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Raízes da Questão Social e Racismo: Relação determinante na formação

social brasileira

Túlio Batista da Silva1

Resumo

O trabalho tem o objetivo de discutir as raízes da questão social brasileira e o racismo


intimamente entrelaçado. Analisando a colonização, o escravismo e o patriarcalismo como
centrais para discutir a formação social do Brasil e dar subsídios para a compreensão crítica
da sua particularidade. Apresenta uma análise dessas três estruturas da formação social
brasileira, somados com a ideologia racista, fundamental para trilhar os caminhos que
particularizam a nossa questão social, é essencial para compreendê-la de forma crítica. A
pesquisa bibliográfica aponta que o racismo é central e precisa de igualdade analítica na
compreensão da questão social do Brasil. Perante a discussão realizada é perceptível a
centralidade da racismo como componente da formação social brasileira, podemos pontuar
que o racismo é pilar importante do colonialismo, patriarcalismo e consequentemente do
sistema escravista. Se essas categorias são fundamentais na formação dos primeiros germes da
questão social brasileira, essas são desenvolvidas e dissolvidas como retroalimentação do
capitalismo no Brasil. Apesar das mudanças no âmbito político, jurídico, social e econômico
exigidos pela lógica capitalista, as raízes da questão social brasileira são reproduzidas e
conservadas intensificando as contradições já inerentes do regime do capital, impregnado nas
relações sociais, correlação de forças. Ocasionando impactos negativos na mobilização da
classe trabalhadora na reivindicação de direitos sociais e na vida da população negra.

Palavras-chaves: Racismo; Questão Social; Formação Social; Serviço Social; Relações


Sociais.

1
.Assistente Social e Mestrando no Programa de Pós Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de
Pernambuco. Email: tulio.batista@ufpe.br
Introdução
Segundo Ivone Maria Ferreira da Silva (2008) aponta a questão social como
consequência das crises no âmbito econômico inerentes da reprodução desigual do capital,
ocasionando conflitos sociais na área urbana e rural, advindo desde o sistema
escravista-colonial, atribuindo o seu reconhecimento, como questão social, diante aos
movimentos sociais, que são responsáveis através das lutas e reivindicações dos avanços no
campo dos direitos sociais e da cidadania no Brasil, no qual se realizou de forma tardia. O
retardamento na legitimidade da questão social brasileira é devido a intervenção amenizadora,
abafando os embates das lutas e relações sociais, realizadas pelo Estado, Igreja e o Mercado.
Conforme Santos (2012) entender a questão social é relacionar a exploração das forças
produtivas pelo capitalismo e em contraponto os movimentos de luta da classe trabalhadora
em resposta
A concepção de questão social na percepção de Iamamoto e Carvalho (1983, p.77):
A questão social não é senão as expressões do processo de formação e
desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da
sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do
Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o
proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais
além da caridade e repressão.

Contribuindo com essa percepção esta concepção, temos a de Arcoverde, (2008, p.


109):

A Questão Social, enquanto síntese reflexiva do aprofundamento das desigualdades


sociais, acumuladas e manifestas nas mais variadas formas de pobreza, miséria,
desemprego e exclusão social, não é um fenômeno novo no Brasil. Desde os
primeiros anos da República, para não voltarmos ao Brasil colônia, a desigualdade
social se expressa nas condições de trabalho das pequenas oficinas, órgãos públicos,
numa industrialização acelerada (1930-80), mas de relativamente poucos empregos,
longas jornadas de trabalho, trabalho infantil e escravo, salários reais reduzidos,
escassez de alimentos, acesso restrito às poucas escolas públicas primárias e
técnicas, epidemias, mão de obra abundante nas cidades.

Em busca de alcançar a finalidade deste artigo, realizamos uma pesquisa bibliográfica,


pois possibilita ter contato com o que já foi produzido em relação ao objeto pesquisado.
Entendendo a importância de compreender e aprofundar as bases teóricas para a obtenção dos
componentes presentes na discussão da questão social, racismo e formação social brasileira na
pesquisa bibliográfica através das obras da: Ivone Maria Ferreira da Silva, Josiane Santos,
Octavio Ianni, Clóvis Moura e Florestan Fernandes, como também outros autores que
contribuem na análise crítica das categorias.
No primeiro tópico do desenvolvimento, “Base da sociedade brasileira: Notas sobre
as raízes da Questão Social e o Racismo ”, vamos tratar da formação social brasileira com
a estruturação da colonização, patriarcalismo e escravidão. No qual é fundado pelo racismo,
marcado pela miséria e desemprego, problemas sociais destinados a população negra e
indigena dominada e explorada como mão de obra cativa.
No segundo tópico, “Notas sobre a inserção do negro no mundo do trabalho livre
e a universalização da Questão Social”, partimos em pontuar os primeiros desdobramentos
em consequência dos pilares da formação social na “inserção” do negro ex-escravizado no
mundo do trabalho livre e nas reividicações pela legitimação da questão social.

