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Texto original: [Radical Philosophy Review, volume 21, number 2 (2018): 271-298].
Disponível em: <https://www.sfu.ca/~andrewf/Marcuse%20Utopia.pdf>.
Acesso em: 14 abr. 2019.
Tradução: Luiz Henrique Sampaio Junior
(Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e Letras –
FCL/Ar – da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP, Campus Araraquara).
Resumo: Marcuse argumenta que a sociedade deve ser avaliada em termos de suas
potencialidades não realizadas. Potencialidades são formuladas pela imaginação, a qual possui
uma função cognitiva essencial capaz de revelar como as coisas deveriam ser. O pensamento
utópico, o qual transcende os fatos dados por suas potencialidades, permeia o aspecto racional
na visão de Marcuse. Sua explicação para este fato remete-se a Hegel, a Marx e à
Fenomenologia. Baseado em Freud, Marcuse elabora os limites históricos e possibilidades da
imaginação como expressão de Eros. A utopia é uma realização histórica num mundo
remodelado pelos conteúdos racionais da imaginação.
Marcuse escreveu duas obras memoráveis enquanto morava nos Estados Unidos, Eros e
Civilização e O homem unidimensional. Esses dois livros exemplificam a utopia e a distopia
presentes em seu pensamento nessa fase e fornecem material complementar para sua
interpretação. Nessa introdução, discutirei brevemente alguns conceitos básicos desses livros,
os quais têm inspirado minha interpretação. Nas seções seguintes desse artigo, elaborarei
esses conceitos mais detalhadamente.
Esse artigo focalizará uma reformulação do pensamento de Marcuse tendo por base uma
ontologia existencial. A ontologia de Marcuse repousa sobre um conceito quasi-
fenomenológico da experiência, uma teoria hegeliana da contradição e uma teoria freudiana da
imaginação. O tema unificador é uma compreensão única da razão, explicada em O homem
unidimensional.
A razão opera com conceitos universais. Conceitos permitem a ordenação de um fluxo
infinito de experiências num mundo coerente. Desde a Filosofia de Platão, sabe-se que o
funcionamento ordenado da razão é incompleto. Detalhes recaem na realização perfeita dos
conceitos que os identificam. Nenhum desenho de triângulo é realmente um triângulo,
nenhum objeto branco pode ser perfeitamente branco. Se assim for, conceitos não podem ser
reduzidos a detalhes. Eles possuem um conteúdo transcendental o qual é acessível à
experiência subjetiva com um sentido de incompletude ou imperfeição. Esse conteúdo deve
ser aplicado à imaginação mais do que à imediata percepção porque apenas a imaginação
possui o poder de projetar além do que nos é dado, permitindo uma forma ideal.
Marcuse argumenta que a imaginação é um aspecto essencial da racionalidade à medida
que direciona o sujeito ao real, a uma dimensão do mundo experienciado. O autor entende a
tensão entre real e irreal em termos hegelianos, como uma verdade negativa. O universal não
é meramente diferente do particular, mas o “nega”, condena sua imperfeição e situa o sujeito
em sua luta pelo ideal.
2
O Logos da Vida1
Eis como Marcuse inicia sua palestra na famosa conferência “Dialética da Liberação”
em Londres em julho de 1967:
“Eu acredito que toda dialética é liberação [...] e não apenas liberação num sentido
intelectual, mas liberação envolvendo a mente e o corpo, liberação envolvendo a existência
humana inteira [...] Então, em qual sentido toda dialética é liberação? É liberação de um
sistema repressivo, ruim e falso – seja um sistema orgânico, seja um sistema social, seja um
sistema mental ou intelectual: liberação por forças que se desenvolvem nesse tipo de sistema.
Eis um ponto decisivo. Liberação em consequência da contradição gerada pelo sistema,
precisamente porque ele é ruim, um falso sistema. Estou usando aqui, intencionalmente,
termos morais, filosóficos e valores: ‘ruim’ e ‘falso’. Na falta de uma meta melhor justificável
objetivamente, uma existência humana livre, toda liberação permanece necessariamente sem
significado – na melhor das hipóteses, progresso é servidão. Eu acredito que em Marx
também o socialismo é um vir-a-ser. Esse ‘vir-a-ser’ pertence à mais pura essência do
socialismo científico. Ao mencionarmos o vir-a-ser; nesses termos, quase poderíamos falar de
uma necessidade biológica, sociológica e política. Trata-se de uma necessidade biológica num
tipo de sociedade socialista, de acordo com Marx, a qual conformaria uma forte noção de
1
Parte dessa seção e da seguinte foram publicadas previamente em Herbert Marcuse, Transvaluation of Values
and Radical Social Change: Five New Lectures, 1966-1970, eds. Peter-Erwin Jansen, Sarah Surak, Charles
Reitz. Toronto: International Herbert Marcuse Society, 2017.
3
logos da vida, com as possibilidades essenciais para uma existência humana, não apenas
mentalmente, ou intelectualmente, mas também organicamente” 2.
Assim como muitas palestras de Marcuse nesse período, o texto deve ser lido em dois
níveis. Superficialmente, o argumento pode ser compreendido por qualquer ouvinte: vivemos
numa sociedade ruim a qual deve ser substituída por uma melhor. Porém, num nível mais
profundo há muito mais envolvido. Isso é indicado pelas frases “falso sistema”, “justificável
objetivamente”, “vir-a-ser”, “logos da vida”. Em que sentido pode um “sistema” ser não
apenas ruim, mas também “falso”? Como os valores podem ser “objetivamente” justificados?
E que sentido faz associar um “vir-a-ser” ao “socialismo científico” e ao “logos”?
Comecemos com a questão dos valores objetivos. Marcuse defende valores os quais,
com uma exceção, são banais: paz, amor, liberdade; o valor excepcional é a racionalidade
emancipatória capaz de justificar a resistência à opressão e construir uma sociedade livre da
competitividade desenfreada. Quem não gosta de paz, amor e liberdade? E o que o conceito
de racionalidade tem a ver com isso? Críticos apontam que a mera declaração desses valores é
insuficiente, tanto praticamente quanto filosoficamente. Se não soubermos como realizá-los
ou como justificá-los filosoficamente não teremos avançado muito.
Mas seria essa avaliação desfavorável do programa de Marcuse justa? Penso que não.
Bem precocemente, Marcuse postulou uma justificativa ontológica não usual de valores. Em
sua conferência inaugural, de 1966, sobre “The Rationality of Phylosophy” (A racionalidade
da Filosofia), encomendada para ser ministrada na Universidade da Califórnia, Marcuse
argumenta que a Filosofia surge dos problemas e contradições dos filósofos de Lebenswelt3.
