instrumento de poder. Esse "ódiosocial” à escrita teria três motivações: como
veículo da justiça, como Tixação das obrigações econômicas dos mais pobres e como tendo
uma certa força mágica e maléfica. Roger Charticr, As práticas da escrita, p. I23-I2S.

35 Joaquim Norberlo de Sousa c Silva, op. cit„ p. 17.

36 ibidem, p. 87.

37 Apud Michel Foucault, A govemamentalidade. in Mirrofiska do poder, p. 281.

38 Henrique Jorge Rebello, Memória e considerações sobre a população do Brasil, op.


cit., p. 8 e scgs.

39 Saturnino Soares de Meireles, Estalhlica médica, p. 18.

40 Relatório de 1° de março de 1840, de Paulino Soares de Souza, apud Joaquim Norberto de


Sousa e Silva, op. cit., p. 87-88,

41 Relatório de 1° de abril de 1848, de Aureliano de Souza Coutinho, apud Joaquim Norberto


de Sousa c Silva, op. cit., p. 39.

42 Ofício do chefe do Arquivo Estatístico, de 15 de abril de 1851, apud Joaquim Norberto de


Sousa c Silva. op. cii„ p. 91-94.

43 limar Rohloff de Mattos (op. cit,. p. 226-228) indica como o fim do tráfico em 1850 rela­
cionou-se a uma decisão pela defesa da soberania nacional, pondo fim ã extralerritorialidade.
da mão-de-obra, fonte tanto de temores das revoltas escravas como de uma subordinação
dos proprietários de terra e de escravos diante dos traficantes. Sidney Chalhoub (op. cit., p. 186
e segs.) destaca também a preocupação com a segurança interna que motivou o ministro da
Justiça em 1850, Eusébio de Queiroz, a assinar a lei.

44 Relatório do ministro do Império, 1850. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1851,

45 Relatório de r de agosto de 1858. de Antônio Nicolau Tolentino, apud Joaquim Norberto de


Sousa e Silva. op. ciL, p. 94-95,

46 Ue acordo com a justificativa dada por Eusébio de Queiroz, as constantes dificuldades em


realizar os censos deviam-se ao receio das taxas incidentes sobre os escravos e do recruta­
mento. Mary Karasch, Slave life in Kio de Janeiro, p. 63-64.

47 Mapa da população do município da Corte. 1838. Mapas da população das províncias. Minis­
tério do Reino e Império. Arquivo Nacional.

130
J
4K Ofícios diversos. Secrcliria dc Polícia da Curte, 1B45, Instrução para se regularem os ins-
petorc.s de quarteirão na confecção do mapa do arrolamento dos habitantes do mesmo mu­
nicípio [mês de novembro]. Arquivo Nacional,

49 Relatório do Ministério do Império. 1849. Rio de Janeiro, Tipografia Irapcrial, 1850.

50 "A Câmara Mun, desta cidade, tendo recebido a portaria da Secretaria dc Estado dc Negócios
do Império de 10 do corrente mês. em que se Ibe tleterminava que organizasse uma relação dos
indigenss existentes no município, exigindo dos inspetores dc quarteirão os necessários
esclarecimentos, vem respeilosamenle ponderar a V, E.xa. a impossibilidade em que se acha de
jioder, como desejaria, cumprir esta determinação, por não se achar atualmente em contato com
os inspetores dc quarteirão [...] estando inteira mente subordinados ao chefe dc Polícia, por cuja
repartição mais facilmente se poderia organizar s mencionada relação". Câmara Municipal ^
Corte, Ofícios. 24 de outubro de 1845. Arquivo Nacional,

51 Relatório do Ministério do Império, 1845. Rio de Janeiro, Tipografia Imperial. 1846.

52 Reccnscamcnto da ]K>pu]ação do município neutro organizado no fim do ano de 1849 pelo dr.
Roberto Jorge Haddock Lobo. Biblioteca Nacional, Seção de Manuscritos, O número fina! fm
de 266.466 habitantes, sendo 155.864 livres e libertos e 1!0.602 escravos,

53 Thomas Holloway, op. cil., p. 204-205.

54 Joaquim Norberto de Sousa c Silva, op. cit„ p. 86 e 105.


55 Relatório apresentado ao ministro e secretário dos Negócios do Império pela comissão
encarregada da direção dos trabalhos do arrolamento da população do município da Corte a
que se procedeu em abril de 1870. Rio de Janeiro, Tipografia Perseverança, 1871, p, 3.
Biblioteca Nacional.

56 Sídney Chalhoub, op. cil., p- 235: "escravos vivendo ‘sobre si’ contribuíam para a descons-
Lrução de significados essenciais â continuidade da instituição da escravidão”.

57 Relatório apresentado... pela comissão encarregada da direção dos trabalhos do arrolamento


da população do município da Corte..., op. cil., p. 49.

58 ibidem, p. 35.

59 idem.

60 Recenseamento geral da população do Império do Brasil a que se procedeu no dia 1° dc


agosto de 1872. Biblioteca Nacional, Seção de Obras Raras. Não foi possível localizar as listas
ou mapas a partir dos quais foi organizado o resultado final, e que talvez trouxessem outras
informações. Não foi encontrado nenhum texto introdutório ao censo. A única cópia dispo­
nível para consulta na Biblioteca Nacional é a microfilmada, que está incompleta (contém
apenas os dados gerais e os da província do Rio de Janeiro, incluindo a Corte).

61 Sobre a relação entre política de mão-de-obra e política de terras, ver Umar Rohioff de Mattos,
op. cit.. p. 218-251. Segundo Manuela Carneiro da Cunha (Política Indigenista no
século XIX, in M. C. da Cunha (org.). História dos índias no Brasil, p, 133 e segs.), a
desapropriação das terras dos índios foi o principal resultado da política indigenista
imperial.

131
t
62 Jorge Enrique Mendoza Posada, A cor segundo os eeitsos demográficos.

63 As terras dos aldeamentos passaram a ser demarcadas pelas comissões, a partir de rela­
tórios dos engenheiros sobre os mesmos: "Como o diagnóstico era invariavelmente o de
total 'mistura' da população aldeada com os 'nacionais', os aldeamentos eram consi­
derados extintos [...J. Mo caso Pankararu, isto significou a repartição de suas terras no
que eles chamam de 'linhas', a expulsão de um grande ndmero de famílias indígenas e a
entrega dos melhores lotes para a clientela do chefe político local e para um número
indefinido de famílias de ex-escravos que acabavam de se emancipar". Jos£ Maurício
Andioo Arruti, A emergência dos 'remanescentes': notas para o diálogo entre indígenas
e quilombolas. Mana, p. 16.

64 i. P. Fávilla Nunes. A população, território e representação nacianai da Brasil, compara­


da com a de diversos paCses do mundo, p. 13.

65 Apud Antônio Macedo Soares, Dicionário ftraiiíeiro da Kngua portuguesa, p. 120-121^

66 Stuart Schwartz, Segredos internas: engenhos e escravos na sociedade colonial, cap. 9;


Charles Boxer, Relações raciais no Império colonial português, t4!5~lS25.

67 Hebe Mattos, Escravidão e cidadania no Brasil monárquico, p. 20; sobre a participação


diferenciada na sociedade política ver limar Rohloff de Mattos, op. cil., p. 83 e 115.

68 Diário Fluminense, n" 32. 8 de agosto de 1826,


69 José Luiz Werneck da Silva e outros, A Polícia na Corte e no Distrito Federal. Rio de
Janeiro. Série Estudos. n° 3, PUC-Rio, 1981; Thomas HoUoway, op. cit., p. 62.

70 Carlos Eugênio Líbano Soares. A negregada instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro, p. 103.

71 ibidem, p. 106.

72 ibidem, p. 110.

73 Thomas Holloway, op. cit., p. 47-48.

74 Nova dicionário Aurélio, p. 650.

75 Carlos Eugênio Líbano Soares, op. cit., p. 124.

76 Hebe Mattos. Das cores do silêncio, p. 19.

77 ibidem, p. 34.

78 ibidem, p. 38.

79 ibidem, p. 109.

132
i
C apitulo 3

Entre o tupi e a "geringonça luso-africana",


eis a língua brasileira

A história do nascimento de Antônio de Gonçalves Dias pode ser lida


como uma espécie de metáfora da própria formação da nacionalidade. Seu pai
era um português, que foi perseguido pelo sentimento antilusitano pouco após a
Independência, quando estava já unido a uma mulher cuja origem nunca se clas­
sificou com precisão: seria ela índia, cafusa, ou cabocla? O mesmo homem que
fugia dos partidários da emancipação política é o que se refugiava Junto a uma
mulher cuja proveniência seria eleita símbolo da nacionalidade. Passada a tor­
menta. abandonou-a. Junto com a vida no interior da província do Maranhão, em
troca de casamento com uma reconhecida senhora em São Luís. Daquela primei­
ra união nasceu Antônio Gonçalves Dias, em 1823. Surgia um dos principais
construtores da nacionalidade literária na então cidade de Aldeias Altas, atual
Caxias, um dos últimos redutos da resistência ã emancipação política no Brasil.
Após um cerco que se estendeu durante dois meses, a cidade rendeu-se em 1“ de
agosto de 1823; Dias veio ao mundo em 10 desse mesmo mês,'

Mais do que um elemento autobiográfico, esse pode ter sido o destino


metafórico da autoproclamada “geração que nasceu em 1825", ano de nasci­
mento de d. Pedro II. Não uma geração pela simples coincidência de nasci­
mento, mas pela participação deliberada no movimento de dar à literatura o
“cunho de nacionalidade", acreditando que, assim, contribuiría para tomar o
Brasil uma nação.^

Naquele momento, o conceito de literatura era bastante amplo, englo­


bando as ciências, letras e artes. A abrangência do que se entendia como lite­
ratura está expressa neste editorial da Revista Brasileira, de 1857:

133
AlÉtn Uas ciências puramenie especulativas, ou de produções
literárias dc mero gosto, farão regularmente objeto da lievista
Brasileira quaí.squer conhecimenlos de utilidade prática: com­
preendendo-se cspecialmente nesta categoria o estudo compa­
rativo de importantes fatos históricos de qualquer ordem, naci­
onais c estrangeiros; c das matérias econômicas, industriais c
financeiras, com particular aplicação ao Brasil.^

A urdidura entre esses elementos componentes do conceito de literatura


era o próprio projeto nacional, isto é. tudo o que testemunhas,se a favor do pro­
gresso da nação. Segundo Marcei Mauss, a idéia de nação havia passado por uma
inflexão no século XIX, abandonando seu teor revolucionário da segunda metade
do século XVIII, e sendo então muito mais associada à noção de Estado, ou mes­
mo confundida com este. Mauss, em sua apreensão histórica, específica, do con­
ceito de nação, apresentou como suas características essenciais a integração, a
estabilidade, a centralização e a consciência de uma unidade moral e cultural entre
os habitantes. Um conjunto de crenças fundamentais seria atributo da nação: a
crença em sua raça, em sua língua, em sua literatura e, enfim, em sua civilização,
seus costumes, suas artes industriais, seu progresso técnico e científico, suas be-
las-artes.* Acrescente-se, no caso brasileiro, uma crença especial em sua natureza.

A revista Guanabara, publicada entre 1849 e 1856, fez parte ativa


desse ambicioso projeto de literatura. Constituem um perfeito manifesto as
páginas que abrem o primeiro número:

Tudo é grande e prodigioso neste Brasil; tudo se apresenta de­


baixo das formas mais belas e mais colossais. —exceto o ho­
mem! Àqueles que atingiram a baliza posterior - Almezzo dei
camin di nostra vita, - já não pertence a hora do fervor, os dias
de trabalho e das esperanças de glória: à nova geração é que
cabe todo esse brilhante futuro, que é de triunfar quando a ge­
ração que nasceu em 1825 tomar posse da alta administração,
e 0 soberano governar com os homens de sua idade2 (grifo meu)

Os “pais” dessa geração envolveram-se em disputas acirradas em tor­


no das variações políticas do tornar-se brasileiro ou ser português. Guardadas

134
J
as proporções, também o pai de dom Pedro II foi alvo de exaltados brasileiros
que preferiam ver no trono o imperador menino, “cabra como nós”.*’

Naquele momento de meados do século já não se faziam urgentes tan­


tos adjetivos para precisar o sentido da palavra “brasileiro”, como nos anos
iniciais da Regência. Houve mesmo certa depuração nesses adjetivos, pois agora
seria uma discrepância alguém se definir politicamente como um "brasileiro
mulato” ou correlato. O .sentido da palavra parecia, assim, estar já circunscrito
a certo círculo social, dado pelo próprio movimento de definir quem faria (e
não faria) parte da sociedade civil. Isto é. brasileiros eram os habitantes livres
e nascidos no território nacional. Ainda não se tratava, portanto, de um atribu­
to automaticamente ligado ao nascimento. Ao contrário do que acontecia aos
escravos, que já nessa condição nasciam, sendo esse fato entendido como na­
turalmente inscrito na ordem das coisas.

Dado esse passo, marcado por certa pacificação, “brasileiro” tornava-


se adjetivo ou. mais definidamente, uma qualidade em busca de substantivos:
a literatura brasileira, a língua brasileira, a nação brasileira. O cenário da bata­
lha agora será outro. Sc antes, no cenário impresso, repercutiam as batalhas
nas ruas, na Câmara, nas tipografias e livrarias, quartéis, teatros, e quem sabe
outros mais, agora as páginas de uma revista patrocinada por Pedro II como a
Guanabara, bem como os não tão restritos mas ainda seletos folhetins, pareci­
am o lugar por excelência dessas disputas razoáveis.

Alguns aspectos das práticas em torno do escrito acompanharam es­


sas transformações. A leitura provavelmente já não era a leitura coletiva e
animada, entrecortada por clamores evidentes à ação política, muitas vezes
feita nos quartéis e praças. Uma leitura quieta, individual ou familiar, no
gabinete ou no botidoir. Quando pública, reverberava pelos institutos e so­
ciedades literárias. Claro que animadas eram também as leituras nas repúbli­
cas estudantis, mas sem o conteúdo revolucionário que as práticas do início
da década de 1830 pretenderam possuir.

O recurso ao anonimato nos anos próximos a 1831, que pode ser ca­
racterizado como uma tentativa de instaurar o próprio anonimato na política,
tornando-a assunto de muitos, contrasta com o período de meados do século.
O anonimato ainda era praticado, geral mente sob a forma correlata de pseudô­
nimos. Ig,, que enigmaticamente pretendia evocar Iguaçu, foi o pseudônimo
adotado por José de Alencar, nas suas Cartas sobre a Confederação dos Tíí-

135
nioios (1856), quando ainda jovem e pouco conhecido - antes de escrever O
guarani —polemizava com a espécie de instituição, mais do que mero poeta.
Gonçalves de Magalhães.’ Também anônimo permaneceu por alguns anos o
Memorial orgânico, conjunto de preceitos e medidas apresentado porVarnha-
gem, em 1849, em que esclarecia o sentido pragmático da formação da nação,
propondo a escravidão do fndio e medidas que diminuíssem a presença do
escravo nas cidades com mais de dez mil habitantes.®

A grande diferença, em relação ao anonimato, deve-se à noção de au­


tor, que agora parece já estar definida, em contraste com aqueles autores mais
coletivos e por isso anônimos dos pasquins. Enfim, a noção de autor parecia
estar já consolidada, e o anonimato, embora continuasse sendo uma arma, já
não se referia a batalhas tão agressivas e sangrentas. Conforme abordada no
primeiro capítulo deste livro, a legislação que regulamentou a liberdade de
imprensa encarregou-se dessa transformação, coibindo o anonimato e criando
cada vez mais, definidamente, a responsabilidade penal do autor.

Se tomarmos como exemplo a revista Guanabara, e focalizarmos a


discussão literária sobre a nação, os leitores (ou auditores) também já não
são tão anônimos ou '‘desordenados” . A lista dos assinantes honrados fazia
desfilar viscondes e senadores. A revista tinha patrocinadores, que também
aparecem nas suas próprias páginas, em um rol encabeçado por S. M. o Im­
perador c S. M. a Imperatriz.

É válido considerar o estado da imprensa, mais uma forma de compara­


ção com 0 período regencial. O trecho a seguir, de 1846, indica que a própria
imprensa livre teria seu começo apenas um pouco antes ao da “geração de 1825”i

Assim pois com vinte e quatro anos de independência, e vinte e


seis do gozo da liberdade de imprensa, o Brasil, em vez de duas
únicas e mesquinhas gazetas que tinha no começo da sua carrei­
ra política, possui atualmente perto de 80 publicações periódi­
cas, muitas dc grandiosas proporções, e outras científicas e lite­
rárias. das quais algumas redigidas com gosto e talento; e todas
enfim disseminando por toda a superfície do Império mais de
oito milhões de folhas proporcionadas aos gostos e instrução,
dos seus leitores. Não provará isto que nestes 24 anos havemos
percorrido um dilatado campo no desenvolvimento do gosto H-

t3(i
terário? E se por veniura a difusão da instrução pública for para
0 futuro mais favorecida e mais cientificamente dirigida, não
poderemos esperar que daqui a mais vinte anos corramos o pá­
reo com as nações mais civilizadas do antigo continente?’

Essa “imprensa livre”, representada pela Guanabara, pela Revista do


Instituto Histórico, pela Revista Brasileira, entre outros títulos, manifesta não
qualquer liberdade, mas sim uma liberdade com conteúdo preciso: uma “liber­
dade regrada” . O projeto da literatura apoiava-se no Estado; este era um apoio
financeiro, mas, de forma mais ampla, um apoio político. A Revista Brasileira,
proclamada sucessora da Guanabara, afirmava ser um jornal “publicado por
ordem e a expensas de Sua Majestade o Imperador”. Porém, talvez mais im­
portante que a ajuda financeira, era a postura assumida pela direção da publi­
cação, ciosa em lembrar que iria

corresponder dignamente aos desejos benévolos DAQUELE, que


no fastígio do poder somente anela a prosperidade do Brasil,
amparando com generosa proteção c promovendo desveladamen­
te a ilustração nacional, o mais seguro abono da ordem e da li­
berdade regrada, que faz hoje a nossa felicidade, e fará também
no futuro a dos nossos filhos.'" (grifo meu)

Nada mais significativo do que, em 1849, quando o primeiro número


da Guanabara saiu do prelo, no dia 2 de dezembro - aniversário do imperador
- , os três diretores, Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de Macedo e Araújo
Porto Alegre, terem ido em comissão para pessoalmente ofertarem tão ilustra­
do presente ao monarca.“

Entre os anos próximos à abdicação de d. Pedro I, em 7 de abril de


1831, e aqueles próximos às duas decisivas leis de 1850'* - a Lei de Extin­
ção do Tráfico de Escravos e a Lei de Terras, houve não só um percurso no
processo de construção do Estado, no sentido de certa domesticação dos
movimentos sociais e dos interesses privados, da centralização política e
administrativa e da consolidação da hierarquia da sociedade escravista. Mas
também um percurso, entrelaçado àquele, em que se deslocou o significado
da expressão brasileiro, naquele primeiro momento mais ligado às disputas

i 137
sobre o conceito de cidadão e agora - um campo de lutas mais abstrato e
simbólico - articulado à imagem de nação.

Entre o brasHeiiv-cidadão e a nação-bmsileira imerpõe-se a constrii-


ção de um Estado que parece tomar a si a tarefa de conceber a identidade
nacional. Em torno do bra.tileiro-cidadão formou-se uma arena, ou um teatro
político, pontuado por lutas concretas e imediatas: da participação na direção
política ã obtenção de postos na Guarda Nacional ou no serviço público, entre
outros projetos. Por volta de meados do século, diferentemente - e isto é o que
aquelas duas leis expressam, com a concentração da propriedade escrava e a
restrição ao acesso à propriedade da terra o predomínio da classe senhorial
encontrava-se consolidado, o que tem relação com o fato de que cm torno dã
itaçõo-brasileira o número dos participantes ativos na contenda tenha sido
radicalmente reduzido. Mas essa redução não se deve a um proce.sso de exclu­
são, apenas. Ao contrário, a difusão de um “espírito de associação”, contribu­
indo para o que limar Rohioff de Mattos define como as ações do governo do
Estado na direção exercida sobre a Casa, atuana de modo mais eficaz e dura­
douro, na medida em que procuraria construir um consenso*’ em torno da su­
posta unidade moral, cultural, histórica da nação. A literatura e a língua ajuda­
ram a construir essa unidade.

Concomitante ao processo de produção da identidade nacional, fez-se


a definição da alteridade. Além disso, é mais adequado pensarmos em alterida-
des, pois, conforme bem discerniu Manuel Salgado Guimarães em estudo so­
bre a historiografia nacional do período imperial, o outro desta nação não erã,
indislintamente, tudo o que fosse estrangeiro e pertencesse a outras fronteiras
nacionais. *■*Ou seja, considerar algo como outro não significava atribuir sem­
pre o mesmo peso e o mesmo valor. Uma primeira distinção é que, além dos
outros “externos", imaginar a nação implicou o discernimento dos outros “in­
ternos”, interiores à fronteira nacional. E para cada uma dessas direções, no­
vas distinções se faziam.

Longe se estava, portanto, da idéia de nação, enquanto nova forma de


concepção da vida social, ser entendida como englobando a totalidade dos
habitantes, em uma perspectiva de assimilação incondicional: a nação retrata­
da pelo romantismo histórico e literário irá operar escolhas, criar certos sím­
bolos, e consolidar certos tabus de silêncio. A questão que pretendo colocar ao
projeto da literatura consiste em tentar mostrar a articulação possível entre as
construções em torno da idéia de nação (seria simpUsmo considerar a hipótese

138
i
dc uma única concepção de nação) e a heterogênea realidade social e cultural
do Brasil imperial em meados do século XIX. Como tais construções sobre a
nação fizeram face à situação de desigualdade? Como a história e a permanên­
cia da escravidão foram pensadas? Como resolveram ou elidiram a questão de
tornar - do ponto de vista simbólico - um conglomerado disperso em algo que
se pudesse imaginar como nação?

Criar um sentido para o que se concebia como “nós’’ foi um gesto


acompanhado das formulações sobre os sentidos atribuídos a “eles", aos “ou­
tros”. A divisão nós/eles consistiu em uma operação recorrente nessas refle­
xões sobre a nação.'^ Mas também, eventualmente, a desconfiança acerca da
certeza dessa separação, como nestes versos de Gonçalves Dias, de Os timbi-
ras: “Desejo, inquietação, também lá moram: / Que sobra pois em nós, que
falta neles?”.

A alteridade poderia estar baseada em uma distância geográfica, em


um limite de fronteiras geopolíticas, mas também, ao contrário, exatamente no
caso de uma proximidade, poderia exigir um processo de distanciamento. A
relação com o estrangeiro (incluindo aí seja os que serão vistos como guias ou
modelos - caso da França coadjuvantes, ou prisioneiros da barbárie, como
as chamadas repúblicas latino-americanas) e a relação com os de dentro, para
recortar no interior deste conjunto os componentes e não-componentes da na­
ção, talvez não sejam aspectos dissociados. Talvez seja possível recuperar o
ponto em que se encontraram.

