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Como filósofo, Rorty foi um pensador impressionantemente produtivo e combativo.

Sua
filosofia tem inúmeras fontes, como James, Dewey, Sellars, Davidson, Darwin, Hegel,
Heidegger e Wittgenstein. Rorty se autodefine como um neopragmatista, porque não apenas
se baseia nas idéias de Dewey e James, mas também as renova, ao alegar que o
termo experiência deve ser substituído por linguagem, que é uma palavra mais adequada para
expressar o holismo e o antifundacionismo desses autores.

Para ilustrar o legado filosófico extremamente rico e nuançado de Rorty, consideremos, por
exemplo, sua concepção de linguagem, que constitui um desenvolvimento de algumas das
idéias de Davidson. Em sua abordagem, Rorty considera que o eu e o mundo não podem ser
descritos em termos essenciais. Eles são antes produzidos por uma série de crenças e desejos,
que Rorty denomina vocabulários. A verdade não está "fora" da linguagem, pois uma crença
(que pertence à linguagem) só pode ser justificada por meio de outra crença (que também
pertence à linguagem).

O domínio exterior à linguagem é formado por causas, não por razões. E o fato de estarmos
em relações causais com o mundo não envolve representações em sentido tradicional. Assim,
a mudança de um vocabulário para outro não tem necessariamente uma explicação racional e
as novas metáforas que substituem as antigas são causas, não razões para mudanças de
crenças. Ainda seguindo Davidson, Rorty considera que a metáfora é um ruído não costumeiro.
Ela é uma enunciação que quebra regras, não se conformando ao jogo de linguagem e
conduzindo a comunidade para um novo jogo.

A partir daí, podemos concluir que não há uma visão privilegiada do mundo, que nos forneça
condições para estabelecer relações seguras entre as coisas e nossas crenças a respeito delas.
Não pode haver controle dessas crenças com base nos estímulos físicos extra-lingüísticos (o
mundo e o ego estão definitivamente perdidos). O ego é uma teia de crenças e desejos sem
centro que estão continuamente mudando através dum processo de re-tecer, o qual se dá
através da percepção, da inferência e da metáfora.

O choque produzido pelas metáforas nos leva a re-tecer os padrões de nossas crenças para
que possamos usá-las ao lidar com as coisas ao nosso redor. Um ruído não familiar – a
metáfora, por exemplo – pode funcionar como causa para uma crença. Só depois que a
metáfora perde sua estranheza e começa a ser contextualizada no interior da rede de crenças
e desejos é que ela vem a constituir uma justificativa racional.

Rorty argumenta que a filosofia moderna acerta ao abandonar a visão de mundo religiosa, mas
erra ao substituir a noção de Deus pela de verdade objetiva. Isso leva os modernos a manter
equivocadamente a noção de fundamento último. Ora, a crítica de Sellars ao "mito do dado"
mostra que a teoria da verdade como correspondência e o representacionismo são
equivocados, devendo ser substituídos por uma explicação baseada na prática social.

Apesar de pretenderem defender a abordagem científica, os filósofos modernos acabam por


se afastar do naturalismo, que é mais compatível com seus ideais. O neopragmatismo rortyano
busca superar essa deficiência, mostrando que o domínio da justificação está na prática social,
que as normas provêm da sociedade e não da natureza. Somos seres biológicos num mundo
natural e nossa linguagem é um instrumento para lidar com esse mundo para atingir nossos
propósitos.

Nessa perspectiva, a ciência é uma ferramenta eficiente, mas o cientificismo é equivocado. Já


que o fundamento não está em algum princípio universal e atemporal, mas sim em formas de
justificação imersas na prática social efetiva, outras formas de saber menos "científicas", como
as das ciências humanas, podem ser admitidas. A melhor maneira de justificar uma crença é
avaliar seu desempenho em relação a crenças alternativas.

A filosofia sistemática, que tenta explicar a racionalidade e a objetividade em termos de


condições da representação acurada, se revela enganadora. Melhor candidata é a filosofia
edificante, que ajuda as pessoas e a sociedade a se livrarem de atitudes e vocabulários
desgastados pelo tempo, ao invés de fornecer um fundamento último para as instituições
existentes.

As posições heterodoxas e perturbadoras de Rorty, apontando na direção de um mundo sem


referenciais fixos, despertaram as críticas de muitos autores. Para Rorty, o abandono da noção
de verdade objetiva não constitui necessariamente um mal. Com efeito, a justificação
contingente permite não apenas a satisfação de objetivos práticos, mas também deixa em
aberto a possibilidade de futuras reformulações, motivadas por novos desafios surgidos a
partir das interações com as coisas mundanas.

Ao se insurgir contra a noção tradicional de objetividade e a ideia de verdade como


correspondência com a realidade, Rorty desconstrói boa parte do edifício através do qual o
saber ocidental legitima a si próprio. Amplia assim o espaço de validade para discursos e
narrativas contra-hegemônicos, que passam a contar com bons argumentos para se recusarem
a jogar conforme as regras do discurso que tanto criticam.

Tese de Rorty: Quando se trata de melhorar nossa visão de mundo, nossa maneira de nos
relacionarmos uns com os outros, a imaginação é a faculdade humana central. A razão apenas
se movimenta dentro dos parâmetros estabelecidos pelos jogos de linguagens correntes, mas
a imaginação tem o poder de criá-los (RORTY, 2007).

