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da primeira República por Brito Broca, A vida literária no Brasil: 1900, 2.

a
ediçãò (Rio de Janeiro, 1960), pp. 76-8. 4
24. Eduardo Prado, Coletâneas, I, pp. 306-7.
25. Bruno [J. Pereira de Sampaio], O Brasil mental (Porto, 1889).
26. Eduardo Prado, Coletâneas, I, pp. 391-2. CRIADORES DE MITOS: OS ARQUITETOS
27.Ibid.,IV,pp.86-7. DA IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA*
28. lbid,p. 75.
29. Pode ter havido ainda outro fator no caso de Prado. Dizia-sc que a
própria aparência de Prado evidenciava certos traços de mulato e que uma
vez um baibciro americano rccusara-se a scrvi-lo por ser negro. Gilberto
Frcyre, Ordem e progresso, 2 volumes (Rio dc Janeiro, 1959), I, p. clix.
Alexandre Eulálio, um experiente pesquisador sobre esse período, tentou
sem sucesso, usando tanto fontes brasileiras e americanas, confirmar ou í€ 1
negar essa estória.
30. Eduardo Prado, Coletâneas, IV, pp. 84-5.
31. Eduardo Prado, Coletâneas, EI, p. 172.
lÉ ffi Ha mais de um século intelectuais brasileiros agonizam sobre a
32. Essas teorias são discutidas em Martin S. Stabb, In Quest ofldenti-
ly: Patterns in lhe Spanish American Essay o f Ideas, 1890-1960 (Chapei identidade nacional de seu país. Até os anos 50, procuraram captar
Hill, N.C., 1967). sua essência apoiando-se em uma linguagem exótica e em alusões
33. Paia maiores detalhes e referências, ver Skidmore, Preto no branco. históricas. Fundamentando-se em uma combinação paradoxal de fé m
34. O surgimento do ideal de embranquecimento é traçado entibid. •e' dúvida, debateram-se principalmente com a difícil questão de
35. A palestra está publicada na Revista do Instituto Histórico e Geo­ | c o m o a miscigenação racial havia afetado o caráter brasileiro.
gráfico Brasileiro, volume 64, parte II, pp. 238-41. Tal preocupação havia sido comum entre pensadores da elite
36. Vianna, LerêosImperiais, p. 103. latino-americana desde o final do século XIX, quando teorias da
37. Skidmore, Preto no branco. L ;supremacia racial branca haviam aportado no país, dotadas do pres-
38. Eduardo Prado, A ilusão americana, pp. 187-8. ! # 'tíg io que lhe foram conferidas pela “ciência” do Atlântico Norte.
39. Eduardo Prado, Coletâneas, IV, pp. 169-70.
Q v A s perguntas permaneceram constantes. Quem somos nós? Como
40. Maiores referências sobre a revivescência intelectual do catolicismo ÁS
S | chegamos a scr deste jeito? Existe futuro, num mundo “civilizado”,
brasileiro nos anos 20 encontram-se cm Margaret Todaro Williams, “Psy- f | |
choanalysis and Latin American History”, in Richard Graham e Pcter H> Jg L para um povo racialmente miscigenado?
Smith, orgs., New Approaches to Latin American History (Austin, 1911), Ly Este capítulo enfoca alguns dos escritores brasileiros mais in-
pp. 194-224. IfVfluentes que abordaram esses temas. Todos procuraram definir a
i-gv identidade nacionaLbrasi 1eira a partir dc-uma-dímensão tontÇLCülíu-
ral quanto política. Para cada período histórico, esboço ò contexto e
L enfoco umbu dois dos livros mais lidos sobre este tema no período.
' . .1 ■; Todos esses livros tiveram várias edições c ainda são lidos no Brasil. ■
üT Os anos de 1870 a 1889 assistiram ao declínio do Império.
Apesar da vitória brasileira na Guerra do Paraguai (1865-70), o im-
>
* Este texto foi escrito para a Cawbridge History ofModern Latin American Literatura, or£.
N. por Roberto Gonzalez-Eche varria e Enrique Rupo-Walker.

7n A
perador d. Pedro II enfrentou crescente oposição por parte do movi­ ção artística. Um polemicista incurável, freqüentemente se con­
mento republicano. Em 1889, endossando esta ideologia republica­ tradizia pai-a ganhar o argumento. As suas inconsistências tinham,
na, os militares depuseram o único monarca genuíno que a America porém, uma explicação mais fundamental. Olhar o Brasil através
Latina produzira no século XIX . . das lentes do darwinismo social não levava a uma especulação
Esses anos também viram o rápido crescimento do café, res­ confortável. Afirmando que “ inspirei-me sempre no ideal de lim 1
trito principalmente ao Centro-Sul e especialmente aos estados do Brasil autônomo, independente na política e mais ainda na litera­
Rio de Janeiro, de Minas Gerais e dc São Paulo, como o principal tura” (Romero, 1902, vol. I: xxiv), Romero argumentou que,
produto de exportação do país. Isto fez com «que a economia brasi­ “para que a adaptação de doutrinas e escolas européias ao nosso
leira se concentrasse mais no Sul e, juntam ente com o declínio do meio social e literário seja fecunda e progressiva, é de instante
açúcar e do algodão, contribuiu para o rápido declínio econômico necessidade conhecer bem o estado.do pensamento do velho mun­
do Nordeste, cuja economia do açúcar havia alavancado a prosperi­ do e ter uma idéia nítida do passado e. da atualidade nacional” (Ro­
dade do Brasil colonial. mero, 1902, vol. I: 11). A
Virtualmente todos os comentaristas rotulavam a literatura brasilei­ Como a maioria dos brasileiros da época, Romero era muito
ra da época como pouco original e desinteressante, seguindo principal­ sensívpl à questão de raça. (O censo de 1872 revelou que apenas
mente os modelos de Paris. No reino das idéias, pensadores brasileiros 38% da'população era branca, uma porcentagem que variava entre
eram fortemente influenciados pelo darwinismo social e pelo positivismo 44% e 55% nos censos de 1890 a 1980.) Estava quase só, contudo, .....
francês. Pairando sobre ambos encontrava-se um. liberalismo vago, espe­ ao jeconhecer que os brasileiros eram fundamentalmente um povo ;rí;] W f A 3 iC C
cialmente da França e da Inglaterra, que havia se tomado um importante racialmente misto. Explicou que “ todo brasileiro é um mestiço, ; ú-
marco da política brasileira desde a independência em 1822. ., ú quando não no sangue, nas idéias. Os operários deste fato inicial •ÍÚIIÍTLA; R' -'
Estrangeiros tendiam a perceber o Brasil destes anos como têm sido: o português, o negro, o índio, o meio físico e a imita­
pouco mais do-que um apêndice tropical da Europa. A higiene pú­ ção estrangeira” (Romero, 1902, vol. I: 4). Qual a ligação com
blica cra primitiva, mesmo nas cidades maiores, e doenças epidêmi­ o.'.seu Brasil dos anos 1880? “ Temos uma população mórbida,
cas como a febre amarela eram comuns. O Brasil fora o último pais 7 de vida curta, achacada e pesarosa em sua maior parte” (Rome-
nas Américas a abolir a escravidão (1888). Contra esse pano de fun­ Aro, .1902, vol. I: 46), uma tragédia que Romero considerava o
do, intelectuais brasileiros debatiam-sc para definir a identidade na­ |i resultado do uso intenso de escravos. “ O branco, o autor in- ,i l -n n
cional de seu país. Um dos pioneiros foi o putgnaz intelectual e criti­ T consciente de tanta desgraça, tirou o que pôde de vermelhos e
co literário Sílvio Romcro (1851-1914). . k; |-negros e atirou-os fora como coisas inúteis. Foi sempre ajudado , ,,í%à
'
Üfneste empenho pelo mestiço, seu filho e seu auxiliar, que acaba-
Ç rá por suplantá-lo, tomando-lhe a cor e a preponderância” (Ro- '
SÍLVIO ROM ERO E A M ISCIG EN A ÇÃ O CULTURAL;1: A
•' *!v£í C- mero, 1902, vol. I: 55).