A polêmica sobre a “língua brasileira”, como parte do romantismo no


Brasil, foi especialmente marcada por esses sintomas. Sintomas no sentido de
que a tarefa de conceber a nação trazia em si mesma as contradições da reali­
dade social. A proposta deste capítulo é debruçar-se sobre essa polêmica, a
partir de escritos sobre a “língua brasileira” e sobre a língua falada no Brasil,
de um movimento, ainda inicial, de documentação da língua falada no Brasil
através de dicionários e vocabulários e, no campo da ficção, analisar algumas
obras que permitem dar vida ao exame da encruzilhada formada pela vontade
dc conceber uma nação e pela diversidade e hierarquia marcantes da socieda­
de no Brasil imperial. Para esse último ponto, dois escritores românticos terão
destaque, por suas atuações na produção de imagens e representações sobre a
nação, de impacto na sua época (como ainda hoje), e por terem também se
envolvido ativamente no debate sobre a língua brasileira; Gonçalves Dias e
Jo.sé de Alencar.

L 139
o romantismo não se limitou a um movimento intelectual e artístico.
Por ocasião da comemoração do centenário da obra de Gonçalves de Maga­
lhães, Suspiros poéticos e saudades, em 1936, Sérgio Buarque de Holanda
escrevia sobre a existência de “uma política, uma sociedade, um clero obedi­
entes à mesma inspiração que animou aquela escola de poetas”.*®Pode-se ten­
tar seguir essa pista. Neste capítulo, tentei ainda perscrutar uma dúvida latente
sobre aquele momento da história, acerca do sentimento sobre as raças. Daí g
visita a determinadas obras literárias, por onde se pode entrever os sentimen­
tos que acompanham a hierarquização da sociedade, a escravidão, a diferença
nas origens dos povos, sendo estes alvos ao mesmo tempo de um projeto de
nação e de um processo de inclusões e exclusões. O foco sobre aqueles dois
escritores Justifica-se por mais um argumento: sua obra ficcional ligava-se in-
trinsecamente a uma reflexão sobre a história e a formação da nação.

Descompassos entre a população e a naçõo

No cultivo das letras brasileiras refletia-se sobre a nação. De que for­


ma se conciliavam essa reflexão c a preocupação com a população, elemento
de soberania, envolvido com a consolidação da unidade territorial e com a
centralização política? Não custa lembrar que às vezes essas questões obceca-
vano o mesmo indivíduo, ora em algum papel administrativo, ora enquanto
artesão literário.'^ Mas nem por isso deve-se imaginar uma conciliação fácil,
ao contrário. Muita distância havia entre gerir a população e pensar a nação. 0
primeiro ato, transformado em prática nos diversos recenseamentos e mapas
sobre o movimento da população, pressupunha divisões, categorias, esquadri-
nhamentos que operavam inclusões e exclusões: livres e escravos, brasileiros
e estrangeiros, homens e mulheres, brancos e pretos. Definiam-se certos luga­
res sociais: a sociedade política, a sociedade civil, os escravos, os estrangei­
ros. O segundo ato lidava de outra forma com as divisões, procurando antes
construir uma unidade na formação da nacionalidade. No entanto, a marca
comum às muitas contribuições ao nacionalismo literário parece ter sido o fato
de ter sempre fracassado em falar da unidade a partir de ura substrato irreme­
diavelmente dividido e, por outro lado, silenciado. Assim, na produção literá­
ria, fala e silêncio formavam um par.

Editor da segunda fase da revista, o cônego Joaquim Caetano Fernan­


des Pinheiro, aliás nascido no Rio de Janeiro naquele mesmo ano de 1825,

140
sentiu-se premido a responder a um artigo de Nunes de Sousa, publicado nas
páginas da revista Guanabara.^* As tensões entre pensar a nação e gerir a po­
pulação, entre a unidade e as divisões moveram a resposta do cônego à “Geo­
grafia histórica, física e política do Brasil”, onde Nunes de Sousa refaz cálcu­
los sobre a população, contestando números aceitos, inclusive os apresentados
por Haddock Lobo e Ângelo Thomaz do Amaral, sobre a cidade e a província
do Rio de Janeiro, respectivamente. O sentido geral de seu argumento aponta
para um número maior da população global e sobretudo para uma maior pro­
porção de escravos. Na província do Rio de Janeiro, Nunes de Sousa afirmava
que haveria não 460 mil habitantes livres e 440 mil escravos (soma dos resul­
tados apresentados pelos dois recenseadores citados acima), mas quinhentos
mil livres e - p a r a o pasmo e terror das autoridades - um milhão de escravos.
De fato, havia uma forte tendência dos proprietários em não declarar o número
exato de escravos, com o fim de fugir aos impostos devidos.'* Nunes de Sousa
associa-se à opinião não exatamente abolicionista, mas contrária aos escravos
e mais precisamente ao tráfico internacional, que em 1851, já decretada a Lei
Eusébio de Queiroz, ainda precisava se fazer ou vir. Segundo o autor do arti­
go, o quadro trágico retratado pela estatística mostrava, no conjunto do país,
que haveria para cada homem branco, dois “de cor”. O desequilíbrio situaria o
orgulhoso Império do Brasil em posição de inferioridade em relação aos ou­
tros países da América, e o motivo seria agravado exatamente pela diversidade
racial da população.

A preocupação ali expressa tinha alguns pontos em comum com as


questões levantadas por Varnhagen no seu Memorial orgânico, onde propu­
nha, em seus próprios termos, que o Brasil deixasse de ser uma colônia para
tornar-se uma nação. Além da divisão territorial, incluindo a mudança da capi­
tal para o centro geográfico do Império, dos limites espaciais detalhados, Var­
nhagen preocupava-se com a população, cujo problema para ele não era tanto
o pequeno número, mas justamente a heterogeneidade.^*

No número seguinte da Guanabara, o cônego Pinheiro escreveu “Uma


resposta” a Nunes de Sousa, procurando afastar a idéia de que “marchamos na
retaguarda das repúblicas da jovem América”. Longe disso, o destino de gran­
deza do Brasil contrastaria com “as repúblicas da raça espanhola”. E, quanto
às divisões e desequilíbrios entre livres e escravos, brancos e prelos, fazia
também uma afirmação que não deixa de ser, ã sua maneira, uma projeção: no
Brasil encontram-se "ligadas as suas diversas partes pela comunidade de inte­
resses, de língua, de religião” .

141
Unidade existe, segundo o cônego, dada pelos “interesses” (que,
por ser algo do plano da imaginação, o autor não explicita de forma mais
direta), pela religião, que sabemos ser a oficial do Império, e pela língua.
Essas são as urdiduras que fazem das "diversas partes” do Brasil uma na^
ção. O caráter vago e indefinido dos "interesses” c correlato à mesma di­
ficuldade de se definir o que era a nação. Antonio Cândido comentou esta
característica do nacionalismo literário: entre os contemporâneos, “nin­
guém saberia dizer com absoluta precisão” em que consistia a literatura
nacional.“ Não se trata de apontar ali um defeito ou falta no argumento do
cônego Pinheiro, mas sim algo imanente às comunidades imaginadas; tra­
tava-se de um certo sentimento, uma determinada tradição, um comporta­
mento singular, de fato indefiníveis.^^

Se a língua aparece, na posição de Pinheiro, como elemento de


unidade, este autor não está preocupado, ao contrário de outros, em anco­
rar essa unidade também em uma diferenciação em relação a Portugal.

Assim como durante o período de consolidação da emancipação


política (1822-1831), as disputas e conciliações com Portugal estão pre­
sentes na definição da literatura e da língua brasileiras, construída em
meados do século XIX. Tratava-se de proclamar uma nova independên­
cia;-** no entanto, outros eram os campos de batalha, e a marca já não é a
do exaltado antilusitanismo.

O mais importante, para o cônego, era que a língua, a religião e os


“ interesses” faziam do Brasil uma nação.

Pode ser das tarefas mais difíceis desnaturalizar uma urdidura tão
solidamente forjada como aquela que une uma nação a uma língua.” Nem
por isso devemos esquecer que, longe da língua portuguesa ser àquela al­
tura utilizada universalmente no Brasil, houve uma série de medidas, de
cunho fortemente político, para impor tanto aquele uso como, tão impor­
tante quanto, a crença de que esta seria a atitude correta e adequada.

Por isso é significativo que João Francisco Lisboa, publicista e


político maranhense, se inquietasse com o problema da diversidade lin-
güística ao examinar a história colonial e a formação da nacionalidade, e
de.sse como principal argumento dos males da escravidão o uso do tupi e
não da língua portuguesa:

142
Nos seus resuliados a eseravidão dos índios, como a dos ne­
gros a cerios respeitos, sem enriquecer-nos, corrompia e bar­
barizava a nossa raça. Sem nos determos em longos pormeno­
res para prová-lo, baste um só fato, mas capital e decisivo. Em
1755 estava a língua portuguesa de tal modo estragada, ou an­
tes banida, que em São Luís e Belém só a tópica se falava, até
mesmos dos púlpitos.-*

A data referida por Lisboa não é casual. A referência à época do


governo do marquês de Pombal liga-se exatamente, a esta altura do processo
de colonização, a um primeiro esforço para inverter uma situação que mar­
cou os séculos iniciais da presença portuguesa: a língua de comunicação sendo
a língua geral, de base tupi. As medidas pombalinas tentaram reprimir o uso
da língua geral e de outras línguas indígenas no Pará e Maranhão.”

A difusão da língua fazia parte do projeto educacional do Estado im­


perial, Com a educação, esperava-se formar uma vontade coletiva, e poder
vislumbrar uma unidade em meio a tantas resistências, atrasos, barbáries, li­
mar Rohioff de Mattos destaca a importância da difusão da língua nacional e
sua gramática como parte das propostas e medidas relativas à instrução:

[...] não se tratava mais de apenas ensinar a ‘ler, escrever e


contar', como acontecera nas escolas da Colônia. Tratava-se
de difundir o mais amplameme possível a 'língua nacional’,
sua gramática incluída, de modo a superar as limitações de toda
natureza impostas pelas faias regionais, e assim reproduzindo
em escala mínima e individual o esforço gigantesco que, cm
escala ampliada, era desenvolvido pelos escritores românticos,
Alencar à frente.-®

A imposição de uma uniformidade da língua foi um problema na for­


mação dos Estados nacionais no século XIX.” Apesar das muitas especifici-
dades, um elemento comum parece ter sido o desprezo por qualquer variação
regional ou social. Como afirma Jonalhan Sieinberg, a “caneta” foi tâo ou
mais decisiva do que a “espada” no estabelecimento de comunidades políti­
cas. E acrescenta:

143
Os nacionalistas do século XIX partilhavam com os escritores do
século XVIIl uma mesma atitude com relação ã fala das pessoas co­
muns. Se para os esclarecidos gramáticos do século XVÍll o dialeto
não era um erro, mas apenas um impedimento ã agradável unifor­
midade que a razão ditava, a existènciade dialetos no século XIX ame­
açou a estrutura do Estado. A questione delia lingua tomou-se um pro­
blema de imposição da uniformidade da fala para transformar o que
havia sido uma miscelânea de povos em uma comumdade nacional.*

No caso do Brasil não se tratava apenas de variações regionais ou so­


ciais cm relação a um padrão considerado correto. Havia ainda a existência de
diferentes línguas indígenas e africanas. Os contemporâneos estiveram atentos
a esse fato, e suas respostas variaram diante dele, como veremos a seguir.

Dicionários e língua brasileiro

Na busca do nacionalismo linguístico, uma atitude inicial foi consa­


grar a expressão “língua brasileira”. Uma ressalva, porém, era necessária para
esclarecer que não se tratava do sentido corriqueiro emprestado à expressão,
de língua usada por índios. Luís Maria da Silva Pinto, natural de Goiás, publi­
cou em Ouro Preto, em 1832, um modesto Dicionário da língua brasileira.
Havia feito uma subscrição dois anos antes, e explicava a demora em atender
aos que financiaram a publicação, pela dificuldade do projeto. Afinal “cumpria
consultar todos os vocabulários ao alcance, para com efeito dar o da língua bra­
sileira; isto é, compreensivo das palavras, e frases entre nós geralmente adota­
das, e não somente daquelas que proferiam os índios, como se presumira”.^'

A dificuldade em ter acesso a dicionários como o de Antônio de Morais


e Silva foi o principal motivo apontado por Silva Pinto na busca de apoio finan­
ceiro à sua obra, que considerava um “auxiliante da gramática e da ortografia”.

Sem chegar a considerar a existência de uma língua própria, Brás da


Costa Rubim organizou o Vocabulário brasileiro para servir de compleineníò
aos dicionários da língua portuguesa, de 1853.^“ Entende portanto seu traba­
lho como o de coleção de vocábulos usados no Brasil e que não são citados
nos “dicionários da nossa língua”. Embora não se dedique a desvendar expli-

144
I
cações sobre os fatores que levaram à existência de um vocabulário brasileiro
- pois afinal seu objetivo é eminentemente prático alguns pressupostos do
autor podem ser depreendidos de seu prólogo e da seleção dos verbetes.

O autor serviu-se de “memórias, e outros escritos, que tratam das nos­


sas coisas, assim como de muitas notícias particulares”. Segundo Rubim, mui­
tos vocábulos são reconhecidos por terem passado "da linguagem dos indíge­
nas da América e da África para o uso comum”. O autor eximiu-se porém de
apresentar a origem de cada um desses vocábulos, provavelmente pela dificul­
dade da tarefa para seus recursos c época. Além da origem africana ou ameri­
cana. considerou também usos específicos, como por exemplo os vocábulos
"armar”, que “nos engenhos de açúcar, é arrumar a lenha na fornalha”, ou "vo­
ador”, no sentido de “moeda de cobre falso, que girou em certo tempo".

Em termos quantitativos, a grande maioria dos verbetes diz respeito a


nomes de nações indígenas, em geral indicando sua existência no passado e
referida ã sua localidade (afirmando, por exemplo, que certa nação “dominava
a região de Pernambuco"), Mas são também numerosas as referências a frutos,
plantas, animais, (por exemplo, “camundongo”), de procedência americana ou
africana, como sabemos hoje ou como o autor não quis ou não pôde referir.

As designações de identidade racial ou de nascimento aparecem na


obra; cafusa, carioca. Compreende ainda apelidos dos grupos políticos; cara-
muru, cascudos, guabirus, saquaremas, chiraangos e de acontecimentos como
a Sabinada: “nome de uma revolta na província da Bahia, à testa da qual figu­
rou um facínora por nome Sabino”. São apresentadas palavras diretamente li­
gadas ao fenômeno da escravidão: zungu (“muitas habitações juntas, à manei­
ra de cortiço"), quilombola, ou meia-cara (“escravo importado por contraban­
do”). Termos culinários como matapá ou vatapá e quitute são mencionados.
Os vocábulos caçula e bunda, ambos no sentido atual em que ainda são empre­
gados, foram incorporados por Brás da Costa Rubim.

Certas formas singulares de tratamento como nhonhô, sinhá, iaiá e ioiõ,


sinhazinha, sinhozinho, têm ali o sentido explicado.

Esse esforço de documentação rendeu outras obras e teve continuida­


de nas décadas seguintes. Talvez o Dicionário brasileiro da língua poriugue-
sti, de Macedo Soares, de 1888, seja dos mais importantes frutos dessa tendên­
cia, ainda que tenha permanecido inconcluso.^^ Ainda em 1852. sem referência

145
a autor, época ou região em que foi compilado, foi publicado um Vocabulário
(Ia língua bugre, organizado a partir de termos e expressões em português,
para os quais se oferecia a tradução nesta incógnita "língua bugre”. F l o r a
Sussekind cita outros exemplos, embora de caráter mais restrito que o das duas
obras aqui selecionadas, como o Glossaria Unguarum brasiliensiunt, com vo­
cábulos de diferentes línguas indígenas recolhidos por Spix e Martius e outros
viajantes, impresso em 1867, e a "Coleção de vocábulos e frases usadas na
província de S. Pedro do Rio Grande do Sul", de Pereira Coruja, publicada na
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1852,’^

Este último trabalho, significativamente intitulado “coleção”, é prece­


dido por uma interessante apresentação do autor, em que seu primeiro cuidadp è
negar que houvesse, na província em foco, a mácula da “língua portuguesa” por
“vícios” ou por um “sotaque”. Ele procura justificar a existência de certa singu­
laridade com bastante cautela para não ferir a obediência ao padrão linguístico
nacional. Nesse cuidado, talvez se encontrem os ecos de um passado bastante
próximo; os anos de guerra da Revolução Farroupilha, há pouco controlado pelo
poder central. A singularidade seria o resultado de uma "indústria peculiar”, do
“caráter particular” dos habitantes, do convívio com os habitantes dos estados
vizinhos que falam o castelhano, além de outro fator, que ele insiste em localizar
no passado, a “sua antiga comunicação com diferentes tribos indígenas". Esses
seriam os motivos que "têm feito que seus habitantes para exprimirem certas
idéias e comunicarem certos pensamentos tenham adaptado alguns vocábulos e
frases que não têm equivalentes nem no uso comum nem nos dicionários da
língua”. A sua preocupação em equilibrar o interesse de seu trabalho, que s6
justifica pela peculiaridade, e a língua nacional leva-o a uma distinção social no
interior da província, entre os “menos civilizados”, sujeitos ao “sotaque", e os
“de trato mais civil”, que falariam como na antiga metrópole:

Se nos países que passam por cultos acontece, que em muitas provín­
cias, por motivos que me não é agora dado expor, se acha a língua
nacional alterada por dialetos diferentes, não admiraria que nesta
província o mesmo tivesse lugar à vista de sua posição geográfica e
de tantos elementos, que poderíam desconcertar sua linguagem: as­
sim porém não acontece, e apenas os homens menos civilizados da
campanha têm uma pronúncia, que se ressente do sotaque castelha­
no, ao mesmo tempo cm que os rio-grandenses de trato mais Civil
passam nas ouuas províncias por naturais de Lisboa." (grifos meus)

146
A estreita relação entre língua e nacionalismo no século XIX é comenta­
da por Benedict Anderson, Aquela foi uma “idade do ouro para os lexicógrafos,
gramáticos, filologistas e literatos das línguas vulgares". A “língua impressa na­
cional" foi um dos fatores que mais cotidianamente contribuiu para a formação
do sentimento de comunidade nacional, de nation-ness. E acrescenta que essas
atividades foram essenciais na “moldagem dos nacionalismos europeus” do sé­
culo XIX, à diferença, segundo o autor, do que aconteceu na América. Anderson
acredita que, sendo o inglês e o espanhol (cita apenas esses dois idiomas, omi­
tindo o português) elementos comuns com a Europa, os nacionalismos america­
nos não se preocuparam com tal dimensão.^’ O caso brasileiro nos mostra porém
algo diferente, uma vez que o português será submetido a um certo tratamento
brasileiro, e a atividade de documentação, embora ainda incipiente, o demonstra.

Vale uma pequena ressalva sobre a expressão ‘língua brasileira', queé


aqui empregada para sintetizar um debate intelectual que acompanhou o pro­
jeto de fundara literatura independente. Nem todos os autores a empregaram,
e nem sempre lhe atribuíram o mesmo conteúdo.

Deve ficar claro ainda, conforme salientou Celso Cunha,^® que em mea­
dos do século XIX a concepção de língua é bastante diferente daquela criada
pela linguística de Ferdinand de Saussure. e que não se deve projetar sobre aquele
momento as mesmas conseqüências que haveria em falar, após o estruturalismo,
que a língua do Brasil é diferente da língua portuguesa, o que equivalería a negar
o fato de que o sistema de oposições é o mesmo. A expressão que os lingüistas
aplicam é a de língua portuguesa no Brasil, como por exemplo Edith Pimentel
Pinto. Esta autora expõe por que seria impróprio falar em dialeto (desvio em
relação à forma padrão, no plano geográfico ou social), visto que a norma brasi­
leira é considerada paritária em relação à norma portuguesa. No entanto, é pos­
sível aplicar a expressão língua brasileira ou idioma brasileiro para referir-se ao
uso brasileiro do português, sem precisar com isso supor a autonomia linguísti­
ca. Quanto ao movimento romântico, outro peso ganhou a expressão:

Em certos momentos do passado. p>orém, a expressão devia ser tomada


liieralmenie: o sentimento nacionalista mais de uma vez levou à reivin­
dicação de uma língua própria. Aaolava-se, então, como prova de sua
existência, um extenso vocabulário específico do Brasil; apontavam-se
certos hábitos fonéticos peculiares e alguns torneios sintáticos c estilísti­
cos preferenciais dos brasileiros e ignorados ou desusados em Portugal.”

147
Nos próximos parágrafos, o foco sobre algumas posições acerca do
tema indica as conseqiiências do que se podia inserir como elemento singula-
rizante dessa língua própria e o que não deveria aparecer como tal. Da mesma
forma, a relação com Portugal estava aí sempre presente. Começam a aparecer
as tensões entre a (íngua falada e a língua literária, em uma série de ambigüí-
dades entre aproximações e distanciamentos.

A língua brasileira: o digno e o indigno

Se 0 que se tem nos dicionários e vocabulários parece caminhar no


sentido da abrangência da língua praticada - falada ou escrita - e de uma certa
tendência à incorporação e documentação (mesmo operando seleções inevitá­
veis), no caso da língua brasileira pensada literariamente a seleção sobressai,
e parece não estar em questão nenhuma tendência a uma incorporação univer­
sal. Trata-se das tensões entre língua literária e língua falada.

O movimento romântico, preocupado em cunhar a expressão literária


própria, invalidando as constantes censuras e críticas portuguesas, teve uma
relação ambígua com a oralidade. De ura lado, visitou-a como prova dos ra­
mos diferenciados do português no Brasil. De outro, nunca tomou essa visita
como devendo absorver indistintamente e em estado bruto tudo o que era en­
contrado. (As reflexões de José de Alencar a esse respeito são bastante ricas e
serão examinadas adiante). Outras vezes, admitia-se uma diferenciação da fala
no léxico e na prosódia, mas preservava-se a tradicional unidade da língua
escrita.* Esse foi o caso de F. A. Varnhagen, cuja posição será retomada adiante.

O escritor espanhol Juan Valera, que viveu entre 1824 e 1905, e como
diplomata chegou a morar no Rio de Janeiro,**' abraçou a causa da nacionaliza­
ção da literatura. Foi publicado nas páginas da Guanabara um artigo de sua
autoria, intitulado “Poesia brasileira”, onde associava a poesia à língua. Acom­
panhar seu artigo permite trazer à luz uma tensão entre diferentes formas de
conceber a nacionalidade, pois sua avaliação, predisposta à abrangência, fói
de certa forma “corrigida” pelos editores, por meio de uma estratégica nota de
pé de página. Vamos considerar a avaliação de Valera acerca dos motivos da
singularidade brasileira e a nota que aponta uma exclusão e valoriza a seleção
não só na linguagem literária, mas genericamente na linguagem das pessoas,
especialmente as “pessoas gradas” da sociedade.

148
Ao refletir sobre a nacionalidade brasileira, o autor olhava para "todas
as raças de que é composto” o povo brasileiro, e admirava uma comum dispo­
sição poética e musical. Em contraste, os editores não pretendiam lançar o
olhar de forma tão abrangente. Originalmente, o artigo foi publicado na Espa­
nha, na Revista Espanhola d ’Ambos os Mundos, o que ajuda a entender a pró­
pria abrangência do seu olhar, que destoava do modo como se entendia aqui o
nacionalismo, e o fato de sua opinião sobre a prática linguística no Brasil ter
sido atenuada pelos editores.