Base da sociedade brasileira: Notas sobre as raízes da Questão Social e o Racismo

As raízes coloniais-escravistas são reproduzidas fundamentalmente na contradição,


acumulação, exploração, conflitos, antagonismos e lutas sociais desenvolvidas no seio do
capitalismo no Brasil. Essas raízes têm sua história marcada pela total expropriação da
população negra, com a escravidão, e as lutas e resistência escravizada contra o regime
escravista; e os conflitos presentes na questão indigena. Silva (2008) evidencia que essas
lutas, juntamente com as lutas do período industrial, tornam-se mais expressivas e são
legitimadas, como questão social, na resistência operária. Adquire, deste modo,
particularidade histórica, o que demanda especificação no encaminhamento e tratamento.
Na formação social brasileira e consequentemente as bases da questão social estão
marcadas pela colonização, escravidão e patriarcalismo. Marcada pela miséria, desemprego,
problemas sociais destinados à população negra e explorada como mão de obra cativa.
Explorar esses três pilares da formação social brasileira, somados com a ideologia racista é
fundamental para trilhar os caminhos que particularizam a nossa questão social, é essencial
para analisá-la de forma crítica.
Ivone Silva (2008) aponta como elemento da sociedade colonial o objetivo
expansionista das monarquias absolutistas europeias que através da acumulação de riqueza, da
exploração das colônias e do trabalho escravo, desenvolvem seus Estados Nacionais na
modernidade capitalista. Primeiramente a colonização era de cunho exploratório, não tinha
sentido de povoamento e nem de desenvolvimento da região. Segundo Josiane Santos (2012),
a colonização foi importante para Portugal como forma de combater a crise econômica
decorrente das guerras, falta de alimentos e epidemias. Nesse cenário, a expansão da
exploração foi uma alternativa com a empreitada marítima, em detrimento de interesses
econômicos e o fortalecimento comercial da metrópole, o mercado externo europeu, no qual o
capitalismo já estava presente.
A acumulação do capital ocorreu na base do trabalho escravo e na circulação de
mercadorias (Silva, 2008). Acrescento que os europeus aproveitavam das vantagens
econômicas com o tráfico de africanos, somados com a preparação dos africanos já
experientes com a agricultura. Desta forma a força escravizada africana foi usada inicialmente
na plantação da cana de açúcar no nordeste brasileiro, iniciante das grandes propriedades
rurais. No processo de acumulação capitalista é notável a relação com a exploração dos
escravizados, na fase mercantilista, constitui o princípio da questão social brasileira. Esse
processo é atravessado por contradições e conflitos sociais ocasionados pelo estabelecimento
e manutenção do escravismo (Silva, 2008). O sistema escravista mantido por quase 400 anos
é essencial no atravessamento e construção da nossa cultura, política, economia e sociedade.
A relevância da implementação do sistema escravista foi essencial para os objetivos
coloniais, sem a total expropriação do escravizado africano a estruturação do colonialismo,
patriarcalismo e o escravismo no Brasil e nos outros países da América não ocorreria.
Segundo Clóvis Moura (1994, p.38):
As relações de produção escravista eram, no entanto, o suporte fundamental que
configurava as suas bases estruturais e determinavam todos os demais níveis de
relacionamento social. Em outras palavras: as relações escravistas de produção eram
as fundamentais e as que determinavam internamente a sua dinâmica. E essa
economia por outro lado, que já foi chamada de uma “vasta empresa comercial”
somente poderia desenvolver-se e vender a sua produção substantiva se fosse
compradora de uma mercadoria indispensável: o escravo.