Esta palavra alemã significa literalmente o “mundo da vida”. Ela foi introduzida na Filosofia
por um dos mais antigos professores de Marcuse, Edmund Husserl, o fundador da tradição
fenomenológica. Lebenswelt é o mundo da experiência vivida, o que Marcuse chama
“experiência não-purgada, não-mutilada”, em contraste com a noção restrita que subjaz as
ciências naturais4. Experiência, nesse sentido, inclui mais do que fatos empíricos. Está repleta
de valores que são sentidos à medida que ocorrem. Embora ele tenha falhado em desenvolver
uma ontologia fenomenológica explícita, a referência a Lebenswelt não é inocente; indica a
contínua influência da Fenomenologia5.
A interpretação de Marcuse, lida com profundidade, explicita sua ideia de logos da vida.
O logos pertence a uma experiência de mundo a qual, Marcuse argumenta, consiste não
apenas em fatos, mas também em potenciais valorativos que conduzem seu desenvolvimento
histórico. Mas o que tem o logos a ver com a vida? O conceito grego de logos significa
discurso, razão, mas também a racionalidade da atividade humana, especialmente atividade
técnica. Em Górgias, de Platão, por exemplo, o autêntico artesão é mencionado como alguém
guiado pelo logos. O médico é guiado pelo logos em nome da saúde, e assim por diante. O
2
Herbert Marcuse, “Liberation from the Affluent Society,” in The Dialectics of Liberation ed. David Cooper
(Harmondsworth/Baltimore: Penguin, 1968, 175-6.)
3
Herbert Marcuse, “The Rationality of Philosophy,” in Transvaluation of Values and Radical Social Change,
eds. Peter-Erwin Jansen, Sarah Surak, and Charles Reitz. (International Herbert Marcuse Society, 2017), 2. This
interesting lecture was a justification of philosophy to a new faculty that was predominantly scientific.
4
Ibid., 15.
5
Marcuse’s most explicit discussion of phenomenology is in Herbert Marcuse, “On Science and
Phenomenology,” in Boston Studies in the Philosophy of Science, vol. 2, 1965, 279-290. He summarizes
approvingly The Crisis of the European Sciences, especially Husserl’s critique of the naturalistic ontology based
on the natural sciences, but objects that Husserl’s transcendental subjectivity abstracts from history and the role
of action in the Lebenswelt. The “constituent subjectivity” of modern capitalist society is not transcendental but
all too material (289).
4
logos não é simplesmente um fim extrínseco dotado de meios neutros, mas formata os meios
internamente. Toda ferramenta e gesto do artesão são povoados por uma proposta que
pertencem à natureza do artesanato. Meios neutros, indiferentes a qualquer fim apropriado,
são empregados por falseadores, tais quais os oradores e autointitulados artistas, os quais
lucram por meio do simulacro das realizações da legislação moral e de exercícios salutares 6.
Por meio dessa compreensão de logos, há um princípio normativo, um “vir a ser”, o
qual transcende os fatos mencionados. Marcuse descreve essa relação entre “ser” e “vir a ser”
com seu conceito de ontologia bidimensional, uma primeira dimensão dos fatos empíricos e
uma segunda dimensão valorativa das potencialidades. A racionalidade técnico-científica
desnuda o mundo experienciado de seus conteúdos, das “qualidades secundárias”. O
Empirismo aceita essa versão de desnudamento do mundo como ontologicamente
fundamental. Os conceitos por meio dos quais o mundo é entendido são similarmente
restritos, tratados como uma simples soma ou apenas uma média de ideias específicas.
Marcuse rejeita essa ontologia “unidimensional”. A experiência, como é entendida
fenomenologicamente, possui um rico conteúdo perdido pelo reducionismo científico. Esse
conteúdo inclui o intervalo entre valores e fatos.
A transcendência da segunda dimensão valorativa não é absoluta; antes, o “vir a ser”
deve ser entendido como um potencial alcançável dos fatos apresentados. O modelo original
desse tipo de potencial é o crescimento orgânico. Coisas vivas apresentam um potencial
contido em si mesmas à medida que se desenvolvem. Esse potencial é real mesmo antes de
realizado. Nesse sentido, podemos dizer que potencial é um fenômeno objetivo. Numa cultura
tradicional, o logos da vida está na base da atividade técnica. O ofício é regulado por modelos
culturais seguros, os quais devem ser objetivos. A realização de um design assemelha-se ao
crescimento ajudado pela intervenção humana. Numa sociedade moderna, o potencial não é
nem natural nem tradicional, mas deve ser projetado pela imaginação coletiva.
A projeção anima o esforço para um mundo melhor. Os seres humanos são os únicos
cujo desenvolvimento é contingente a alguma extensão dos seus próprios esforços. A
realização do potencial humano não é simplesmente espontânea, mas implica uma prática que
pode ser exercitada mais ou menos de acordo com suas habilidades. O ser humano precisa
realizar sua própria essência através de sua prática. Essa prática é inerentemente social e suas
consequências são chamadas “História”
Mas a prática histórica não é uma construção com uma meta definida, um logos como
Platão entendeu o termo. Qual o sentido que isso faz então ao pensar a vida humana como um
movimento em direção a um objetivo final de qualquer tipo? O que distingue “potencial” de
qualquer velha mudança, incluindo mudanças que todos condenariam? Essas são questões
realmente difíceis que surgem na abordagem ontológica de Marcuse. Para respondê-las, nós
precisamos de uma ideia melhor sobre o que ele menciona acerca da dialética da vida.
Mundo e essência
6
Plato, Gorgias. W.C. Helmbold, trans. (Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1952).
5
definido de expressar suas vidas, um definido modo de vida. O modo como os indivíduos
expressam sua vida define quem são”7. Este tipo de ideia é geralmente interpretado
deterministicamente, como se houvesse uma dependência causal entre a vida social e os meios
de produção. Mas Marcuse compreende que Marx estava tentando realizar um argumento
filosófico mais interessante no que concerne à natureza do que os fenomenólogos chamam
“mundo”.
Seres humanos pertencem essencialmente ao mundo através de suas interações com
uma natureza em produção. Esse pertencimento essencial não é apenas causal e material, mas
também existencial. Envolve o significado do que é ser humano, participante de um certo
modo de existir8. A inseparabilidade entre o existir humano e o mundo contradiz as assertivas
cartesianas da Filosofia Moderna e abre uma reflexão filosófica às alternativas ontológicas
propostas por Hegel e Heiddegger. Nesse contexto, o valor aparece como uma dimensão do
existir, não se configurando meramente como objetivo. As várias discussões de Marcuse
sobre Hegel explicam essa ideia.