Segundo esse autor, e procurando responder a uma questão já levanta­


da por Gonçalves de Magalhães,” entre os índios haveria uma disposição na­
tural para a música e para poesia, ainda mais acentuada pela estratégia da ca­
tequese jesuítica que teria explorado tal disposição natural como meio de do­
brá-los a seus objetivos. Da mesma disposição dariam mostra os negros que,
enquanto trabalham, cantam “a monótona música e os rudes versos”. Valera
afirma ainda que nas ruas do Rio não se passearia sem ouvir música, cantada
pelas senhoras, e as modinhas e “lunduns”, assim como não se iria a um batiza­
do ou encontro social onde poesias não fossem recitadas pelos moços.

Estas não eram preocupações isoladas ou simplesmente momentâneas


do escritor. Antonio Cândido a ele se refere como um dos militantes em defesa
das literaturas nacionais, e mostra seu cuidado em livrar a língua espanhola,
"de este lado y dei otro dei Atlântico", de certa influência exagerada e nociva
do francês, Uma vez que reconhecia as trocas como elemento dos povos civi­
lizados, não pregava o isolamento, mas sim que se evitasse uma incorporação
desordenada.*^

Ao lado da poesia brasileira, Valera reconhecia a preocupação em cu­


nhar uma língua própria, “a que chamam nacional para não denominá-la portu­
guesa”, bem como o uso de palavras “tomadas nos dialetos americanos, e ain­
da atrevo-me a afirmar que têm adicionado também palavras das línguas afri­
canas, v. g. da língua buda [sic] da costa do Congo, que é uma das mais perfei­
tas. que falam os negros”.

Embora não tenha sido possível examinar a edição espanhola do arti­


go, não deve passar despercebida a inexatidão tipográfica do termo bunda.
Segundo o dicionário Aurélio, a palavra é uma variação de bundo, “indivíduo
dos bundos, indígenas bantos de Angola”, expressando ainda “a língua dos
bundos; bunda, ambundo, quimbundo”. Por extensão, bunda seria também

149
"qualquer língua de negros” ou uma “maneira incorreta de exprimir-se; lingua­
gem estropiada; bunda”-"*^A inexatidão tipográfica provavelmente trai, anteci­
pando-a, a posição dos editores da revista, que exatamente nesse ponto abri­
ram uma nota de rodapé com a seguinte advertência: “Parece-nos sumamente
injusta o que diz o ilustre viajante; porque se algumas palavras dos dialetos
africanos se acham introduzidas entre nós, não são elas Jamais empregadas por
pessoas instruídas e bem educadas".

Se tais palavras são utilizadas, nunca o seriam por pessoas educadas.


Escrevê-las seria algo, para os editores, ainda mais impensado, uma vez que
esta é uma atividade de pessoas educadas.

A linguagem não podia deixar de ser mais um elemento de diferen­


ciação naquela sociedade com linhas de hierarquia ao mesmo tempo cla­
ras e tensas. Um dos que lutaram, com sua pena, contra atitudes de inter-
penetração linguística foi o padre Lopes Gama, que escrevia em 1842 no
seu Carapuceiroí

É verdadeiratncnte laslimosa a linguagem ou gerigonça luso-


africana de muita gente nossa, e não só do mençalho, como até
de hierarquia elevada. Já não tratarei da prosódia ou acentuação
da voz. pela qual estendem tudo que deve ser breve, e formam
desta arte uma linguagem lão morosa que enfastia e quase dá
sono. Vemos muitas vezes uma menina galante, viva e espiritu­
osa. Mas em falando é uma miséria; e o mais é que, sc alguém
lhe diz que se corrija de falar tão descansada e preguiçosamen-
le, arrebita o nariz, chofra-se e responde desdenhosa: ‘Eu nasci
no Brasil, e não sei falar língua de marinheiro'.'** (grifo meu)

Sem a intenção, Lopes Gama revela que a língua falada em Recife,


onde escreve, incorporara essa “gerigonça” - isto é, gíria ou calão - africana
(observe-se que entre seus exemplos encontram-se palavras que não são de
origem africana, mas indígena, como a última citada adiante). Trata-se de vá­
rios “ vícios" de vocabulário: “Que coisa mais geral entre nós do que os vocá­
bulos bunda, caxerenguengue, quicé, e outros muitos de origem africana?”. E
vícios também de pronúncia: “Muitos declaram guerra ao r finais, e dizem
sempre mandá. buscá. comê, dormi, singulá etc.” .

150
Curioso é que mesmo reconhecendo múltiplas causas para tais ‘‘víci­
os”, para Lopes Gama a principal era o contato com os africanos no próprio
lar, 0 que se aprendería com as amas e demais escravos. Ora, essa seria uma
inversão sem par. os “primeiros mestres” sendo exatamente os escravos e afri­
canos, grave exatamente porque aconteceria entre as pessoas “da classe grada
da sociedade”. A posição de Lopes Gama não era simplesmente individual,
mas refletia os valores moralistas da sociedade pernambucana, que ele acredi­
tava ser urgente reformar, mas não revolucionar.'*''

Retornando ã posição de Valera, a sua experiência na cidade do Rio de


Janeiro certamente marcou sua percepção daquilo que reconheceu como uma
poesia dos negros. A língua portuguesa funcionaria como uma certa nacionaliza­
ção, pois aqueles “cedo se esquecem dos seus pátrios dialetos”, passando a com­
por copias “em mau português”. Nesse ponto, sua posição coincide com a do
cônego Pinheiro, que acreditava na língua como princípio de unidade, apesar
das divisões e conflitos da escravidão. Considera a questão do surgimento de
uma literatura negra no Brasil, tal qual a formada no Haiti e a que possivelmente
surgirá na “nascente republicada Libéria”. Mesmo respondendo negativaraente,
uma vez que os escravos aqui não eram alfabetizados, apenas a consideração da
questão é digna de nota, e coroada por um elogio que desta vez, certamente, não
poderia ser retificado por uma nova nota de rodapé; “se não os negros, os pardos
ao menos, são os melhores poetas do Brasil: o que prova, ao meu ver, que a raça
negra é tão boa como a nossa, salvo a diferença da cor e da civilização”.'*’

O alvo central do artigo de Juan Valera - e o que certamentc fez com


que fosse traduzido e publicado na revista - era a valorização da independên­
cia da literatura nacional em relação aos temas e à terra portuguesa, bem-vinda
após séculos de submissão, e historiada por ele inicialmente com comentários
sobre poemas do século XVIII, como O Uraguai e Carainurti, e afinal sobre Y-
Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, momento de feliz inspiração indíanista do
poeta, que havia sido publicado em 1851 como um dos Últimos cantos. E de se
notar, ainda, que sua afirmação sobre o uso de palavras emprestadas dos “diale­
tos americanos” não foÍ objeto de ressalvas pelos organizadores da publicação.

Uma negação estava na base do movimento de cunhar a expressão ‘lín­


gua brasileira’. Tratava-se exatamente de evitar chamar de língua portuguesa a
forma como se falava e escrevia no Brasil. Disso já dera mostras Valera, que
dizia chamarem-na “nacional para não denominá-la portuguesa”. A partir des­
se passo inicial é que se procurava a história, as marcas dessa singularidade. O

151
historiador Joaquim Norberto envolveu-se nessa polêmica, ao publicar, já em
1855, o artigo “Língua brasileira” nas páginas da mesma revista Guanabara,
onde apresentou certo balanço geral das posições presentes e passadas sobre o
tema. Polêmica, pois se tratava mesmo de uma arena em que se alternavam
certa agressividade e alguns reconhecimentos de filiação. Daí, o tom reativo
com que o autor abria seu texto: "Já alguém nos lançou no rosto, que não
temos literatura nacional, porque não lemos língua

Mais de quinze anos depois, José de Alencar ainda reclamava de “uns


gênios em Portugal" que “decretaram que não temos, e nem podemos ter, lite­
ratura brasileira”.^*Reação que não só reconhecia, mas também —invertendo a
situação - reclamava um "direito de herança” da língua aprendida “dos lábios
de nossas mães”.

Entre o diferente e o mesmo, Joaquim Norberto decretava o senti­


do da expressão língua brasileira, naquela mesma direção em que Já havia
atuado o dicionarista Luís da Silva Pinto, em 1832. Não mais seria a “lín­
gua dos antigos dominadores do Brasil”, pois essa deveria ser a partir de
então designada como “língua guaranina” ou “ língua geral". Afinal "ao
menos cá de mim para mim tenho, que quando disser língua portuguesa,
entenderão por tal o idioma de que se usa na velha metrópole, e quando
disser língua brasileira, tomarão por tal a que falamos, que é quase aquela
mesma, mas com muitas mudanças” .^®

Ou nessa outra passagem ainda mais eloqüente:

Ora, não há dúvida que nós trazemos no peito a cruz de Afonso


Henriques, e lemos nos lábios a língua de Camões, como táo
poeticamente disse o meu Porto Alegre, e que bem traduzido e
em termos de prosa quer dizer que somos cristãos e falamos
português. Porém será essa língua tal e qual a que se usa na
antiga mãe pátria?^'

A língua portuguesa e a religião cristã; eis os elementos da conci­


liação, o passaporte para a civilização e a história. Vamos lembrar que
língua e religião já haviam aparecido emparelhadas nas afirmações do
cônego Fernandes Pinheiro.

152
Joaquim Norberlo apresenta as idéias de José Silvestre Ribeiro, portu­
guês, sobre as modificações da língua portuguesa no Brasil:

O sr. José Silvestre Ribeiro diz que não se pode deixar de fazer
sentir a diferença que o clima, o caráter dos povos, e outras
muitas circunstâncias devem ter produzido sobre o idioma por­
tuguês no Brasil. Que é incontestável que a língua portuguesa
tem continuado a ser comum aos habitantes dos dois mundos,
como permanecendo essencialmenie a mesma; mas que também
se não pode duvidar de que transportada ao Brasil, modificou
algum tanto a sua índole, por efeito da poderosa influência do
clima, do caráter dos naturais, da mistura de raças etc. etc. Que
além dessa diferença, que abrange a generalidade do idioma, há
também a considerar a introdução de um grande número de vo­
cábulos e costumes dos indígenas ou mesmo dos colonos do U l­
tramar, que sucessivamente foram passando ao Brasil.

Não devemos sobreestimar o peso desses argumentos deterministas


como mistura de raças e influência climática na concepção de língua de Joa­
quim Norberto. Esses elementos parecem circunstanciais, e não mereceram
maior dedicação do autor. Não porque não fosse a “época” do determinismo,
ou porque esses princípios “ainda" não estavam disseminados no Brasil (uma
explicação que seria puramente retrospectiva, e baseada numa concepção line­
ar da história cultural das idéias). Mas sim, com maior consistência, porque o
romantismo se posicionava de forma contrária ao determinismo natural. O pró­
prio Gonçalves de Magalhães, em uma memória de 1860, afirmava; “Confesso
porém que na dificuldade em que se acha a etnografia de demonstrar a unidade
ou a pluralidade da raça humana, prefiro como mais plausível a tradição bíbli­
ca”. A religião ocupa aí o papel do traço de união da raça humana.”

A idéia de natureza, quadro em que devemos interpretar a referência


de Joaquim Norberto à mistura de raças e ao clima, é subsidiária do romantis­
mo, e não do determinismo. É acima de tudo a natureza americana a garantido-
ra da nossa filiação, que nos distinguiria da Europa.

O segundo argumento lembrado por Joaquim Norberto é o da introdução


de “vocábulos e costumes” de indígenas e de colonos. O silêncio sobre uma influ-

153
éncia africana é significativo. Outro demento que é recorrente no texto é a oscilação
entre tratar-se da mesma língua e de uma língua diferente em relação a Portugal.

Além de reativo, o tom era também de zombaria. É interessante como


este autor de textos graves e sérios, como a “Memória histórica e documentada
das aldeias de índios da província do Rio de Janeiro”, laureada em sessão
magna do Instituto Histórico com o prêmio imperial em 1852, e publicada em
1854 na Revista do IHGB, adota aqui o estilo irônico, também adotado déca­
das antes pelos periódicos ao defender o cidadão brasileiro dos “malvados
chumbeiros”. E eram ambas ironias bem-humoradas, cômicas.

Ironiza, por exemplo, Varnhagen, incluído entre as várias autoridades


a que recorre. O texto parece ter isso como regra: ao mesmo tempo em que
evoca nomes clássicos (como Camões) ou inegavelmente influentes (como
Almeida Garrett. escritor português tido como incentivador do nacionalismo
literário brasileiro), que escreveram ou atuaram no sentido do reconhecimento
da língua nacional, os transforma em matéria de riso.

Citarei também o sr. Varnhagen, que diz que o estudo da língua


guarani é digna, à par da grega, de ser cultivada como língua
sábia e necessária, não só por dar esclarecimentos na etnografía
e na botâmca, como nos diferentes ramos da zoologia; e certo
ninguém o negará, porque o sr. Varnhagen nos fala de cadeira
sobre estas coisas, a menos que se não trate de florilégíos dé
poesias brasileiras, porque então... Chiton. que já uma vez saiu-
se do sério por lhe ter sublinhado certa frase, como se eu lhe
não quisesse bem pelos seus trabalhos históricos!

Alguns anos antes, em 1847, Varnhagen havia publicado seu Florilégio da


poesia brasileira,^^ onde fazia já referência ao sentimento de ridículo, em Portugal,
inspirado por palavras como jacarandá, que tem quatro letras “a”. Notamos assim
que não só se ria de Portugal, mas se ria porque Portugal ria-se de nós. Lembre-se
que Varnhagen posiciona-se contra as tendências separatistas, afirmando a unidade
da língua escrita eo conseqücnte respeito incondicional das normas gramaticais.

Em um texto anterior, a “Memória sobre a necessidade do estudo e


ensino das línguas indígenas no Brasil” ,’■*a atenção de Varnhagen obedece

154
a um objetivo eminentemente prático c substancialmente político: a con­
quista das terras entregues à selvageria, em nome da civilização do Impé­
rio. Conhecer as línguas era a condição para a catequese dos índios, polí­
tica retomada pelo Estado imperial.®^ Varnhagen utiliza o plural** - lín­
guas - o que parece significativo do processo de expansão e unificação
territorial durante o século XIX, em que as línguas de outros troncos que
não o tupi-guarani precisariam ser conhecidas.

No Florilégio, também não se trata de afirmar uma presença tupi


na língua brasileira. Na verdade, essa questão parece não se colocar para
Varnhagen, que está antes preocupado com as diferenças do falar no Bra­
sil. cujas causas profundas ele atribui ao espanhol: as vogais abertas, as
várias pronúncias. Segundo esse historiador, o português no Brasil “desde
0 princípio se acastelhanou muito". Acrescenta que o léxico formado na
terra seria tão válido quanto aquele trazido pelo colono. O grande proble­
ma detectado por Varnhagen dizia respeito à pretensa censura portuguesa
sobre a poesia brasileira: "a poesia brasileira tem que declarar-se inde­
pendente da mãe-pátria; pois, desgraçado do poeta que ao chegar-lhe a
inspiração, tivesse que mandar consultar um de seus filhos, que nunca ti­
vesse ido à América (pois a estes acostuma o ouvido como é natural), se
tal palavra lhe promove o riso, como jacarandá ao censor”.*’

A postura geral não é de ruptura, mas de reconhecimento da vali­


dade dos critérios clássicos e da gram ática portuguesa tradicional; Var­
nhagen parece lim itar-se assim à defesa de vocábulos novos e pronúnci­
as singulares. Sua concepção acerca da língua acompanha sua concep­
ção de história nacional no reconhecim ento de uma herança européia.**
Essa postura do historiador não é isolada. Antonio Cândido, avaliando a
literatura brasileira e latino-am ericana, já chamava a atenção para essa
vontade de libertação sempre inconclusa diante dos modelos ctvilizacio-
nais estrangeiros.**

E tal limitação seria comum a todo o espectro político daquele tem­


po. Se o conservador Varnhagen pensava assim, também o liberal João
Francisco Lisboa, em polêmica com o autor da História geral do Brasil,
reconhecia no adversário o acerto sobre a predominância da herança por­
tuguesa na formação da nacionalidade. E o argumento era exatamente a
questão da língua. Escrevia ele que alguém, percorrendo o Brasil, e que se
dirigisse a uma família, estaria na seguinte situação:

155
Falat*)hes na língua geral ou no guarani, e ninguém vos enten­
derá. Pronunciai ao acaso uma ou outra palavra africana, e ape­
nas alguns dos escravos menos ladinos vos prestará tal qual aten­
ção, Mas falai o português, e todos vos compreenderão e res­
ponderão. Trazem todos os nomes de um santo do calendário: e
a língua, os apelidos, os costumes, a religião, e as leis, tudo
indica a nossa origem européia.

A língua portuguesa, aqui associada ã religião, aos “costumes'’ e ãs


“leis”, é elemento de nacionalidade, é a união entre as partes, na concepção de
João Francisco Lisboa,

Voltemos ao texto de Joaquim Norberto. Retomando a estratégia de rir


dos que riram, ele cita o redator de um jornal publicado era Lisboa, que em
1846 ainda comentava a obra O Caramuru, e que chamava de ridículos os
nomes brasileiros que teriam vogais excessivas.

O trecho abaixo é bastante representativo desse viés cômico nas rela­


ções entre Brasil e Portugal no que diz respeito ã língua:

Ets-me outra vez perdido de meu trilho, que a pena vai a brincar
deveras com tanta derrogação, apegar-me-ei a alguma Santa! Ob!
Cá está o nosso Santa Rita Durão, que como tal me saberá guiar
melhor que ninguém. O seu belo poema foi friamente recebido
pelos portugueses. Durão o previra quando disse que eles havi­
am de estranhar os nomes de alguns de seus heróis, mas que os
nomes dos alemães e dos ingleses não eram menos bárbaros. A
isto lhe responderam os portugueses que os nomes brasileiros
abundavam de vogais, que faziam parte de uma língua harmoni­
osa c doce, que não eram bárbaros, mas que eram RIDÍCULOSl...
Ridículos, e que faziam rir; ridículos como Paraguaçu, Caetê,
Imboaba e Jacarandá! Ora por esta amostra do pano já vêem os
brasileiros que hilaridade não deve haver em Lisboa quando nas
salas da fidalguiã genuína do reino se anunciar a chegada de
titulares brasileiros de nomes ridículos como esses! Digam lá
barão de Paraguaçu, conde de Caeté, visconde de Imboaba, e
marquês ou marquesa de Jacarandá, para ver se não há risada

156
r
velha! E agora que uma nova edição de novos titulares esgotou
o dicionário da língua guarani! Saiba pois o sr. Varnhagen que o
guarani fornecerá também esclarecimentos na genealogia brasi­
leira; a arte do brasão fará ampla colheita nas nossas coisas, e
representará no escudo do sr. barão de Paraguaçu ou um rio
grande, ou a mulher do Caramuru; no escudo do sr. conde de
Caeté um mato firme; no escudo do visconde de Imboaba ura
homem calçado, peludo, e no do sr. marquês de Jacarandá uma
árvore ou alguns toros ou couçoeiras do pau santo!

Mas além desses aspectos irônicos, em que a peculiaridade lingdística


se ancorava no uso de palavras da “língua guarani”, o projeto da língua brasi­
leira procurou fincar raízes profundas. E a ambígua relação com a oralidade
aflorava nas posições dos escritores. Em estado bruto, a oralidade traria a pre­
sença de uma realidade caótica demais que, em contrapartida, podería ser or­
denada por uma apropriação seletiva da literatura.

Flora Sussekind reconhece que em obras literárias do século XVIII já


se encontram marcas da paisagem local e termos indígenas. O que aconteceu
no século seguinte foi diferente porque carregou um projeto consciente de uma
escrita inovadora:

No século XIX é que grande parte dos escritores brasileiros pas­


sou a se formar no próprio país. E a buscar conscientemente
uma forma brasileira de escrita. Com vocábulos e expressões
locais, com ritmo e prosódia peculiares. Sendo que, quanto à
pronúncia, o ‘acento do Brasil' - reconhecido, no que se referia
à língua falada, até mesmo por alguém tão zeloso da filiação
lusitana do idioma quanto Varnhagen - passou a ser usado es­
trategicamente nessa escrita com marcas de oralidade proposi­
tais, como forma de afirmação da variante brasileira.*'

Havia todo um cuidado em discernir o que podería ser alçado da ora­


lidade para a língua literária, o que era considerado digno - como vimos, al­
guns vocábulos indígenas da zoologia, botânica, topografia, dentre os quais
alguns apropriados pela titulação de nobres - e o que poderia até ser reconhe­

157
cido como parte da língua falada, mas delimitado como próprio de pessoas
não instruídas, mal educadas, ou que não se portavam como seria adequado à
sua posição social, e portanto indigno de compor a língua literária.

Gonçalves Dias foi um dos escritores que mais se destacou na utilização de


palavras indígenas na escrita literária. A prática tomou-se moda, chegando ao exage­
ro e desmedida, conforme salientaram por exemplo Macedo Soares e, um pouco
mais tarde, Machado de Assis.“ O primeiro lembrava que muitas vezes tais palavras,
longe de expressarem uma literatura nacional, não eram entendidas pelo “povo”:

Puseram em moda o dicionário dos dialetos indígenas, e em vez


de apoderarem-se das idéias, estudaram primeiro os vocábulos
que deviam exprimi-las. Nasceu daí uma poesia que o povo não
entendia, nem era possível entender, tão bárbara e alheia a seus
ouvidos, tão estrangeira como se fosse escrita em chinês ou sâns-
crito; e quando o povo não entende, a poesia não é nacional.*^

Mas a posição de Dias é interessante, pois se ancora na própria oralida-


de, istoé, no seu uso pela “multidão”. Escreve o autor em texto de 1857 a “Carta
ao dr, Pedro Nunes Leal”, espécie de manifesto pela independência literária, e
contra a censura portuguesa às modificações inevitáveis da “língua pátria”:

Bom ou mau grado, a língua tupi lançou profundíssimas raízes no


português que falamos e não podemos, nem devemos, atirá-las
para um canto a pretexto de que a outros parecem bárbaras e mal
soantes. Contra isso protestaria a nossa flora, a nossa botânica, a
nossa topografia. Clássico ou não clássico - Pernambuco é Per­
nambuco, cajá, paca c outros semelhantes, não têm outro nome.
Se isto desagrada a Portugal, é grande pena, mas não tem remédio.

Gonçalves Dias considera, portanto, que a língua usada no Brasil, na


“conversação”, independente de sua expressão literária, estaria já indelevel-
mente marcada pela introdução de vocábulos de origens diversas do português.
E isso seria válido para palavras tanto indígenas como africanas. O escritor
testemunha ainda sua inclusão em dicionários:

I5S
Independente da botânica, geografia e zoologia (o que todavia
não é mau contingente) temos uma imensa quantidade de ter­
mos indígenas ou sejam africanos, que até nos dicionários se
introduziram, mas que na maior parte só aparecem na conversa­
ção - nomes de comidas, termos de pesca, de lavoura etc., que
não são clássicos, mas indispensáveis, (grifo meu)

Com este último argumento, afloram as tensões entre língua falada


e língua literária. A língua literária não pode simplesmente cegar-se diante
da língua falada, ficando apenas submetida aos clássicos. A constante re­
ferência aos clássicos faz da posição de Dias uma posição curiosa, pois
ele considerava que o estudo de tais obras e autores era essencial a um
escritor. Mas não seria tudo, No caso do Brasil, haveria modos de vida
específicos, em certas regiões, que o “romance brasileiro” não pode ser
impedido de tocar:

Acontece também que cm distâncias tão consideráveis como são


as do Brasil, o teor da vida muda; c os homens que adotam esta
ou aquela maneira de viver, formaram uma linguagem própria
sua. mais expressiva e variada.
Os vaqueiros, os mineiros, os pescadores - os homens da nave­
gação fluvial estão neste caso. Pois o romance brasileiro não há
de poder desenhar nenhum destes tipos, porque lhe faltam os
termos próprios no português clássico?
Pelo contrário, escrevam tudo, tudo que é bom - e quando vier
outro Morais tudo isso ficará clássico.*^

Ancorando-se portanto em uma oralidade peculiar, embora com o res­


peito moderado pelos clássicos (a “riqueza que herdamos”), Gonçalves Dias
dava sua versão acerca da língua brasileira, o que é exemplo do quanto essa
discussão mobilizava a imagem de nação que se queria construir e defender.