||§ § Romero pensava que o africano havia contribuido mais que '
—Sílvio Romero,.natural de Sergipe, lutou duramente para tor- ||p.:índio para a formação da nova nacionalidade. “A raça africana
nar-se um importante crítico literário na capital federal do Rio.de - ■Item tido no Brasil uma influência enorme, somente inferior à da ' ^ '
Janeiro. Sua História da literatura brasileira (1888) foi o primeiro: .raça européia; seu influxo penetrou em nossa vida íntima e por
estudo completo do assunto feito por um brasileiro. Nele discutiu em. flêle moldou-se em grande parte nossa psicologia popular” (Rome­
■Ãfí!vv--; .
ponnenores o tema do caráter nacional brasileiro. iro, 1902, vol. I: 89). Romero deu a seu argumento uma virada ex­
Romero .se descrevia como um danvinrsfa social e argumenta- cepcional paia a sua époeas “A introdução do elemento negro não
va que raca e ambiente eram as chaves para a compreensão da cria-: fjéxistente na maior parte das repúblicas espanholas, habilita-nos,

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por outro lado, a afastar-nos destas de um modo bem positivo” (Ro- de Janeiro, ameaçando fechar o porto caso as suas exigências não
mero, 1902, vol. I: 53). fossem atendidas.. Finalmente capitularam, mas não sem antes èn-:
Romero era prolífico como crítico literário e comentarista da cul­ gendrar considerável disrupção política. O governo republicano, em
tura e da política. Deliciava-se em criticar políticos e os literatos locais, estado bastante nervoso, baniu os candidatos monarquistas que con­
que tendiam a se dar demasiada importância. Sua opinião literária mais corriam a cargos públicos e censurou o pequeno mas eloqiiente mo­
lembrada é, no entanto, a mais infeliz: uma crítica escaldante a Macha­ vimento que pregava uma volta à Monarquia.
do de Assis por ter sido incapaz de criar algum personagem memorável Outro desafio monarquista logo forneceu o tema de um clássi­
(Romero, 1897). Estava mais correto ao recriminar o público leitor bra­ co literário que se tornou outro marco na análise da identidade na­
sileiro como sendo apático. O Brasil, dizia, ainda vivia de idéias euro­ cional brasileira. Trata-se da rebelião de Canudos, em 1896, no ser-'
péias de “ segunda ou terceira mão” (Romero, 1902, vol. I: 102). tão da Bahia. Lá formara-se uma comunidade messiânica que se
Romero, contudo, nunca renunciou ao seu compromisso emo­ recusava a reconhecer a autoridade do governo local. Uma coluna
cional com seu país. Pedia a seus leitores que tivessem confiança. •Ai- militar foi enviada para reprimi-los e, com a ajuda de reforços do,
Terminou o Prólogo de sua História com uma declaração caracterís­ Exército, os rebeldes foram finalmente dominados e massacrados
tica: “Independência literária, independência científica, reforço da inde­ até o último homem (algumas mulheres e crianças sobreviveram). . í:
pendência do Brasil, eis o sonho dc minha vida. Sejam eles a tríplice -?âÉter? '\
empresado futuro. Tenhamos confiança!” (Romero, 1902, vol. I: xxvi). EUCLIDES DA CUNHA E A CORAGEM
A linguagem de Romero era, na verdade, ambígua o suficiente DO SERTANEJO
para que fosse interpretada de duas possíveis maneiras. Os pessimis­
tas podiam optar por acreditar nas teorias deterministas que ele deli­
neava, ao passo que os otimistas podiam con centrar-se no aspecto ■ .Euclides da Cunha, um jovem ex-oficial do Exército que se
nacionalista da originalidade cultural brasileira. Os otimistas podiam tomou jornalista, foi mandado por um dos principais jornais de São
também animar-se com o seu argumento (ao qual cie próprio não Paulo para cobrir a rebelião de Canudos, mil milhas ao norte. Che­
era sempre fiel) de que a população do Brasil tom ar-se-ia inevitavel­ gou a tempo de testemunhar o massacre final. Profundamente emo­
mente mais branca. Romero pensava que os europeus que começa­ cionado com a coragem dos rebeldes, escreveu uma série de artigos
vam a imigrar pára o Brasil no final dos anos 1880 apressariam esse (li comovedorés descrevendo a luta épica dos sertanejos contra forças
processo dc “ branqueamento” . Romero era ele mesmo um otimista,- ** ;esmagadoras. Estendeu sua cobertura em Os sertões (1902), que se.
não obstante suas referências nervosas a teorias deterministas. F o ii^ p toniou instantaneamente um clássico.
provavelmente este otimismo que atraiu tantos leitores na época-e'3Ü s/. . Que tipo de livro é? O primeiro quarto da obra é um ensaio.
que os atrai desde então. §g§; minucioso, seguindo o pensamento científico da época, sobre a ínte-
Depois que o Exército depôs o imperador d. Pedro II em 1889 S Jffglgração do homem e da natureza no semi-árido sertão. Foi a primeira
e declarou a República, os primeiros dois presidentes vieram das ;JÍ sgvçz que muitos leitores brasileiros tomaram conhecimento do sertão
fileiras dos generais vitoriosos. Os líderes do Partido Republicano, ; |f l iffhórdestino e de sua seca. Além de aplicar as mais recentes teorias
que haviam oferecido a justificativa ideológica para o golpe, n ão (f||p Üfgeplógicas e climatológicas da época, Euclides repetia as opiniões
chegaram ao poder até 1894, quando um político paulista elegeu-se Ide .alguns dos principais representantes europeus do racismo cientí-
como o primeiro presidente civil. A primeira década da RepúbUca%ff| H fico; como Gumplowicz e Lapouge. “A mistura de raças muito di-
sofreu um a série de ameaças armadas ao novo regime. ■ §§|p;ersas é, na maioria dos casos, prejudicial^ argumentou, escrevendo
§|tunda que “a mestiçagem extremada é um retrocesso” (Cunha, 1985: : -9| > 5
Em 1893, por exemplo, oficiais da M arinha, que desejavam -o-^
retomo da Monarquia, apoderaram-se de u m a frota na baía do Rio. &U174). O produto da miscigenação racial “é um decaído, sem a ener-

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gia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos
fundamentais, tocar num ponto nevrálgico: o sentimento de culpa da
ancestrais superiores” (Cunha, 1985: 175).
elite quanto à pouca relação que tinha o seu ideal da nacionalidade
Os três-quartos restantes do livro narram a campanha militar
brasileira com a condição real do país.
para subjugar os rebeldes. Euclides considerava a coragem e a. astú­
cia destes últimos como a demonstração dramática do potencial do
Essa interpretação é substanciada pela reação favorável dos
críticos literários. Quase todos discutiram a questão racial. Os críti­
:SSSt
homem no sertão, uma percepção que parecia contradizer sua aceita­
cos eram tão equívocos quanto havia sido Euclides com relação às
ção anterior do racismo científico.
questões mais importantes. Vários deles concordavam que a relação
Retratou o drama em dois níveis. U m era o conflito militar.
entre integração étnica e social era crucial. Nenhum queria concluir
Euclides descrevia as habilidades dos insurgentes de usarem o seu
que o destino do Brasil era desesperador. E nenhum deles tinha cia-
meio ambiente contra o Exercito — atraíam os soldados para em­
boscadas em território estranho, viam-nos se cortarem com os cactos reza o suficiente para apontar as inconsistências no bojo da análise
e se envenenarem ao comerem plantas não comestíveis que nunca euclidiana (Os sertões: juízos críticos, 1904).