Hegel revolucionou o conceito de essência, herdado de Aristóteles. Em Aristóteles, a
essência de qualquer coisa repousa sobre sua aparência de algum modo inexplicado, como seu
telos. A essência preserva a coisa em contato com o ambiente o qual ela se relaciona apenas
externamente, acidentalmente. No caso das coisas vivas, elas contêm o potencial para o qual
se esforçam à medida que se desenvolvem.
Hegel rejeita o postulado metafísico aristotélico de uma essência interna atrás das
aparências. Em vez disso, procura uma explicação nas relações entre aspectos das coisas –
suas “aparências” – e suas relações com seus meios sociais, seu mundo, o qual deve ser
assimilado em si para continuar existindo. A estrutura dessas aparências e relações deve
produzir a essência através de tensões e intervalos que ambos habilitam a coisa a se reproduzir
por si mesma enquanto ocorrem mudanças acidentais; também abrem espaço a fontes internas
de desenvolvimento essencial9.
Hegel preserva a ideia central de Aristóteles: de acordo com seu conceito de essência, o
potencial não é uma meta extrínseca imposta por um sujeito, mas pertence à natureza das
coisas. Porém, há uma diferença: Hegel une a coisa às suas aparências e ao seu ambiente e
assim supera o conceito aristotélico de coisa como uma “substância” com uma essência
interna que é apenas relacionada às suas aparências e outras coisas10.
Antes de seu rompimento com Heiddegger, Marcuse interpreta o conceito hegeliano de
essência em termos do conceito heiddeggeriano de “estar-no-mundo”. Considerando
fenomenologicamente, mundos são espaços repletos de significado e, dessa forma, objetos
essencias da compreensão interpretativa; eles não são indiferentes à subjetividade, mas, ao
contrário, essencialmente ligados a ela. Como o significado e a interpretação do significado
pertencem um ao outro e não fazem sentido separados, então o sujeito e o objeto do mundo,
nesse sentido fenomenológico, pertencem um ao outro.
7
Karl Marx, "The German Ideology" in Writings of the Young Marx on Philosophy and Society, eds. Lloyd
Easton and Kurt Guddat. (New York, Doubleday, 1967), 409.
8
This unusual interpretation of historical materialism is explicitly developed in Marcuse’s early essay on
Dilthey. Herbert Marcuse, “Der Problem der geschichtlichen Wirklichkeit,” in Herbert Marcuse: Der deutsche
Künstlerroman Frühe Aufsätze. (Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1978), 480 n7, 483-485).
9
These ideas are presented in both Marcuse’s books on Hegel: Herbert Marcuse, Reason and Revolution: Hegel
and the Rise of Social Theory (Boston: Beacon, 1963); Herbert Marcuse, Hegel's Ontology and the Theory of
Historicity, trans. Seyla. Benhabib, (Cambridge, MA: MIT Press, 1987). See Andrew Feenberg, Heidegger &
Marcuse: The Catastrophe and Redemption of History. (New York: Routledge, 2005).
10
Marcuse, Hegel’s Ontology, 98-99.
6
acidental, como nós concebemos usualmente nas relações entre objetos físicos, mas internos,
implicando a existência desses termos relacionados uns aos outros.
Dessa forma, a vida possui uma estrutura similar ao conceito fenomenológico de
mundo. Ela existe como uma unidade de sujeito e objeto, organismo e ambiente, construídos
em torno do sujeito. Marcuse nos oferece uma árvore como exemplo: “ela é uma árvore em si
mesma (o que queremos designar substancialmente) a qual se move a si mesma sob uma gama
de condições próprias, não são as condições que se movem em torno da árvore” 13. Essa
descrição está de acordo com a noção de vida de Heiddegger, baseada em sua revisão
ontológica da distinção entre “Umwelt” e “Umgebung” de Jacob von Uexküll. “O organismo
não é algo independente, capaz de se adaptar a si mesmo. Ao contrário, adapta-se a um
ambiente particular, por assim dizer. O organismo pode se adaptar a um ambiente particular
apenas se houver abertura [...] isso pertence à sua essência [...]”14.
A partir de Hegel, Marcuse argumenta, o sujeito e seus objetos não são coisas no
sentido usual, mas são bifurcações numa atividade unificada que balanceia a ambos. Marcuse
conclui que sua “unidade original [...] primeiramente compreende o mundo dentro do mundo,
e [...] permite que ele aconteça como mundo”15. A essência descreve sua unidade
autorreprodutiva, a qual preserva a si mesma a partir das mudanças promovidas pelos
potenciais e então os faz “aparecer”, isso a constitui como objetiva, significativa.
Marxismo existencial
Tudo isso é um tanto abstrato, mas torna-se concreto quando Marcuse tem a
oportunidade de ler e refletir sobre os Manuscritos de Marx, de 1844. Decerto a teoria do
trabalho de Hegel sugere uma versão mais concreta de estar-no-mundo do que a descrição
fenomenológica de Heiddegger. Com Marx, um novo elemento é adicionado: necessidade. O
sujeito e o objeto se colocam numa relação de necessidade para suas satisfações. Essa relação,
Marx sugere, é “ontológica”, “essencial”. Os “sentimentos humanos, paixões, etc. não são
meramente características antropológicas num sentido estrito, mas são realmente afirmações
ontológicas do ser (natureza)”16. A unidade entre sujeito e objeto é agora mediada por uma
força motivadora concreta da produção e reprodução do “modo de vida”.
Mas como Marx mantém juntas as duas fases unificadas de sua versão de “mundo”?
Não estariam as existências humanas e suas necessidades situadas numa relação puramente
acidental com a natureza e com os meios de satisfação? Qual a conexão essencial entre
trabalho e matéria-bruta?
Essa unidade somente faz sentido onde necessidade e satisfação são interpretadas num
modelo de compreensão existencial. A necessidade se revela num mundo que possa satisfazê-
la. Eis um modo particular de compreender o mundo e não uma mera disposição fisiológica.
Sensação é o meio pelo qual a existência do trabalho humano encontra coisas como objeto de
trabalho. Esse encontro também é mais que físico. Os sentidos são “teoréticos na prática”,
13
Marcuse, Hegel’s Ontology, 99.
14
Martin Heidegger, The Fundamental Concepts of Metaphysics: World, Finitude, Solitude, trans. William. A.
MacNeill and Nicholas Walker (Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1995), 264. Von
Uexküll’s innovation was to consider the organism and its niche as essentially related. The organism does not
adapt to the natural environment in general but rather selects its environment, its world, from the infinite stuff of
nature.
15
Marcuse, Hegel’s Ontology, 13.
16
Karl Marx, "Economic and Philosophical Manuscripts," in Karl Marx: Early Writings, trans. and ed. Tom B.
Bottomore, (London: C. A. Watts, 1963), 189).