Nas páginas que se seguem, José de Alencar será enfocado a partir


tanto de suas reflexões sobre a língua quanto dos pontos em que estas se
cruzaram com sua concepção da nação, especialmente suas imagens indi-
anistas. Como já deve estar claro, a reflexão sobre a língua imbricava-se

159
em questões mais amplas, eomo a imagem da nação e o tratamento da com­
plexidade dos homens c mulheres sobre os quais se impunham os limites
do território e da soberania nacionais.

índios e língua nacional em José de Alencar

“A descrição do Brasil inspira-me mais


entusiasmo do que o Brasil da descrição"
José de Alencar

Já no primeiro tomo da revista Guanabara, que data de 1849-1850, era


anunciada quase passo a passo a composição do poema A Confederação dos
Tamoios. Criava-se. antes ainda do poema estar concluído, uma expectativa, bem
como uma certa aprovação prévia da obra de Gonçalves de Magalhães.

Em 1856, ao finalmente ser lançada a obra, José de Alencar, ainda


pouco conhecido, publicou anonimamente no Diário do Rio de Janeiro,
jornal por ele dirigido, as Cartas sobre a Confederação dos Tamoios. Fa­
zia ali críticas estéticas, relativas ao estilo, à metrificação, à língua. Com­
parava a obra a Homero, Virgílio, Camões. Afinal, tratava-se de fato de
uma epopéia e era a partir do critério de como seria um bom poema épico
que Alencar fazia seus comentários.

Lançava mão de um recurso usual, mas ainda assim corajoso, pois era
um jovem desconhecido ousando comentar e criticar o “poeta-instituição” na­
cional. Grande polêmica tem início, e o Jovem teve que enfrentar o “coro dos
contentes”, o “grupo de elogios mútuos”,®^ uníssono contra sua pretensão, in­
cluindo o próprio d. Pedro II, amante das letras nacionais.

Alencar adotou o pseudônimo Ig —referência à heroína do poema, Igua­


çu - explicando tal atitude pelo fato de seu nome ser “obscuro”, e por isso
considerar necessário lançar a atenção não para si, mas para o próprio teor de
suas palavras. José Aderaldo Castelo vê nestas Cartas (cuja importância para
□ autor pode ser medida pelo fato de que meses depois as reuniu em um livro)
uma espécie de prefácio que Alencar apresentou à sua própria obra literária.

t60
E prometia arrevesadamente o que no fundo gostaria de fazer;

[...] se algum dia fosse poeta, e quisesse cantar a minha terra e


as suas belezas, se quisesse compor uin poema nacional, pediría
a Deus que me fizesse esquecer por um momento as minhas idéias
de homem civilizado.
Filho da natureza embrenhar-me-ia no seu mar de ouro, a lua a
deslizar-se no azul do céu; ouviria o murmúrio das ondas e o
eco profundo e solene das florestas,

Tratava-se mesmo de duas imagens acerca do índio que iriam se opor,


subsidiárias de épocas distintas, embora cronologicamente coincidentes. A ima­
gem de Gonçalves de Magalhães é ainda clássica, retratando um índio um tanto
urbano, civilizado.^ O reconhecido escritor português Alexandre Herculano,
instado pelo próprio d. Pedro II a expressar sua opinião, censurou o poema de
Magalhães exatamente nesse ponto, defendendo que a poesia da “nossa época”
era a lírica e a dramática, expressando as amarguras, as paixões, a luta das idéias,
o ceticismo. Ao contrário, as “gerações virgens” contariam com um “crer pro­
fundo”, uma certeza, já inatingíveis atualmente. “A nossa geração não é épica”,
sentenciava o escritor português sobre o poema A Confederação dos Tamoiosf’

Não se conclua da posição de Herculano que ele aprovaria automati­


camente os pressupostos da futura obra de José de Alencar, pois nega qualquer
unidade entre as tradições indígenas e os atuais brasileiros: “O Brasil é um
império novo; mas os brasileiros são apenas europeus na América”. No entan­
to, o escritor português apoiaria o caminho trilhado por Alencar na direção
não do épico, mas do lírico e do romântico, pelo privilégio do tema dos “con­
trastes e afinidades”, das lutas da “civilização contra a barbárie”, dos “misté­
rios” e segredos da natureza americana. O poeta brasileiro admirado aberta­
mente por Herculano era, porém, Gonçalves Dias, que havia publicado seus
Primeiros cantos aproximadamente dez anos antes.

O romance de estréia de Alencar não tardou a chegar, pelas mesmas pági­


nas do Diário do Rio de Janeiro, a partir de 1“ de janeiro de 1857.0 autor realiza­
va seu desejo por intermédio da sua própria criatura, Peri, o Poeta Primitivo: “Sua
palavra é a que Deus escreveu com as letras que formam o livro da criação; é a
flor, o céu, a luz, a cor, o ar, o sol; sublimes coisas que a natureza fez sorrindo”

161
Por intermédio de Feri, falava a natureza. Sua palavra é a de Deus.
Diferememente do índio revestido com os atributos da cidade, a idéia era que
a cidade, simbolicamente, fizesse essa viagem em direção à natureza.

Após a polêmica travada pelas Canas, com O guarani Alencar coroa­


va sua intenção de mostrar que não bastava ter o índio como lema ou assunto
literário para fundar a literatura nacional. Para tanto, uma forte transmutação
deveria revolver o íntimo do poeta.

Alencar desaprovava outras produções indianistas, que não transpira­


vam o espírito nacional, porque usariam de forma desordenada e exagerada os
termos indígenas. Os estudos que vinha desenvolvendo levavam-no a prezara
harmonia e a clareza do texto. Por outro lado, julgava importante “certa rudez
ingênua de pensamento e expressão”, que não poderia ser sufocada por um esti­
lo elaborado em demasia, com imagens belas mas inverossímeis. Conforme baa.
chama a atenção Cavalcanti Proença, não se tratava de defender um sentido cor­
riqueiro de verossimilhança, ao contrário disso, o autor possuía uma visão origi­
nal em que fatos extraordinários - mas sempre explicados, esclarecidos quanto
ao possível - serviam para manter o leitor em expectativa. Em Senhora, pergun­
tava afirmando: “Que há de mais inverossímil que a verdade?”.*’

Embora considerasse Gonçalves Dias “o poeta nacional por excelên­


cia” e louvasse seu douto conhecimento “da natureza brasileira e dos costumes
selvagens”, a linguagem que empresta aos índios foi também desaprovada por
Alencar: “Os selvagens de seu poema falam uma linguagem clássica" e “expri­
mem idéias próprias do homem civilizado, e que não é verossímil tivessem no
estado da natureza”.

Sem dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as


idéias, embora rudes c grosseiras, dos índios; mas nessa tradução
está a grande dificuldade; é preciso que a língua civilizada se mol­
de quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara; e não re­
presente as imagens e pensamentos indígenas senão por termos c
frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem.
O conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a
nacionalidade da literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro esti­
lo, como as imagens poéticas do selvagem, os modos de seu
pensamento, as tendências de seu espírito, e até as menores par-

IG2
ticularidades de sua vida. É nessa fonte [jue deve beber o poeta
brasileiro; é dela que hS de sair o verdadeiro poema nacional,
tal eomo eu o imagino.^”

Nacionalizar a literatura tinba como requisito o conhecimento da “lín­


gua indígena”. Com a expressão no singular, José de Alencar reduzia a multipli­
cidade - algumas centenas de línguas diferentes - a uma língua eleita. Mas cer­
tamente ele apenas acompanha uma tendência mais ampla, de singuiarizaro que
era plural. O conceito de singular coletivo, aplicado por R. Koselleck ao surgi­
mento da idéia de uma História que unificava as várias histórias particulares,’'
ajuda a pensar essa eleição de uma “língua” na fundação da literatura nacional.
É como se este singular tivesse o poder de representar e sintetizar aquela plura­
lidade. O mesmo procedimento subjaz ao retraio de Peri, que é “um índio", No
entanto, não devemos entender o fato de Varnhagen falar em “línguas indígenas"
como algo teoricamente oposto à posição de Alencar; a li, o historiador estava
muito mais preocupado com um sentido estratégico {e não simbólico) na cons­
trução da nação. Conhecer as “línguas” era condição para uma melhor domina­
ção sobre os indígenas. Trata-se de atitudes complementares, portanto.

Em 1858, o editor alemão a quem Gonçalves Dias havia encomendado a


edição reunindo os Cantos, tendo notícia de que ele leria um dicionário de tupi
Já pronto, insta para publicá-lo. O Dicionário da língua tupi, chamada língua
geral dos indígenas do Brasil, seria como um relicário, composto de restos guarda­
dos por seu preciosismo. Assim o incansável estudioso justificava o dicionário:

Cabia-me tratar dos caracteres intelectuais e morais dessas tribos;


esse trabalho porém não podia ser feito senão com o estudo prévio da
língua que elas falavam, da qual tantos vestígios se encontram, que
não é de presumir que eles tenham em algum tempo de desaparecer
complclamentc da nossa linguagem vulgar, nera mesmo científica.’^

José de Alencar sem dúvida pensa no tupi como a língua indígena. FoÍ
a língua da colonização, chamada de “geral". Ao escrever O guarani não dis­
põe portanto de nenhum dicionário, e nesse sentido todo o seu trabalho foi
também pioneiro. Apaixonado pela “fantasia etimológica” em torno da origem
das palavras, tarefa que exigia além da erudição, a imaginação acesa, Alencar

163
encantou-se com a musicalidade e a característica aglutinante da língua tupi,
como na explicação para o nome do fruto dos amores culpados de Iracema e
Martim Afonso. Moacir, o primeiro brasileiro: “Filho do sofrimento, de moacy
- dor, e ira, desinência que significa saído de”.’’

A língua não aparece porém como um mero instrumento. Trata-se de


uma espécie de chave capaz de fazer entrar na vida selvagem. E essa, por súa
vez, comporta a revelação da natureza brasileira. Sobre Peri, que instintiva-
mente fazia poesia, falava o romancista:

Não é isso a poesia? O homem que nasceu, cmbalou-se e cres­


ceu nesse berço perfumado; no meio de cenas tão diversas, en­
tre o eterno contraste do sorriso e da lágrima, da flor e do espi­
nho, do mel e do veneno, não é um poeta?
Poeta primitivo, canta a natureza na mesma linguagem da natu­
reza; ignorante do que se passa nele, vai procurar nas imagens
que tem diante dos olhos, a expressão do sentimento vago e con­
fuso que lhe agita a alma.
Sua palavra é a que Deus escreveu com as letras que formam
livro da criação; é a flor, o céu, a luz, a cor, o ar, o sol; sublimeis
coisas que a natureza fez sorrindo.
A sua frase corre como o regato que serpeja, ou salta como o rio qaé
se despenha da cascata; às vezes se eleva ao cimo da montanha, ou­
tras desce e rasteja como o inseto, sutil, delicada e mimosa.’*

Diante do tupi, os outros seriam bárbaros, como os aimorés, que


usam uma língua que Peri não entende, e que são qualificados pela nega.-
ção: não têm pátria, nem religião. Inimigos da família de d. Antônio de
Mariz, têm o rosto humano - dádiva que afasta a bestialidade - disforme;
quase não são humanos os aimorés.

A língua usada pelo poeta não será diretamente a “língua indígena’’,


mas a sua própria; para esta deveria traduzir, fazer passar as idéias “rudes e
grosseiras". Fazer passar a natureza, da qual a língua civilizada se distanciou.

Não haveria entre o português e o tupi simplesmente uma mudança


de código, não seriam simplesmente signos intercambiáveis; a relação es-

164
labelece-se como uma modificação da própria “lítigua civilizada" que se
moldaria à “língua bárbara”.

As marcas que a língua bárbara imprimiu na literatura constituem-se de


imagens e pensamentos indígenas, são formas de sentimento, o seu próprio espí­
rito, os pequenos detalhes de sua vida. As próprias palavras e expressões consti­
tuem imagens literárias ricas. O uso feito pelo autor postula um paralelismo
entre língua e pensamento, por isso as palavras não podem simplesmente ser
traduzidas, pois sua presença ali é um ponto de lembrança da história das “raças
inimigas”. Aqueles que criticavam a “poesia inçada de termos indígenas", Alen­
car afirmava que também condenava seu abuso, mas que hã um uso digno do
bom gosto literário, desde que reconhecedor da poesia e tradições indígenas.

O interesse de José de Alencar pela língua tupi é compartilhado com


todo um interesse romântico, voltado para as línguas antigas ou para os esta­
dos de língua antigos. A inserção do tupi no texto literário concebia esta língua
como elemento do passado, bem como os povos que foram seus criadores.

Esse gosto romântico pelo estudo das línguas manifestava-se nas pes­
quisas de Schlegel sobre a Índia, levando-o a conclusões sobre o sãnscrito,
cujo conhecimento revolucionou as considerações sobre as correspondências
entre as línguas. Essa revolução cristalizou-se ua categoria indo-europeu.

Com o romantismo, o interesse geral voltara-se para o passado;


origem dos povos c pré-história. Os estados de língua antigos e
os documentos do passado foram objeto de investigações siste­
máticas. A linguística lornou-se utn meio de conhecer a pré-his-
lória dos povos e as culturas antigas.”

A lingtlística histórica procurava a regularidade das correspondências


entre as línguas, incorporando o problema da transformação, destacando-se a
atenção de Jacob Grimm sobre o tema.’®Esse autor, aliás, é citado por Alencar
no prefácio a Sonhos d'ouro.

O nacionalismo literário de Alencar levou-o às reflexões sobre a


língua como corpo em transformação, marcado indelevelm entepela histó­
ria, Na América, a língua portuguesa teria uma história própria, A naiure-


za americana foi a grande responsável não só por essa transformação, mas
por um enriquecimento. O ambiente americano livrou-a de uma extinção
certa, e ainda fez com que dela brotasse um “novo idioma sonoro, exube­
rante e vigoroso”.’’ Essa “natureza tão opulenta” foi uma dádiva ao portu­
guês, atribuindo-lhe uma nova e gloriosa tarefa, que seria “servir de raiz a
uma das mais belas e opulentas entre as línguas que dominarão na Améri­
ca, antes de um século” .’*

Havia assim uma profecia sobre o porvir de uma das línguas futu­
ras da América; sua “raiz" seria o português, mas já não exatamente a sua
forma original.

Contudo, a concepção alencariana deixa entrever também a influ­


ência naturalista e evolucionista. August Schleicher lançou a base de dis­
cussões em torno do caráter inelutável das leis fonéticas, ao aproximar a
linguística das recentes teorias de Darwin, em obra de 1863. A língua pas­
sava a ser concebida como um ser vivo, do nascimento e crescimento à
m o rte ,P ro v a v e lm e n te , Alencar não insistiu em conceber tão rigorosa­
mente as leis fonéticas formuladas pelos neogramáticos, dispensando-se
de procurar as transformações e correspondências necessárias entre situa­
ções semelhantes.

A tarefa a que se propôs era chamada ofensivamente de “mania de


tornar o brasileiro uma língua diferente do velho português”. Para isso, o
recurso ao tupi, selecionado como o grande representante das línguas in­
dígenas, e à natureza exuberante e prodigiosa. No fundo não eram enten­
didos como dois elementos de transformação, mas como um só, o tupi sen­
do entendido como a língua da natureza. Mantinha-se para o escritor a
distinção entre uma língua bárbara e uma língua civilizada; e entre a lín­
gua do povo e a língua tal qual a traz à luz o escritor.

O autor do poema em prosa Iracema, publicado era 1865, foi alvo


de muitas condenações: ter um estilo descuidado, ter seu livro crivado de
“ insubordinações gram aticais”, não atentar para a forma. Logo, a Irace­
ma, obra por outro lado muito elogiada, eram dirigidas críticas desse teor,
Muito mais do que em O guarani, Alencar nesse romance-poema preten­
dia envolver sua narrativa na língua e no espírito tupis. A própria língua
da ficção é o tupi, o que aprendemos no primeiro encontro entre a doná
dos lábios de mel e o guerreiro português:

1 6 6
- Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem tios meus ir­
mãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guer­
reiro como tu?
- Venho de bem longe, filha das Horestas. Venho das terras que
teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.*“

Não só a língua foi adotada por Martim Soares Moreno; mas seus usos
e costumes, tendo inclusive despido as vestes européias c feito pintar seu cor­
po. O personagem masculino se transformava diante da natureza-mulher. No
primeiro romance. Peri havia consentido no que sabia ser o seu fim: a conver­
são para o cristianismo. Abandonara sua família para servir à senhora escolhi­
da. Agora, o branco é que se deixava transformar.

O autor defenderá com afinco (mas sempre com a irônica e certeira alti­
vez) a obra cujo cenário é sua terra natal, Ceará, ou “terra do canto da jandaia”.
Vale notar que na bela “Canção do exílio”, com que abre seus Primeiros cantos,
de 1846, Gonçalves Dias elegera o sabiá como símbolo de sua saudade.

A leitura de Iracema é uma espécie de aula, pois ressaltam os cuida­


dos pedagógicos com o tupi, incrustado na língua de que se serve o poeta como
pedras vistosas, ou preciosidades. Junto com o significado das palavras siste­
maticamente ensinado nas notas do autor, os supostos costumes e principal­
mente um código moral (também elementos do passado) são trazidos aos leito­
res e leitoras. A respeito do código moral, elemento constituinte da literatura
folhetinesca,*' é curioso como Alencar buscava impressionar as damas da cor­
te, entregues ao divertimento, ao teatro, aos bailes e nada interessadas em ama­
mentar, mostrando Iracema que, impossibilitada de alimentar seu filho, ofere­
cia seus seios a cachorrinhos para assim fazer jorrar o leite.

Em um "Pós-escrito”, acrescentado à segunda edição de Iracema e


datado de 1870, o escritor procurou responder aos “defeitos" apontados em
seu livro, sustentando a legitimidade de uma expressão literária propriamente
brasileira. Inicia-o tratando do duplo problema dos erros tipográficos e das
incertezas relativas à ortografia. Nesse sentido, Alencar não só se justifica,
mas, dado o momento em que escreve, é agente da formação de convenções
gramaticais. Procurando, portanto, esclarecer sua posição à revelia dos erros
de composição gráfica, enumera minuciosamente as suas opções conscientes,
dando para cada uma delas uma extensa e profunda justificativa desde a cita-

J67
ção de lingüislas, de referências etimológicas, até mesmo as interpretações
dos clássicos. Essa postura explica-se por entender a gramática não como um
estoque de regras estáticas, mas antes como uma filosofia e uma ciência. Pará­
grafos são dedicados a suas escolhas entre õo e am, em um momento em que a
convenção baseada na fonética não era ainda de fato uma convenção. Outros
pontos de tensão como a crase no a, a colocação de pronomes pessoais, o usO
de artigos definidos, são trabalhados com igual rigor. Promete mesmo um li­
vro em que se dedicaria inteiramente às suas “opiniões gramaticais", forma de
se contrapor às “insubordinações gramaticais", crime que o escritor português
Pinheiro Chagas o acusava de cometer.

Toda a segunda pane do ‘Tós-escrito" é dedicada a rebater as criticai:


vindas de Pinheiro Chagas, para quem a gramática era um padrão inalterável ç
que condenava a “mania de tornar o brasileiro uma língua diferente da do ve­
lho português”. Pinheiro Chagas toma como argumento de autoridade o mes­
mo Max Müller em que Alencar se apóia para defender sua posição. Ambos
assumem que as leis invariáveis da filologia mostrariam que só o povo podería
modificar uma língua. Para Pinheiro Chagas, porém, os escritores estariam
fadados a não serem mais do que “mecânicos”, manuseando a língua como
uma ferramenta sem alma. Alencar afirma que mesmo o “corpo” da língua não
sendo modificado senão pelo “povo”, os escritores a aperfeiçoariam: “eles ta­
lham e pulem o grosseiro dialeto do vulgo, como o escultor cinzela o rude
troço de mármore e dele extrai o fino lavor”.**

Isso, no que toca à parte física ou fonética da língua. Exatamente a


fonética seria o grande ponto de diferenciação entre a língua portuguesa e
a língua brasileira apresentado no prefácio a Sonhos d'ouro. A mudança
fonética se deveria a uma modificação nos próprios órgãos da fala (um
dos argumentos naturalistas utilizados por Alencar), causada, no Brasil,
pela deglutição das frutas tropicais! E sempre significativo (mesmo que
não seja esse o argumento explícito do autor) que os nomes destas frutas
capazes de modificar os modos de falar não sejam de origem européia; *‘0
povo, que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar
uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o
figo, a péra, o damasco e a nêspera?".

Mas no que toca ao “espírito” da língua, isto é, sua gramática, aí o


escritor apenas tem o poder de modificação; afinal não caberia ao vulgo inter­
ferir em uma ciência, a própria filosofia da palavra.

16S
A gramática, ou a filosofia da palavra, i incontestavelmenle uma
ciência. Como todas as ciências, ela deve ler em cada raça e em
cada povo um período rudimentário; ainda mesmo depois de largo
desenvolvimento, existirá algum ramo de conhecimento humano
que não esteja imbuído de falsas noções e até de erros crassos?
O mesmo sucede com a gramática: saída da infância do povo, rude
e incoerente, são os escritores que a vão corrigindo e limando.”