áiSfâsSf: As dificuldades que acontecimentos como a rebelião de Ca­
haviam visto antes. Quanto aos oficiais vaidosos e incompetentes do:
Exército, descritos por Euclides, não passaria desapercebido por nudos apresentaram aos republicanos foram exacerbadas pela fal­
qualquer leitor ver a diferença entre a realidade hostil da Bahia e o ta*'4e coesão do próprio govemo. Freqüentemente os líderes repu­
mundo de fantasia do Ministério do Exército no Rio de Janeiro. blicanos não conseguiam chegar a um acordo sobre a sucessão
Em outro nível, o autor acusava os mestiços cuja coragem exalta­ presidencial. As votações eram rotineiramente fraudulentas, espe­
va. Euclides atribuía a rebelião principalmente à instabilidade emocio­ cialmente no interior, onde as máquinas partidárias locais comu-
nal dos sertanejos, personificados na personalidade “atávica” de Antô­ mente davam a seus candidatos maiorias suspeitamente grandes.
nio Conselheiro, um ex-padre e seu líder renegado. Aqui Euclides á .Tais fraudes desiludiam muitos da elite política mais jovem, que
exprimia a preocupação da elite — formulada anteriormente por Sílvio- | ansiavam pela respeitabilidade dos sistemas políticos da Europa
Romero — sohrea ligação entre a biologia da miscigenação e o processo- ;l | -Ocidental.
de criação da nação. Se a miscigenação criava instabilidade, quanto tem-Jxg . Agravando ainda mais o mal-estar político estavam as crescen- :lí i- : ■' '
..ví
'.‘1' 1 Ügfjtes disparidades econômicas regionais. Estimulada pelas correntes
po demorariapara chegar-se a uma identidade nacional estável?
Esses dois níveis de análise levavam a duas conclusões diferenf f : imigratórias da Itália, da Espanha, da Alemanha e do Japão, o Cen-
tcs. À primeira era a necessidade premente de uma reforma políticajó| tro-SuI tomava a dianteira econômica. O liberalismo continuava pre-
que se seguiu aos relatos escabrosos da incompetência militar, refletirfj^ jffçvalecendo no discurso oficial, para a frustração de seus críticos. Mas n-j • -
do a negligência, voluntária e ignorante, do sertão por parte da elite. Â|§|§§j tffc-' a imprensa abundava com eioqüs.ntes ataques aos ideais liberais su-
segunda conclusão era encorajadora quanto à mistura de raças no BraújA?®^ ÉfpVpostamente exaltados pela República. A realidade brasileira, alega-
sil, que se seguiu à descoberta de uma nobre luta pela liberdade por?|| iàvám políticos dissidentes e professores de direito, era uma paródia
parte de não-brancos (embora isso fosse na época posto em dúvida poríjf i do govemo democrático e representativo.
causa da aceitação do racismo científico por parte de Euclides). - .Bíg ■r" Os dissidentes exigiam reformas políticas para sintonizar o
Os sertões, uma acusação à elite (sõ eles compravam livros)j| govemo brasileiro com as realidades econômicas e sociais do país.
foi imediatamente aclamado pela crítica no Rio. Por quê? Em parte;.; 1 .Para alguns isto significava substituir a democracia eleitoral por um
deveu-se às críticas escaldantes feitas ao Exército; muitos intelec-ij qegovemo “forte” que elevaria o Brasil acima das penosas realidades
tuais indignaram-se com â repressão m ilitar, com sua censura e lei| p).do\analfabetismo, da miséria e da retórica oca. Nesse contexto de
marcial, na década de 1890. Mas provavelmente deveu-se à habiliT’ Kpércepção, o escritor mais influente foi Francisco José de Oliveira
dade de Euclides de, sem questionar todas as suas premissas sociais) IVianna (1883-1951).

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•vy ■r*'- •Çgggevm!« n q n

Esses corajosos lusitanos machos haviam, vindo a uma terra!


OLIVEIRA VIANNA E O BRANQUEAMENTO DO BRASIL
nova e exótica sem suas mulheres, explicou Vianna.. “Mergulhado
no esplendor da natureza tropical,' com os nervos hiperestesiados.
Um advogado-historiador do estado d o Rio de Janeiro, Vianna pela. ardência dos nossos sóis, ele é atraído, na procura do desafogo,
foi descrito por contemporâneos como um mulato, possivelmente sexual, para esses vastos e grosseiros gineceus, que são as senzalas
uma razão importante para a sua preocupação com o papel das raças fazendeiras” . Ali encontravam “ a lânguida e tema mulher indíge­
na história brasileira. Em 1910 Vianna começou a publicar uma sé­
rie de artigos para jornal e livros, aumentando passo a passo a sua
- •.• na” e a “passional, amorosa, prolífica e sedutora” mulher negra
(Vianna, 1952, vol. I; 101). Assim nasceu o mestiço.
influência junto aos seus leitores elitistas. Em 1916 tornou-se pro­
fessor na Faculdade dc Direito do Rio dc Janeiro, mas preferia pas­ 1 Vianna escapulia das categorias absolutas do racismo científi­
co argumentando que os escravos africanos originavam-se de tribos
sar a maior parte de seu tempo em Niterói., a capital do estado. Po­ diferentes — algumas de “inominável lealdade”, outras de “feroci­
pulações meridionais do Brasil foi a sua prim eira grande obra. dade” e ainda outras de “varonilidade e bravura” . O produto, os:
Esta obra em dois volumes com eçava elogiando “ o grande filhos da união dos brancos com esses escravos diferentes, também
Ratzel” e descrevendo Gobineau, Lapougc c Ammon, os sacerdotes variava. Alguns mestiços eram “ inferiores”, enquanto que outros
europeus do racismo científico, como “gênios possantes, fecundos e herdavam os traços psíquicos e mesmo somáticos da.raça superior
originais” . Vianna dizia estar buscando “ a caracterização social do / “Do matiz dos cabelos à coloração da pele, da moralidade dos senti-'
nosso povo tão aproximada da realidade qu anto possível, de modo a mentos ao vigor da inteligência, os méstiços superiores'são de uimá
ressaltar quanto somos distintos dos outros povos, principalmente aparência perfeitamente ariana” (Vianna, 1952, vol. I: 153). Assim Òíi-
dos grandes povos europeus” (Vianna, 1952, vol. I: 13). Os brasilei­ :. yeira Vanna assegurava aos seus leitores preocupados c conscientes dos
ros se estudavam pouco demais, argumentou, e assim sofriam “um sem- ç l problemas raciais que, por sorte hisíóríca e pela natureza da primeira
número de ilusões” a respeito de suas capacidades (Vianna, 1952, vol. I: colonização portuguesa, o Brasil embranquecia progressivamente.
19). O que os brasileiros necessitavam era “um a análise fria e severa’ Via essa feliz miscigenação racial como tendo facilitado a
que exporia “as tendências particulares da sua mentalidade e de seu cará-ig L grande expansão brasileira no oeste nos séculos XVII e XVIII. Mi-
ter” (Vianna, 1952, vol. I: 22). Perguntava como se daria, no mundod%? 'lagrosamente, no relato de Vianna, os mestiços “arianos” juntavam-
;vísar Ase à “ raça nobre” para garantir o direito do Brasil sobre os territó-
moderno, a população racialmente mista do B rasil e se, dadas as grandes^
diferenças regionais, o Brasil podería permanecer unificado . t|jio s do oeste que outrora pertenceram à Coroa espanhola. -1'
À primeira leitura, Oliveira Vianna se parece muito com Sílvio;! . Vianna encontrava outras virtudes na história étnica do Brasil;
Romero ou Euclides da Cunha. Pensava q u e o Brasil corria perigo: vf jfsVNnncn tivamos artistocracia de raça. Pelo contrário, o nosso povo
intemacionalmente e via o auto-exame nacional como um primeiro LI ípcaldeia-se e funde-se sem lutas étnicas flagrantes” .(Vianna, 1952,
passo essencial para a ação coletiva. Como Romero c Euclides, aceirj|ju Ív o l. I: 392). Não fazia menção às muitas e sangrentas revoltas de
tava a autor idade dos teóricos estrangeiros sobre raça. O que acres­ ígrêscravos ou às igualmente sangrentas campanhas dc extermínio dos
centou, portanto, de novo? J quilombos. Aqui Vianna repetia o tema de Sílvio Romero — que no
Um elemento foi o retrato romantizado do Brasil colonial. ||(Brasil a influência africana havia evoluído de maneira singularmen-
gçte benéfica. Assim o mito do passado “não violento” do Brasil rece-
Vianna pensava que os portugueses que vieram à América “ repre­
,,.|R-.beu uma de suas formulações clássicas.
