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A polifonia contemporânea

Alexandre Araújo Costa1

Os discursos que a modernidade oferece são grandes narrativas totalizantes, que


apresentam um projeto de mundo que se caracteriza pela imposição de um determinado modelo
de organização social que se pretende objetivamente válido. E cada uma das grandes narrativas
modernas produziu um discurso hermenêutico, na medida em que propunham um modo
específico de atribuir sentido ao mundo social.
Essa multiplicidade de discursos hermenêuticos revela-se com especial força dentro do
campo jurídico, em que as disputas entre os discursos estão diretamente relacionadas com a
definição dos critérios de exercício do poder político organizado. E os últimos duzentos anos
foram repletos de teorias hermenêuticas contrapostas, sendo que cada uma delas se inspirava em
noções diversas de legitimidade e oferecia diferentes visões acerca das funções a serem
desempenhadas pelos atores jurídicos.
Cada uma dessas teorias buscava afirmar-se como objetivamente válida, de tal forma que
elas sempre lutaram por hegemonia, ou seja, pela conquista total do mundo da vida que define
nossos padrões de auto-compreensão. Apesar disso, a situação contemporânea é justamente a de
que nenhuma das grandes narrativas conseguiu impor-se de maneira hegemônica. Na
hermenêutica jurídica isso não foi diferente, pois a situação contemporânea é a da permanência
de uma multiplicidade de discursos. Assim, para usar metaforicamente um termo tomado da teoria
do Estado, nenhuma das teorias hermenêuticas conquistou soberania.
O que vivemos, então, é uma pluralidade de narrativas. Essa pluralidade normalmente é
apresentada pelas teorias da modernidade como um momento de transição para a época em que
se fixará uma nova narrativa hegemônica, ou, para usar uma metáfora de origem epistemológica
quase gasta pelo uso excessivo, um novo paradigma. Esse novo paradigma deverá adotar a forma
de uma nova utopia totalizante, ou seja, de um novo sistema.
Uma das teses centrais defendidas neste texto é a de que o surgimento das variadas teorias
da argumentação significou justamente uma tentativa de reunificar um discurso jurídico que já
não era capaz de lidar com todos os problemas que enfrentava. Tal re-sistematização precisava
ser feita de modo compatível com a descrença generalizada de que as narrativas anteriores eram
capazes de organizar um discurso jurídico racional. E as teorias da argumentação me parecem a
mais nova tentativa moderna de oferecer um modelo totalizante de racionalidade crítica, cujo
principal teórico atualmente é o alemão Jürgen Habermas.
Pessoalmente, porém, não aposto minhas fichas em uma retomada dessa reductio ad
unum racionalista que marca as teorias modernas, inclusive a habermasiana. Em vez enfrentar a
pluralidade por meio da fixação de um critério totalizante, creio que a melhor opção é justamente
a busca da construção de espaços para a coexistência das diferenças, mediante processos de
autonomia e singularização. Assim, em vez de canalizar esforços para a construção de um meta-
sistema que afirme um critério universal e objetivo de legitimidade, prefiro dedicar-me a
compreender as tensões existentes entre as narrativas contemporâneas, inspirado pela idéia de que
o desafio atual não é o de construir um novo paradigma unificador, mas a de traçar mecanismos
de convivência da diversidade.
Mas como realizar uma monografia que respeite a polifonia? Será possível uma poligrafia
acadêmica? Um sistema cuja unidade não seja construída com base na subordinação de todos os
elementos a um elemento definido, mas que envolva a coordenação de perspectivas não apenas
diferentes, mas contrapostas. Ou, para usar uma metáfora de Deleuze e Guattari que muito me
encanta, um sistema rizomático e não radical, como todo o pensamento totalizante da
modernidade e seus grandes discursos construídos à imagem e semelhança dos sistemas
axiomáticos da matemática?
Uma das possibilidades é construir sempre obras coletivas, que equilibrem várias visões
simultâneas sobre um mesmo tema. Mas essa saída não é compatível com este trabalho, não só
por razões burocráticas (porque uma tese de doutorado precisa ter um único autor), mas também