Quanto à “mania” referida por Pinheiro Chagas, Alencar afirmava:

Que a tendência, não para a formação de uma nova língua, mas


para a transformação profunda do idioma de Portugal, existe no
Brasil, é fato incontestável. Mas, em vez de atribuir-nos a nós
escritores essa revolução filológica, devia o sr. Pinheiro Cha­
gas, para ser coerente com sua teoria, buscar o germe dela e seu
fomento no espírito popular, no falar do povo, esse ‘ignorante
sublime’ como lhe chamou.
A revolução é irresistível e fatal, como a que transformou o per­
sa em grego e céltico, o etrusco era latim, e o romano em fran­
cês, italiano etc.; há de ser larga e profunda, como a imensidade
dos mares que separa os dois mundos a que pertencemos,”

Comparação semelhante sobre a relação entre o poeta e o povo na


formação da nacionalidade da língua, era feita no prefácio a Sonhos d'ouro:

Sobretudo compreendam os críticos a missão dos poetas, escrito­


res e artistas, nesse período especial e ambíguo da formação de
uma nacionalidade. São estes os operários incumbidos de polir o
talhe e as feições da individualidade que se vai esboçando no vi­
ver do povo. Palavra que inventa a multidão, inovação que adota
o uso, caprichos que surgem no espírito do idiota inspirado; tudo
isto lança o poeta no seu cadinho, para escoimá-lo das fezes que
porventura lhe ficaram do chão onde esteve, e apurar o ouro fino.
E de quanta valia não é o modesto serviço de desbastar o idioma
novo das impurezas que lhe ficaram na refusão do idioma velho

169
com outras línguas? Ele prepara a matéria, bron/x ou mármore,
para os grandes escultores da palavra que erigem os monumen­
tos literários da pátria.®’ (grifo meu)

Alencar relaciona em sua concepção raças e línguas, afirmando


que quando raças de uma estirpe comum se distanciam, suas línguas en­
tram também em um processo de diferenciação, bem como seus pensa­
mentos e costumes. Por outro lado, as raças podem constituir um “amálga­
ma” de sangue, tradições e línguas, desde que contem com um “solo exu­
berante” que garanta a nacionalidade. Esse argumento é a base da existên­
cia de uma forma linguística própria no Brasil, em que haveria um trata­
mento especial do que é estrangeiro:

Cumpre não esquecer que o filho do Novo Mundo recebe as.


tradições das raças indígena.s e vive ao contato de quase todas
as raças civilizadas que aportam a suas plagas trazidas pela
emigração.
Em Portugal o estrangeiro perdido no meio de uma população
condensada pouca inRuência exerce sobre os costumes do povo:
no Brasil, ao contrário, o estrangeiro é um veículo de novas idéi­
as e um elemento da civilização nacional.
Os operários da transformação de nossas línguas são esses re­
presentantes de tantas raças, desde a saxônia até a africana, que
fazem neste solo exuberante amálgama do sangue, das tradições
e das línguas.**

O que modificou o português, o inglês, o espanhol na América foi


a natureza. Enfaticamente, essa é a razão apontada para a diferença do
português no Brasil, invertendo a crítica em uma constatação e defesa da
especificidade. “O velho estilo clássico destoa no meio destas florestas
seculares, destas catadupas formidáveis, destes prodígios de natureza vir­
gem 1...]” .*’ Sobre essa natureza, "as musas gentis do Tejo e do Mondego”
ficariam insensíveis e mudas. Alencar detalhadamente expõe seus pontos
de vista e longe está de defender uma inovação (como mera apologia ao
novo) ou uma diferença puramente reativa. Por isso seu arrazoado baseia-
se na gramática.

170
A piedade e o medo

Um apanhado sobre as duas principais obras indianistas de José de


Alencar ajuda-nos a pensar a questão do sentimento sobre as raças, uma vez
que nossa intenção é discutir o tratamento que as formulações sobre a naciona­
lidade deram à diversidade racial. O próprio romantismo é que elegeu os sen­
timentos como perspectiva de conhecimento do mundo, e já Roger Bastide
chamou a atenção para a sensibilidade romântica sobre a escravidão na poesia
de Castro Alves e outros poetas.** Mais uma vez vale lembrar Alexandre Her-
culano que definia a poesia de sua época como antes de tudo lírica e dramáti­
ca, e afirmava que amarguras, contentamentos, lutas “inspiram cantos que o
poeta sente e que a sociedade compreende”.*’ O elo entre o poeta e a socieda­
de seria portanto os sentimentos. No prólogo a O guarani, publicado apenas,
ainda no formato de folhetim, no Diário do Rio de Janeiro e na primeira edi­
ção. o autor, supostamente dirigindo-se a uma prima, afirmava que “o coração
é que fala” e que “o coração é sempre verdadeiro, não diz senão o que sentiu;
e o sentimento, qualquer que ele seja, tem a sua beleza”.’®

José Aderaldo Castello considera que em seus romances indianistas, a


intenção de Alencar era “traduzir, sob o ponto de vista da mestiçagem, o con­
tato inicial das duas raças e as suas relações sentimentais”.’*Tentemos seguir
essa pista. O que torna impossíveis os amores entre Ceei e Peri, e entre Irace­
ma e o guerreiro branco é a própria inimizade entre as raças. O pertencimento
a raças inimigas constituía a barreira entre os apaixonados, O amor precisaria
vencer o inimigo extremo, de fato invencível, pois a história da nação tinha, aí,
seu início. Direções opostas pareciam envolver o leitor: de um lado, torcer
para que o amor se realizasse, para que as extremidades se unissem; de outro,
0 desenlace, infeliz no romance, o tranqüilizava ao expressar a vitória da civi­
lização e a ratificação da ordem hierárquica presente. Ainda que tristes, reco­
nhecer essa vitória propiciava aos leitores obliterar os conflitos presentes e
visíveis, as divisões da nação. Peri, o herói quase onipresente e onipotente,
pertencia ao passado.

O herói tem que se dividir entre essas decisões opostas que exercem
sobre ele a mesma atração. Iracema obedecería à lei familiar e tribal (no caso,
equivalia à sua “cidade", à sua lei pública) e recusaria o amor do guerreiro,
por ser ele inimigo dos tabajarás, pois era aliado dos tradicionais inimigos
pitiguaras? Não; embora essa fosse uma traição, aumentada pelo fato de ser

171
ela a virgem, filha do pajé, que tinha o poder de beber a jurema e decifrar os
sinais oraculares sobre a guerra, Iracema se entrega à lei do seu coração. Mes­
mo que virtuosa, Iracema não podia escapar ao fado.

Pela mão do poeta, porém, estava aí iniciada a nação. O filho dos dois,
o fruto do amor que iranspassava o pesado obstáculo do combate entre as ra­
ças inimigas, foi o primeiro brasileiro.

Esse foi o destino trágico da história da nação contada por Alencar


através de seus romances. De uma forma bastante especial, José de Alencar foi
um pouco historiador. Isto é, a história como lugar da formação da nacionali­
dade. No tempo de estudante de direito, embora matriculado na Faculdade de
São Paulo, passou uma temporada em Olinda visitando os “papéis velhos” do
mosteiro.” Mais tarde, consumiu as obras dos cronistas coloniais cuja publi­
cação estava em curso, empreendida pelos membros do Instituto Histórico,
bem como os relatos de viajantes.” Mas a história da nação não aparecia em
seus romances apenas como conhecimento dos tempos passados (embora este
aspecto estivesse presente). Tratava-se, ao lado disso, de certa apropriação
moral dessa história. Já na polêmica com Gonçalves de Magalhães, Alencar
defendeu um programa para o “historiador do passado e profeta do futuro”:

Mas quando o homem, em vez de uma idéia, escreve um poema;


quando da vida do indivíduo se eleva ã vida de um povo, quando
ele. ao mesmo tempo historiador do passado e profeta do futuro,
reconsirói sobre o nada uma geração que desapareceu da face da
terra para mostrá-la ã posteridade, é preciso que tenha bastante
confiança, não só no seu gênio e na sua imaginação, como na
palavra que deve fazer surgir esse mundo novo e desconhecido.
Então Já não é o poeta que fala; é uma época inteira que exprime
pela sua voz as tradições, os fatos e os costumes; é a história,
mas a história viva, animada, brilhante como o drama, grande e
majestosa como tudo que nos aparece através do dúplice véu do
(empo e da morte.”

O poeta teria portanto uma tarefa de “reconstruir” uma geração, uma


época, uma história. Uma história com o toque romântico do drama, c não o
épico tentado por Gonçalves de Magalhães. Esse interesse expressou-se na

172
edição no formato de folhetim de O guaranis em que apareceram já as notas do
autor, algumas relativas a explicações lingiiísticas de palavras do tupi e outras
relativas à história. Muitas vezes Alencar preocupou-se em esclarecer que cer­
tos personagens existiram de fato, afirmando que eram “históricos". Citava
documentos, referia-se aos autores consultados, como Baltazar da Silva Lis­
boa e Aires do Casal.” Lembre-se, porém, que essa aproximação não deve ser
entendida pela via do realismo, mas pela própria idéia romântica, de valoriza­
ção do passado como elemento singular, nacional. Nessa apropriação moral da
história, vamos dar destaque aos sentimentos acerca da diversidade das raças.

Acompanhando Iracema, o público via-se envolvido em emoções como


a piedade e o medo, sentimentos aparentemente opostos, mas que deveriam
brotar alternadamente entre os leitores cultos e livres num passeio pelas ruas
da corte, sentimentos, portanto, muito adequados à dura hierarquia social e
que eram alt trazidos à tona.

Em O guarani, o valor atribuído a Isabel, fruto do encontro entre as


raças inimigas, será bem diferente do valor primordial de que se reveste Moacir.
filho de Iracema e Martim Soares Moreno. Isabel representa, mais cruamente, a
associação comum entre mestiçagem e bastardia. herdada do período colonial.**
Vivia como “sobrinha”, mas era filha ilegítima de d. Antônio de Mariz e uma
mulher que não chega a ter nome ou ser individualizada no romance; carregava
a mágoa de sua situação, ainda mais pesada pelo fato de amar Álvaro, um cava­
lheiro branco (outro amor impossível), a quem diziar “Sabeis o que sou; uma
pobre órfã que perdeu sua mãe muito cedo, e não conheceu seu pai. Tenho vivi­
do da compaixão alheia; não me queixo, mas sofro. Filha de duas raças inimigas
devia amar a ambas; entretanto minha mãe desgraçada fez-me odiar a uma, 0
desdém com que me tratam fez-me desprezar a outra".*^

Compaixão e desdém misturam-se na forma como Isabel é tratada, le­


vando-a ao ódio pela raça da mãe, e ao desprezo pela raça do pai. O ódio
explicava-se pois aquela raça “a rebaixava a seus próprios olhos”,** era o es­
pelho da identidade que queria esquecer.

Isabel representa também a sensualidade transbordante que terminou


por confundir o coração de Álvaro, que amava Cecília. O leal amigo acaba
apaixonando-se diante de beleza tão irresistível, oposta à de Cecília, e que
sintetizava o “tipo brasileiro”. A consciência da transformação no sentimento
de Álvaro foi lenta, mas a atração irresistível exercida pela moça foi certeira.

173
o rapaz também teve piedade da sina da moça que vivia entre o ódio e o des­
prezo. A piedade, sentimento cristão, ajudava a aparar as arestas. Acabaram
ambos morrendo juntos, em uma cenasurreal, consumindo seu amor na morte,
eie, ferido pelos aimorés, e ela tendo montado uma espécie de paraíso artifici­
al com perfumes embriagadores da íloresta tropical.

Ceei e Isabel complementavam-se e opunham-se. “Loura e Morena"


A primeira é branca, tem olhos azuis como a (Nossa) Senhora que encantou
Peri, Já Isabel

Era um tipo inteiramente diferente do de Cecília; era o tipo brar


sileíro em toda a sua graça e formosura, com o encantador con­
traste dc languidez e malícia, de indolência e vivacidade.
Os olhos grandes e negros, o rosto moreno e rosado, cabélos
pretos, lábios desdenhosos, sorriso provocador, davam a este
rosto um poder de sedução irresistível.”

A sensualidade do personagem, encarnando um “tipo brasileiro”, seria


Já um dos estereótipos comuns nesse início da segunda metade do século XIX?
A definição de um “tipo brasileiro” talvez não fosse tão comum. Mais recorrente
era a sensualidade de personagens índias ou mestiças, literários como a Iracema
ou a Marabá de Gonçalves Dias, ou pictóricos, como a “Moema” de Vítor Mei­
reles, de 1865. Provavelmente, Alencar era agente da construção deste tipo.

Além da memória amarga sobre a mãe, Isabel despreza Peri. Em conversa


com a “prima”, que reclamava sua injustiça em relação ao fiel Peri, replicava;
“como queres que trate um selvagem que tem a pele escura e o sangue vermelho?
Tua mãe não diz que um índio é um animal como um cavalo ou um cão?”.

Mas logo explicava sua atitude à dona de piedoso coração: “Sei que tu
não pensas assim, Cecília; e que o teu bom coração não olha a cor do rosto
para conhecer a alma. Mas os outros?... Cuidas que não percebo o desdém cora
que me tratam?”."’®

Isabel era diferente do filho de Iracema, por ambos representarem


motivações opostas. Um é resultado de amores nobres, a outra, de encontros
escusos: sua mãe era cativa de seu pai.

174
Um índio e os índios

Assim como o tupi representa a língua indígena, Peri encarna "um


índio”, de características definidas. Na seguinte nota de rodapé, que acompa­
nha a primeira aparição do personagem na trama, já no capítulo IV, Alencar
deduz das variações das descrições físicas dos antigos escritores e cronistas
uma falha ou desconhecimento, desprezando a possibilidade de haver índios
diferentes. A unidade impera em seu pensamento. Seguindo a pista de Reinhart
Koselleck, talvez possamos ver também neste índio um singular coletivo, re­
presentante e suposta síntese dos índios plurais. José de Alencar elege Gabriel
Soares de Sousa, pela antiguidade de seu relato, como o mais autorizado e o
que teria visto o índio em uma condição originai:

Um índio: O tipo que descrevemos é inlciramente copiado das


observações que se encontram em todos os cronistas. Em um
ponto porém variam os escritores; uns dão aos nossos selvagens
uma estatura abaixo da regular; outros uma estatura alta. Neste
ponto preferi guiar-mc por Gabriel Soares que escreveu em 1580,
e que nesse tempo devia conhecer a raça indígena cm todo o seu
vigor, e não degenerada como se tornou depois.

Esse índio não vive nu, veste uma túnica alva; sua pele brilha como o
cobre, o rosto é harmônico, tinha "a beleza inculta da graça, da força e da inteli­
gência”. A perfeição de Peri, sua força e destreza, sua coragem que nunca vacila,
sua lisa honestidade, sintetizam a idealização do índio característica do india-
nismo romântico. Mas esse não é o único índio que Alencar traz para sua versão
do poema nacional. Existem, de forma ura tanto sub-reptícia, índios que poderia­
mos considerar mais “reais”. Sua presença porém é sempre dada pelo negativo
(fotográfico) - revelam-se como o fundo, por não serem como o herói. Seria por­
tanto insuficiente afirmar que o índio que aparece nos romances é imaginário, é
uma idealização distante. Os índios “reais”, presentes, deixaram ali sua marca. O
que há de mais real e presente, do ponto de vista do processo de formação do
Estado imperial, no que diz respeito aos índios, são as guerras e os conflitos, so­
bretudo quando a questão era a expansão da fronteira territorial efetivamente sub­
metida à soberania do Estado. Manuela Carneiro da Cunha sugere que havia duas
categorias na percepção e tratamento dos índios durante o período imperial:

175
Há, primeiro, os tupis e os guaranis, já então virtual mente extintos
ou supostamente assimilados, que figuram por excelência na auio-
imagem que o Brasil faz de si mesmo. É o fndio que aparece como
emblema da nova nação em todos os monumentos, alegorias e cari­
caturas. É o caboclo nacionalista da Bahia, é o índio do romantismo
na literatura e na pintura. É o fndio bom e, convenientemente, é 0
índio morto. A segunda categoria é o genericamente chamado boto-
cudo. Esse não só é um índio vivo, mas é aquele contra quem se
guerreia por excelência nas primeiras décadas do século: sua repu­
tação é dc indomável ferocidade. Coincidência ou não. os bolocu-
dos são tapuias, contraponto c inimigos dos tupis na história do
início da Colônia e sobretudo na Literatura indianista".'°-

Na análise dessas imagens literárias acerca da nação é preciso fi­


car atento não só para as falas principais, mas para as falas subterrâneas, e
mesmo para os silêncios, se o que se pretende é, no conjunto assim forma­
do, entrever o contexto histórico por meio da literatura.

A forma como Alencar construiu o personagem coletivo dos aimorés


nada tem de idealista, embora tudo tenha de miopia etnocêntrica, de piosiçãò
evolucionista, que não deixam de ser idealizações à sua maneira. O singular cole­
tivo submete os conteúdos específicos, subtraindo-os a uma existência própria.

Já se notou anleriormente que um dos elementos que, segundo Alep-


car, define os aimorés é não utilizarem o tupi. Sua língua não é nomeada
ou individualizada, é simplesmente “desconhecida”. Deles diz que sãp
canibais (e os tupis, não praticavam também a antropofagia? Mas sobre
essa prática Alencar silencia) e viveríam como feras.

Uma nota existente na edição no Diário do Rio de Janeiro, que foí


suprimida das edições mais atuais do romance, era um instrumento por
meio do qual o autor tranquilizava a “prima” a que havia feito referência
no prólogo: “O manuscrito que estou copiando, lem a data de 1758; por
isso não se admire que o autor fale no presente. Hoje já não existem íiimo-
rés, minha prim a”, ( g r i f o meu)

O pertencimento ao passado é (ranqüilizador diante do medo suscita­


do pela leitura.

176
Uma índia aimoré foi casualmenle atingida pela arma de d. Diogo.
filho de d. Antônio de Mariz. Peri, onipresente como sempre —invariavelmen­
te enconlra-se no lugar onde algo essencial acontece —, vê tudo. Seguindo o
cãozinho que acompanhava a moça e que após sua morte vai até sua família,
entende a consequência inevitável: a vingança dos aimorés dá a partida à trama.

Ora, □ índio [Peri] conhecia a ferocidade desse povo sem pátria e


sem religião, que se alimentava de carne humana e vivia como
feras, no chão e pelas grutas e cavernas; estremecia só com a idéia
de que pudesse vir assaltar a casa de d. Antônio de Mariz.*'”

D. Antônio de Mariz e sua família moravam em uma casa que ficava


incrustada em um rochedo, e onde, mesclados o engenho humano c o natural, o
resultado era não uma habitação simples, mas uma espécie de fortaleza. Defendia-
se assim do ataque dos selvagens. A casa que fazia as vezes de “castelo feudal" era
necessária “por causa das tribos selvagens, que, embora se retirassem sempre das
vizinhanças dos lugares habitados pelos colonos, e se entranhassem pelas flores­
tas, costumavam contudo fazer correrías e atacar os brancos à traição”.'®*

A guerra com os índios é elemento também da própria caracterização


de d. Antônio: “Homem de valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a com­
bater os índios”. Sua fidelidade ao sangue português era tamanha que, com o
domínio espanhol estabelecido sobre o império luso em 1580, resolve refugiar-
se na sesmaria no interior onde podia afirmar: “Aqui sou português! [■••] Nesta
terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu braço, nesta terra
livre, tu reinarás, Portugal, como viverás na alma de teus filhos".'®®

Aquele “torrão brasileiro” era um “fragmento de Portugal livre”. Ao


narrar esse episódio da história nacional, Alencar reconhecia a herança portu­
guesa. Era-se aí mais português do que em Portugal.

A força militar cora que contava era a dos aventureiros, espécie de mesti­
ços, “reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e agili­
dade do índio”, eram “soldados e selvagens”, controlados pelo senhor e protetor.

Sobre os aimorés inventados por Alencar, essa suposta descrição os apon­


ta como menos que humanos. Já que em geral se considera o índio-herói de

J77
Alencar, vale a pena ler algumas linhas sobre esses índios “reais”, {Na medida
em que o medo era real, presente). Vale ainda pensar na tragédia como possibi­
lidade de elaboração do sentimento de piedade e, aqui muito claro, do medo:

um prazer feroz animava todas essas fisionomias sinistras,


nas quais a bravcza, a ignorância e os instintos carniceiros ti­
nham quase dc todo apagado o cunho da raça humana.
Os cabelos arruivados caíam-Ihc sobre a fronte e ocultavam in­
teiramente a parte mais nobre do rosto, criada por Deus para a
sede da inteligência, e para o trono donde o pensamento deve
reinar sobre a matéria.
Os lábios decompostos, arregaçados por uma contração dos mús­
culos faciais, tinham perdido a expressão suave e doce que iraprb-
mem o sorriso e a palavra; de lábios de homem se haviam trans­
formado em mandíbulas de fera afeitas ao grito e ao bramido.
Os dentes agudos como a presa do jaguar, já não tinham o es­
malte que a natureza lhes dera; armas ao mesmo tempo em que
instrumento da alimentação, o sangue os tingira da cor ammre-
lenta que têm os dentes dos animais carniceiros.
As grandes unhas negras e retorcidas que cresciam nos dedos, a
pele áspera e calosa. faziam de suas mãos, antes garras temí­
veis, do que a parte destinada a servir ao homem e dar ao aspec­
to a nobreza do gesto.
Grandes peles de animais cobriam o corpo agigantado desses
filhos das brenhas, que a não ser o porte ereto se julgaria algu­
ma raça de quadrúmanos indígenas do novo mundo.'®’

O lugar do índio não é só o do herói; são vários os índios e os senti­


mentos em relação ao índio encenados em O guarani, com escolhas e valoriza­
ções do melhor índio e do melhor sentimento. Aparecem os índios (plural)
como animais ou bravos c o índio (singular, individual) que é reconhecido
como pessoa. Ainda segundo Manuela Carneiro da Cunha, fora da literatura,
era comum a expressão da idéia de bestialidade, fereza e animalidade dos índi­
os, embora oficialmente fosse afirmada sua humanidade.'®*

A imagem desses índios com os quais se está em guerra evoca o medo.


Segundo Marlyse Meyer. esse era um elemento comum aos folhetins do século

178
XIX, o medo inspirado pela desigualdade social. Meyer afirma que uma das
principais chaves do folhetim, tanto na suas origens francesas como nos frutos
brasileiros, era o medo do binômio classes laboriosas-classes perigosas."” A
generalização do medo talvez não seja muito adequada para 0 caso brasileiro.
Em José de Alencar, o medo existe, mas não de forma isolada, sendo funda­
mental interpretá-lo em conjunto com a outra face do sentimento sobre as ra­
ças, a piedade. O desfecho de O guarani restaurou, ao menos no plano da
leitura, a tranquilidade. Apesar da destruição da casa-fortaleza de d. Antônio
Mariz e de quase toda a família, Peri e Ceei salvam-se dos bravos aimorés. Se
o amor impossível entre a moça branca e o herói nativo se concretizou ou não,
o autor preferiu deixar à imaginação dos leitores a tarefa de responder.

Os conflitos que o próprio autor designa como as lutas entre as


raças marcam um início mítico da nação nesses dois romances indianistas.
Aproximam-se estes portanto da tragédia, que opunha a lei gerai à lei par­
ticular, o Estado (ou a cidade, a civilização) ao círculo fam iliar,'"’ Desse
embate, embora triste, embora revolvendo os duros sentimentos de medo
e piedade, a vitória coube à nação e ã civilização.

Conflito e morte no história da noção: Gonçalves Dias

“Desejo, inquietação também lá moram*


Que sobra pois em nós. que falta neles?"
Gonçalves Dias, Os timbiras

A "História pátria": um manifesto teórico

A literatura romântica voltou-se para a história em busca de um


passado que singularizasse a nação. No entanto, houve formas distintas de
se olhar para a história, podendo-se questionar até que ponto ela foi senti­
da como palco de conflitos e até que ponto foi tratada como elemento de
pacificação do p r e s e n te .N o caso do indianismo, talvez essa questão seja
mais fecunda do que indagar se era ideal ou real o índio visto pelo roman­
tismo brasileiro, ou se tal ou qual autor se “aproximou” mais do “real”;
afinal, o indianismo produziu imagens, dessemelhantes, a que se empres­
tou a identidade “índio”.

179
Gonçalves Dias pode ser tomado como um historiador. Não só por seus estu­
dos publicados na revista do Instituto Histórico, ou pela sua atuação na localização de
documentos e livros raros em diversas bibliotecas e arquivos. Mas, mesmo, por suas
poesias, por meio das quais pesquisou e deu a conhecer a história. A história que conta
é triste, fala do fim, da morte. Nada de exaltação e ufanismo. Nada de chamar “pro­
gresso” um movimento que carrega em sua origem o “extermínio secular”:

[...] Chame-lhe progresso


Quem do extermínio secular se ufana;
Eu. modesto cantor do povo extinto
Chorarei nos vastíssimos sepulcros,
Que vão do mar ao Andes, e do Prata
Ao largo c doce mar das Amazonas.