O racismo surge como mecanismo ideológico para sustentar a escravidão. Podemos


dizer que o racismo é um dos armamentos ideológicos trazidos junto aos navios negreiros e
implementado com a colonização. Sem o racismo não existiria o sistema escravista-colonial, a
Europa não tinha força populacional para gerar as riquezas necessárias na exploração do
continente americano.
Esmiuçando o racismo, entro em concordancia com a contribuição do Ianni (1978) na
conpreensão da categoria “raça”, tem como conceito as distinções raciais desenvolvidas
socialmente, (re)produzidas, conservadas e reelaboradas destacando aspectos físicos, culturais
que desassemelham brancos e negros. Em convergência com Ianni, Silvio Almeida (2019),
entende que “raça” “é uma relação social, o que significa dizer que a raça se manifesta em
atos concretos ocorridos no interior de uma estrutura social marcada por conflitos e
antagonismos” (ALMEIDA, 2019, p. 34). A população atingida pelo racismo, usa a raça no
sentido contrário a qual foi imposta, salienta Nilma Lino Gomes (2012), em relação ao
movimento negro no Brasil. “o movimento negro ressignifica e politiza afirmativamente a
ideia de raça, entendendo-a como potência de emancipação e não como uma regulação
conservadora; explicita como ela opera na construção de identidades étnico-raciais.”
(GOMES, 2012, p. 731).
De acordo com Josiane Santos (2012), caracterizando o sistema colonial, pontua a
ocupação da terra e sua exploração de forma violenta, com a falta de investimento e
desenvolvimento técnico, o objetivo era a maior extração possível dos recursos naturais
abundantes. Acrescenta assim, as grandes propriedades agrárias como característica nacional
para exportação. Posteriormente é o caráter agroexportador que insere o Brasil na divisão
internacional do trabalho.
Ivone Silva (2008) aponta os equívocos de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de
Holanda em relação à inexistência do preconceito racial/racismo no Brasil. Freyre, de acordo
com a autora, projeta a miscigenação como fator fundamental para o fim das diferenças entre
negros e brancos colonizadores. Em seguida, a visão do Holanda visa a colonização
decorrente ao clima territorial propício e não por um preconceito. Esse fator permitiu a
convivência com os nativos e negros. Os dois apontam a ausência de preconceito pelo passado
étnico dos lusitanos. Os pontos criticados pela autora são debatidos ao decorrer do seu livro, é
fundamental explicitar as consequências que tivemos com apropriação, da elite brasileira, com
essas teorias. Silva, continua:
Olhando a sociedade colonial brasileira nessa perspectiva, tem-se a impressão que,
realmente, não existiram barreiras econômicas, políticas e sociais entre brancos e
homens de cor, livres ou escravos. O mais espantoso é como tais interpretações são
desprovidas de antagonismo, desigualdade ou contradição, tão presentes na relação
colonizadores e colonizados [...](SILVA, 2008, p.34)

A questão é que essa perspectiva defendida por Freyre e Holanda foram


implementadas e se tornaram hegemônicas no pensamento brasileiro. Esse pensamento é a
essência de uma “democracia racial”, sua existência foi e continua sendo defendida até a
atualidade neoliberal. Anteriormente foi vendida para o exterior e chamou atenção da
UNESCO que financiou trabalhos de diversos pesquisadores com o intuito de entender como
se dava essa “harmonia racial” e contrapor os eventos da segregação e o extermínio presentes
na segunda guerra.
Em relação à “democracia racial” é preciso citar o cunho racista presente, e nos mostra
o racismo como ferramenta ideológica que molda o inconsciente (ALMEIDA, 2019). Um
bom exemplo disto é o mito da democracia racial disseminado pela cultura popular e nos
espaços de poder do século XX e que ainda hoje está em evidência. A meritocracia é um dos
fatores que sustenta a negação do racismo e mantém firme a ideologia do mito da democracia
racial. Pois a negação do racismo tem como consequencia a culpabilização dos negros e
negras pelas expressões da questão social-racial pelas quais são atingidos. Essas expressões,
moldadas ideologicamente, conectam essa condição ao um viés moralista e até da "falta de
capacidade”. Ao mesmo tempo, a “democracia racial” serve para tirar qualquer
responsabilização do Estado, mercado, da Igreja e da classe dominante sobre a situação da
população negra. Assim, o pensamento meritocrata é ahistórico, liberal e extremamente
racista.
Para a autora, “escravidão e patriarcalismo são categorias constituintes e atuais no
processo de formação da sociedade brasileira, de acordo com as configurações
histórico-conjunturais.” (SILVA, 2008, p.34). Deste modo estão atados à questão social
brasileira, juntamente à colonização, o patriarcalismo representa a figura inicial de
dominação. Ivone Silva salienta que:
Os grandes proprietários rurais representavam a “nata” social, detendo grande
parcela da riqueza. Eram eles: os senhores de engenho, os fazendeiros e os grandes
lavradores componentes da sociedade colonial, que detinham o domínio e estavam
acompanhados das autoridades das administrações militares, civis e eclesiásticas:
vice-reis, capitães, generais, governadores, comerciantes, altas patentes militares,
desembargadores, bispos etc. (SILVA, 2008, p.38)