sentavam a porção mais eugcnica” porque, “ p o r uma lei de antropologia
social, só emigram os caracteres fortes, ricos dc coragem, imaginação e 'W' :' Vianna também acreditava que o Brasil de sua época corria
(vontade” (Vianna, 1952, vol. I; 114). Com, uma única frase Vianna f f i perigo político. Acreditava que o Brasil havia errado ao adotar de
-forma não crítica as instituições liberais da Europa do século XIX.
reabilitou os frequentemente denegridos primeiros colonizadores. . 'jCèvR-. •
Havia assim, portanto, sido incapaz de assegurar a “ autoridade” e a Seu “retrato”, que abria com a famosa frase “Numa terra ra­
.“unidade” (Vianna, 1952; vol. I: 429). O Brasil sobrevivera, mas diosa vive um povo triste”, analisava o caráter brasileiro em tennos
apenas porque as populações do Centro-Sul — os heróis do livro de de três vícios (luxúria, ganância e melancolia) que supostamente re­
Vianna — haviam-no salvado dc uma tremenda catástrofe por seu sultaram da combinação “do homem livre na solidão (com) o índio
“espírito conservador e prudente” e pela sua “ tem pera branda e cor­ sensual” (Prado, 1962: 3, 22). Isso produziu “as nossas primitivas
data” (Vianna, 19 5 2 ,vol. I: 435). populações mestiças” (Prado, 1962: 27). O brasileiro era “um ho­
Ao importarem o liberalismo europeu, segundo Viannaj as repú­ mem novo”, caminhando “para os triunfos de seu destino ou para
blicas da America espanhola não haviam contado com a mesma sorte. uma desilusão c um desastre” ao realizar “seu destino histórico e
Diferente dos estadistas brasileiros, os constmtorcs das nações argenti­ geográfico” (Prado, 1962: 127). A solução, para Prado, era o bran-
na e chilena encontraram “ diante dc si apenas populações cm que os queamento — “o que se chama a arianização do habitante do Brasil
instintos de turbulência c da luta estão cm penuanente vibração” . O é um fato de observação diária. Já com 1/8 de sangue negro, a
Brasil se salvara pelo “ inato desamor às brutal idades da luta armada” aparência africana se apaga por completo (...) desde a época colo­
nial, o negro desaparece aos poucos, dissolvendo-se até a falsa apa­
de sua população do Sul (Vianna, 1952, vol. I: 434-5). Assim o século
rência de(ariano puro” (Prado, 1962: 159-60). Aqui se encontra um
XIX, como os séculos anteriores, tinha um final feliz — amarrado pelo
endosso áihda mais confiante do branqueamento do que aquele fei-
discurso do melhoramento racial, a língua franca dos leitorçs de Vian­
J f to por Romero ou Euclides e refletia o crescente otimismo da elite
na. Partindo de premissas semelhantes, Vianna apresentava uma men­
brasileira quanto a essa questão.
sagem bem mais otimista do que a de Euclides da Cunha.
- v : O tom geral do livro, no entanto, fazia com que a herança bra-
Segundo Vianna, contudo, a lição da história brasileira foi a fM-sileiraparecesse debilitante e os efeitos negativos sobre apersonali-
sua incapacidade de criar um estado forte. A nacionalidade brasilei-. ^P§'dade brasileira inescapáveis. A combinação do português amoral, o
ra agora exigia “ massa, forma, fibra, nervo, ossatiara, caráter” . A ci-. Ü clima sedutor e o caráter maleável do índio e,do africano pareciam
ma dc tudo, era preciso “ um Estado centralizado, com um governo desqualificar o Brasil para o moderno mundo industrial. Em seu
nacional poderoso, dominador, unitário” (Vianna, .1952, vol. I: 429).: )ós-escrito, Prado citava com confiança alguns sociólogos america-
Vianna rapidamente se tomou o porta-voz por excelência dos críticos.; ^fnpside vanguarda que começavam a dar mais importância ao meio
antiliberais do mau funcionamento do sistema .eleitoral brasileiro. Mais.;. íffarnbiente do que à raça na explicação do comportamento social. No
tarde, durante a ditadura de Gctúlio Vargas (1937-45), teve a oportuni-- fffinal, Prado via o problema brasileiro como essencialmente de cará-
dade dc aplicar suas panaccias quando ajudou a formular as leis corpo- ifítèr político. Denunciava a “politicagem” e “as oligarquias” locais
rativistas que institucionalizaram o Estado forte que ele preconizava. ;;; (Prado, 1962: 178). Repetia as lamentações correntes de que o Bra-
ri/sil não conseguira explorar seus grandes recursos naturais. Encontra-
L ya-se negligência por toda parte — na higiene pública, nos transportes,
PAULO PRA D O E UM BRASIL M ELA N CÓ LICO
pnareducação, em virtualmenle toda esfera da política social. “Nesta
Aterra, em que quase tudo dá, importamos tudo: das modas de Paris —
Paulo Prado pertencia a uma das famílias m ais eminentes de §?idéias e vestidos — ao cabo de vassoura e ao palito” (Prado, 1962:
São Paulo, sustentada por uma fortuna cafceira. E ra um esteta e pa-, ■174). Prado, procurando chocar os seus leitores, via apenas duas soluções
trono das artes conhecido, tendo feito grandes contribuições finan­ %para a desorganização e a estagnação do país. Seria necessária uma guer-
ceiras para a Semana da Arte Moderna em São P aulo em 1922. Em j.raou uma revolução para curar um Brasil doente.
1928 publicou Retrato do Brasil, um volume pequeno que lançou.} .. A República que nascera com um golpe militar em 1889 miu
um tom sombrio sobre o debate do caráter nacional. . /.A fcommm novo golpe em 1930. Como nos anos 1890, os militares

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entregaram o poder a uma nova geração de civis liderados por Getú-
inundação de programas de rádio, discos e filmes de Hollywood
lio Vargas, um -ex-governador do Rio Grande do Sul. A prolongada
criaram um fascínio para os brasileiros urbanos. Essa batalha contra
tentativa de reforma democrática após 1930 levou a um novo golpe
a vgssalagem cultural do país é o pano de fundo do surgimento de
em 1937, desta vez liderado pelo próprio presidente em exercício, e
Gilberto Freyre, o hisíoriador-sociólogo, como o mais famoso intér­
inaugurou uma ditadura de oito anos (chamada de Estado Novo, se­
prete da identidade nacional brasileira no século XX.
guindo a ideologia e nomenclatura corporativssta portuguesa). O poder
governamental local e estadual foi largamentc reduzido, assim crian­
do a grande força centralizadora preconizada por Oliveira Vianna. GILBERTO FREYRE E A VTNDICAÇÃO
Econom icamente o Brasil ia bem. Em bora o crash mundial D E PORTUGAL E DA ÁFRICA
dc 1929 tivesse levado a uma rápida perda das reservas cambiais
e um a forte queda na renda advinda da exportação, a indústria
Gilberto Freyre nasceu no Recife, capital de Pernambuco, no
brasileira crescia rapidamente para oferecer muitos dos produtos
coração da tradicional economia açucaréira do Nordeste. Veio de
anteriorm ente importados. A Segunda G uerra Mundial, na qual o
.uma distinta família e recebeu uma educação atípica, freqüentando
Brasil ingressou como aliado em 1942, for outro fator de estímulo
uma escola americana no Recife e depois viajando aos Estados Uni­
econôm ico, pois os EUA demandavam material estratégico que
dos pára cursar a faculdade em Baylor, uma universidade batista no
auxiliou o Brasil a-reconstruir suas reservas cambiais. No m eio:
Texas. Essa experiência foi significativa para a sua percepção de sua
tem po, refletindo a centralização corporatista da ditadura de Var-j dfil
cultura nativa. Freyre depois fez sua pós-graduação na Universidade
gas, crescia a intervenção estatal na economia. Acelerou-se o rit­ vífm
de Colúmbia, em Nova York, onde estudou com o famoso antropó-
mo da industrialização em São Paulo, a m aior cidade do país, que:
jp logo Franz Boas, um dos primeiros oponentes abertos do racismo
rapidam ente se tom ava o principal centro industrial do mundo em>
|Y científico que ainda dominava o pensamento acadêmico no Atlânti­
desenvolvim ento. :
co Norte e na América Latina. Os cinco anos de estudo nos Estados
Culturalmente, esses anos -foram extremamente criativos.- 0s>
IpgVjUnidos, principalmente no Sul, com suas leis de Jim Crow e seu
anos 20 e 30 produziram muitas tentativas d e definição da identida-;;
violento racismo, influenciaram profundamente Freyre e fomece-
de nacional brasileira, grandemente influenciadas pela intensa ino-£
Ép-ram-lhe um ponto de referência permanente em suas interpretações
vação literária do modernismo (que não deve ser confundido com .oi'|§t
gYposteriores sobre o Brasil. Em Colúmbia, escreveu sua tese demes-
movimento de mesmo nome na América espanhola), Estudiosos
gÉ^jtrado, “A vida social no Brasil em meados do século XIX” (Freyre,
editores apressaram-se para reeditar as ricas descrições do Brasiljpf|
Sp:jl923), que continha muitos dos temas que Freyre mais tarde tomaria
feitas por viajantes dos séculos anteriores, frequentemente em edir>ml!L*g^T .c n
, famosos em tasa-eranae e senzala ( í 9j 3).