8
pelos quais Marx nos faz entender que são aptos a extrair significados de seus objetos 17. De
fato, o significado está relacionado diretamente com o trabalho, o qual se relaciona com o
mundo não imediatamente, mas por meio de seu potencial de satisfazer necessidades já
transformadas. Marx argumentará posteriormente que o mundo onde predomina o senso de
liberdade humana será mais rico e mais bonito do que aquele onde predominam os
participantes alienados do sistema capitalista.
Para Marx, a mútua dependência necessária da existência e seu mundo não é apenas
uma proposição especulativa. Ele não está satisfeito com a mera correlação teórica entre
necessidade e satisfação. Quão bom é o argumento filosófico quando na realidade inúmeras
necessidades estão insatisfeitas? A unidade necessidade-satisfação deve ser estabelecida tanto
na prática quanto teoricamente. A unidade sujeito-objeto implica uma norma porque a relação
pode ser mais ou menos preenchida. Onde a relação é totalmente preenchida, a existência
poderá expressar seu potencial, sua essência. Mas sob o capitalismo isso não é possível. A
alienação bloqueia esse preenchimento distorcendo a relação entre existência e natureza, mas
também distorce sua natureza íntima. Numa sociedade alienada, a existência é mutilada à
medida que suas dimensões e seus meios dependem disso.
Ao referir que os sentidos revelam os significados, Marx antecipa a Fenomenologia. De
fato, ele precisa de uma distinção fenomenológica entre o significado existencial, significado
das ações e existência objetiva, mas nenhuma dessas distinções podem ser formuladas na
Filosofia de seu tempo. Na sua revisão Manuscritos de Marx, de 1932, Marcuse oferece uma
interpretação não usual do conceito de “espécies de existência” a qual dá suporte à distinção
citada, mas não explicitamente formulada por Marx em 1844. Marcuse escreve que as
existências humanas são espécies de existências à medida que elas podem ser reconhecidas
como “espécies” de existência, ou seja, à medida que elas são capazes de formar conceitos
universais. “O trabalho, como uma ‘atividade da vida’ especificamente humana possui suas
raízes nessas ‘espécies de existência’ do homem; isso pressupõe a habilidade humana de
relacionar aspectos gerais a objetos e todas as possibilidades nela contidas” 18. É o que
podemos chamar de sensos “teórico-práticos”: o universal, tanto quanto o particular, dado
como uma possibilidade, é o primeiro revelado à sensação.
Na conferência “The Rationality of Philosophy”, Marcuse formula suas ideias sobre o
conceito exotérico do homem como um animal racional. Ele escreve que a Filosofia possui
uma “Verdade, que é a teoria exata do homem e da natureza como Teoria do universo
humano... O questionamento filosófico se situa sobre as condições às quais o homem pode
melhor preencher suas faculdades humanas e aspirações. Essas condições são objetivas
porque há algo em que a existência ‘humana’ (potencialmente) racional se encontra em certas
circunstâncias... O que permite o desenvolvimento de conceitos gerais com validade geral”19.
Somado a isso, o homem e o mundo formam um todo unificado no qual uma configuração
ótima permitiria a realização da essência racional humana, sua capacidade de formular
conceitos universais e assim se relacionar com “possibilidades”, potencialidades, ambas
humanas e materiais.
Aqui encontramos a última base ontológica da rejeição de Marcuse de um “sistema
falso”, em favor de uma “objetividade justificável” “um vir-a-ser”. Isso porque verdade e
17
Ibid., 160.
18
Herbert Marcuse, "New Sources on the Foundation of Historical Materialism," in Herbert Marcuse,
Heideggerian Marxism, eds. Richard Wolin and John Abromeit. (Lincoln and London: University Nebraska
Press, 2005), 96.
19
Marcuse, “The Rationality of Philosophy,” 4.
9
valor objetivo estão sob avaliação das sociedades. A configuração do todo unificado, o
“sistema” no qual existências humanas deparam-se com a natureza, vai além dos prós e
contras do uso da racionalidade como o maior potencial humano.
Por que a racionalidade é tão importante? Não é porque Marcuse demonstra um amor
intelectual pelo pensamento puro, mas porque a racionalidade é o nome dado à tradição
filosófica para a livre busca da essência das coisas. Essa busca transcende as reações
instintivas do sujeito assim como os limites do objeto compreendidos como simples coisas
triviais. Essa é a mais profunda implicação do conceito de mundo: acesso aos conceitos
universais permite ao sujeito se deparar com seu mundo e com sua totalidade. Assim “Razão e
Liberdade são idênticas”20.
Marcuse argumenta que a defesa da razão pertence ao “significado existencial da
verdade”21. Verdade não é simplesmente um fato cognitivo, mas situa o sujeito do
conhecimento moralmente, existencialmente. À medida que o sistema bloqueia
potencialidades em nome do progresso da racionalidade, o qual poderia ocorrer em prol de
suas próprias metas, ele pode ser julgado mau, “falso”, num nível existencial. Eis o caso do
capitalismo avançado. Ele arbitrariamente restringe o desenvolvimento humano, elimina a
escassez, ao mesmo tempo que permite o total florescimento da racionalidade como
propriedade exclusiva de uma pequena elite. Uma mudança radical nessa configuração do
todo é requerida imperativamente para realizar suas potencialidades.
A política de Marcuse segue essa concepção de essência normativa. A normatividade
aparece substancialmente na estrutura da experiência. Potencial não é apenas um constructo
teórico, mas aparece negativamente como oposto à violência e à destruição e a favor da
solidariedade e das esperanças utópicas. A experiência é então mais do que uma apreensão
dos fatos dados, as tão conhecidas “qualidades primárias”. A “expurgada” experiência do dia
a dia da Lebenswelt não faz esse tipo de distinção. Valor e fato estão fundidos numa
percepção cotidiana, não radicalmente separados como na reconstrução científica da
experiência pela proposta da pesquisa. De acordo com isso, o logos filosófico “é razão
teórica e prática numa só”22.
Marxismo freudiano
24
Gramsci expressed the shock of his generation of revolutionaries in an article published in 1917 entitled, “Una
rivoluzione contro il "Capitale"? https://digilander.libero.it/moses/gramsci05.html, accessed Sept. 3, 2018.
25
See the remarkable texts of Engels: Frederick Engels, "The Peasant Question in France and Germany," in Karl
Marx and Frederick Engels: Selected Works. (New York: International Publishers, 1969); Frederick Engels, The
Housing Question (Moscow: Progress Publishers, 1970).
12
energia libidinal e constroem largas unidades sociais e culturais. Isso é o que significa, para a
psiquê humana, adaptar-se à realidade.
Mas Marcuse questiona: o que é a realidade? Ela é essencialmente a mesma o tempo
todo? Não de acordo com a teoria marxista. A realidade à qual o Ego deve se adaptar é
radicalmente diferente, na sociedade de classe, se comparada ao comunismo primitivo das
tribos e ao comunismo futuro da sociedade rica construída com base nos ganhos do
capitalismo. Freud não aprecia essas descontinuidades e transformações na substância do real.