Ele próprio tentava criar uma categoria onde se encaixar: o historiador


poeta. Diferiria este do historiador político, pela sua sensibilidade maior com
as nações do que com “a” nação. Mesmo sendo em parte de uma origem mes­
tiça, Gonçalves Dias transformou-se em alguém a quem era impossível calar
essa feição. Quando foi reimpressa a obra Anais históricos do Maranhão^ de
Bernardo Pereira de Berredo, do início do século XVIIl, Dias aproveitou a
ocasião para escrever uma longa crítica à visão do autor português nas páginas
da revista Guanabara, significativamente intitulada “História pátria”. Deftitiu
duas atitudes legítimas diante da história; a do poeta e a do político.

Quem quer que for bom historiador deve ter uma destas coisas:
ser político ou poeta; não poeta no sentido em que fala Filinte
Elfsio - homem que vive de medir linhas curtas c compridas ->
mas poeta de alma e sentimento; escreva prosa ou verso; chamo-
se Schiller ou Chateaubriand, Homero ou Platão.
O historiador político resume todos os indivíduos em um só indiví­
duo coletivo, generaliza as idéias e os interesses de todos, conhece Os
erros do passado c as esperanças do futuro, e tem por fim a nação.
O historiador poeta resume as nações em uma só nação, simpa­
tiza com todas as suas grandezas, execra todas as suas turpitU-
des. e generalizando todos os sentimentos, todas as aspirações
do coração humano, tem por fira a humanidade.

ISO
o hisioriador político escreverá o livro do povo, iim como aque­
les fragmentos da sibila, que os romanos consultavam nas gran­
des tempestades da sua República. O poeta historiador escreve­
rá o livro do homem e de todos os homens, do povo e de todos
os povos - o evangelho da humanidade.'*’

Berredo não se encaixaria em nenhuma dessas atitudes. Seria um


simples cronista, enumerando os fatos, e tendo como principal defeito olhar
apenas as conquistas vantajosas para o reino de Portugal. O comentário de
Dias vale como uma espécie de manifesto teórico sobre como entendia a
história e a formação da nacionalidade. Condena Berredo que afirmava
que tudo “o que é de índios é selvático, e irracional”, tudo o que fosse
estrangeiro seria vil e infame. O poeta procura então reconstituir a histó­
ria dos índios no Maranhão; tupis, tupinambás, tupiniquins, tamoios, goi-
lacazes, aimorés e outros. Oferece a tradução dos nomes dos povos e mos­
tra sua distribuição pelo território, como migraram e para onde com a che­
gada dos portugueses. Segundo ele, os tapuias seriam povos tupis, antigos
tamoios ou tamuyas, que se alteraram com o isolamento.

Em um plano mais profundo, Dias procurava conciliar dois coletivos,


a nação e a humanidade, procurando definir o lugar dos índios no segundo,
como forma de criticar sua exclusão de um projeto nacional. Nesse sentido,
não é a história aí entendida como puro conhecimento cronológico do passa­
do, mas sim como moldura da formação da nacionalidade. A idéia de formação
pode também ser entendida como um singular coletivo que é buscado, e que
abrangería tanto a história como a língua nacionais.

Nesse texto, da mesma forma que o fez em sua obra poética, o autor
baseou-se em autores jesuítas coloniais, como Símão de Vasconcelos e Antô­
nio Vieira. Nem por isso perdia sua posição crítica diante do projeto missioná­
rio, explicando em que consistia a conversão, como nesta passagem sobre os
nheengaybas, que se refugiaram em Marajó e outros lugares e resistiram aos
portugueses durante algum tempo. Ao final, porém,

Todos foram vencidos, desbaratados, escravizados: quando o não


podiam com as armas, mandavam-lhcs um padre da Companhia com
um crucifixo e palavras de paz, que os traziam sujeitos e cativos

181
para definhar e morrer nas nossas plantações; quando faltavam es­
cravos, levantavam bandeiras, juntavam homens e iam ao que cha­
mavam resgate, em escárnio de todas as leis divinas e humanas."'*

Dois milhões de mortos dos primeiros habitantes do Maranhão após a


chegada dos portugueses, e o início da longa série de atos pérfidos e cobiçosos
dos colonos que apresavam mesmo os índios de tribos aliadas. Lembrar esses
acontecimentos consistia na tarefa primeira segundo Gonçalves Dias, defen­
dendo uma pauta para o historiador; “Era isto o que deveriamos estudar, por­
que, nós o repetimos, a história e a poesia do Brasil está nos índios” ."’

A escravidão fazia parte de suas inquietações com essa mesma nação,


Criticou-a pela relação de mando e obediência que instaurava. Em Meditação,
falava de uma terra bem-aventurada, habitada por um povo infeliz; "E sobre
essa terra mimosa, por baixo dessas árvores colossais, vejo milhares de ho­
mens de fisionomias discordes, de cor vária e de caracteres diferentes”.

Algumas das reflexões desse texto serão retomadas adiante.

Nações e nação

Historiado poeta ou “modesto cantor de povo extinto”, Gonçalves Dias


compôs, embora o deixando inacabado, um poema épico. Os timbiras. O pro­
jeto era bastante ambicioso: seriam dezesseis cantos que o autor pretendia que
equivalessem a uma “Ilíada brasileira", a obra definitiva da poesia nacional, o
“gênese americano”. Talvez exatamente por causa dessa expectativa de gran­
diosidade, é que tenham sido publicados apenas os quatro cantos iniciais (se­
gundo seu amigo Henrique Leal, doze cantos foram compostos), e que não
conste como das mais felizes criações de Gonçalves Dias."® A obra também
não foi sucesso de público, ao contrário do volume Cantos (que reunia os li­
vros anteriores), publicados ambos em 1857.

Os timbiras habitavam em Alcântara e, derrotados no início do século


XVII pelos gamelas, migraram para a Amazônia. O autor pretendia narrar, além
desses conflitos, o confronto com os portugueses, a catequese, e os passos que
os levaram à extinção."’

182
A composição foi iniciada na primeira esiada de Gonçalves Dias no
Rio de Janeiro, quando se retirou em férias numa chácara em Macacos, na
Gávea. Em carta a Henrique Leal, ele anuncia seu projeto:

Saberás que estive coisa de cinqíiema dias em uma chácara do


Serra, em Macacos, e durante todo aquele santo ócio. como
diria Virgílio, nada mais fiz do que fumar, caçar c imaginar.
Imaginei um poema... como nunca ouviste falar de outro: ma-
gotes de tigres, de quatis, de cascavéis; imaginei mangueiras e
jaboticabeiras copadas, jequitibás e ipês arrogantes, sapucaei-
ras e jambeiros, de palmeiras nem falemos: guerreiros diabóli*
C O S, mulheres feiticeiras, sapos e jacarés sem conta: enfim, um

gênese americano, uma IHada brasileira, uma criação recria­


da. Passa-se a ação no Maranhão e vai terminar no Amazonas
com a dispersão dos timbiras; guerras entre eles e depois com
os portugueses."’

As guerras intertribais entre os timbiras e os gamelas constituem o


tema dos quatro primeiros cantos. A inquietação sentida pelo autor nasce exa­
tamente dessas guerras, que fizeram com que todos os primeiros habitantes, no
final, perdessem para o invasor português. Itajuba, chefe dos timbiras, foi de­
safiado pelo rei das selvas, chefe dos gamelas. A descrença nas palavras do
piaga (o líder espiritual, ou xamã) decifrando os sinais oníricos dos guerreiros
- descrença que por si já é indício de um futuro nefasto - os leva a uma guerra
inütil. Perigo maior, mas para o qual permanecem surdos e cegos, era contado
por Orapacém, “tupinambá famoso'’, trazido numa igara:

Conta prodígios duma raça estranha,


Tão alva como o dia, quando nasce.
Ou como a areia cândida e luzente,
Que as águas dum regato sempre lavam.
Raça, a quem os raios prontos servem.
E o trovão e o relâmpago acompanham.
Já de Orapacém os mais guerreiros
Mordem o pó, e as tabas feitas cinza
Clamam vingança cm vão contra os estranhos."’

IB3
A destruição disseminada pelos estranhos, pela “Raça, a quem os rai­
os prontos servem”, e que contrastava com sua alvura, semelhante ao nascer
do dia, fazia-se ali noticiada pelos sertões. A coragem extrema, a destreza dos
guerreiros, acabou sendo a fonte de sua própria ruína. A guerra contra os por­
tugueses não chegou a ser tratada diretamente no poema. Mesmo sem o desfe­
cho, tudo sugere que a guerra levaria à própria destruição. O duplo tema das
divisões entre os oprimidos e da ruína cultural dos “primeiros” habitantes da
América, que tanto inquietou o autor, não parece ter animado o público. A
edição, feita na Alemanha e custeada pelo autor, acabou encalhada. Vale a
pena contrastar com o sucesso dos Cantos, em edição rapidamente esgota-
da,'“ como também, naquele mesmo ano de 1857, com a obra de outro autor,
que alcançou grande sucesso de público, e que foi o folhetim O guarani.

Os timbiras também são incorporados como personagens do poema


considerado obra-prima do indianismo, l-Jiica-Pirama. Esse título é esclare­
cido em nota pelo autor: “O título desta poesia, traduzido literalmente da lín­
gua tupi, vale tanto como se em português disséssemos ‘o que há de ser morto,
o que é digno de ser morto”'.

O guerreiro tupi, feito prisioneiro dos timbiras, dividiu-se entre a bravu­


ra diante da morte - prova da honra de sua tribo - e o cuidado com o pai, velho
e cego, que ficara sozinho na floresta. Diante de seu aparente temor, os próprios
timbiras desprezam sacrificá-lo no ritual antropofágico, e o soltam. No entanto,
ao encontrar o velho, este descobre, tateando o corpo do filho, os preparativos
do sacrifício e despreza-o também (“Tu, covarde, meu filho não és”‘^^). Gonçal­
ves Dias constrói sua imagem acerca do índio introduzindo um dilema moral: a
alternativa impossível entre o amor filial e a honra e identidade do grupo.

Em l-Jiica-Pirama aparecem referências aos aimorés, sempre qualifica­


dos como “vis aimorés”, e que ocupam a função de contraste com os tupis e
mesmo com os timbiras. Para o pai, a sua própria honra, indiscemível do brio e
da fama da sua tribo, seriara realçadas com o sacrifício do filho. Outro seria ó
destino caso este fosse presa dos “vis aimorés”, e esta é a maldição lançada pelo pai:

Possas tu. descendente maldito


Dc uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros.
Seres presa dc vis aimorés.'”

IS4
Uma breve passagem indica que ü contexto histórico é posterior à in­
vasão portuguesa. Após ter conhecido apenas que o filho havia sido prisionei­
ro, o pai lhe pergunta: Dos índios?”.'^"' Ou seja, o filho poderia ter sido
capturado por outros que não índios. Uma oposição que foi forjada pelo pró­
prio processo de colonização, assim como a categoria “índios” é essencial­
mente uma categoria européia em sua origem.

Marabá e os valores incomuns da mestiçagem

Pelas palavras tristes de Marabá —“Eu vivo sozinha; ninguém me pro­


cura!” - , Gonçalves Dias falava do desprezo lançado àquela que lamentava a
cor verde dos próprios olhos, pedindo “uns olhos bem pretos, luzentes”, “Bem
pretos, retintos, não cor d’anajá”. Gonçalves Dias parece propor uma inversão
da atitude corriqueira atribuída pela hierarquia social escravista aos mestiços,
que seriam julgados conforme parecessem mais ou menos brancos. Quanto
mais clara sua pele, mais fácil seria sua aceitação e reconhecimento.

Com Marabá acontecia algo diferente: ela pedia aparência de ín­


dia, uma vez que vivia entre os índios. Era loura, de cabelos anelados. O
guerreiro, namorado inexistente, exigia cabelos lisos, corridos, compri­
dos. Esse poema é anotado por Gonçalves Dias, explicando tratar-se do
desprezo registrado na Crônica da Companhia de Jesus, do século XVII,
de autoria de Simão de Vasconcelos, ao rebento designado como marabá.
que significaria "mistura”.

Nesse amor impossível de uma mestiça que, vivendo entre os índios,


aspira outra aparência, o autor faz uma inversão. A ordem colonial era ame­
açada e questionada pela alternativa de mestiços e portugueses de viverem
como índios.'”

Muito se fala da poesia indianista como trazendo certa “tranquili­


dade de consciência” a um público que testemunhava uma violência pre­
sente em vários conflitos entre o poder imperial e as populações indíge­
nas. No entanto, um desabafo de Gonçalves Dias em carta a um seu amigo
indica que ele eslava longe de entender a poesia como produtora de tran­
quilidade. Afirmava, aos 20 anos, que “não impunemente nos metemos
nesta vida de literatura”.'^®

185
Certamenie o dom de uma consciência tranqüila não é o intuito de
Gonçalves Dias, Sua poesia americana não traz tranqüilidade, não purga nada.
Ao contrário, ressuma a consciência de um passado de conflitos.

Jean de Léry, Hans Staden, Simão de Vasconcelos, Roloux Baro, Laet


c certamente tudo o que conseguisse em suas viagens no Brasil e Europa, deci-
frador voraz de arquivos e bibliotecas —dominava suas principais línguas—,
foram suas fontes.

A atração do índio pela mulher branca foi tema trabalhado já nos Primei­
ros cantos, na parte especial mente elogiada por Alexandre Herculano, das “Poesi­
as americanas". “O canto do índio”, poema publicado dez anos antes de O guara­
ni, mostrava um índio que confundia, como se tivesse sido enfeitiçado, a imagem
da mulher branca com a imagem da Virgem, embora uma imagem erotizada:

Sobre a areia, já mais tarde,


Ela surgiu, toda nua;
Onde há, ó Virgem, na terra
Formosura como a tua?

O índio (personagem) no fundo nutria um sentimento contraditório entre


sua própria vida, imerso em sua verdade, e o amor da Virgem e da mulher
branca, que o levaria à morte da liberdade original:

Ah! Que não queiras tu vir ser rainha


Aqui dos meus irmãos, qual sou rei deles!
Escuta, ó Virgem dos cristãos formosa.
Odeio tanto aos teus. como le adoro;
Mas queiras tu ser minha, que eu prometo
Vencer por teu amor meu ódio antigo.
Trocar a maça do poder por ferros
E ser, por te gozar, escravo deles.*’’

Ódio e adoração, poder e ferros, liberdade e escravidão são os pólos


em que oscilavam o índio apaixonado pela mulher branca.

186
o mesmo tema foi retomado por José de Alencar em O guarani. Peri
amou Cecília desde que a viu, pois tinha sido marcado, quando presenciou o in­
cêndio que destruiu a vila de Vitória, atacada por sua tribo, por uma imagem de
Nossa Senhora. Sonhou com esta “senhora dos brancos”, sentenciando a ele; “Peri,
guerreiro livre, tu és meu escravo; tu me seguirás por toda a parte, como a estrela
grande acompanha o dia”. Ao ver Cecília, a viu como sua “senhora”, e passou a ser
seu “escravo”. N o romance, isso consistia tanto em atender a seus pequenos capri­
chos de moça mimada, como em proteger infalível e incondicionalmente sua vida.

O mesmo poema - “O canto do índio” - devia estar na mente de Alen­


car quando este escreveu a cena do banho de Ceei, em que Peri a protege sem
no entanto ver sua nudez: ela dispunha de seu “vestuário de banho”.‘” Segun­
do a imagem do poeta maranhense, em contraste, a nudez não só é vista como
constitui o próprio elemento de sedução.

Nação e escravidão

A infelicidade do destino da América (“América infeliz!”) foi tratada por


Gonçalves Dias a partir de um fragmento em prosa intitulado Meditação. Destino
ligado à escravidão, vista aí mais pelo viés das relações pessoais. Pode-se tomar
essa visão como interior, por contraposição à opinião contrária ao tráfico de escra­
vos, cada vez mais em voga ao aproximar-se o ano de 1850, que combatia não a
relação de dominação em si - como Dias parece fazer em sua Meditação mas a
presença doravante considerada indevida do escravo próximo à família, do escra­
vo nas ruas da cidade, enfim do escravo visível demais.'^ Seu lugar apropriado
seria a lavoura, sinônimo de riqueza do país, em uma Ideologia adequada à políti­
ca de “poupar” a escravidão, atendendo aos interesses da produção cafeeira.^'
Essa posição é encontrada no jornal O Filantropo, cuja publicação teve início em
1849 e foi o órgão da Sociedade Contra o Tráfico, e Promotora da Colonização, e
Civilização dos Indígenas. A argumentação de Gonçalves Dias diferencia-se tam­
bém do que José Murilo de Carvalho define como o abolicionismo luso-brasileiro,
em que uma “razão nacional” seria mais importante que a preocupação com a
defesa da liberdade individual, em contraste com o abolicionismo europeu e nor­
te-americano. A “razão nacional” analisada por Carvalho obscureceria o valor da
liberdade. No argumento de Gonçalves Dias a liberdade é central, embora não
pareça adequado simplesmente enquadrar sua concepção de liberdade a partir da
noção de liberdade individual ou da correlata noção de sociedade liberal.'^^

187
o escritor advoga o fim da escravidão, enquanto fim da própria domi­
nação senhorial: as “maneiras submissas e respeitosas” diante das “maneiras
senhoris e arrogantes” ; é como se a própria escravidão fosse por ele condena­
da, e não a condenação da presença africana na nação e o medo da “africaniza-
ção” do Im p é rio .O u tro elemento central na hierarquia social condenado por
Dias era que houvesse uma divisão não pela variedade de opiniões, mas pela
variedade das cores; e que afinal a cor fosse o critério de uma divisão.

Publicado no primeiro tomo da Guanabara (1849-1851), em passa­


gens descontínuas, uma parte desse texto foi escrita em Caxias, a antiga Aldei­
as Altas, lugar em que nasceu o escritor, e outra em São Luís. Isso ocorreu em
1846, quando ele havia voltado dos estudos feitos em Coimbra. Nessa época,
talvez mais pela irreverência de maneiras do que pela aparência física, ou os
dois fatores mesclados, era visto não como o bacharel culto, alguns mesès
depois nomeado sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, profes­
sor de história do Brasil do Imperial Colégio Pedro II, condecorado com a
ordem da Rosa, mas como o “caboclinho da pobre Vicência", o “filho natural
de João Manuel”, como sensivelmente observa Manuel Bandeira.

Uma terra onde a natureza é belíssima, árvores, relva, flores, céu, es­
trelas.... tudo perfeito, mas onde o mal vem dos homens, discordes. A metáfora
utilizada para expressar a dominação foi a de círculos concêntricos formados
pela queda de uma pedra nas águas plácidas de um lago.

A água muitas vezes está presente nas imagens produzidas por intelec­
tuais (e também em alguns mitos) sobre as diferenças de cores. Pensar era
transformações veiculadas pela água, quem sabe, possibilita que se considere
antes uma diferença de cor do que uma diferença de raça, dada como uma
situação imutável. A água associa-se à transformação (em geral, do preto em
direção ao branco), à fusão.

K. von Martius, na memória “Como se deve escrever a história do


Brasil”, cunhou a imagem do rio caudaloso, português, que podería absorver
os confluentes índio e africano: “O sangue português, em um poderoso rio
deverá absorver os pequenos confluentes das raças índia e etiópica”.’’^ Na
Meditação de Gonçalves Dias, diferentemente, a água não é elemento de fu­
são, trata-se de círculos concêntricos, afastados, que jamais se encontrarão.
Círculos que expressariam, em linguagem atual, a pirâmide social - a hierar­
quia, a maioria excluída e a minoria que está no centro, ou no topo.

)SS
E sobre essa terra mimosa, por baixo dessas árvores colossais,
vejo milhares de homens de fisionomias discordes, de cor vária
e de caracteres diferentes.
E esses homens formam círculos concêntricos, como os que for­
ma a pedra, caindo no meio das águas plácidas de um lago.
E os que formam os círculos externos têm maneiras submissas e
respeitosas, e são de cor preta; os outros, que são como um pu­
nhado de homens, formando o centro de todos os círculos, têm
maneiras senhoris e arrogantes, e são de cor branca.
E os homens de cor preta têm as mãos presas em longas corren­
tes de ferro, cujos anéis vão de uns a outros, eternos, como a
maldição que passa de pais a filhos.

Cada uma das faixas circulares teria uma cor própria, sendo a cor pre­
ta a mais exterior. Nesta, seus membros eram ligados por cadeias, inexpugná­
veis aos movimentos de resistência que eram executados apesar dc ferirem os
pulsos dos homens que as portavam.

Angel Rama, utilizando metáfora semelhante à dos círculos concêntri­


cos, analisa as diferenças linguísticas da sociedade latino-americana, forjadas
na época colonial e mantidas após a emancipação. Diferenças linguísticas que
traduziríam diferenças sociais e relações de poder, manifestadas em “anéis,
linguística e socialmente inimigos”. O núcleo seria o da cidade letrada e escri-
turária, obediente às normas tradicionais da escrita. Este seria circundado por
uma imensa “plebe formada por crioulos^ ibéricos desclassificados, estrangei­
ros, libertos, mulatos, zambos, mestiços e todas as variadas castas de cruzar
mentos étnicos”, formando um anel urbano, responsável, segundo o autor, pclà
formação do espanhol americano, apesar da resistência dos letrados. Havería
ainda um anel bem maior, correspondente ao uso das línguas indígenas e afri­
canas, ocupando os subúrbios, as periferias, as áreas rurais, as aldeias e qui­
lombos. Rama conceitua esse fenômeno como diglossia.^'^'’

Voltemos ao outro elemento da imagem de Gonçalves Dias, a água. Esta,


como meio de transmutação, aparece em uma “história” contada a Francisco de
Paula Ferreira de Rezende por uma sua escrava, chamada “preta Margarida”.
Segundo esta história, quando foram criados por Deus, todos os homens eram de
cor preta. Mais tarde, já bastante povoada a terra, por arrependimento divino ou
porque a cor branca era julgada mais bonita, o criador, por um pacto firmado

1B9
com as criaturas, ofereceu uma espécie de desafio, concedendo às águas de um
rio o poder de embranquecer, mas à custa de arriscar-se o candidato ao frio e à
morte. Dos corajosos, deslumbrados com a promessa de tanta beleza, alguns
sobreviveram saindo na outra margem. Os pretos, friorentos e rotineiros, fica­
ram com a segurança e, apesar da inveja pelos que avistavam do outro lado,^
apenas as palmas das mãos e as solas dos pés tornaram-se brancas quando toca­
ram as águas encantadas - o suficiente para constatar a sua frieza extrema.'^

Câmara Cascudo cita algumas outras versões, de diferentes partes dO:


mundo, junto ao conto “Por que o negro é preto”,’’’ em Contos tradicionais do
Brasil. Em uma delas, recolhida por Medeiros e Albuquerque, o motivo da cor
preta original do homem seria o próprio barro, escuro, de que Deus se serviu
na criação de Adão. Deus, no entanto, criou também o remédio para esse mal,
isto é, um lago de águas claras. Havia contudo um limite, pois tais águas não
seriam suficientes para banhar toda a humanidade. A diferença em relação à
história de Margarida está não apenas na ausência de perigo neste caso (com­
pensada pelo caráter finito do remédio), mas na notação dos que se banharam
após os primeiros e antes dos últimos, que encontrando a água já um tantQ
saturada, ficaram com a cor pardacenta, entre o branco e o preto.