çoes anotadas e comentadas. -. , n , , , , .
Casa-grande e senzala é uma história social do mundo escravo
A ditadura de Vargas também criou novas instituições culturais(l§| ÊLnordestino nos séculos XVI e XVII, época em que o açúcar era a base
centralizadas, como o Instituto Nacional do Livro, que su b sid iav a af® %typrodutiva para a sociedade multirracial brasileira. Freyre descreveu í
distribuição de revistas culturais e programas de rádio patrocinados" ^ SgfApompassiva e graficamente as relações pessoais íntimas entre as famí-
pelo governo. E o vigor e a originalidade do movimento modernista Alias dos senhores e seus escravos. Ao retratar esse elhos intensamente
davam legitimidade às alegações da ditadura de estar promovendo à ;p |f llplpatriarcal, Freyre discorreu sobre as várias maneiras em que o africano
cultura nacional brasileira. * -risjlft
s | P í e em &rau menor 0 riidio) influenciaram o modo de vida dos fazendei-
Esses anos também viram os Estados Unidos começar a d e s a ? |É | “ gjrps em termos de alimentação, vestimentas e comportamento sexual.
fiar a França como a influência cultural estrangeira prcdominahteRAs||pa Ç5L- Freyre partia da premissa dc que a história do Brasil era signi-
cultura popular norte-americana, alimentada por uma crescenféfeíg ,Jtf- fiestivamente diferente da história dos Estados Unidos, a única so-
ciedade escravagista comparável no hemisfério ocidental. Como no­ trangeiros e de leitores conservadores no Brasil, atraía os leitores
tou no prefacio da primeira edição, “A todo o estudioso da formação brasileiros porque lhes explicava a origem de suas personalidades e
patriarcal e da economia escravocrata do Brasil impõe-se o conheci­ de sua cultura. Simultaneamente, recebiam o primeiro estudo acadê­
mento do chamado ^Deep South’” (Freyre, 1933: xi). mico !do caráter nacional brasileiro que lhes dizia, sem ambigüida-
Casa-grande retratava uma sociedade em que todo brasileiro, des, que deveríam orgulhar-se da sua civilização racialmente mista
dc aristocrata a mendigo, refletia a cultura poliglota. Aqui Freyre' dos trópicos. Seus vícios sociais, que Freyre reconhecia abertamen­
claramente seguia Sílvio Romero, cuja influência ele freqüentemente re­ te, podiam ser atribuídos, argumentava, principalmente à monocul­
conhecia. Freyre ainda argumentava que os portugueses no Brasil haviam tura escravagista que dominara o país até o final do século XIX. As
lia muito perdido qualquer chancc dc serem brancos “puros”, uma vez supostamente más conscqiicncias da miscigenação advinham não da
que os portugueses eles mesmos, tendo há séculos sc mesclado com seus miscigenação propriamente dita, mas do relacionamento doentio en­
conquistadores mouros, eram de linhagem branca, duvidosa. tre senhor e escravo sob o qual mais freqüentemente ocorria.
Freyre via os portugueses dotados dc u m a capacidade singular Freyre escreveu dois volumes que sucediam Casa-grande e,
para colonizar os trópicos. Notava que, quanto à “ consciência de raça, senzala: Sobrados e mucanibos (1936), cujo foco era a transição
quase nenhuma no português cosmopolita e plástico” (Freyre, 1933: para urn| cultura urbana no século XVIII e começo do. XIX, e Or­
2). Era “um espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia dramática dem e progresso (1959), um panorama da auto-imagem da elite nas.
do conquistador do México e do Peru; um inglês sem.as duras linhas primeiras décadas do século XX. Esses volumes levaram adiante o.
puritanas. 0 tipo do contemporizador. Nem ideais absolutos, nem pre­ retrato de Freyre do ethos patriarcal herdado da era colonial. Apesar
conceitos inflexíveis” (Freyre, 1933: 197). Além do mais, o português da perspicácia de suas observações e da riqueza de detalhes históri­
usava “a gente nativa, principalmente a mulher, não só como instru­ cos, nenhum dos dois teve o impacto de Casa-grande e senzala.
mento de trabalho mas como eleluento de formação da família” (Frey­ Os escritos de Freyre contribuíram muito para chamar atenção
re, 1933: 24). Freyre era assim guiado para a sua famosa conclusão de para o valor inerente do africano como representante.de uma civili-
v que “a sociedade brasileira é de todas da Amé rica a que se constitui própria. Freyre assim oferecia, para aqueles brasileiros pron­
(mais harmoniosamente quanto às relações de raça”’ (Freyre, 1933: 88). ? tos a dar-lhe ouvidos, uma justificativa para uma sociedade multirra-
Freyre assim virou de pemas para o ar a dolorosa e familiar em que as raças componentes — europeu, africano e índio — ,
questão de se gerações de miscigenação haviam causado um dano ser percebidas como igualmente valiosas. O efeito prático |i
irreparável. A miscelânea étnica brasileira, argumentava, constituía de.sua análise, contudo, não era o de promover o igualitarismo ra-
uma tremenda vantagem. Mostrava como pesquisas recentes nas Ao contrário, serviu para reforçar o objetivo já estabelecido da
áreas de nutrição, antropologia, medicina, psicologia, sociologiaré de “branqueamento”, mostrando graficamente que a elite
agronomia haviam tomado obsoleta a teoria racista e haviam
branca) havia ganhado valiosos traços culturais a
sentado os novos vilões — dieta insuficiente, vestes
de seu contato íntimo com o africano e o índio.
doenças (especialmente a sífilis), que na m aioria das vezes não eram1
Á sua análise, contudo, respondeu a uma questão crucial para a
diagnosticadas e muito menos tratadas. Citava estudos de ci
era a supremacia branca no molde norte-americano o único
brasileiros que mostravam que eram o índio e 6 africano que haviam para o progresso no mundo moderno? Por dedução (que
contribuído para uma dieta mais saudável e u m modo de se poucos leitores deixaram de perceber), Freyre respondeu que não.
mais prático no Brasil.
um Brasil superior em termos humanos; eram os Estados •
Igualmente importante para o impacto contínuo do livro 'Unidos que haviam optado pce!o caminho destrutivo da segregação
sua descrição franca da história íntima da sociedade patriarcal,
ilegal, qque se mantinha apenas por meio da repressão.
bora esse elemento provocasse a crítica de alguns acadêmicos
SÉRG IO BUARQUE DE H O LA N D A
personalidade coletiva para o português, o espanhol e o inglês e fez
E A “ CO RD IA LID A D E” . ■ generalizações sobre o desenvolvimento nacional comparado. Dife- ’
rente de Freyre, Buarque de Holanda não falou quase nada sobre o
Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, asse­ africànó ou o índio e tampouco olhou detalhadamente para os ele­
melha-se m ais, em termos de fonnato e abordagem, ao Retrato do mentos não europeus na cultura brasileira. Buarque de Holanda, na
Brasil de Paulo Prado do que das obras dc Oliveira Vianna ou Gil­ verdade, novamente pouco contribuiu ao retrato da identidade nacio­
berto Freyre. Trata-se de um ensaio elegante baseado em fontes lite­ nal que já vimos emergindo. Reforçou a imagem de Gilberto Freyre do
rárias e históricas, sem contar com a vasta g am a de informações de português racialmente tolerante e a imagem dc Oliveira Vianna do por­
Freyre ou com o foco específico sobre a história social de Oliveira tuguês tendo deixado um legado político falho.