Obviamente, ele está atento ao progresso material, mas ele falha em ver que, além disso, uma
certa mudança social trará uma melhora qualitativa na relação do princípio do prazer com o
princípio da realidade. Essas diferenças do desenvolvimento social estão correlacionadas com
diferentes estruturas da psiquê, não apenas com diferentes degraus de repressão. Historicizar o
princípio de realidade de Freud é a chave da síntese de Marcuse.
Marcuse concorda com Freud no tocante ao fato de que a civilização requer repressão.
Mas a questão é um pouco maior. A resposta depende do grau de escassez. Em sociedades de
classe pobres os indivíduos devem conter os seus desejos porque os meios de satisfação estão
geralmente em falta. O grau de repressão interna e externa requeridos para manter a ordem
civil, nessa situação, é bastante alto. O capitalismo avançado produziu um tipo de pletora de
bens que a escassez não é, de forma alguma, razão para repressão. Ao contrário, uma relativa
escassez produzida pela organização social requer uma continuação da estrutura repressiva até
o ponto de a tecnologia se tornar obsoleta. Marcuse, além disso, distingue o que ele chama de
princípio de desempenho, a partir do princípio de realidade de Freud. Seus últimos escritos
identificam contenções naturais do prazer que apenas o avanço tecnológico pode superar,
enquanto o formador descreve contenções socialmente construídas, as quais devem ser
removidas pela mudança social. O princípio de desempenho alinha os indivíduos às
escassezes artificiais criadas pelo capitalismo avançado.
Correspondendo à diferença entre a renúncia mínima do desejo requerida pelo princípio
de realidade e o excesso imposto pelo princípio de desempenho, Marcuse distingue entre
repressão necessária e mais-repressão. O excesso representado pela mais-repressão pode ser
atribuído à ameaça de sobrevivência da civilização. Nesse ponto, a revolução pode ser
reconceitualizada, em termos freudianos, com o fim da mais-repressão e o princípio de
desempenho a ela associado. Esse novo conceito de revolução requer uma investigação mais
profunda da psiquê sob o capitalismo e seu futuro possível sob o socialismo.
Imaginação
algum, Marcuse reduz a liberdade à liberdade sexual. Ele reconhece que a vida civilizada
envolve muito mais além disso. O triunfo de Eros poderia não apenas liberar a sexualidade,
mas ir além da sexualidade, afetando o trabalho, a tecnologia, a atividade criativa e as
relações humanas.
Há quatro diferentes formulações para essa hipótese memorável de Eros e civilização.
— A revolução liberará o corpo para sua dedicação dessexualizadas ao trabalho. Toda a
superfície do corpo será erotizada e as formas perversas de comportamento sexual serão
condenadas numa sociedade de classe não-estigmatizada.
— A exclusão da Arte e, consequentemente, da imaginação de uma relação técnica com
a realidade será também superada numa sociedade socialista.
— Um novo conceito de razão, incorporado à imaginação, acompanhará as mudanças
sociais e econômicas trazidas pela revolução. Esse novo conceito de razão reconhecerá como
“real” a beleza da natureza e do ser humano, além de suas potencialidades sociais.
— A existência, por si mesma, será transformada. O mundo, a “realidade”, estará
presente como um objeto estético numa percepção erotizada.
Nos trechos a seguir, realizarei uma revisão dessas quatro consequências utópicas do
conceito marcuseano de revolução.
Sexualidade. A sexualidade na criança não é especializada, mas envolve o corpo todo.
Essa sexualidade polimorfa entra em conflito com o princípio de realidade. A sexualidade
genital emerge no adulto como um canal aceitável do desejo enquanto libera o corpo para o
trabalho. O corpo que trabalha busca o privilégio da sexualidade genital e da família
monogâmica sob uma autoridade paternal. Essas estruturas são historicamente contingentes,
dependentes do ajustamento da psiquê e da sociedade às condições de escassez e às regras de
classe. À medida que essas condições são eliminadas, suas consequências podem também ser
superadas. Assim, a revolução afetará não somente a vida social e econômica, mas também o
modo como os indivíduos entendem e vivem sua existência corpórea.
Marcuse interpreta essa mudança naquilo que pode unicamente ser descrito como uma
dupla provocação para o tempo em que ele estava escrevendo. O homem unidimensional e
Eros e civilização oferecem uma crítica da liberação sexual como um suplemento da
sociedade consumista e como uma reavaliação positiva da perversão sexual.
No período posterior à Segunda Guerra Mundial, ocorre uma mudança de uma
sociedade embasada no trabalho e na renúncia para uma sociedade consumista que revelou
gasto excessivo enquanto canalizou a sexualidade para as fronteiras da velha moralidade.
Assim, a liberação da repressão foi bloqueada tanto quanto foi reprimida a emancipação
social num sentido amplo, focando-se num consumo individual e numa sexualidade genital.
Essas limitações permitiram ao capitalismo instrumentalizar a mudança, unindo os indivíduos
de forma cada vez mais estreita ao sistema por meio de seus investimentos libidinais. Em O
homem unidimensional, Marcuse determinou esse fato “dessublimação repressiva”, o retorno
parcial das energias libidinais aos seus canais normais de satisfação sob condições que
estabilizam a sociedade existente.
O argumento de Eros e civilização é ainda mais iconoclástico. Para Freud, as perversões
devem, na maioria dos casos, estar confinadas à fantasia ou permanecer em segredo. As
manifestações perversas da sexualidade não guardam qualquer relação com a reprodução e
com as exigências da vida em família, conflitando-se com a vida civilizada. Mas Marcuse
argumenta que com a transformação do princípio de realidade, a sexualidade polimorfa
original pode retornar e as fantasias serem realizadas.
14
Atualmente, nós facilmente fazemos essa distinção citada por Marcuse nessa passagem.
O estigma atribuído ao comportamento sexual não-convencional regrediu a tal ponto que os
comerciais rotineiramente exibem, direta ou indiretamente, cenas referindo-se à atividade
sadomasoquista, as quais eram inimagináveis nas bem-educadas companhias de 1955. O
espírito de São Francisco se espalhou amplamente nos anos mais recentes e resultou na
legalização de praticamente todas as formas de sexualidade. Mas o argumento de Marcuse
não é sobre direitos civis ou tolerância, os quais devem ser considerados fora de questão nesse
momento. Ele mira uma questão filosófica fundamental, nomeadamente, o modo de existência
implicado em variadas formas de expressão sexual, o que é ser humano e o que é possuir um
corpo.