Décadas mais tarde, Mário de Andrade introduziu essa lenda nas peri­
pécias de Macunafma, em versão parecida, embora o pequeno lago seja, aí, não
criação do Deus cristão, mas a pegada de Sumé, em referência a outra provável
lenda sobre a passagem de São Tomé pela América muito antes dos portugueses,
O esperto Macunaíma foi o primeiro a chegar, claro. Venceu o frio, lavando-sé
ali. E ocorreu o “milagre”; “Quando o herói saiu do banho estava branco louro e
de olhos azuizinhos, a água lavara o pretume dele”. Jiguê, seu irmão, só “conse­
guiu ficar da cor do bronze novo”. Maanape toca com as mãos e os pés a água
santa. Ficaram assim os três irmãos, “um touro um vermelho outro negro".‘^“

O olhar de Gonçalves Dias é bem outro, assim como sua época. O


poder transformador da água, que acabaria mostrando tanto uma origem co­
mum do homem, como a possibilidade da mudança ao contrário da situação
estática, contrasta com a consciência de que a escravidão seria um obstáculo
para a nação. Por isso chama a atenção para a divisão perigosa, procurando
desconstruir os argumentos da escravidão:

E os homens que costumam a raciocinar sobre as coisas como


são, e não como devem ser, levantaram-se e disseram;

190
Os homens de cor preta devem servir, porque eles estão acostuma­
dos à servidão de tempos mui remotos, e o costume é também lei.
E os filósofos disseram: os homens de cor preta devem servir,
porque são os mais fracos, e é lei da natureza que o mais fraco
sirva ao mais forte.
E os proprietários disseram; os homens de cor preta devem ser­
vir, porque são o melhor das nossas fortunas, e nós não have­
mos de as desbaratar.
Então alevanlou-se um acalorado rumorejar de vozes, e todos
concordaram em que a voz dos filósofos e dos proprietários era
a voz da razão e da justiça e devia ser escutada.
E os homens de cor branca também se levantaram e disseram:
“Nós constituímos a maioria da nação e somos de entre todos
os mais ricos.
Fomos nós os autores da regeneração política, e a inteligência é
o nosso apanágio.
Ora. é lei da natureza que a alma governe o corpo, e que a sabe­
doria governe a ignorância.
Nós então ficaremos com o poder, porque somos os mais ricos e
os mais inteligentes".
E os homens da mesma classe disseram que tinham bem fala­
do seus irmãos, e que a sua pretensão era justa e devia ser
atendida.''"

A legitimação da escravidão pelo costume, pela antigüidade, pela


“lei da natureza”, pela diferença de força, pela inteligência superior dos
brancos, pela riqueza, pela política - todos esses (pretensos) argumentos
são condenados pelo autor.

Para comentar o lugar do índio nessa história, Dias reporta-se a


um começo idealizado, em que “quadros belíssimos de poesia e lições de
moral sublime” eram compartilhados por uma “geração numerosa e não
corrompida”, numa vida maravilhosa. Até que aportaram os navios imun­
dos, repleto de homens “sordidamente cobiçosos", “pregando a religião
de Cristo com armas ensanguentadas”, O resultado foi que a escravidão
dos próprios índios e a escravidão africana atuariam, ao pensar no futuro
da nação, desqualificando os prim eiros habitantes, que acabavam se en­
tregando à indolência e à ociosidade.

191
o texto Meditação pode ser considerado expressão (embora um
tanto precoce em relação ao momento em que o tema torna-se quase obri­
gatório, principal mente por volta de 1871, ano da Lei do Ventre Livre) da
sensibilidade romântica diante da escravidão. O interesse em relação à
singularidade cultural do escravo de procedência africana sequer se colo­
cava como questão. O que parecia urgir nessa nova forma de sentimento
era mostrar, pela poesia, que o escravo era também gente, tinha uma alma,
coração, sentimentos. Roger Bastide escreve:

Com o século XIX, vai produzir-se uma transformação radical


nas relações entre os poetas e os africanos. Não é mais o ele­
mento guerreiro, a violência e o ardor na luta que serão postos
em evidencia, mas a doçura, a resignação c o sofrimento. [...]
E esse reconhecimento da doçura, da ternura africana numa lite­
ratura que então ainda é meio lamartiniana, por conseguinte in­
teiramente levada à efusão sentimental, à simpatia e ao amor, que
vai ajudar a nascer uma poesia do escravo. Tanto mais quanto a
Independência está consumada; mas não basta criar uma pátria, é
preciso também solidificá-la pela fusão de todos os seus filhos.*^

No entanto, mesmo que consideremos essa preocupação de Gonçalves


Dias com a escravidão ~ lembrando que o texto de 1846 permanece isolado, se
comparado às opiniões anticscravistas formadas no contexto posterior ao fim do
tráfico de escravos, em 1850 - e os obstáculos que representa para seu projeto
de nação (liberta da dominação), a imagem de índio ressumada por sua obra
nada tem de semelhante com a resignação ou o sofrimento. Ao contrário, o vi­
gor, a honra, e a superioridade moral despontam como seus atributos, afinal
extintos pela história da colonização. Essa é a nódoa na formação da nação.

Esses foram alguns aspectos que marcaram a formação da nacionali­


dade na língua e na literatura. Os agentes dessa formação, englobados na esfe­
ra geral da formação do Estado, acentuaram a vigência daquela “liberdade
regrada” e, acreditando na existência de um consenso e de uma unidade, pro­
curaram colocar em marcha um espírito de associação. Por outro lado, a naci­
onalidade e a alterídade foram complementares. Imaginar a nação gerou dife­
rentes formas de se definir o outro, o externo e o interno. As divisões internas
evidenciaram-sc, embora nem por isso tenham recebido o mesmo tratamento.

192
N otas

1 "Nasceu Antônio Gonçalves Dias (1S23-1S64) era uma fazenda dos arredores de Caxias
(Maranhão), na qual se refugiara com a amante, brasileira de origem ainda não indis­
cutivelmente apurada (índia ou cafusa?), seu pai, português, que ali buscara asilo contra
as perseguições da parte de nacionalistas exaltados". Manuel Bandeira, Noções de história
das literaturas, p, 341; Gonçalves Dias, Obras póstumas, precedidas de uma notícia da
sua vida e obras pelo dr. Antônio Henriques Leal, p. xxiv; Manuel Bandeira, Gonçalves
Dias: esboço biográfico.

2 Essa autodenominada “geração de 1825" pode ser inserida em uma geração mais extensa,
a que nasceu entre 1800-1833, seguinte à dos fundadores do Império, e composta tanto
por homens que desempenharam os principais cargos políticos do Estado imperial, como
parlamentares, presidentes de província, ministros (como Paulino Soares de Sousa, Eusébio
de Queiroz, Rodrigues Torres, Nabuco de Araújo, o visconde de Rio Branco entre outros),
quanto por intelectuais, escritores, jornalistas, arhsias plásticos, historiadores, como Gonçalves
de Magalhães, Gonçalves Dias, José de Alencar. Vamhagen, João Francisco Lisboa, Vítor
Meireles. limar Rohloff de Mattos apresenta-a, comentando seu desempenho: "Fundar o
Império do Brasil, consolidar a instituição monárquica e conservar os mundos distintos
que compunham a sociedade faziam parte do longo e tortuoso processo no qual os setores
dominantes e detentores de monopólios construíam a sua identidade enquanto uma classe
social". O tempo saquarema. p. 125-126.

3 Revista Brasileira - Jomai de Ciêiu^ias, Letras e Artes. Dirigido por Cândido Batista de Oliveira.
Publicação irimensal. Tomo 1. Rio de Janeiro, Tipografia Universal de Laemmert, 1857.

4 Marcei Mauss, La naiion. especialmente p. 576-577 e 599.

5 Guanabara - Revista Mensal Artística, Científica e Literária, tomo I, Tipografia Dois de


Dezembro de Paula Brito, Iraprcssor da Casa Imperial, 1851. p. 2.

6 Nas lutas peta abdicação do primeiro imperador, cm Santo Amaro, na Bahia, pedia-se a
ascensão de dom Pedro II, que era “cabra como nós". Stuart Schwartz, The formation of
a colonial identity in Brazil.

7 Sérgio Buarque de Holanda vê não exatameme um poeta em Gonçalves de Magalhães; ele


era mesmo um tipo de instituição nacional, que fornecia o passaporte para a entrada na
sociedade literária ou, de forma mais ampla, nos labirintos administrativos. Livro dos prefá­
cios, p. 368. (Originalmente publicado em D. J. G de Magalhães, Obras completas. Rio
de Janeiro, Ministério da Educação, 1939). Anlonio Cândido reforça a influência que o
depois nomeado visconde de Araguaia desfrutava: "Durante pelo menos dez anos ele foi
a literatura brasileira". Formação da literatura brasileira, p. 55.

8 Francisco A. Vamhagen, Memorial orgânico: plano de limites e divisão do território do


Brasil e situação de sua nova capital. 1849-1850. Essa é a primeira edição, sem referên­
cia ao autor, lugar de publicação e editora. O texto foi republicado no primeiro tomo da
revista Guanabara, ocasião em que Vamhagen explicou o anonimato anterior pela
“simples razão de julgar eu mais conveniente apresentar-me em campo de viseira calada,
para que as minhas idéias chegassem a ser ajuizadas segundo sua valia [...]". Guanabara
- Revista Mensal Artística. Científica e Literária, tomo I, 1851, p. 357.

193
9 Francisco de Sousa Martins, O progresso do jornalismo no Brasil, RIHGB, tomo S,
1846. Kraus Reprint, 1973.

10 Revista Brasileira ~ Jornal de Ciências. Letras e Artes, op, cit.

11 Manuel Bandeira, Gonçalves Dias: esboço biográfico, op. cit.. p. 86.

12 limar Rohioff de Mattos, op. cit., p. 240: “a articulação entre a politica de mão-de-obra
[...] e a política de terras tinha como objetivo tanto poupar imediatamente o consumo de
mão-de-obra escrava quanto sujeitar os novos e futuros ocupantes do mundo do trabalho,
fossem eles ex-escravos, elementos nacionais ou imigrantes, como decorrência de uma trans­
formação que era vista e apresentada como inevitável fruto do progresso e da civilização”.

13 ibidem, p. 157; "quando dizemos - estar no governo do Estado ~ estamos nos referindo
também ã capacidade de exercer uma direção: uma direção política, uma direção ‘inte­
lectual e moral’ [...]. Estamos tentando ir além das concepções prevalecentes, sobretudo
nos estudos referentes à ordem imperial, que apenas consideram no Estado os aspectos
referentes à dominação e aos aparelhos de coerção que a tomam possível, como a polícia,
a burocracia, os tribunais”. A expressão "espírito de associação", citada pelo autor, é do
visconde de Mauá; Bernardo Pereira de Vasconcelos falava em "difundir as luzes”.

14 Manoel L. Salgado Guimarães, Nação c civilização nos trópicos: o IHGB e o projeto de


uma história nacional, p. 7: “é no mesmo movimento de defíoição da nação brasileira que
se está definindo também o 'outro’ em relação a ela. Movimento de dupla face, tanto para
dentro quanto para fora".

15 Sobre a crítica dessa oposição, quase naturalizada, na antropologia, ver o artigo de Mareio
Goldman e Tânia Stolze Lima, Como se faz um grande divisor?, in Mareio Goldman,
Alguma antropologia, p. 83-92.

16 Sérgio Buarque de Holanda, Livro dos prefácios, op. cit., p. 353.

17 Um exemplo signifícativo foi Joaquim Norberto de Sousa e Silva, de cujo envolviraçnlp


com os censos tivemos prova no capítula anterior deste trabalho. Podemos citar ainda Cândido
Batista de Oliveira, que tem um reconhecido cálculo sobre a população do Império em 1851,
lido em sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e que foi diretor da Revista
Brasileira - Jornal de Ciências, Letras e Artes (1857-1859; Biblioteca Nacional), que
declarava-se continuação da Guanabara, fundador do Instituto Histórico, senador, ministro
da Fazenda e dos Estrangeiros.

18 A revista foi publicada entre 1849 e 1856. Tanto os exemplares da Biblioteca Nacional
quanto os do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro estão reunidos em dois tomos:
o primeiro, datado de 1851, e o terceiro [sic], datado de 1855. A paginação é contínua em
cada um dos tomos. Na época em que a pesquisa foi realizada, não foi possível recuperar
a dimensão dos volumes originais (seu início e fim), nem. consequentemente, as datas espe­
cíficas de publicação dos artigos. Remetemos apenas, portanto, para um dos tomos. Poste­
riormente, consultando os originais da série completa na biblioteca da Casa de Rui
Barbosa, verifiquei que a publicação estendeu-se a 1856.

19 Mary Karasch, Slave life in Rio de Janeiro, 1808-1850, p. 63-64. comenta o fracasso dos
censos de 1834 e 1838, ambos subestimando o número de escravos. A questão foi discu­
tida no segundo capítulo deste trabalho.

194
20 Esta foi a linha de atuação de O Filantropa, que arrolava os nnateffcios de uma africa-
nização da nação, combatendo o trãftco internacional de escravos. À posição não é de defesa
da liberdade dos escravos, mas de evitar a presença escrava no seio da "família branca".
O Filantropa. Periódico í/tiHia«iínnV), cientifico e literário, 184-9.

21 Francisco A. Varnliagen, Memorial orgânico, op, eit.

22 Antonio Cândido, O nacionalismo literário, in Formação da literatura brasileira, op. dt., p. 10.

23 Sobre o conceito de comunidades imaginadas, ver Benedict Anderson, üaçãa e consciência nacional.

24 Antonio Cândido, Formação da literatura brasileira, op. cit.

25 A declaração de Johann Goitfried von Herder, no final do sdculo XVllI, de que “todo povo
é povo; ele possui sua formação nacional como possui .sua língua" é comentada por
Benedict Anderson: "Essa concepção notavelmente cug-européia da nation^ness como algo
vinculado a uma língua própria e exclusiva teve ampla influência na Europa do século XIX
e, mais limítadamente, lias teorias subsequentes sobre a natureza do nacionalismo”.
Benedict Anderson, Nação e coíi.ícféítcio nacional, op. cit., p. 76-77..

26 João Francisco Lisboa, A e.scravidão e Varniiogen, p. 135.

27 Edith Pimenlel Pinto, O português no Brasil: época colonial, p. 519.

28 limar Rohloff de Mattos, O tempo saquarema, op. eit., p. 263.

29 Marcei Mauss (op. cil., p. 596} incluiu a questão linguística em sua reflexão sobre a idéia de
nação, apontando para o caráter inédito do conservantismo, proselitismo e fanatismo, bem como
da inlcrvenção do Estado, nesse momento de definição das "línguas nacionais" no século XIX.

30 Jonathan Steinberg, O historiador e a questione delia língua, in Peter Burke e Roy Portór
(orgs.). História social da linguasem, p. 242.

31 Luís Maria da Silva Pinto, Prólogo, in Dicionário da língua brasileira, Biblioteca Nacional,
Seção de Obras Raras.

32 Brás da Costa Rubim. Vocabulário brasileira para servir de complemento aos dicionários
da língua portuguesa. Biblioteca Nacional. Seção de Obras Raras.

33 Essa obra não é aqui analisada por não se enquadrar nos litnites cronológicos deste trabalho.
Antônio Joaquim de Macedo Soares. Dicionário brasileiro da língua portuguesa', elu-
cidário ctimológico-crítico das palavras e frases que, originárias do Brasil, ou aqui
populares, se não encontram nos dicionários da língua portuguesa, ou neles vêm com
forma ou significação diferentes. 1875-1888.

34 Vocabulário da língua bugre. RIHGB, tomo 15, 1852, p. 60-75.

35 Flora Sussekind, O escritor como genealogista: a função da literatura c a língua literária


no romantismo brasileiro, v. 2, p. 461.

36 Antônio Alvares Pereira Coruja, Coleção de vocábulos e frases usadas na província de S,


Pedro do Rio Grande do Sul.

195
37 Bcnedici Anderson, Naçãa e consciência nacional, op. cit.. p. 81.

38 Celso Cunha. Língua porniguesa e realidade brasileira.

39 Edilh Pimenicl Pinto. A língua escrita no Brasil, p. 8-9.

40 Edith Pimentcl Pinto. O português do BrasiL textos críticos e teóricos. 1 - 1820-1920,


fontes para a teoria e a história, p. xvi. Na introdução, a autora procura apresentar as
reflexões sobre a natureza da língua do Brasil desenvolvidas no período. Sobre o pensa­
mento romântico, elabora a distinção entre os "dialctistas" e os “separatistas".

41 Manuel Bandeira, Noções de história das literaturas, op. cit., p. 163.

42 No seu “Ensaio sobre a história da literatura no Brasil”, publicado na revista Niterói em


1836 e considerado o primeiro manifesto do romantismo brasileiro, Gonçalves de Magalhães
lançava as questões: “Pode o Brasil inspirar a imaginação dos poetas? E os seus indígenas culti­
varam a poesia?”. Apud Manuel Bandeira, Noções de história das literaturas, op. cit.. p. 338.

43 Antonio Cândido, A educação pela noite e outros ensaios, p. 151.

44 Nova Dicionário Aurélio, p. 233.

45 Lopes Gama, O carapuceiro, p. 421.

46 Sobre a trajetória de Lopes Gama e o conteúdo de sua atividade coroo jornalista político
e social, ver a cuidadosa introdução de Evaldo Cabral de Melo em O carapuceiro.

47 Juan Valera, A poesia brasileira, Guanabara. Revista Mensal Artística. Científica e


Literária, tomo 111, 1855, p. 197-199.

48 Joaquim Norberto de Sousa e Silva, A língua brasileira, Guanabara. Revista Mensal


Artística. Científica e Literária, tomo Ili. 1855, p. 99.

49 José de Alencar, Bênção paterna, [prefácio a] Sonhos d ’ouro - romance brasileiro, p. 9.

50 Joaquim Norberto de Sousa e Silva, A língua brasileira, op. cit., p. 100.

51 ibidem, p. 101.

52 Gonçalves de Magalhães, Os indígenas do Brasil perante a história, p. 10.

53 Extratos do prólogo dessa obra são citados por Edgard Sanches, A língua brasileira.

54 F. A. Varnhagen, Memória sobre a necessidade do estudo e ensino das línguas indígenas


no Brasil, p. 53-63.

55 Manuela Carneiro da Cunha. Política indigenista no século XIX, in História dos índios no Brasü.

56 Em José de Alencar, difercntemente, a referência é sempre ã “ língua indígena", no


singular, como se só uma de fato existisse.

57 Francisco A.Vamhagen. Prólogo, in Florilégio da poesia brasileira, apud Edgar Sanches. op. cit.. p. 9,

196
5S Manoel Salgado Guimarães escreve: "É Francisco Adolfo Varnhagcn quem [,..J expli­
citaria os fundamentos definidores da identidade nacional brasileira enquanto herança
da colonização européia". Nação c civilização nos trópicos: o IHGB c o projeto de uma
história nacional, p. ó.

59 Antonio Cândido. A educação pela noite e oMffH.v enxaías, op. cit., (especialmente os artigos
"Literatura c subdesenvolvimento" e "Literatura de dois gumes”).

60 João Francisco Lisboa, A ejcrnvií/flo e Varnhagen. op. cit., p, 153.

61 Flora Sussekind, O escritor como genealogista: a função da literatura c a língua literária


no romantismo brasileiro, op. cit., p. 459.

62 Machado de Assis, Instinto de nacionalidade, in Obra completa, p. B02-S09. Publicado


originalmente em Novo Mundo, 24 março de 1873.

63 Antônio Joaquim Macedo Soares. Bittencourt Sampaio. Publicado oríginalmente ém


Florea silvestres, l" vol-. Rio de Janeiro, Garnicr, 1860. Transcrito por Edilh P. Pinto, O
português do Brajíí; textos críticos e teóricos, 1 - 1820-1920, fontes para a teoria e a
história, op. cit., p, 43.

64 Gonçalves Dias, Carta ao dr. Pedro Nunes Leal. Transcrito por Edith P. Pinto. O português
do Brasil, op. cit., p. 33-38.

65 A expressão foi utilizada por Ômega, possivelmente Pinheiro Guimarães, que entrou na
polêmica não exatamente para defender Alencar, mas para denunciar a "confraria lite­
rária". José Aderaldo Castello, A polêmica sobre a “Confederação dos tamoios".

66 Um "árcade retardatário”: assim Gonçalves de Magalhães foi apontado enfaticamente por


José Veríssimo, em sua obra publicada pela primeira vez em 1916, História da literatura
brasileira: de Bento Teixeira, 1601, a Machado de Assis. 1908, p. ISl.

67 Carta de Alexandre Herculano a d. Pedro II, datada de Lisboa, 6 de dezembro de 1856, apud
Heitor Lyra. A história de d. Pedro II, p. 203-207.

68 José de Alencar, O guarani, p. 117.

69 Cavalcanti Proença, José de Alencar na literatura brasileira, v. 1, p. 69.

70 José de Alencar, Carta ao dr. Jaguaribe, in Iracema, edição do centenário, p. 226-227.

7 1 Segundo R. Kosellecfc. aproximadamente em meados do século XVIII inicia-se uma trans­


formação sobre a concepção de história. A palavra Geschichte, até então em geral uti­
lizada no plural, passa a ser empregada cada vez mais no singular, comportando uma idéia
de unidade, de generalidade antes ausente. R. Koselleck, Le futur passé: contribution ã
Ia sémantique des temps historiques, p. 46.

72 Gonçalves Dias. Dicionário da língua tupi chamada língua geral dos indígenas do
Brasil, p. v-vi.

73 José de Alencar. Iracema, Paz e Terra. p. 115. Chamando a atenção para as pesquisas ctimo-
lógicas efetuadas por Alencar. Cavalcanti Proença esclarece este caráter aglutinante do

197
(upi, com vocábulos com múltiplos scmanlemas, que o distingue das línguas de flexão “cujos
afixos sáo elementos signifícantes mas não conceituais". Cf. Cavalcanti Proença, José de
Alencar na literatura brasileira, v.l, p. 57.

74 José de Alencar. O guarani, p. 117.

75 Bertil Malmbcrg, As novas tendências da linguística, p. 25.

76 Além da obra citada, outro texto sobre o estudo linguístico no século XIX é o de Leonard
Bloomfield, The study of language.

77 Apud Celso Cunha, Língua portuguesa e realidade brasileira, p. 42.

78 Apud idem.

79 Bertil Maimberg, op. c if, p. 31 e segs.

SO José de Alencar. Iracema, p. 11.

81 Marlyse Meyer, Folhetim: uma história.

82 José de Alencar, Iracema, pós-escrito ã segunda edição, edição do centenário, p. 242­

83 idem.

84 ibidem, p. 243.

85 José de Alencar, Bínção paterna, [prefácio a] Sonhos d'ottro, p. 11-12.

86 José de Alencar, Iracema, pós-escrito à segunda edição, edição do centenário, p. 244.

87 idem.

88 Roger Bastide, A incorporação da poesia africana ã poesia brasileira, ín Poetas do BraSll,

89 Carta de Alexandre Herculano a d. Pedro II, datada de Lisboa, 6 de deaembro de 1856, apud
Keitor Lyra, A história de d. Pedro II, op, cit., p. 204.

90 Diário do Rio de Janeiro, T deJaneiro de 1857.

91 José Aderaldo Castello. A polêmica sobre a “Confederação dos tamoios", p. xxiv.

92 Cavalcanti Proença explora essa faceta de pesquisador do autor de vários romances histó­
ricos. C f José de Alencar na literatura brasileira, op. cil.

