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THEREZA DE JESUS SANTOS JUNQUEIRA

DA SUBJETIVIDADE À INTERSUBJETIVIDADE: UM ESTUDO


SOBRE O “MÉTODO HISTÓRICO-HERMENÊUTICO” DE
JÜRGEN HABERMAS

1
SUMÁRIO

Introdução ...................................................................................................... 4
Entre objetivismo e subjetividade ..................................................................6
Habermas e a crítica ao positivismo .............................................................. 7
O “método histórico-hermenêutico” ............................................................10
A subjetividade em Boaventura de Sousa Santos ....................................... 13
O sujeito interpretante e a intersubjetividade .............................................. 14
Conclusões ................................................................................................... 15
Referências Bibliográficas ...........................................................................17

2
As raízes da árvore
rebentam
nesta página
inesperadamente,
por um motivo
obscuro
ou sem nenhum motivo,
invadem o poema
e estalam
monstruosas
buscando qualquer coisa
que está
em estratos fundos.

Árvore, Carlos de Oliveira

3
Introdução

A investigação científica é vista na modernidade como um dos meios mais confiáveis


para o desenvolvimento de conhecimentos, e a objetividade é tida por muitos como uma
de suas características primordiais1. O racionalismo de Descartes, o empirismo de
Bacon e o positivismo de Comte, em suas origens, bem como em suas reconstruções
posteriores, afastam a influência de julgamentos subjetivos, os quais comprometeriam a
confiabilidade da ciência, uma vez que inviabilizariam a possibilidade de comprovação
dos resultados obtidos com a pesquisa.

De acordo com Durkheim2, partidário do positivismo científico, problemas que


conduzem a julgamentos morais acabam por invalidar o esforço científico, uma vez que
a objetividade é preterida. Para o autor, os julgamentos morais podem ser estudados,
desde que através de critérios objetivos, desde que sejam tomados por fatos ou coisas.

A subjetividade era então vista como o “outro”, o “oposto” do trabalho científico, na


medida em que era identificada com os desejos, intuições, tudo tido por irracional.

Ocorre que o próprio Descartes3, fundador do racionalismo cartesiano, escreve um


“discurso”. É certo que seu propósito é extrair das ciências matemáticas (que ele
identifica com o exercício racional) um método que permita alcançar a mesma certeza
em todas as ciências. O método é a ordem que o pensamento deve seguir. Mas é curioso
confrontar o método procurado por Descartes, com o discurso escrito em primeira
pessoa, como se o método já pressupusesse um sujeito observador, embora este seja
desprezado.

Na primeira parte do “Discurso do Método” Descartes fala da universalidade da razão,


ao contrário do espírito, e de seu olhar sobre o mundo e de como ele resolveu olhar para
si mesmo4:

1
CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? Tradução de Raul Filker. Editora Brasiliense, 1993.
2
DURKHEIM, ÉMILE. As regras do método sociológico. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz.
12. Ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1985.
3
DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão.
São Paulo: Martins Fontes, 2009.
4
Ibidem, p.19.
4
Mas, depois de ter empregado alguns anos estudando assim no livro do
mundo e procurando adquirir alguma experiência, tomei um dia a resolução
de estudar também a mim mesmo e de empregar todas as forças de meu
espírito escolhendo os caminhos que deveria seguir. O que me deu melhor
resultado, ao que me parece, do que se nunca me tivesse afastado de meu
país, nem de meus livros.

Antes disso o autor alerta para a utilidade de estudos desenvolvidos com interesse (o
que soa até contraditório com seu método), de modo que o pesquisador possa avaliar
pessoalmente as consequências de suas conclusões5:

Pois me parecia que poderia encontrar muito mais verdade nos raciocínios que
cada qual faz sobre os assuntos que lhe dizem respeito, e cujo desfecho deve
puni-lo logo depois, se julgou mal, do que naqueles que um homem de letras
faz em seu gabinete, sobre especulações que não produzem nenhum efeito, e
que não terão outra conseqüência a não ser, talvez, a de que extrairá delas tanto
mais vaidade quanto mais afastadas estiverem do senso comum, pelo fato de
ter tido de empregar tanto mais espírito e artifício para torná-las verossímeis. E
eu tinha sempre um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do
falso, e caminhar com segurança nesta vida.