1
Universidade de Brasília (UNB).
porque cada um de nós individualmente faz uso de discursos múltiplos. Nosso nome é legião,
porque são vários os discursos e devires que nos atravessam.
A subjetividade monolítica que está na base da visão moderna de mundo parece
incompatível com a pluralidade do mundo contemporâneo, que admite a pluralidade como uma
característica humana e não como um problema a ser resolvido. Em cada um dos meus discursos,
equilibro várias das minhas personas: o Professor, o Advogado, o Filósofo, o Amante, o Artista.
Engano é pensar que um juiz decide apenas como Juiz, que o professor fala como Professor, que
a tese acadêmica é escrita pelo Cientista.
Não podemos misturar o personagem conceitual2 com o sujeito real, pois o primeiro é
um arquétipo e o segundo e uma pessoa, incoerente e múltipla como todos nós feliz ou
infelizmente somos. É claro que esses arquétipos são importantes para a estruturação e
compreensão dos discursos e que a introdução de um novo personagem conceitual pode ter
consequências revolucionárias (como a invenção grega do Filósofo), mas não pretendo repetir
aqui o esquecimento moderno do sujeito, reduzido ao arquétipo do indivíduo racional egoísta.
Tudo bem que todo discurso tem seus esquecimentos, suas zonas de silêncio e
obscuridade, que o constituem tanto quanto as zonas de iluminação. Não posso pretender que o
meu não as tenha. E é por isso que me incomoda o discurso pretensamente objetivo da
modernidade, construído sobre bases pouco transparentes para a própria obscuridade. E a
obscuridade pode ser transparente (a afirmação do vazio e do mistério), assim como a claridade
pode ser opaca.
Edgar Alan Poe conta a história de um sujeito que, ao saber que sua casa ia ser revistada,
escondeu uma carta colocando-a no lugar mais evidente, e por isso mesmo menos propenso a ser
identificado por quem procura elementos ocultos3. Na modernidade, por exemplo, os valores
ideológicos são escondidos no conceito mais evidente: o de Razão. E esse simples procedimento
torna tão difícil tal percepção que muitos não vêem, por exemplo, que tanto a razão transcendental
kantiana quanto a razão comunicativa habermasiana contêm um elemento ético em sua própria
conformação. E a igualdade colocada como um imperativo racional, e não como um imperativo
ético, dificilmente é identificada como tal.
Essa mistura entre valores e razão, contudo, só é um problema para quem pretende atuar
de maneira neutra. Para quem postula uma razão neutra a valores (e, portanto objetiva), esse é um
problema sério. Porém, toda teoria crítica é fundada na afirmação de um critério de legitimidade,
que não pode deixar de ser valorativo. Assim, é da estrutura dos discursos críticos a sua não-
neutralidade, a sua parcialidade, o fato de estar ligada a posições valorativas que não são
impessoais. E a alternativa à criticidade de uma teoria não existe, pois mesmo o positivismo
realiza uma espécie de sacralização da neutralidade, e a neutralidade não deixa de ser um valor.
Portanto, não há um lugar neutro para falar de uma teoria. O enfoque externo não é um
enfoque imparcial e nunca faz justiça às concepções teóricas descritas. Isso ocorre especialmente
porque todo teórico engajado (isso é, todo teórico) concorda com algumas poucas tendências e
discorda de todas as demais, e normalmente falamos das ideias que nos desagradam oferecendo
uma versão enfraquecida, útil apenas para a crítica que a ela faremos em seguida.
Construímos estereótipos para guerrear contra eles e, com isso, atacamos inimigos
imaginários. Travamos assim uma batalha fácil e cuja vitória pode ser bastante útil, na medida
em que todos querem estar ao lado dos vencedores. Quando não é signo de simples ignorância,
esse tipo de pseudo-vitória, tão característica das academias, revela uma espécie de covardia
intelectual. Mas o normal é que ele seja apenas fruto da nossa visão distorcida das ideias que não
são as nossas e que, por isso, são erradas.
Convencidos pela modernidade de que a verdade é una, não podemos chamar senão de
falso tudo o que colide com as nossas crenças. E, com isso, a descrição externa de uma teoria que
não é nossa perde justamente o que essa teoria tem de mais importante: a capacidade de seduzir.

2
O conceito de personagem conceitual eu tomo emprestado de Guattari e Deleuze.
Vide DELEUZE e GUATTARI, O que é a filosofia?, p. 10.
3
POE, A carta.

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