93 Um levantamento feito por Flora Sussekind sobre os autores mais citados nas notas de Alencar
era seus romances indianistas indica que suas principais fontes de pesquisa foram
Gabriel Soares de Sousa, Jean de Léry, Kans Staden, Simão de Vasconcelos, FernãO
Cardim, Ives d’Evreux e Thevet. Flora Sussekind, O Brasil não é longe datjui: o nar­
rador, a viagem, p .191-192.

94 José de Alencar, Cartas sobre a Confederação dos tamoios. in Obra completa, p- 891.

198
95 Vct por exemplo as edições àa Diário do fíia deJaneiro át r,2 ,5 , 11, f8,23e30dejaneirode 1857.

96 Sluart Sehwartz, The fornialion of a tolonial identily in Brazil,

97 José de Alencar. O guarani, p. 146.

98 tbidem. p. 260

99 ibidem, p. 33.

100 ibidem, p. 35.

101 ibidem, p. 27.

102 Manuela Carneiro da Cunha, Política indigenista no século XIX, in História dos (ndios
no Brasil, p. 136.

103 Diário do Ria de Janeiro, 17 de janeiro de 1857. A nota acompanha o capítulo XIV,
"Uma índia”. N lo consta da edição que utilizei para consulta. Não foi possível con­
sultar a primeira edição da obra.

104 José de Alencar, O guarani, p. 76.

105 ibidem, p. 20.

106 ibidem, p. 19.

107 ibidem, p. 218-219.

lOS Manuela Carneiro da Cunha, Política indigenista no século XIX, op. cit., p. 134.

109 Marlyse Meyer, Um fenômeno poliédrico o romance-folhetim francês do século XIX.


Neste artigo, a autora considera a leitura de folhetins como reveladora de medos e hor­
rores, uma certa angústia social suscitada pelos personagens folhetinescos das classes
laboriosas / classes perigosas: “A angúsiia que suscitam todas aquelas 'vítim as' que
fomos encontrando no conjunto dos folhetins, todas ás vítimas de uma sociedade onde
reina a lei do mais forte” (p. 43).

110 Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, p. 101-102.

111 Um exemplo do tratamento da história como lugar de certa pacificação é o próprio épico
de Gonçalves de Magalhães. Jagoanharo, um dos chefes tamoio, em luta contra os
portugueses, tem um sonho, no qual voa com São Sebastião e este lhe prediz vários
fatos da história do Brasil, da fundação de Niterói até a chegada de d. João VI e a
maioridade de d. Pedro II. Depois da narrativa surge uma cruz no céu. Jagoanharo.
arrependido, pede então sua "salvação" Pela predição de São Sebastião, sugeria-se
que o destino da nação estaria mesmo ligada aos portugueses e ao cristianismo. Magalhães
concilia a dominação portuguesa com a idéia da liberdade da pátria, da lula contra o
estrangeiro, explorada no poema. Apud José Aderaldo Castello, op. cit., p. xliii.

112 Gonçalves Dias. Os (inibiras. Edição utilizada para as citações: l-Juca-Pirama seguido
de Os tiinbiras. Porto Alegre, L&PM, 1997, p. 62. FoÍ utilizada também na pesquisa a

199
edição Poesia completa e prosa escolhida, Rio de Janeiro, Aguilar, 1959. No entanto,
na edição de bolso, encontram-se notas do punho do autor que não constam da edição
da editora Aguillar.

113 Gonçalves Dias, História pátria. Reflexões sobre os Anais históricos do Maranhão por
Bernado Pereira de Bcrredo. Guanabara. Revista mensal, artística, cientifica e literária,
tomo I,Tip. Dois de Dezembro, 1851. p. 25 e segs.

114 ibidem, p. GO.

1IS ibidem. p. 63.

116 Artlonio Cândido lamenta que a obra não possua uma organização do todo e maior
clareza em seus propósitos, indispensáveis a um ópico. Formação da literatura brasi­
leira, p. 93-94.

117 ibidem, p. 93.

118 Apud Manuel Bandeira, Gonçalves Dias: esboço biográfico, p. 81.

119 Gonçalves Dias, l-Juca-Piraina seguido de Os timbiras, p. 52.

120 Manuel Bandeira. Gonçalves Dias: esboço biográfico, p. 137.

121 Gonçalves Dias, l-Juca-Pirarna seguido de Os timbiras, p. 7.

122 ibidem, p. 24.

123 ibidem. p. 23.

124 ibidem, p. 20.

125 Stuart Schwartz, Brazílian ethnogenesis: mestiços, mamelucos, and pardos. Especifica­
mente sobre os mestiços que viviam culturalmente como índios, o autor escreve na p. 18:
"In some ways mestiços who made a cultural choice to be indians were a frightening
prospect to colonial society. The rejcciion of ‘civility’ and the acceptance of barbarism
placed into question the very foundation of European society and the theological jus-
tification for conquest and colonization".

126 Gonçalves Dias, Correspondência, in Poesia completa e prosa escolhida, p. 287.

127 Gonçalves Dias, O canto do índio, in Poesia completa e prosa escolhida, p. 110.

128 Josê de Alencar, O guarani, p. 96.

129 ibidem. p. 59-63.

130 Ver Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos.

131 limar Rohloff de Mattos, op. cit,, p. 240.

132 José Murilo de Carvalho. Escravidão e razão nacional, p. 287-308.

200
133 O jornal foi fundado em 1849, e no ano seguinte organizou a Sociedade contra o Tráfico
e Promotora da Colonização, e Civilização do Indígena; seu objetivo era “combater a
escravidão doméstica entre nós, e demonstrar seus negros males, e apresentar os mais
seguros meios de extinguir. e prevenir seus funestos resultados”. O Filantropo. Periódico
Humanitário, científico e literário, 1849. Biblioteca Nacional.

134 Manuel Bandeira. A vida e a obra do poeta, in Gonçalves Dias, Poesia completa e
prosa escolhida, p, 20.

135 K. Martius. Como se deve escrever a história do Brasil, p. 383.

136 Gonçalves Dias, Meditação, Guanabara, tomo I, p. 102-103.

137 Angel Rama, A cidade das letras, p. 54-75.

138 Francisco de Paula Ferreira de Resende, Minhas recordações, p. 115.

139 Luís da Câmara Cascudo, Contos tradicionais do Brasil, p. 257-259.

140 Mário de Andrade, Macunatma o herói sem nenhum caráter, p. 28-29.

141 Gonçalves Dias, Meditação, op. ctt., p. 176.

142 Roger Bastide, Poetas do Brasil, p. 23-24.

201
C o n c lu sã o

'■ P e r t e n G im e n ío s , i d e n i i d a d e . S e u s d o c u m e n to s! S o b re se u p assa­

p o rte o u c a r t e ir a d e id e n t id a d e e s t ã o e x p o s t o s , s o b s e u re tra to , in i­

m it á v e l, s e u s o b r ç n o r n e , n o m e , s e x o e n a c io n a lid a d e ... p o is v o e S ‘ p e r­

te n c e ’ a u m a c e r t a f a m ília , a u m g ê n e ro , a u m p a ís , n ã o a o u tro s.

É claro que essas marcas não esgotam suas características siti-


guíares, mas são suficientes para os outros o reconhecerem e
para a polícia o encontrar.
i-..) Eu imagino então um passaporte variável que parecería uma
cartografia insianiânea de suas atitudes cambiantes. Certamen­
te, ele o dísiiuguiria de todos os outros, uma vez que desereve-
ria D perfil evolutivo de sua identidade singular, mas sobretudo
veriamos misturar-se nele mil coletivos correspondentes a seus
aprendizados e a sua experiência.
Texturado e brilhante, manchado, variado, este manto dc ArVe-
quím tão rugoso quanto a pele e variável quanto às feições, sor­
risos, piscar de olhos e prantos, se assemelharia ã velha impres­
são do seu polegar ou ao melhor de seus retratos.”

Michel Serres

Partindo de um tema de interrogação, a mestiçagem, este trabalho pro­


curou ser um combate pela história. História no sentido do que aponta para o
que não é essencial, imutável, natural. Do que se inquieta com o que é tomado
como evidente ou fruto de uma geração espontânea, e se arrisca a tentar uma
pesquisa sobre as raízes, o conjunto de forças e situações que sustentam tal
evidência. É um trabalho de desconfiança sobre a identidade, tendo porém
consciência do papel que desempenha em uma sociedade hierarquizante e de­
sigual e do poder que exerce.

Lucien Febvre. considerando, após a Segunda Guerra Mundial, a histó­


ria dos homens e o ofício do historiador, atentava para as “variações alternadas
das distâncias entre raças, entre povos”, distâncias materiais e sobretudo as dis­
tâncias morais, e percebia, apreensivo, a “digestão mútua de civilizações”.*

203
É nesse sentido que falar cm interesse pela mestiçagem não deve
levar a pensar apenas em “contato”, ou “encontro” entre raças e povos,
mas em distâncias variáveis, construídas, era “digestões” e destruições.
Roger Bastide, procurando evitar tanto o organicisnio (a fixidez dos tipos
sociais, análoga a modelos biológicos) quanto a busca das origens das for­
mas culturais, para a qua! a aculturação constituiría um empobrecimento,
apontava para a impossibilidade de isolar, como certas divisões acadêmi­
cas, de um lado a perspectiva do grupo e de outro a perspectiva do conta­
to, do confronto, do sincretismo. Daí sua noção de interpenetração de
civilizações como fenômeno próprio da história; a própria matéria da his­
tória seriam as interpenetrações de civilizações, seriam fusões, conquis­
tas, guerras, trocas: “a história da humanidade toda é a história do contar
to, das lutas, das migrações e das fusões culturais”,^

No Brasil, como em outros países americanos como México e Cuba,


a mestiçagem é um tema clássico, No entanto, as ricas variações desse tema,
no período do século XIX até aproximadamente a década de 1860, se mos­
travam ainda merecedoras de um exame mais detalhado, sobretudo no sentir
do de buscar a especificidade desse período, ofuscada talvez pela ênfase na
adoção das teorias deterministas com a qual comumente se caracteriza 0
momento que se abre a partir da década de 1870. Mais do que restaurar uma
suposta continuidade ou evolução que terta desencadeado os paradigmas
raciais, baseados no determinismo biológico, aqui se empreendeu a tarefa
de perceber o período que se estende entre as décadas de 1830 e 1860 em
sua singularidade. Na passagem entre os séculos XIX e XX, encontra-se
claramente uma “questão racial” - envolvendo a política de mão-de-obra, a
ordenação jurídica e médica, além das representações sobre a identidade
nacional - nas reflexões e práticas sobre o destino do Brasil, de sua “solu­
ção" dependendo a possibilidade de inserção do país no concerto da civili­
zação e do progresso. Por isso a tão forte recorrência do conceito de mesti­
çagem, embora este nunca tenha adquirido um sentido muito fechado, ao
contrário, sendo preenchido por conteúdos cambiantes.^ O momento que
antecede não pode ser reduzido a mero antecessor cronológico, sob o risco
de não se ver como ele foi atravessado por valores e tensões diversas.

Debruçando-se sobre os significados cambiantes, em transformação,


procurando esclarecer a amplitude histórica do campo semântico de termos
como “brancos”, “pretos”, “índios”, “cabras” e “pardos”, este trabalho anali­
sou diferentes campos produtores de representações raciais e identitárias. Nessa

204
perspectiva, a palavra crioido, no título de uma folha política e a mesma pala­
vra em uma lista de população, ou em um registro policial, assumiu conteúdos
e desempenhou forças diversas. A visão da sociedade no Brasil do século XIX
como racialmente estratificada entre brancos e não-brancos é por demais sim-
plificadora, em prejuízo das tensões existentes, além de acabar tomando como
única realidade possível, categorias de um ideai hierárquico, princípios de
uma sociedade ordenada. À ordem buscada contrapuseram-se contínuas movi­
mentações entre fronteiras sociais. Levar em conta a profusão das designações
significou apontar muito mais para o múltiplo do que para o dual. Ainda que a
dicotomia tenha atuado na contínua reconstrução das hierarquias sociais, a
miríade de gradações, os múltiplos caminhos da dinâmica social, merecem ser
trazidos à luz. Como, por exemplo, traduzir uma expressão como “cabra” por
“não-branco". “população de cor" ou “negro”, se com isso perder-se-iam de
vista muitos outros sentidos (o cabra como dissidente político, ou a animalida­
de evocada na expressão?).

A aura política que envolveu as representações raciais e identitári-


as, em um momento bastante singular que foi o início do período regenci-
al, constitui a principal conclusão do capítulo inicial deste livro. A singu­
laridade daquele momento, no que diz respeito à construção das identida­
des sociais, ancorou-se exatamente numa linguagem racial da política, que
parece depois se apagar. Enfatizar uma linguagem, um conjunto de símbo­
los, não implica supor que quaisquer outros símbolos ou outros temas po­
deríam se encaixar naquelas disputas em torno da formação da sociedade
política. Isto é, não são símbolos arbitrários, ao contrário. São ressonân­
cias da própria diversidade daquela formação social; estão enraizados na
história daquela sociedade, Um dos aspectos que torna único esse momen­
to da história é exatamente essa profusão de adjetivos da palavra “brasi­
leiro”, da palavra “cidadão” e da linguagem racial. Progressivamente, es­
ses lemas e experiências desapareceram da cena política. A polifonia, a
pluralidade de vozes falando dos rumos políticos e do que entendiam tor­
nar-se brasileiro cedeu lugar a uma série de restrições para que alguém
fosse, efeiivamente, cidadão. Da mesma forma, passou a ser privilégio de
poucos definir o conteúdo do que consistia ser brasileiro.

Os debates na imprensa do Rio de Janeiro entre 1831 e 1833, entre ou­


tras disputas e polêmicas {e acompanhando-as), foram marcados por uma tensão
entre falar e silenciar a cor dos cidadãos. São representativos de cada uma des­
sas posições, os jornais O Homem de Cor, por exemplo, e a Aurora Ftuminense.

205
Deslocando o foco de análise para os documentos estatísticos criados em
tomo do conceito, então relativamente novo, de população, percebeu-se também
uma certa polarização entre uma fala e um silêncio. As diferentes análises estatísti­
cas, mais do que simples ou bruta reprodução de uma realidade, constituíram um
discurso sobre a população. Ligadas ao processo de centralização do Estado imperi­
al. as estatísticas procuravam transformar um conglomerado de habitantes em uma
população, isto é, forjar uma certa racionalidade política, ligada à tributação, ao
recrutamento, à criminalidade, à instrução, às estratégias de utilização da mão-de-obra
tanto livre como escrava, à composição e movimentos desse conglomerado, que fosse
mais adequada à ordem e à segurança. O objetivo era circunscrever, no conjunto da
população, certos subconjuntos: a sociedade civil, os escravos, outros contingentes
susceriveis de serem aproveitados como mão-de-obra, os estrangeiros, os índios.

Nesse discurso classificatório, essa pesquisa privilegiou a questão da


cor da população. Quantos descaminhos foram encontrados, contrastando com
a vontade de racionalidade que a estatística, “luz do governo”, pretendeu pos­
suir. Esses descaminhos não foram, porém, apenas fruto de uma suposta inca­
pacidade dos burocratas e demais agentes do Estado, como inspetores de quar­
teirão, juizes de paz etc. Eles revelam algo muito mais rico para o historiador*
que consiste na resistência à própria classificação e ordenação. Os dilemas
quanto ao estatuto político dos libertos, por exemplo, puderam ser entrevistos
na variação das formas de agrupar e opor os grupos da população. A imbrica-
ção entre cor e condição social expressou-se também nas listas, mapas e tabe­
las, embora, por outro lado, sempre houvesse casos, “observações”, ressalvas,
que escapavam às linhas e colunas coordenadas das mesmas.

A cor da população interessava diferentemente aos diversos níveis do


Estado. Se para a polícia a cor foi um dos critérios básicos de sua atuação na
vigilância da ordem pública, da mesma forma que um presidente de província
poderia incluir sua menção, em benefício de um conhecimento mais detalhado
das riquezas e ameaças de sua região, os ministros de Estado, com a incumbên­
cia de organizar os cômputos gerais sobre a população, preferiram muitas vezes
calar sobre o tema, mesmo quando houvesse “dados” disponíveis e já recolhidos.

Para os homens livres não proprietários a menção da cor poderia se tomar


um problema. Poderia significar a perda de um espaço de ambigUidade que para tais
grupos, que não eram senhores nem escravos, era fundamental. As revoltas em pro­
víncias do Nordeste em 1851 e, mesmo antes, outras manifestações mais cotidianas
contfárias à diferenciação no interior do grupo dos homens livres, o demonstraram.

206
Falas e silêncios também nas imagens sobre a nação formuladas em
meados do século? De certa forma, mais uma vez, sim. No último capítulo
passamos a tratar da nação, após ter considerado as discussões sobre a forma­
ção da sociedade política nos anos iniciais da década de 1830, e em seguida o
investimento sobre a população. A s imagens sobre a nação foram focalizadas
com base em discussões sobre a “língua brasileira". A reflexão sobre a língua
foi privilegiada, pois a busca da especificidade do nacional voltou-se para aquilo
que era diferente da herança portuguesa (mantendo com esta uma relação con­
flituosa de filiação), e para a oralidade, selecionando o digno e o indigno de
ser incluído como marca da língua nacional. A heterogeneidade dos grupos
sociais e culturais atravessou a polêmica em torno da língua brasileira. A defe­
sa da língua nacional, bem como a circulação da literatura romântica, foi uma
forma de difundir um “espírito de associação”, de criação de uma suposta uni­
dade nacional entre as “partes”. A idéia de nação, enquanto nova forma de
concepção da vida social, não foi entendida necessariamente como abrangen­
do a totalidade dos habitantes, que operasse uma assimilação incondicional: a
nação, tal como desponta do romantismo histórico e literário, foi resultado de
escolhas, seleções, inclusões e exclusões; criou certos símbolos, construiu de
forma múltipla as alteridades. Mais uma vez a opção de desconfiar das evidên­
cias fez-se presente, pois o pressuposto da interrogação consistiu exatamente
em desnaturalizar a idéia de que cada nação teria correspondência em uma
língua, e a partir daí, perceber o momento como o de um conjunto de esforços
para que essa equação se tornasse realidade.

A formação da nacionalidade foi interrogada, ainda, a partir da


análise de algumas obras literárias de José de Alencar e Gonçalves Dias,
acerca do sentimento sobre as raças. O foco nesses sentimentos, perspec­
tiva constitutiva do romantismo, foi um passo na investigação da especifi­
cidade desse momento histórico e um espelho para as próprias dificulda­
des da idéia de nação, onde se refletiram, mesmo que nem sempre fosse
essa a intenção dos escritores, as desigualdades e os vestígios das muitas
nações existentes no projeto de unidade.

Desconfiar da identidade não significa, portanto, desprezar sua im­


portância. Mas tomá-la pela dupla condição, de parecer necessária mas ser
contingente, fruto de relações de força, e de carregar seu revés inseparável, a
alteridade. Michel Serres procura distinguir pertencimentos (nacionalidade,
raça, sexo) da identidade, campo da riqueza e variedade da experiência, cam­
po da história podemos acrescentar.

207
N o tas

1 Lucien Febvre. Combales pela história, p. 43-44.

2 Roger Bastide, A.t religiões africanas no Brasif. contribuição a uma sociologia das
interpenetrações de civilizações, p. 23-29.

3 Ivana Stolze Lima, O Brasil mestiço: discurso e prática sobre relações raciais ua pas­
sagem do século XIX para o século XX.

208
B ib l io g r a f ia

Fontes Primárias

Manuscritos

A rq u ivo N a cio n a l

Estatística de cidades, vilas, escolas, batismos, casamentos, óbitos, população etc.


de várias províncias. 1790-1865. Códice 808 (4 volumes).
Diversos SDH Códices.

Mapas da população das províncias. 1815-1844. Caixa 761.


Diversos SDH Caixas.

Tipografia. Ofícios. 1822-1849. IJJ'^ 4 - Série Interior - Imprensa Nacional.

Secretaria de Polícia da Corte [Ofícios diversos]. IJ“ 204 - Série Justiça - Polícia,
escravos, moeda falsa, africanos.

Câmara Municipal da Corte. Ofícios. 24 de outubro de 1845. UI"* 16 - Série Inte­


rior - Corte, Distrito Federal, territórios e comarcas.

Ofícios - Presidentes de Província - Pernambuco para Ministro da Justiça. 1851­


1852. IJ'-824. Série Justiça - Gabinete do Ministro,

Bíbfíofeca N a cio n a l

Liberdade de imprensa - projeto para constituinte, 1823. Seção de Manuscritos.

Traslado do processo a que deu motivo os tumultos das Garrafadas do dia 13,14 e
15 de março de 1831. Seção de Manuscritos.

Processo Lafuente. Autos de sumário... pelo motim e assuada, ajuntamento ilícito


no largo do Paço e lugar do Correio no dia doze de setembro da parte que faz culpa
ao réu Maurício José Lafuente. 1832. Seção de Manuscritos.

Recenseamento da população do município neutro organizado no fim do ano de


1849 pelo dr. Roberto Jorge Haddock Lobo. Seção de Manuscritos.

209
Fontes Impressas

Periódicos

A rquivo N a cion a l

0 Cabrito,1833

O Carioca, 1833

0 Crioulinho, 1833

0 Indígena do Brasil, 1833

Nova Luz Brasileira, 1831

Instituto H istórico e G e o g rá fico B ra sileiro

Guanabara - Revista Mensal Artística, Científica e Literária, 1849-1855

B ib lio teca N a cion al

Almanak Laemmert, 1851

0 Americano, 1831

Astréa, 1826

Aurora Fluminense, 1830-1833

Brasil Aflito, 1833

O Brasileiro Pardo, 1833

D. Pedro íl, 1833

Diário Fluminense, 1826

Diário do Rio de Janeiro, 1851; 1857

O Carainuru, 1832

210
0 Catão, 1832

Diário de Anúncios, 1833

0 Evaristo, 1833

0 Exaltado, 1831-1833

0 Filho da Terra, 1831

O Mulato ou 0 Homem de Cor, 1833

0 Jurujuba dos Farroupilhas, 1831

0 Lafuente, 1833

O Macaco, ou o palhaço da oposição, 1833

A Malagueta, 1829

0 Martelo, 1832

A Matraca dos Farroupilhas, 1831-1832

O Meia Cara, 1833

O Mestre José, 1833

A moderação de cosme manhoso, 1833

0 Filantropo. Periódico Humanitário, científico e literário, 1849

Aj obras de Santa Engrácia, 1833

O Repúblico, 1830-1831

Revista Brasileira - Jornal de Ciências, Letras e Artes, 1857

Sentinela da Liberdade, 1832

Sete de Abril, 1833

Simplício Poeta, 1832

O Teatrinho do Sr. Severo, 1833

211
o Torto da Artilharia, 1833

Tribuno do Povo, 1831

Trhmvir restaurador ou a lima surda, 1833

0 Veterano ou o Pai do Filho da Terra, 1831

Folhetos

B ib lio teca N a cion al

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Baseado em pesquisa extensa e original, o
trabalho surpreende pela forma inovadora
com a qual aborda os processos de
construção de uma identidade nacional e
de identidades sociorraciais no Brasil
Império. Segundo Ivana: "De certa forma, a
identidade é uma ilusão e uma
contingência, apoiada exatamente na
crença de que é uma verdade e uma
necessidade".
O brilho desta afirmação dá bem a medida
da proposta de desnaturalizar o processo
de construção da identidade brasileira em
suas relações com a noção de mestiçagem
racial, recuperando sua historicidade.

Hebe Mattos

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