As críticas falsificacionistas de Popper6 ao indutivismo, que consideram a precedência


de uma teoria à observação, já incorporam expressamente a subjetividade, na medida
que os problemas são escolhidos pelos observadores. E os problemas são os pontos de
partida de toda investigação científica.

Assim, pensar a subjetividade implicada na pesquisa pode iluminar o lugar de quem fala,
e contribuir com a constatação de sua multiplicidade, ao contrário de seu rotineiro
silenciamento, que já construiu tantos a prioris de unicidade e etnocentrismo7.

5
DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão.
São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.18-19.
6
POPPER, Karl. A lógica das ciências sociais. 3. ed. Tradução Estevam Rezende Martins. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2004.
7
ACHUGAR, Hugo. Imagens da integração. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1997.
5
Entre objetivismo e subjetividade

A subjetividade pressupõe uma multiplicidade de sentidos para as coisas/ textos e


permite que se fale em escolhas: “Cada intérprete realiza um sentido diverso” 8, pontua
Janine Resende Rocha. Com isso, o sujeito interpretante ganha destaque e precisa ser
problematizado. De acordo com Habermas, “o mundo do sentido transmitido abre-se ao
intérprete só na medida em que ao mesmo tempo aí se elucida o seu próprio mundo.”9

Pensar a subjetividade na pesquisa jurídica, por sua vez, pode oferecer condições para
apontar um querer próprio dentro dos estudos jurídicos, que não seja irrefletidamente
comprometido com a reprodução de dogmas e maquinários.

Habermas10 identifica uma crítica mais sofisticada do objetivismo à subjetividade ou


interesse, que pretende superar, a qual considera que os julgamentos pessoais estão
muitas vezes impregnados de ideologias, ou idéias irrefletidamente assumidas como
próprias. Nesse sentido é esclarecedora a referência de Warat11 a respeito dos desejos
criados pelo capitalismo: “O capitalismo, para acomodar os indivíduos em seu proveito,
impõe modelos de desejo. Assim, circulam modelos de infância, de pai, de casamento,
todos construídos em nome do dever e da verdade.”

Mas será que a subjetividade resiste à ideologia (ou aos desejos criados pelo capitalismo,
ou como prefere Habermas, ao irrefletido instinto de auto-conservação social)?

Deleuze12, em obra dedicada à filosofia de Foucault oferece esclarecedoras


contribuições: “Haverá sempre uma relação consigo que resiste aos códigos e aos

8
ROCHA, Janine Resende. Limites do sentido: hermenêutica literária e o papel do leitor na
contemporaneidade. 2009. Dissertação apresentada à Faculdade de Letras da UFMG. Programa de Pós-
graduação em letras: estudos literários.
9
HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como ideologia. Reimpressão. Tradução de Artur Mourão.
Lisboa: Edições 70, 2009, p.139.
10
Ibidem. p.141.
11
WARAT, Luis Alberto. Territórios desconhecidos: a procura surrealista pelos lugares do
abandono do sentido e da reconstrução da subjetividade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.
12
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant´Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2005, p.
111.
6
poderes; a relação consigo é inclusive, uma das origens desses pontos de resistência
(...)”. Continua o autor13:

A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas
formas atuais de sujeição, uma que consiste em nos individualizar de acordo
com as exigências do poder, outra que consiste em ligar cada indivíduo a
uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas.
A luta pela subjetividade se apresenta então como direito à diferença e
direito à variação, à metamorfose.

Habermas e a crítica ao positivismo

Habermas, em “Técnica e Ciência como ideologia”(1968)14, bem como em


“Conhecimento e interesse”(1968)15, realiza uma crítica ao positivismo, e ao
objetivismo que esta escola pretendia. O autor entende que este objetivismo sequer
pudesse ser atingido, uma vez que uma “teoria pura” é igualmente inatingível16:

A suspeita de objectivismo existe por causa da ilusão ontológica da pura


teoria, que as ciências, após a eliminação dos elementos formativos, ainda
partilham enganadoramente com a tradição filosófica.