É evidente a dominação patriarcal estabelecida na colonização. Atrelando essa forma


de dominação com o racismo, é nítido que o poder estava centralizado nas mãos de homens
brancos, a riqueza que restava depois do saque da metrópole, ficava em seus bolsos. O poder
patriarcal e a dominação racial é estruturante para o regime capitalista, existe uma ligação
intrínseca.
A igreja católica e o cristianismo propriamente dito, são essenciais dentro desse
contexto, teve participação central na reprodução do racismo e no preconceito étnico, assim
como toda a sociedade da época. Segundo Silva (2008), a Igreja está presente nas
intervenções das raízes da questão social brasileira. A igreja é a primeira instituição a intervir,
de certo modo, nas contradições e complexidades da relação entre a classe senhorial e a
população negra e indigena. Essa intervenção é feita com o intuito de integrar essa população
a sociedade colonial e catolica, desbrezando a cultura dos negros e indígenas. É visível o
mecanismo de integração social que posteriormente, ligada ao Estado, vai intervir na questão
social na fase aprofundada do capitalismo.
Para Moura (1994, p. 21) a classe oprimida (escravizados) e a classe dominante
(escravizadores) “produziam a contradição fundamental”, responsável pela dinâmica que
permeia essa realidade. Em relação aos conflitos e contradições, balizadoras da questão social,
Ivone Silva relata:
Configuradas as raízes coloniais da questão social no Brasil tendo por base a
escravidão indígena e africana, ambos não se aceitaram enquanto cativos e
rebelaram-se de várias formas contra seus proprietários, todavia os negros
permaneceram na condição de escravos durante a Colonia e o Imperio, por quase
300 anos de cativeiro. (2008, p.47)

O período imperial (1822 - 1889) foi bastante intenso no âmbito político e nos permite
visualizar as primeiras manifestações da questão social. “Assumida parcialmente pela
sociedade e pelo Estado somente para cimentar as rachaduras do regime político e salvar a
economia escravista de uma crise terminal” (SILVA, 2008, p.40). Mesmo com mudanças no
âmbito político e social, o Estado planejava ações para manutenção do sistema escravista,
caracterizando o período pela forte reprodução das relações sociais escravocratas.
O império, que apresentava pouca mobilidade, tinha sua estratificação social em três
segmentos: o superior, composto pelos que assessoraram o imperador e lhe davam
sustentação política, somados aos grandes proprietários de terra; o segundo,
composto por bacharéis, doutores e funcionários públicos de alto escalão; e os
inferiores, composto por uma massa humilde, composta por escravos, agregados,
índios e todos os demais submetidos aos poderosos clãs agrícolas. (SILVA, 2008,
p.42)

Surge a pressão abolicionista, em meados do século XIX, reivindicando mudanças nas


relações econômicas, na superestrutura ideológica, social, jurídica e política pertencente ao
domínio escravista-colonial. Ocasionando tensões nacionais, como a articulação das
resistências escravizadas e abolicionistas e internacionais, como a pressão do capitalismo
internacional para sua expansão.
As possibilidades de desenvolvimento das forças (terras, capital, tecnologia, força de
trabalho, divisão social do trabalho etc.) que haviam sido abertas pelo capitalismo
industrial não podiam ser acompanhadas pelas formações sociais escravistas, criadas
na época do predomínio do capital mercantil. A dinâmica das relações escravistas de
produção, no sul dos Estados Unidos, no Brasil, nas Antilhas e outros países e
colônias, entraram em descompasso com relação à dinâmica das forças produtivas e
das relações de produção do capitalismo; tanto com o capitalismo predominante e
em expansão desde a Inglaterra como com o emergente nas mesmas sociedades
escravistas. O caráter “anômalo” da escravatura moderna tornara-se explícito e
insustentável. (IANNI, 1978, p. 25)