Vianna. Como esses outros dois, contudo, enfatiza a era colonial. Um elemento essencial da sociedade de Buarque de Holanda
O título escolhido por Buarque de Holanda já revela a sua era “uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família”
orientação. Portugal criou “ o caráter atual d e nossa cultura — as (Holanda, 1956: 103). Conduzia “à frouxidão da estrutura social e à
outras influências adequaram-se a esse caráter” . 0 papel da misci­ falta de hierarquia organizada” . Enfim, “à falta de coesão em nossa
genação? “ A mistura com raças indígenas ou adventícias fizeram- fjjs vidasqcial” (Holanda, 1956: 18). Também acreditava, como Olivei­
nos tão diferentes dos nossos avós de além-mar como. às vezes gos-' ra Vianriã, que o Brasil se encontrava à deriva. Nós, brasileiros, de-
taríamos de sê-lo” (Holanda, 1956: 30). Infelizmente para aqueles 'clarou, “somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra” (Holan-
que queriam o desenvolvimento econômico,, o Brasil não recebeu' Ç da, 1956: 15). Ambos os escritores procuravam incitar seus leitores
como colonizador o protótipo do trabalhador (como aqueles que supos-' •a' empreender reformas radicais, embora divergissem significativa-
tamente se dirigiram à Nova Inglaterra), mas aventureiros que busca-' fimènte quanto à natureza dessas reformas.
vam o enriquecimento rápido. Os portugueses “ queriam extrair do solo - T .' Buarque de Holanda preocupava-se com o futuro político do
excessivos benefícios sem grandes sacrifícios"” (Holanda, 1956: 50)1 ’ país. No Brasil dos meados dos anos 30,. polarizava-se a opinião e
Também demonstraram “extraordinária plasticidade social” e revela- (tanto a direita como a esquerda pregavam o extremismo. Buarque de
ram “ a ausência completa, ou praticamente completa entre eles, deV§ gSSTHolanda havia pessoalmente testemunhado a ascensão do fascismo
qualquer orgulho de raça. Ao menos do oigulho obstinado e inimigo de) ria época em que vivia na Alemanha. Era iminente a queda da dita­
compromissos, que caracteriza os povos do norte” . Além do m aisyj dura brasileira de 1937-45. Como Paulo Prado em Retrato do Brasil,
comparado ao espanhol, o português era “ incomparavelmente maisLg (dirigiu seu texto eiudito para uma elite que ele esperava provocar
suave, mais acolhedor das dissonâncias sociais:, raciais e morais” (HoAl para a defesa do Brasil democrático.
landa, 1956: 51). Estava notavelmente ausente o “espírito militar” 7 As duas décadas que se seguiram ao final da ditadura Vargas em
gyl945 (que tenninou por obra de outro golpe militar) trouxeram a volta da
“Não ambicionamos o prestígio de país conquistador e detestamos n o ^ |
democracia eleitoral e do governo constitucional, embora no âmbito de
toriamente as soluções violentas.” O Brasil foi “ das primeiras naçõesgf
■uma cultura política que permanecia profundamente autoritária. Na era
que aboliram a pena de morte em sua legislação, depois de a termps1§
Üçleitoral que se seguiu, Vargas tomou-se o beneficiário final, voltando ao.
abolido muito antes na prática” (Holanda, 1956: 260). Buarque deH dyl
lerem 1951 como presidente popularmente eleito. Buscando políticas
landa pensava que se podia resumir o brasileiro com a palavra cordial$í,
çrèscentemente nacionalistas, colidiu com proprietários de terras conser-
que ele equacionava com afabilidade, hospitalidade e generqsidadeTjq|ã
'àdores, homens de negócios paulistas, militares anticomunistas e o go-
Raízes do Brasil apresentava uma interpretação interessaníeíj
yemo dos Estados Unidos. Frente à ameaça de um novo golpe militar em
sobre o tem a de identidade nacional. O escritor praticamente desçargj
,954,'.Vargas cometeu suicídiç, assim colocando na defensiva, por mais
tava raça com o conceito de explicação. Ao contrário, construiu.umajs
uma década, os inimigos conservadores de suas políticas populistas.

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V IA N N A M O O G E A V rN D IC A Ç Ã O DO B R A SIL groso que realizaram e chegar aos nossos dias, à-vanguarda das
nações (...) quando o nosso país, com mais de um século de ante­
cedência histórica, ainda se apresenta, mesmo à luz das ínterpreta-
O primeiro ensaísta da identidade brasileira a ser largamente ; j ções e profecias mais otimistas, apenas como-o incerto país do
lido depois de 1945 foi ViannaMoog, um romancista e crítico literá­ futuro (Moog, 1961: 9). . .
rio gaúcho. Em 1955 publicou Bandeirantes e pioneiros,,uma compara­
ção direta e detalhada dos arquétipos culturais no Brasil e nos Estados Comparar o Brasil com os Estados Unidos não constituía nenhu­
Unidos. Isso talvez refletisse a recente experiência de guerra brasileira, ma novidade, como já vimos. Brasileiros ponderados haviam crescem
quando uma divisão do exército brasileiro lutou junto ao Quinto Exército temente feito isso à medida que a ascendência econômica dos Estados
Americano, ajudando a livrar a Itália de tropas nazistas em 1944M5. Unidos sobre o Brasil aumentava no final do século XIX e no começo
A mensagem de Moog está implícita no título do livro. A pri­ do século XX. Mas nenhum escritor com amplo público leitor.havia
meira palavra, bandeirantes, refere-se aos exploradores.que, em colocado a questão de maneira tão aberta como tinha feito Moog., '
busca de riquezas, perambulavam pelos interiores do país nos sécu­ Foi seu estilo didático (e sua freqüente simplificação da teoria
los XVII e'XVIII. Esses aventureiros rudes personificavam todos os das ciências sociais) que tomou seu livro acessível à um público
supostos defeitos ibéricos: o desprezo pedo trabalho manual, a fixa- ;. mâíhr. Refutava o determinismo racial baseando-se em citações de
ção com a Europa, o erotismo irresponsável e um individualismo íglf autoridades acadêmicas que alegavam ter desacreditado cientifica-
extremado. À segunda palavra, pioneiros, encarnava todas as supôs-,SI Á mente essa teoria. Para concluir, Moog relatou vários e notórios fra-
tas virtudes norte-americanas: o respeito pela dignidade do trabalho, |f§ L- cassos ianques no Brasil. Um foi o ambicioso projeto de Henry Ford
uma vontade de ruptura com o passado, u m a crença na perfectabih- ,'AQ' IR de construir uma fábrica de borracha na Amazônia dos anos 30 e 40,
dade moral do homem e um aguçado senso de comunidade. jg| que fracassou apesar dos enormes investimentos e da abundante pe-
Moog começava com a imagem do brasileiro como “um indor;|'5 ígj rícia técnica do Norte. A incapacidade de Ford de entender a psico-
lente, um triste congênito, produto de três raças tristes que o destinoJ filogia dos trabalhadores brasileiros e as limitações da agricultura de
reuniu no solo da América” (Moog, 1961: 1.07). Isto nos lembra| Ppplantação na floresta tropical (solos lateritas porosos e outros fato-
Paulo Prado. Moog, no entanto, desafiou Prado argumentando que,) Rfes) -condenaram o seu projeto desde o início. Se os brancos eram
na verdade, “ onde é a prova antropológica ou etnológica da tristeza^ gRsuperiores, perguntava Moog, por que então um gênio empreende-
congênita do negro? Esta prova tambéms simplesmente não existe^i ' jdor como Henry Ford fracassou tão vergonhosamente? O segundo
(Moog, 1961: 108). 'í ™ iíRexemplo de Moog foi a colônia fundada por emigrados confedera-
Passou então a contrastar os arquétipos — bandeirante e pio­ >V-dos americanos, também na Amazônia. Duas gerações após sua che-
neiro — que definiram a resposta para o atraso relativo do Brasil. 0..,-: )j,;gada, no final dos anos 1860, eles-haviam praticamente desapa.reci-
bandeirante desprezava o trabalho, buscava o enriquecimento rápido| lído entre a população marginal das florestas. Novamente, perguntava
e vivia apenas para voltar à Europa. Eram esses traços, legados aosj -Moog, onde estava a superioridade branca, especialmente visto que
brasileiros contemporâneos, que atravancavam o progresso brasiléif ||p?èram brancos do Velho Sul, um bastião da supremacia ariana?