A separação entre “conhecimento” e “interesse” (ou a “distinção entre proposições


descritivas e normativas”17) operacionada pelo Positivismo acaba por ser um equívoco,
da mesma forma que o objetivismo18:

Juntamente com Husserl, chamamos objectivista a uma atitude que relaciona


ingenuamente os enunciados teóricos com os estados de coisas. Semelhante
atitude considera as relações entre grandezas empíricas, que são
representadas em proposições teóricas, como algo existente em si; e, ao
mesmo tempo, suprime o enquadramento transcendental, dentro do qual
apenas se constitui o sentido de tais proposições. Logo que se entende que as

13
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant´Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2005, p.
113.
14
HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como ideologia. Reimpressão. Tradução de Artur Mourão.
Lisboa: Edições 70, 2009.
15
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Tradução e introdução de José N. Heck. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1982.
16
HABERMAS, Jürgen. Opus Cit. p.136.
17
Ibidem. p.132.
18
Ibidem. p.136.
7
proposições são relativas ao sistema de referência previamente nelas posto, a
ilusão objectivista desfaz-se e liberta o olhar para um interesse que dirige o
conhecimento.

Em “Conhecimento e interesse” o autor elucida a noção de “interesse”, ou “interesse


emancipatório”, visto como algo inerente ao processo de autoconstituição da espécie
humana. Habermas apresenta o interesse pelo conhecimento como uma pulsão latente
que deve ser revelada, em contraposição ao que realizou o Positivismo ao desconsiderar
o sujeito em favor do objeto. Não se trata de dissecar e testar um fato ou objeto, mas
refletir sobre ele em nosso contexto de vida.

O autor parte de Kant, quem resolve o embate que existia entre o racionalismo
dogmático e o empirismo com a noção de “fenômeno”. Kant restringe os limites do
conhecimento humano ao “fenômeno”, ou seja uma “experiência” que pressupõe o
sujeito observador, ou a coisa que aparece para cada um. Este o limite do conhecimento,
pois o intelecto não chega à “coisa em si”.

Mas Habermas o critica, por separar a “razão especulativa/ pura” da “razão prática”, e
assim acabar por cair em um solipsismo, a justificar que o conhecimento seja possível a
priori, nos emparedamentos da razão. Para que haja um interesse cognitivo é preciso
conectar a razão especulativa com a razão prática19. Veja a síntese de Freitag20:

A razão teórica e a razão prática não podem ser desmembradas e fechadas


em dois compartimentos estanques, ocupando-se uma do conhecimento
científico das ciências naturais e tecnológicas e a outra, com a metafísica dos
costumes (ou seja, a esfera da interação onde há acúmulo e aproveitamento
do conhecimento). (...) Um conceito síntese de razão, associado ao interesse
emancipatório está implícito nos trabalhos de Habermas. É essa razão-
síntese que dá uma orientação normativa ao processo de formação da
espécie humana em seu esforço de autoconstituição.

Com a referência a Fichte, e sua crítica a Kant, Habermas enfatiza o papel do sujeito
para a síntese do conhecimento (com a devida crítica ao eu-absoluto): a intuição
intelectual seria então o ponto de interseção entre a razão especulativa e a prática.
19
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Tradução e introdução de José N. Heck. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1982, p.224.
20
FREITAG, Barbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005,
p.16.
8
O sujeito (das Ich) é para Fichte o ponto de partida de todo pensamento e demandaria o
objeto, não-eu (das Nicht-Ich). A mediação entre eles seria possível através do que ele
denomina Einbildungskraft, que pode ser traduzido por faculdade imaginativa, e revela
a capacidade criativa do sujeito.21

Mas Habermas não concorda com o “eu absoluto” de Fichte. O autor vale-se então da
reconstrução da teoria psicanalítica de Freud para resgatar a importância da história de
cada um, que move o interesse, bem como para ressaltar a interação intersubjetiva que
permite o conhecimento.