A revisão da obra de Sartre, de 1948, intitulada Being and nothingness antecipa essa
conclusão. Ele nota que no desejo sexual a pessoa, de modo algum, é forçada a papéis
radicalmente separados de reificação da consciência e de reificação do objeto. O intervalo
entre sujeito e objeto é superado pela carência que o corpo exibe em seu engajamento num
sistema instrumental do mundo social e revela isso como pura “sensualidade”. “A ‘attitude
désirante’ então revela (a possibilidade de) um mundo no qual o indivíduo está em completa
harmonia com o todo...”27. A sexualidade é um emblema da liberdade excluída no princípio da
ontologia sartreana, mas, Marcuse argumenta, realizável por meio da revolução.
Estética. Marcuse nota que o conceito de estética é ambíguo, cruzando a linha entre
percepção e expressão artística. A Arte apresenta objetos sensuais em sua forma ideal,
exibidas por características contingentes que contradizem sua essência. Nesse sentido, a
estética é uma faculdade cognitiva. Ela oferece “uma síntese, ressaltando os pontos e
fragmentos nos quais pode ser encontrada uma distorção da humanidade e da natureza. Esse
material recolhido tornou-se o domínio da imaginação, ele foi sancionado por sociedades
repressivas a partir da Arte”28. Marcuse argumenta que, numa sociedade não-repressiva, uma
racionalidade de modo algum confinada ao ajustamento e à sobrevivência pode realizar a
estética na realidade. Isso se torna o tema central em sua projeção de uma ciência e de uma
tecnologia reconstruídas sob o socialismo.
26
Marcuse, Eros and Civilization, 203.
27
Herbert Marcuse, “Sartre’s Existentialism,” in The Essential Marcuse: Selected Writings of Philosopher and
Social Critic Herbert Marcuse, eds. Andrew Feenberg and William Leiss. (Boston, Beacon: 2007), 150.
28
Marcuse, Counter-Revolution and Revolt, 70.
15
29
Marx, “Economic and Philosophical Manuscripts,” 128.
30
Marcuse, Eros and Civilization, 224.
31
Ibid., 165-166.
16
Existência. O senso comum nos diz que a realidade é uma somatória de fatos, as coisas
que percebemos no mundo em suas realidades independentes. Nós não nos damos conta de
nossa atitude diante das coisas como um aspecto da sua existência, mas atribuímos isso ao
estatuto da nossa psiquê. Existir é independente da subjetividade. Essa visão do senso comum
é compatível com a atitude científica, mas ela deixa de lado grande parte do conteúdo da
experiência, incluindo os objetivos correlacionados às categorias freudianas de Eros e
Thanatos. De acordo com Marcuse, esses não são impulsos meramente subjetivos, mas
refletem aspectos da existência por si mesma.
E apenas como ele ontologiza a teoria social de Marx, também a metapsicologia de
Freud se torna a base para uma ontologia. Marcuse argumenta que a existência é uma marca
na história32. Ele introduz uma noção historicizada dos impulsos biológicos dentro de algo
como um “existir-no-mundo”33. Essa operação é complicada e obscura. Ela posiciona os
impulsos fundamentais como aspectos da realidade, não apenas da psiquê. Ele escreve: “Eros
transforma a existência”34.
Marcuse explicitamente deslinda Freud sob sua abordagem quasi-fenomenológica,
argumentando que “parece permissível empregar à concepção [de Freud] um significado
ontológico geral”35. Ele considera a relação erótica com a realidade como uma disposição
primordial. Ela privilegia a imaginação em detrimento de meros fatos dados. A natureza
aparece como um domínio de possibilidades correspondendo essencialmente à necessidade
humana pela beleza, paz e amor. E, seguindo o exemplo de Marx na discussão da necessidade,
Marcuse garante esses valores de forma e significado como um ampliado conceito de
racionalidade. Esse novo conceito de razão contém um aspecto normativo implícito. Por
extensão, a configuração da relação sujeito-objeto comporta o preenchimento das
necessidades humanas; isso é válido, “verdadeiro”, como ele explicou em sua contribuição na
conferência Dialectics of Liberation.
Freud poderia ter objetado que as necessidades humanas não possuem qualquer
privilégio na definição da natureza da realidade. Mas, ao contrário! A realidade, como
definida pela ciência natural, é indiferente à humanidade. A ênfase de Marcuse no papel
ontológico da experiência aparece para dissolver a realidade por meio da consciência. Mas
esse não é o argumento de Marcuse. Antes, ele segue a demonstração de Husserl de que a
estrutura e conceito da ciência natural incorporam aspectos de Lebenswelt. Não é a realidade
que é dissolvida na consciência, mas a consciência que esteve sempre pronta naquilo que
denominamos realidade, nas categorias e tipos básicos que definem o mundo como a Ciência
o entende36. Embora a existência, como é compreendida pelo naturalismo científico, é
supostamente independente da consciência, ela ainda pressupõe a consciência. A realidade
física é então entrelaçada com a subjetividade e não transcende a História. Marcuse escreve:
“as duas linhas ou aspectos da objetividade (física e histórica) estão interrelacionadas num
tipo de caminho no qual elas não podem ficar insuladas uma da outra; o aspecto histórico não
pode nunca ser eliminado tão radicalmente que apenas a ‘absoluta’ linha física prevaleça” 37.
32
For an account of the role of this “absolute historicism” in Western Marxism, see Andrew Feenberg, The
Philosophy of Praxis, (London: Verso, 2017).
33
Marcuse, An Essay on Liberation, 10 n.1.
34
Marcuse, Eros and Civilization, 171.
35
Marcuse, Eros and Civilization, 125.
36
Marcuse, “On Science and Phenomenology.”
37
Herbert Marcuse, One-Dimensional Man (Boston: Beacon, 1964), 218. Heidegger writes, “The independence
of things at hand from humans is not altered by the fact that this very independence as such is possible only if
humans exist. The being in themselves of things not only becomes unexplainable without the existence of
17
Tratar como meras ilusões todos esses aspectos da experiência que não se conformam à
representação científica é, assim, injustificável. A Ciência, por si mesma, está pautada por
algo mais fundamental e, dessa forma, não pode definir a existência. Num outro sentido,
Marcuse busca uma fonte diferente em Freud. Sua ontologia é baseada na ontologia de Freud
do narcisismo primário, entretanto ele vai além de Freud ao pensar na existência em seus
trabalhos sobre os impulsos instintuais. A experiência da criança, em princípio, “engloba o
‘ambiente’, integrando o Ego narcisista ao mundo objetivo” 38. Essa noção, que em Freud
descreve um estado psicológico primitivo, torna-se a chave para Marcuse, compreendendo
que a metapsicologia esconde uma ontologia esperando ser desenvolvida. Eros revelaria um
mundo em sua beleza como algo essencialmente correlacionado ao desejo humano.
esse aspecto na composição de seu livro para simplesmente contornar a objeção que a
Psicologia não necessitaria de implicações ontológicas. Nesse ponto, ele seguiu a Marx, o
qual realizou um argumento similar em 1844, escrevendo que sentimentos e paixões “são
afirmações realmente ontológicas da existência (natureza)”45.