ro. O pioneiro, herdeiro dos colonos da N ova Inglaterra, por oüfiqf f tm . Moog prosseguiu dando a seus leitores um espirituoso e bem-
lado, valorizava o trabalho e buscava construir para o amanhã:.Se­ Bdocumentado caso contra a teoria racista. Argumentava que a falta
gundo Moog, esses traços culturais possibilitaram rAoSj| jgdé discriminação racial no Brasil
ÉSte.:-'- ' .-. - ■ .
aos Estados Unidos, povo mais novo do que o Brasil e menorcd ;V não foi fisiologicamente um mal. Paradoxalmente, terá sido antes um
superfície continental contínua, realizar o progresso quase;mila| bem, e virá a ser, com o tempo, se já não o é, um dos melhores, senão o

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■ Freyre do português como progenitor de uma nova civilização tropi­
melhor acervo da cultura luso-brasileira, apesar do alto preço que
por ele temos pago e ainda tenhamos de pagar (Moog, 1961: 47). cal que dava a Moog a legitimidade para escrever seu ensaio otimista.
r- c i : -•v
; *£Vy' Apesar das diferenças, estes ensaístas, de Sílvio Romero a
Trata-se de um eco de Freyre, porém em termos bem mais explícitos. Vianna Moog, haviam construído um mito em evolução, que se tor­
Moog também refutou outras explicações deterministas para o nou crescentemente otimista (apesar de alguns reveses) com o pas­
fato de o Brasil não progredir conforme o ritm o norte-americano. Os sar dos anos. Começava com a visão do colonizador português
derrotistas haviam observado, por exemplo, que o sistema hidroviá- como um improvisador pragmático e sensual, diferente do rígido
rio brasileiro não constituía uma rede interna de transportes fácil. conquistador espanhol ou o intolerante puritano inglês. Segundo
SSSSstev essa visão, o caráter indulgente do português havia ajudado a suavi­
Muitos dos principais rios eram cortados p a r cataratas, tomando-os tf;:
r".-

não navegáveis. Outros corriam apenas tortuosamente para o mar. 0 zar a escravidão e assim salvado o Brasil tanto do racismo norte-
Brasil também não tinha carvão. Como pode ria se industrializar sem americano como da sociedade de castas da Indo-América. Igualmente
os recursos vitais que haviam alimentado o desenvolvimento no importante, a maior parte dos ensaístas do século X X argumentava,
Atlântico Norte? Moog descartava essas desvantagens, argumentando antes dos anos 50, que a população brasileira embranquecia progressi-
que “a história tem sempre muito mais que nos dizer a respeito dos vame/ite. O Brasil chegava ao mundo moderno com a sociedade mais
fatos sociais do que as explicações unilaterais do determinismo geográ­ humárík das Américas. A questão que permanecia sem resposta, argu­
fico, étnico, biológico ou econômico” (Moog, 1961: 106). Por história, mentavam, era se se sabería o que fazer com essa humanidade.
Moog entendia as psicologias coletivas criadas' desde a colonização.
Como seus precursores na interpretação do caráter nacional DARCY RIBEIRO E ROBERTO DA MATTA:
brasileiro, M oog tinha um objetivo maior do que simplesmente ex­
i.v DESMONTANDO OS MITOS?
plicar. Queria estimular seus leitores a m udar o país. Desejava que o
desempenho brasileiro fosse mais parecido com o dos Estados Uni­
dos. Mas isto aconteceria apenas se houvesse “ a reforma dos espíri­ •£ v; Após 1950 modifícou-se o contexto do diálogo sobre a identi-
tos” , um eco da mensagem dc Paulo Prado. M oog queria que o Bra; dade nacional do Brasil à medida que o surgimento da moderna
sil empreendesse “um grande exame coletivo de consciência” ,|1 q. ciência social criava uma nova e importante força intelectual no
(Moog, 1961: 250). Acrescentou, porém, u m a mensagem que ne-Qs| Brasil. Apesar de alguns antropólogos e sociólogos terem iniciado
nhum dos seus predecessores havia oferecido. Apontava os Estados • ■ pesquisas de campo nos anos 20, as bases institucionais para -as
Unidos, considerado há muito tempo como exem plo superior, comogf|f gerências sociais apenas começaram a ser consolidadas nos anos 50
modelo de como não se deveria desenvolver.. o- ■ • |C(Gorrêa, 1987). Estudiosos agora passaram a ter uma nova perspec-
O livro de Moog assim serviu para tnanqüilizar seus leitores)á| ; .tiva que podería substituir o popular ensaio de estilo literário.
brasileiros. Estavam corretos ao compararem o Brasil com os E sta^lf |§j|gK' Em 1959 um professor de psicologia havia publicado a edição
dos Unidos. Estavam corretos em concluir q u e os Estados Unidos)! ^inicial do primeiro grande levantamento dos escritos brasileiros so-
estavam bem à frente em termos de progres;so material. Mas d e v e í ^ 3-bre a questão da identidade nacional (Leite, 1983). Marcou uma
riam saber que o Brasil estava caminhando p ara o progresso enquanAfl Ynova era, os intérpretes tomando-se mais conscientes das suas meto-
to que os Estados Unidos teriam que desacelerar para reconquistar.'a- fy dologias e menos ingênuos quanto às suas premissas.
' I sua humanidade. Se faltava ao Brasil a disciplina, faltava aos Esta-íâ O diálogo agora atraía antropólogos, especialmente aqueles
dos Unidos a dimensão humana. A linguagem de Moog tinha pouca: :13 líqúe se prontificavam a ir além das tradicionais pesquisas de campo
relação com a angústia de Oliveira Víanna ou de Paulo Prado. M asf|| Esobre povos indígenas e generalizar sobre os fundamentos da civili-
assemelhava-se à mensagem de Freyre. Dc fato, era a vindicação deVif Hfzação brasileira. Proeminente entre tais estudiosos que surgiram no

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final dos anos 40 estava Darcy Ribeiro, um antropólogo acadêmico era a de reconhecer que sua sociedade era “injustafiviolenta e retró­
que ajudou a planejar a criação da novauniversidade de Brasília no «gjjis: grada” e que “reivindica a revolução” -(Ribeiro, 1991: 165).
final dos anos 50. Mais tarde, um alto conselheiro do presidente Ribeiro tipificava uma geração de eminentes intelectuais aca­
João Goulart (1961-64), foi forçado'a exilar-se cm 1964, quando dêmicos (incluindo FJorestan Fernandes, Celso Furtado e Antonio
Goulart, um herdeiro da política populista dc Vargas, foi deposto Cândido) radicalizados pelo confronto com as profundas desigual­
pelos militares. Durante seus anos de exílio (principalmente passa­ dades sociais do país, o conservadorismo inflexível de sua elite e as
dos na América espanhola), Ribeiro escreveu um estudo de vários repetidas intervenções dos militares. Todos visualizavam a redenção
volumes sobre “ As Américas e a Civilização” , dedicando um volu­ de seu pais por meio da mudança política radical de esquerda, em­
me ao Brasil (Ribeiro, 1988). bora divergissem quanto à preferência dc líderes. Como Paulo Prado
Ribeiro não limitava a sua mensagem ao público acadêmico. meio século antes, viam um choque político como a terapia necessá­
Ao voltar do.cxilio novamente mergulhou n a política, aliando-se ria para tirar o Brasil do seu impasse histórico.