O autor vê na teoria e prática psicanalítica um esclarecimento da relação entre


conhecimento e interesse, uma vez que a patologia, vista como o interesse prático, é que
move os instrumentos da análise para a reconstrução da história. O eu interessado,
através da auto-reflexão, é levado, através da atuação do analista, a trazer para a
linguagem comum os fragmentos de vida perdidos na linguagem simbólica do sonho.

Com Freud, Habermas consegue então por em evidência, além do interesse pela
libertação como impulso inicial, o exercício crítico, auto-reflexivo, que evidencia
atitudes dogmáticas, repetidas irrefletidamente; bem como a intersubjetividade
implicada no conhecer 22. Analista e paciente atuam conjuntamente na reconstrução dos
fragmentos de história, de modo que o “eu” do paciente é elaborado através da interação.
Na síntese de Freitag23: “a comunicação é impossível através desse código particular, já
que ele é incompreensível, não somente no contexto da interação intersubjetiva, mas
também incompreensível para o próprio Eu (...).”

O autor critica, todavia, a ênfase de Freud à prática, preterindo a teorização a respeito da


linguagem, que seria a base do exercício psicanalítico. Em obras posteriores, e com
vista a ressaltar a intersubjetividade suposta no conhecimento, Habermas desenvolve
melhor a importância do medium da linguagem.

21
BAUMANN, Barbara; OBERLE, Brigitta. Deutsche Literatur in Epoche. Max Hueber Verlag, 1996, p.128.
22
HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Tradução e introdução de José N. Heck. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1982, p.253.
23
FREITAG, Barbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005,
p.23.
9
Com isso percebe-se como o sujeito está implicado no objeto (história). Este último não
existe sem o sujeito que lhe atribui sentido: “O sujeito da compreensão estabelece uma
comunicação entre dois mundos; apreende o conteúdo objetivo do que é legado pela
tradição, ao aplicar esta última à sua própria situação.”24

O “método histórico-hermenêutico”

O autor propõe então um “método histórico-hermenêutico”, em oposição ao que seria o


“método empírico-analítico” do Positivismo25, o qual acaba por reduzir-se a meras
prescrições metodológicas. O exercício histórico-hermenêutico pressupõe a
universalidade da linguagem, e não se trata de prescrições ou instrumentos
manipuláveis para apreensão do saber, mas implica o trabalho interessado de cada
pesquisador, na medida em que, de acordo com Freitag, “o esforço de recomposição da
comunicação perdida ou desviada a ser corrigida tem que ser repetido, individual e
socialmente, em cada novo contexto histórico-social.” 26

O método empírico – analítico, escreve Habermas, compõe-se de regras para a


construção das teorias e para sua comprovação crítica. As teorias assim consistem em
“conexões hipotético-dedutivas”27:

Nas ciências empírico-analíticas, o sistema de referência, que pré-avalia o


sentido de possíveis proposições científico-experimentais, estabelece regras
não só para a construção de teorias, mas também para a sua comprovação
crítica. As teorias constam de conexões hipotético-dedutivas de proposições,
que permitem a derivação de hipóteses com conteúdo empírico. Tais
hipóteses deixam-se interpretar como enunciados sobre a covariância de
grandezas observáveis; sob condições iniciais dadas permitem prognósticos.
O saber empírico-analítico é, por conseguinte, um saber prognóstico
possível. Sem dúvida, o sentido de tais prognósticos, a saber, a sua

24
HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como ideologia. Reimpressão. Tradução de Artur Mourão.
Lisboa: Edições 70, 2009, p.139.
25
Ibidem. p.132 e 133.
26
FREITAG, Barbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005,
p.13.
27
HABERMAS, Jürgen. Opus Cit. p.137.
10
viabilidade técnica, deriva exclusivamente de regras segundo as quais
aplicamos as teorias à realidade.