Os avanços intelectuais e morais são portanto vistos como resultado de um processo


interminável de apresentar redescrições capazes de criar novos vocabulários. Como observa
Christopher Voparil (2006), a redescrição rortyana resulta da mistura entre a concepção
wittgensteiniana da linguagem como uma ferramenta – uma alavanca, digamos, jamais um
espelho – e a noção de Thomas Kuhn do poder transformador das revoluções conceituais.
Seguindo Kuhn (2005), Rorty afirma que a mudança para um novo vocabulário não seria uma
consequência direta do acúmulo de certezas e conhecimentos, ou o desenrolar natural da
investigação cada vez mais racional, mas antes saltos inovadores de percepção, rupturas de
paradigmas que resultam da inovação, da criação de novas maneiras de pensar. Visto dessa
forma, o processo de mudança histórica deve muito à criação de novas metáforas, entendidas
no sentido que Donald Davidson lhes confere.
Para além de seu poder revolucionário, a redescrição cumpriria um papel fundamental na
criação de solidariedade, pois esta, segundo Rorty,

não é descoberta pela reflexão, mas sim criada. Ela é criada pelo aumento de nossa
sensibilidade aos detalhes particulares da dor e da humilhação de outros tipos não familiares
de pessoas. (...) Esse processo de passar a ver outros seres humanos como “um de nós”, e não
como “eles”, é uma questão da descrição detalhada de como são as pessoas desconhecidas e
de redescrição de quem somos nós mesmos. Essa não é uma tarefa para a teoria, mas para
gêneros como a etnografia, a reportagem jornalística, o livro de história em quadrinhos, o
documentário dramatizado e, em especial, o romance. (...) A ficção de autores como Choderlos
de Laclos, Henry James ou Nabokov fornece detalhes sobre os tipos de crueldade de que nós
mesmos somos capazes e, com isso, permite que nos redescrevamos. É por isso que o
romance, o cinema e o programa de televisão, de forma paulatina mas sistemática, vêm
substituindo o sermão e o tratado como principais veículos de mudança e progresso morais
(RORTY, 2007: 20).

Rorty entende este processo como o “declínio da verdade redentora e a ascensão da cultura
literária” (2006). Sua tese é a de que os intelectuais do Ocidente esperaram primeiro pela
redenção de Deus (a crença na relação com um ente divino onisciente e onipotente), depois
pela redenção da filosofia (a crença na aquisição de um conjunto de crenças capazes de
espelhar a natureza), e agora, pela redenção da literatura (a produção de um conhecimento
tão variado quanto os seres humanos).

São as narrativas, e não mais os tratados de filosofia ou os livros sagrados das religiões, os
agentes responsáveis pelo alargamento de nossa sensibilidade em relação ao sofrimento e
humilhação. Porém, note-se: ao afirmar que as descrições imaginativas de situações
particulares são as principais fontes de progresso moral, Rorty já está unindo ironia e
solidariedade. O ironista, cuja atitude intelectual é calcada na dúvida, rejeita a pretensão de
qualquer alegação de conhecimento cuja validade independa de contexto. Não se arvora em
nenhum universal – “razão”, “natureza humana” – para decretar sua superioridade. Ao
contrário, ele sabe que a história, inclusive a história dos nossos dias, está repleta de exemplos
de atrocidades cometidas em função do hábito de usar tais universais como garantia de
legitimidade para interesses particulares.

Em O Discurso Filosófico da Modernidade, Habermas (2002) distingue entre “razão centrada


no sujeito”, uma razão pura e transcendental, invenção da filosofia grega, e “razão
comunicativa”, que não é um dom biologicamente dado, e sim um conjunto de práticas sociais.
Ao insistir que deixemos de pensar na razão como uma qualidade metafísica subjetiva,
Habermas a socializa, como aliás já havia feito Durkheim na introdução de As Formas
Elementares da Vida Religiosa. A racionalidade comunicativa, afirma Habermas, está
“imediatamente entrelaçada no processo social da vida porque os atos de entendimento
recíproco assumem o papel de um mecanismo de coordenação da ação” (Habermas, 2002:
439). O corolário deste raciocínio é que um indivíduo não pode ser racional sozinho, assim
como não pode operar sozinho dentro da linguagem.

A racionalidade está inextricavelmente ao intercâmbio de justificativas, ao “jogo de dar e pedir


razões”, nas palavras de Robert Brandom (apud RORTY, 2005c: 256). Rorty concorda com
Habermas, dizendo que postular a razão comunicativa é afirmar que o conhecimento é aquilo
que emerge como o resultado de um debate, de um consenso, e que a verdade está mais
relacionada a este debate do que a uma qualidade interna do sujeito, um estado mental
individual (RORTY, 2005c).

Ao preferir o estético ao racional, a retórica à lógica, a narrativa à inferência, e a metáfora à


acuidade descritiva, Rorty estaria se embrenhando na auto-referência e no relativismo
característicos dos discursos pós-modernos. Não há como escapar da razão, diz Habermas, por
Porque a cada momento o ser humano que enxerga só o quase tudo, vive satisfeito com o
nada quase e assim costura todos os sentidos aos pequenos detalhes pra segurar toda a beleza
do instante um pouco mais. que não há como escapar da linguagem, e a linguagem é
necessariamente racional.

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