com o populista Leonel Brizola, que por duas vezes nos anos 80 Roberto da Matta foi outro antropólogo que saiu dos estudos
tornou-se governador do estado do Rio dc Janeiro. A solução de indígenas para estudar a sociedade brasileira de modo amplo. Da
Ribeiro para o dilema do desenvolvimento brasileiro era o mais Matta, pçmo Freyre, estudara nos Estados Unidos e tomara'aquele
país como ponto de referência para a análise do Brasil. Entusiastica-
francamente político de todos os escritores que já examinamos. (Gil­
HL mente adotou uma combinação de abordagens estruturalista e sim-
berto Freyre foi deputado federal no Congresso de 1946 e mais tarde
j | | bólica para escrever um diagnóstico do “ dilema brasileiro” em Car-
apoiou fortemente o golpe militar de 1964.) Tendo sido um dos con­
0 navais, malandros e heróis (1978).
selheiros mais radicais de Goulart em 1963-64, ele agora atacava í-Çr v.-‘. ,
A A essência do caráter brasileiro, segundo Da Matta, residia nas ir
impiedosamente o establishment econômico c político e conclamava
|i;felações estruturais e em seus valores correspondentes legados pela
os estudiosos brasileiros a “encarar (como) nossa tarefa fundamen­
§§i altamente hierarquizada sociedade portuguesa no início da Idade
tal o estudo da revolução social necessária para superar o atraso e a |
^jM odem a e na sua colônia escravagista americana. Analisou o mito
dependência” (Ribeiro, 1991: 11). Ribeiro elogiava Euclides da Cunha (I
píde.Freyre da evolução racial harmoniosa de seu país (encarnada na
e Sílvio Romero por suas observações pioneiras e reconhecia as contri-T
j?rjfábula das três raças”) como a justificativa presente .daquilo que
buições significativas de Oliveira Vianna c Gilberto Freyre, apesar 4 o ||
[ele chamou de “o nosso racismo” (Da Matta, 1981: 60). Esse “mito
“ racismo” e “visão colonialista” do primeiro c o “reacionarismo” d a l
|gcias;três raças” há muito tempo fornecia “as bases de um projeto
nostalgia da cra da escravidão do segundo (Ribeiro, 1991: 12). y
Ifjpolítico e social para o brasileiro (através datése do ‘branqueamen-
No seu esquema histórico mundial, Ribeiro colocou os bras.iyl| gptq-.como alvo aser buscado)” (DaMatta, 1981: 69)..
leiros entre os “povos novos”, produzidos pela combinação “ de m a-§
fSÜT -Quais seriam as fontes desse “ racismo à brasileira” (DaMatta,
trizes étnicas muito díspares como a indígena, a africana e a européia’| § |S§1981: 68)? Como Darcy Ribeiro, Da Matta apontava o passado co-
(Ribeiro, 1991: 58). Ele via “configurações histórico-culturais” , espe-'^
iponial como elemento crucial para a formação da moderna identida-
cialmente a “ dominação colonial-escravista”, tão crucial em “desum aí^ íjde brasileira, mas enfatizava mais profundamente o sistema de valo-
nizar” o negro e o índio e em produzir teorias de elite que se baseavamTvt [ res e a estrutura social “antiindividuaíista e antiiguaiitária” legados
em “ literatura paracientífica européia” sobre raça e clima para criár,|f| ||péla Coroa portuguesa e pela Igreja (Da Matta, 1981: 74). “ O ponto
“ uma justificação erudita do atraso e da pobreza nacional” (Ribeiro,|§| §|critico de todo o nosso sistema é a sua profunda desigualdade. Neste
1991: 74-5; 131; 156). O que não percebiam era “ o papel da espoliação 1% ^sistema não há necessidade de segregar o mestiço, o mulato, o índio
colonial c da exploração patronal” (Ribeiro, 1991: 157). Para Ribeiro,T. gejró.nègro, porque as hierarquias asseguram a superioridade do bran-
“ a única atitude moralmentc defensável” para um intelectual brasileiro Aj [cocomo gmpo dominante” (Da Matta, 1981: 75).
sileira anteriores a 1960 construíram uma identidade nacional que
Da M atta rejeitava o argumento de F reyre de que a coloniza­
resiste a ataques tanto da teoria como dos fatos. E se o papel da raça
ção portuguesa havia sido “essencialment:e mais aberta ou huma­
naquela construção apenas começa a ser desmitifícado, o papel de
nitária” , argumentando, ao contrário,••q u e a cômoda intimidade
gêneroitambém exige uma exploração crítica. Como afirma uma im­
das relações inter-raciais havia sido possível apenas porque “ aqui
portante estudiosa de estudos da mulher, pode ser “pela via dos es­
o branco e o negro tinham um lugar certo c sem ambiguidades
tudos de gênero e de raça que se responderá, de uma vez por todas, à
dentro de um a totalidade hierarquizada m u ito bem estabelecida”
pergunta, ‘Que país é este?’” (Holanda, 1992: 8S).
(D a M atta, ,1981: 79). 0 foco sobre cad a u m a das “três raças” ,
argum entava Da Matta, “ tem atrasado n o s s a percepção de nós
m esm os com o uma sociedade dcfinitivanaente de estrutura social Tradução: Susan Semler
singular e cultura específica” (Da Matta, 1981: 85). Segundo ele,
Darcy Ribeiro havia sucumbido à ten tação tradicional de usar REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
“ raça” com o uma categoria de explicação, assim invalidando sua
tentativa de classificar, os brasileiros coimo um dos “povos nor
I f t Principais obras de escritores discutidos neste capítulo
v o s” (Da M atta, 1981: 85). ■ .4
\
A abordagem de Da Matta se p a re c e corn^a de Freyre nq
gf:.Cunha, Euclides da. Os sertões, edição critica de WaJnice Nogueira Gal-
evocação frequente do tom íntimo e da tcrxtura de relações sociais
vão. São Paulo, Brasilicnse, 1985. Uma compilação meticulosa de
fundam entais, como na sua famosa an álise d a arrogante locução f l
todas as variações nas sucessivas edições/ ■ '
usada para se dirigir a inferiores sociais.: “ Sabe com quem está:
| Da Matta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia
falando?” . Também como Freyre (que escerevia bastante para jor- g | / ‘V! do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1978."
nais e revistas), Da Matta procurou um p ú b lico mais amplo e foigf ” ”____ . Re/ativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópo-
capaz de u sar a televisão em “ Os b rasileiro s” , uma serie e m .d e z f| IJÍK" lis, Vozes, 1981.
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nais. Como Darcy Ribeiro, Da Matta p erceb ia que a sociedade®
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brasileira necessitava de mudanças u rg en tes, mas para ele a solu­
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ção estava na adoção de valores mais igualitários, um processo
_. Ordem eprogresso, 2 vols. Rio de Janeiro, José Oiympio, 1959.
bem m ais profundo que apenas a m udança política. Nisso estaval
Vida social no Brasil nos meados do século XIX, 3.3 ed. Reci­
m ais próxim o de Moog do que dos intelectuais radicais de esrf
fe, Editora Massangana, 1985.
querda, exem plificados por Darcy R ibeiro. :'èf§
gJvHqlanda, Sérgio Buarque de. Rates do Brasil, 3/ ed. Rio de Janeiro, José
Finalmente, tanto Darcy Ribeiro corao Roberto da Matta par-^p
f& N ...Oiympio, 1956.
tilham a rejeição por parte do cientista sociial das premissas racistas^"
|fíqllanda, Heloísa Buarque de. /“Os estudos sobre mulher e literatura no
tão comuns no diálogo elitista sobre a identidade nacional. Ao fínaljí
Brasil: uma primeira avaliação”, in Costa, Albenina de Oliveira e
dos anos 70, brasileiros ponderados tinhann crescentemente em suasf|É |§£ - Bmscliini, Cristina (orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro,
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