Mas estas ciências propõe uma objetividade que sequer conseguem atingir, uma vez que
os fatos analisáveis só se tornam relevantes em razão de sua organização prévia. Trata-
se somente de um interesse diferente, qual seja, pelo controle e “segurança
informativa”28: “(...) a construção lógica dos sistemas de enunciados admissíveis e o
tipo das condições de comprovação sugerem a interpretação de que as teorias das
ciências experimentais desvendam a realidade sob a direção do interesse pela possível
segurança informativa e pela ampliação da ação de êxito controlado.”

Através do método histórico-hermenêutico, propõe Habermas um outro


“enquadramento metodológico”29, em que a patir de críticas e “preenximento de
lacunas”30 da comunicação é possível inferir novas conclusões. A partir da
“reconstituição reflexiva” de diferentes textos e interpretações é possível elaborar
conhecimento, ou seja definir passos para o futuro:

As ciências histórico-hermenêuticas obtêm os seus conhecimentos num


outro enquadramento metodológico. Aqui, o sentido da avaliação de
enunciados não se constitui no sistema de referência de disposição técnica.
As esferas da linguagem formalizadas e da experiência objetiva ainda não se
encontram diferenciadas; pois, nem as teorias estão já construídas de modo
dedutivo, nem as experiências se encontram organizadas em vista do êxito
das operações. Em vez da observação, é a compreensão de sentido que abre
o acesso aos factos. À comprovação sistemática das suposições legais além
existentes, corresponde aqui a interpretação de textos. Por isso, as regras da
hermenêutica determinam o sentido possível dos enunciados das ciências do
espírito.

O método ganha relevância para os pesquisadores do direito, ao constatar-se que na


contemporaneidade a criação racional do direito não é mais a questão central. Isso
porque o sentido das leis é que passou a ser problematizado. Texto legal e norma são
diferentes, e não podem ser entendidos como objetos expostos a dissecação. O texto só
28
HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como ideologia. Reimpressão. Tradução de Artur Mourão.
Lisboa: Edições 70, 2009, p.138.
29
Ibidem. p.138.
30
FREITAG, Barbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005,
p.12.
11
ganha sentido normativo através da atuação do intérprete. E o intérprete não está mais
encerrado em seu universo linguístico, como pretendia a racionalidade iluminista, mas
sim em permanente diálogo com o “mundo”.

Ao desenvolver seu método, Habermas apresenta cinco teses, com as quais demonstra
que o interesse que leva ao conhecimento está fundado na auto-reflexão, capaz de
distanciar o sujeito da ideologia da auto-conservação social, em favor dos impulsos
individuais, unindo assim o que foi separado pela ciência objetivista: “na força da auto-
reflexão, o conhecimento e o interesse são uma só coisa”31:

Assim, os interesses que guiam o conhecimento aderam às funções de um eu


que, nos processo de aprendizagem, se adapta às suas condições externas de
vida; que se exercita, mediante processos formativos, no nexo de
comunicação de um modo social da vida; e que constrói uma identidade no
conflito entre as pretensões dos impulsos e as coações sociais.

Esclarecedora a quinta tese, visto que sintetiza o percurso do autor a respeito do método
que apresenta: “a unidade de conhecimento e interesse verifica-se numa dialética que
reconstrói o suprimido a partir dos vestígios históricos do diálogo abafado”32.

Deleuze33, embora não escreva sobre o método em questão, acrescenta clareza à


proposta de Habermas, uma vez que reflete sobre o movimento do sujeito ao pensar o
passado:

Pensar o passado contra o presente, resistir ao presente, não para um retorno,


mas ‘em favor, espero, de um tempo que virá’ (Nietzsche), isto é, tornando o
passado ativo e presente fora, para que surja enfim algo novo, para que
pensar, sempre suceda ao pensamento. O pensamento pensa sua própria
história (passado), mas para se libertar do que ele pensa (presente) e poder,
enfim, ‘pensar de outra forma’ (futuro).