O salto possui suas fontes e suas justificativas numa reconstrução metacrítica das
categorias abstratas da Filosofia na realidade social. Esse projeto começa com os Manuscritos
de Marx, de 1844, e é revisitado por Lukács em História e consciência de classe, continuando
com a Escola de Frankfurt. O argumento de Marcuse sobre o narcisismo endereça-se à
“antinomia do sujeito e do objeto”, cuja Filosofia alemã clássica atentou-se para superar o
nível puramente teórico. Marcuse apresenta os conceitos de sujeito e objeto, com os pés no
chão, a partir das pesquisas que ele encontrou em Freud, enquanto continuou a lidar com sua
cisão como um problema filosófico a ser superado46.
Marcuse projeta essa cisão e sua resolução a partir dos impulsos freudianos. Eros, então,
aparece no mundo como um estruturado princípio de realidade, não apenas da psiquê; o
mesmo é verdadeiro para Thanatos. A beleza, como se manifesta nos objetos da experiência, é
o objetivo correlato do impulso erótico, o qual desempenha o papel do sujeito filosófico. O
alcançar de uma vida afirmativa num mundo social não é então justificado normativamente,
mas também, resolve a antinomia fundamental da filosofia. Marcuse vai ainda mais adiante ao
sugerir que Kant poderia ter considerado uma forma de intuição da beleza por meio das
intuições do espaço e do tempo 47. Na próxima seção, considerarei o papel que a tecnologia
exerce como correlata de Thanatos.
Tecnologia
Embora ele não descreva um objeto do impulso de morte que corresponda a toda beleza
que ele apresenta no instinto de vida, a destruição e a violência certamente se qualificariam
como correlatas. Mas há uma mais surpreendente correlação sugerida pela noção de que a
tecnologia corresponde ao instinto destrutivo. Essa noção está mais uma vez relacionada à
resposta de Marcuse a Heiddegger.
Em seus últimos trabalhos, Heiddegger descreve o modo de revelar os tempos modernos
como “tecnologia”. Com isso, ele explica que o mundo apresenta a si mesmo como uma vasta
somatória de recursos técnicos. A visão de Marcuse de capitalismo avançado é bastante
similar. Em O homem unidimensional, ele escreve, “quando a técnica se torna a forma
universal da produção material, ela circunscreve inteiramente a cultura; ela projeta uma
totalidade histórica – um ‘mundo’”48. Mas, a despeito de Heiddegger, e sua rarefeita
concepção de “enquadramento” como um estágio na história da existência, Marcuse enxerga
essa condição como uma expressão do instinto de morte. Ele se apoia em Freud na explicação
dos modos de existência da agressão e violência tecnológicas. Uma simples obsessão com o
controle instrumental é insuficiente para explicar o mundo onde muitos morrem em guerras
sem sentido e no qual a paz é mantida como uma estratégia que assegura a destruição. O
45
Marx, “Economic and Philosophical Manuscripts,” 189.
46
For an account of this concept of meta-critique, see Feenberg, The Philosophy of Praxis, 11-15.
47
Marcuse, An Essay on Liberation, 32.
48
Marcuse, One-Dimensional Man, 154 This comment appears in a discussion provoked by Heidegger’s
philosophy of technology.
19
49
Habermas recognizes this surreptitious connection between Freud and Heidegger in Marcuse’s thought. Jürgen
Habermas, Antworten auf Herbert Marcuse. (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1968), 10-11).
50
Herbert Marcuse, Counter-Revolution and Revolt (Boston: Beacon, 1972), 69. I exaggerate, but Habermas did
claim that Marcuse belonged to a generation of thinkers who entertained the “secret hope” of establishing a
communicative relation to nature. Jürgen Habermas, "Technology and Science as Ideology," in Toward a
Rational Society; Student Protest, Science, and Politics, trans. Jeremy J. Shapiro (Boston: Beacon Press, 1970),
87-88.
51
Marcuse Counter-Revolution and Revolt, 66.
52
Ibid., 69
20
A memorável síntese que Marcuse realizou entre Marx e Freud foi severamente
criticada. Muitos dos críticos reclamaram que ele não foi fiel à doutrina real de Marx ou à de
Freud. Mas há uma crítica mais fundamental a qual eu responderei na conclusão. Ela consiste
na implausibilidade da projeção utópica de uma sociedade não-repressiva. Acaso esse tipo de
concepção não pressupõe, na melhor das hipóteses, uma visão da natureza humana
demasiadamente otimista e, na pior das hipóteses, uma prematura homogeneização da
sociedade sob uma falsa pretensão de unidade?
É verdade que a sociedade não-repressiva, imaginada por Marcuse, aparece como uma
provocação e chama a atenção precisamente para suas objeções. Ele intencionalmente desafia
as sóbrias avaliações sobre o potencial humano. Marcuse acreditava estar vivendo numa
sociedade doente. Ele certamente teria subscrito a observação de Freud: “Não haveria
justificativa em alcançar o diagnóstico que, sob influência da urgência cultural, algumas
civilizações, ou algumas épocas da civilização – possivelmente a totalidade do tipo humano –
haviam se tornado neuróticas?”53. O problema da comunicação do diagnóstico poderia ser
resolvido de apenas duas maneiras e Marcuse explorou a ambas: o distópico exagero dos
sintomas ou a descrição de um estado de utopia de saúde no qual se julga a condição presente.
Marcuse certamente visava o convencimento, mas ele parece acreditar ser igualmente
importante chocar seus leitores para que fossem além da complacência. Entretanto, sua
estratégia retórica não deveria nos distrair dos argumentos fortes e sensíveis que dão
sustentação à sua posição.
Marcuse está completamente atento às objeções elementares de seu posicionamento.
Para enumerá-las, ele precisa afirmar a possibilidade da individualidade e do conflito numa
sociedade não-repressiva. Além disso, ele deve postular um processo de aprendizagem no
qual a população faz progressos em direção à sociedade. O último capítulo de Eros e
civilização contém reflexões persuasivas dessas matérias.
Em determinados pontos essa questão vai além. É óbvio que o retorno a um princípio do
prazer infantil é incompatível com a vida civilizada, certamente com a vida em si mesma. Mas
Marcuse não está falando de um retorno ao útero nem da condição da união da criança à sua
mãe. Aqui se encontram argumentos minimamente humanos que não atingem sua meta. Ele
explicitamente exclui esse tipo de interpretação do conceito de sociedade não-repressiva.