31
HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como ideologia. Reimpressão. Tradução de Artur Mourão.
Lisboa: Edições 70, 2009, p.143.
32
Ibidem. p.145.
33
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant´Anna Martins. São Paulo: Brasiliense, 2005, p.
127.
12
A subjetividade em Boaventura de Sousa Santos

Boaventura Sousa Santos34, por sua vez, além de criticar o monopólio da ciência para a
construção do conhecimento, segue caminho semelhante ao de Habermas, em busca dos
contornos do que ele denomina um “paradigma emergente” a partir da crítica do
paradigma positivista dominante, que afasta a subjetividade da discussão científica.

O autor assenta o antevisto “paradigma emergente” em quatro pilares: “1-Todo


conhecimento científico natural é científico social”; “2-Todo conhecimento é local e
total”; “3-Todo conhecimento é auto-conhecimento”; “4-Todo conhecimento visa a
constituir-se em senso comum”.

Dentre os quatro pilares interessa aqui sobremaneira o terceiro, na medida em que a


subjetividade é realçada como elemento indispensável ao processo de conhecimento35:

No paradigma emergente, o caráter autobiográfico e auto-referenciável da


ciência é plenamente assumido.(...) Hoje não se trata tanto de sobreviver
como de saber viver. Para isso é necessária uma outra forma de
conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe
e antes nos una pessoalmente ao que estudamos.

Boaventura considera então, além de outras possibilidades para o conhecimento, outros


métodos para a análise científica, dentre as quais a analogia, o que reflete o mundo de
quem se põe a conhecer, uma vez que permite ao pesquisador valer-se de seu percurso e
dos conhecimentos adquiridos em outras cearas, abolindo assim a busca cega por uma
“pureza jurídica” 36:

A nudez total, que será sempre a de quem se vê no que vê, resultará das
configurações de analogias que soubermos imaginar: afinal, o jogo
pressupõe um palco, o palco exercita-se com um texto e o texto é a
autobiografia do seu autor. Jogo, palco, texto ou autobiografia, o mundo é
comunicação e por isso a lógica da existencia da ciência pós-moderna é
promover a ‘situação comunicativa’ tal como Habermas a concebe. (...) Não
se trata de um amálgama de sentido (que não seria sentido mas ruído), mas

34
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 3. ed. São Paulo: Editora Cortez,
2005.
35
Ibidem. p. 83.
36
Ibidem. p.73.
13
antes de interações e de intertextualidades organizadas em torno de projetos
locais de conhecimento indiviso.”

O sujeito interpretante e a intersubjetividade

O paradigma da linguagem inaugura uma nova visão de mundo. Partindo da


compreensão da linguagem como medium inafastável para todo significado, uma vez
que constitui toda relação entre sujeito e objeto, bem como toda relação intersubjetiva.

É o que pressupõe Habermas em sua Teoria do Agir Comunicativo37. O autor parte,


assim, da linguagem, em sua dimensão pragmática. O processo de comunicação
intersubjetiva tem como unidade elementar não mais proposições, mas sim
proferimentos, atos de linguagem, os quais podem ser entendidos como proposições
inseridas em ações. Essa dimensão da ação, própria da linguagem, é a sua dimensão
ilocucionária, a qual estabelece o sentido por meio do qual deve ser entendida a
proposição; uma afirmação, ordem, exclamação, etc.

Neste contexto desenvolve o autor uma nova concepção de razão e de racionalidade:


comunicativa, a qual é inerente ao uso comunicativo da linguagem, ou seja, é inerente
ao uso da linguagem voltado para o entendimento. A racionalidade comunicativa surge
da relação intersubjetiva que assumem sujeitos capazes de fala e ação, ou seja, sujeitos
capazes de linguagem, quando se entendem sobre algo para se chegar a um acordo
acerca de algo presente no mundo: “substituo a razão prática pela comunicativa”.38

Quando a linguagem é usada comunicativamente, os participantes da interação


mostram-se com uma postura de participantes que pretendem entender-se sobre algo no
mundo. A racionalidade comunicativa expressa-se, assim, na força unificadora da fala
voltada para o entendimento:39

A razão comunicativa distingue-se da razão prática por não estar adstrita a

37
HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
38
HABERMAS Jüngen. Direito e democracia: entre a facticidade e validade. V. I. Tradução Flávio
Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 19.
39
Ibidem. p. 19.

14
nenhum ator singular nem a um macrossujeito sociopolítico. O que torna a
razão comunicativa possível é o medium lingüístico, através do qual as
interações se interligam e as formas de vida se estruturam. Tal racionalidade
está inscrita no telos lingüístico do entendimento.

Com o paradigma da linguagem não se supõe mais a idéia de indivíduo isolado; mas
sim a idéia de “discussão”, interação, de um processo discursivo de formação da
vontade, em que o significado de um proferimento está ligado à sua validade, assim: os
“usuários da linguagem” lançam-se mutuamente pretensões à validade orientados para o
entendimento acerca da pretensão levantada. E os falantes compreendem a pretensão
quando compreendem as condições exigidas para sua validade, as quais não se resumem
a uma pretensão à verdade da proposição, ou seja, não se restringe ao seu conteúdo, mas
também à uma pretensão à correção normativa da pretensão, e uma pretensão à
veracidade da proposição, a qual pretende perquirir se a intenção pretendida
corresponde à proferida.

Reivindicar validade para um proferimento significa levantar a pretensão de poder


defendê-lo com boas razões diante dos destinatários, satisfazendo, assim, aquelas
pretensões que acima descrevemos. Cabe ressaltar a postura dos sujeitos de fala: uma
postura de participantes da discussão, voltados para o entendimento acerca da pretensão
à validade levantada, seja defendendo com razões tal pretensão, seja refutando-a
também racionalmente.

Conclusões

Importa então considerar além da subjetividade, a intersubjetividade implicada no


conhecimento. Como dito, a subjetividade pressupõe uma multiplicidade de sentidos
para as coisas/ textos e permite que se fale em escolhas. A multiplicidade de sentidos
decorre tanto da tradição histórica rica em teorias e visões de mundo, quanto da
multiplicidade de visões dos pesquisadores. Estudar o mundo (e o direito) é entender-se
com outros sujeitos a respeito de suas premissas.

A linguagem, que constitui nossa vida e saber e permite a autonomia e a emancipação,


torna-se então o medium do conhecimento, que é processado não mais através de uma
15
razão cartesiana ou de uma observação empirista, mas é substituída por racionalidades
comunicativas.

O texto só ganha sentido normativo através da atuação do intérprete. E o intérprete não


está mais encerrado em seu universo linguístico, como pretendia a racionalidade
iluminista, mas sim em permanente diálogo com o “mundo”.

Uma subjetividade crítica pode então ser vista como uma problematização do lugar de
onde se fala, sob pena de pressupor novamente sua unicidade40. Uma subjetividade
auto-reflexiva insurge como uma necessidade, em uma democracia sobretudo, de
maneira que os atores sociais sejam instigados sempre a buscar, em interação com os
demais atores, um sentido para seu papel. A ausência de um caminho previamente
conhecido estimula a criação do intérprete.

40
ACHUGAR, Hugo. Imagens da integração. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1997.
16
Referências Bibliográficas

ACHUGAR, Hugo. Imagens da integração. São Paulo: Fundação Memorial da


América Latina, 1997

BAUMANN, Barbara; OBERLE, Brigitta. Deutsche Literatur in Epoche. Max Hueber


Verlag, 1996, p.128.

CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? Tradução de Raul Filker. Editora


Brasiliense, 1993.

DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant´Anna Martins. São Paulo:


Brasiliense, 2005, p. 12

DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de Maria Ermantina de Almeida


Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

DURKHEIM, ÉMILE. As regras do método sociológico. Tradução de Maria Isaura


Pereira de Queiroz. 12. Ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1985.

FREITAG, Barbara. Dialogando com Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo


Brasileiro, 2005.

HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como ideologia. Reimpressão. Tradução de


Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 2009.

________. Conhecimento e interesse. Tradução e introdução de José N. Heck. Rio de


Janeiro: Zahar Editores, 1982.

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