Nesse sentido, sua sociedade não-repressiva pertence a um continuum a partir da existência de
uma sociedade repressiva e, talvez, pudesse ser chamada “uma sociedade menos repressiva”.
Essa versão modesta de sua tese é obscura pela invocação frequente de uma revolução
total. Mas essa revolução conduziria unicamente a uma redução drástica no nível da
repressão, mas não sua abolição. A agressão poderia não desaparecer, mas seria melhor
controlada por Eros, a qual estaria essencialmente emaranhada nas teorias tanto de Freud
quanto de Marcuse. Embora essa interpretação de Marcuse traga-o próximo a Freud, existe
uma diferença importante: a revolução de Marcuse altera a estrutura de personalidade no
sentido de que diminui a agressão na mesma medida que diminui a repressão. Freud imagina
ser isso impossível54. Ele argumenta que o progresso da civilização está necessariamente
associado ao aumento da repressão, assim como à expansão do flagelo da neurose.
Marcuse reconhece que o principal fator da individualidade humana requer algum grau
de repressão. Em O mal-estar na civilização Freud nota que a abolição da propriedade privada
53
Freud, Civilization and Its Discontents, 91.
54
Ibid. 90.
21
poderia ser desejável – Marcuse certamente concordaria – mas não eliminaria o conflito
acerca das escolhas sexuais55. Marcuse assume esse ponto de vista o qual ele relaciona às
inerentes diferenças entre as individualidades e os conflitos delas resultantes. Numa sociedade
livre, ele escreve: “os homens realmente existiriam como indivíduos, cada um moldando sua
própria vida; eles encarariam uns aos outros realmente a partir de diferentes necessidades e
diferentes modos de satisfação [...] a ascensão do princípio do prazer poderia então engendrar
antagonismos, dores e frustrações – conflitos individuais na luta por gratificação”56.
Seria esse assentimento incompatível com a visão esperançosa de Marcuse? Em
Dialética do Esclarecimento, Horkheimer e Adorno distinguem o prazer humano da
satisfação animal pela presença de proibições e de suas superações 57. A posição hegeliana
situa-se no fato de que o prazer humano resulta de uma satisfação de desejos os quais foram
concebidos como tais, eles são “refletidos” mais do que reflexivos. Marcuse concorda com ele
e adiciona que o esforço contra obstáculos é, em si mesmo, um aspecto da “racionalidade da
gratificação”58. Ele sugere a possibilidade de uma “moralidade libidinal” baseada não apenas
na introjeção da repressão externa, o Superego, mas nas inúmeras requisições que envolvem o
fato de possuir prazer.
Isso nos parece uma noção estranha. A justificativa quasi-freudiana de Marcuse a esse
respeito parece pouco convincente, mas existe uma ideia central no senso comum a qual ele
chama moralidade libidinal: a satisfação do desejo é algo bem maior, onde obstáculos são
superados e o valor do objeto e da virtude no sujeito é então confirmada. Isso é real
especialmente nas relações pessoais. O desafio se encontra na essência e está implicado no
respeito ao outro. Mas cria um risco de falhar e requer do indivíduo aceitar a contingência da
satisfação mesmo na sociedade menos repressiva. Num tipo de sociedade na qual estes termos
não provocariam violência ou esforço para dominação: “Uma sociedade sem conflitos seria
uma ideia utópica, mas a ideia de uma sociedade na qual os conflitos evidentemente existem
mas podem ser resolvidos sem opressão ou crueldade é, em minha opinião, uma ideia não-
utópica”59.
Finalmente, a questão recai sobre como indivíduos em uma “sociedade afluente”
poderiam entender sua situação. Eis o dilema da primeira geração que ainda preocupa
filósofos do Esclarecimento, especialmente Rousseau. Ele pensou sobre como a população
corrompida por um governo aristocrático poderia aprender sobre os elementos de uma
civilização virtuosa, requerida por uma sociedade livre. A formulação de Marcuse desse
dilema resolve igualmente o papel problemático da necessidade em sua transição entre formas
de sociedade. A revolução numa “sociedade afluente” deveria ser motivada por novas
necessidades, as quais não seriam satisfeitas pela existência de um sistema repressivo, mas
apenas uma sociedade não-repressiva seria capaz de instituir esse tipo de necessidades.
Em Eros e civilização Marcuse nota que a ditadura educacional seria uma resposta
razoável a esse dilema no início dos tempos, mas de forma alguma atualmente. “A resposta se
tornou obsoleta: o conhecimento dos meios de avaliação para a criação de uma existência
humana em todos os sentidos não está, de modo algum, confinada a uma elite privilegiada [...]
55
Ibid., 90, 60-61.
56
Marcuse, Eros and Civilization, 227-228.
57
Max Horkheimer and Theodor Adorno, Dialectic of Enlightenment. trans. Gunzelin S. Noerr, ed., Edmund
Jephcott. (Stanford, Stanford University Press, 2002), 82.
58
Marcuse, Eros and Civilization, 228.
59
Herbert Marcuse, “The End of Utopia,” in Five Lectures, trans. Jeremy Shapiro and Sherry Weber. (Boston,
Beacon: 1970), 79. In this text, exceptionally, Marcuse distinguishes between impractical utopias and
progressive social change. The point, however, is clear.
22
a distinção entre autoridade racional e irracional, entre repressão e mais-repressão, pode ser
realizada e verificada pelos próprios indivíduos” 60. Mas o processo é bloqueado por uma
manipulação de necessidades às quais a população está submetida. Não obstante, pelo menos
em princípio, um processo de tentativa e erro que engajasse a população poderia fazer surgir
melhores prioridades e alternativas racionais da existência em sociedade.
Posteriormente, a emergência da Nova Esquerda permitiu matéria política para sua
projeção esperançosa. Uma ulterior geração de esforços políticos em torno de temas como
direitos da mulher e do meio-ambiente confirmaram a possibilidade do princípio de um tipo
de processo de aprendizagem. Marcuse argumentaria que esses movimentos representam Eros
na sua ascensão. Embora melodramática, sua visão poderia representar que a política, em
último caso, consiste numa luta entre a vida e a morte. A ilusão de que isso é matéria do
desacordo racional é periodicamente rompida por um retorno brutal à realidade da
destrutividade humana. O Oeste está vivendo algo próximo de um choque atualmente, mas,
sem dúvida, observadores de regiões menos afortunadas continuam a imitá-lo. O mal-estar na
civilização, de Freud, propôs uma explanação teórica dessa realidade. Marcuse atentou para a
justiça da teoria de Freud enquanto encontrou terreno para esforços acerca de um mundo
melhor. Ele é certamente um dos mais importantes teóricos nesse sentido.
60
Marcuse, Eros and Civilization, 225.