Porém o processo abolicionista, pensado pelas elites, articula-se para implementar


gradativamente a substituição da mão de obra escrava pela mão de obra do imigrante europeu
(SILVA, 2008). O objetivo era de embranquecer a população brasileira e o outro objetivo em
reproduzir os ex-escravizados e seus descendentes na estrutura “original” de classe na qual os
africanos foram designados na colonização. Desde modo, a filosofia e poder eugenista
brasileiro formam um acoplado de mecanismos personalizados na formação social
contraditória (MOURA, 1983).
Silva (2008, p.48) evidencia que a abolição da escravatura fez-se, primordialmente,
pelo encaminhamento parlamentar e pela definição de uma legislação emancipatória. A
mesma não nega que as lutas dos negros nas fugas e na formação de quilombolos também faz
parte desse movimento: A história não é feita só pelos os de cima. A escravidão contratiava a
modernidade e emancipação da sociedade, “Desnudam-se as contradições do escravismo”.
Aproximando do final do século XIX, o Estado implementa sua política de imigração
para a substituição do trabalho escravo. O Estado, no princípio negativo em relação a
qualquer direito de dignidade da vida escravizada, agora contribui financeiramente na
imigração com transporte e moradia. Essas ações deixam de lado a população negra em
relação ao mundo do trabalho livre que se abre. Resta, a massa populacional de ex-escravos e
seus descendentes o prosseguimento nas relações de trabalho semi-escravas, na área rural ou
arriscarem-se nos centros urbanos em condições de vida precarizadas. Essa condição “[...]
fornecia o principal argumento de barganha dos antigos senhores frente à força de trabalho
assalariada. Eis o pressuposto para a adaptação das estruturas escravocratas às formas
modernas de obtenção de trabalho excedente.” (MARA; SILVA, 2021, p. 8).

Notas sobre a inserção do negro no mundo do trabalho livre e a universalização da


Questão Social

A inserção do negro na sociedade do trabalho livre, após a abolição formal, reproduzia


a condição subalterna do regime anterior. De acordo com Octavio Ianni (1994), nas sociedade
que passaram por mudanças significativas, modificando as estruturas politico-economicas,
entrando no caminho da industrialização, a estrutura da escravidão desmembrou-se dentro da
cultura do capitalismo. Os trabalhos reservados para a população na “margem”, trabalhos
ocupados muitas vezes por ex-escravizados que estavam quase sempre à mercê da vadiagem
por falta de ocupação. Nesse momento o “desemprego já existia como um problema social de
natureza estrutural” (SILVA, 2008, p.36), desemprego determinante na configuração da
questão social no presente.
A população negra recém liberta, estava exclusivamente por conta própria em busca
sobreviver na sociedade capitalista, com grande desvantagem, pois “quando se acelera o
crescimento econômico da cidade, ainda no fim do século XIX, todas as posições estratégicas
da economia artesanal e do pequeno comércio urbano eram monopolizadas pelos brancos.”
(FERNANDES, 2008, p.33). Portanto, o negro é atirado nas “margens” do sistema de trabalho
livre e o racismo é reformulado, criando mecanismos que barram o negro em todos os âmbitos
da sociedade, no modelo de capital dependende implementado no Brasil (MOURA, 1994).
Perdendo sua importância privilegiada como mão-de-obra exclusiva, ele também
perdeu todo o interesse que possuirá para as camadas dominantes. A legislação, os
poderes públicos e os círculos politicamente ativos da sociedade se mantiveram
indiferentes e inertes diante de um drama material e moral que sempre fora
claramente reconhecido e previsto, largando-se o negro ao penoso destino que estava
em condições de criar por ele e para ele mesmo. (FERNANDES, 2008, p.32)

Santos (2012) compreende a formação do mercado de trabalho marcada pelo


subdesenvolvimento, distinção formal e informal de assalariamento, baixos salários e grande
contingente de trabalhadores informais. Decorrente de uma sociedade que mantinha relações
sociais marcada por passado colonial e escravista, com população majoritariamente rural. Ao
abolir formalmente o trabalho escravo, a população negra foi preterida em detrimento da
imigração europeia. No processo de êxodo rural e formação do exército de reserva que ficam
longe do desenvolvimento econômico e são cruciais para a formação do mercado de trabalho.
Essa população negra “marginalizada” representa o exército industrial de reserva, dando
entonação às relações de trabalho, será usada para pressionar a massa empregada (IANNI,
1978). Somados aos imigrantes, formam a massa populacional que será contida pelo Estado
como a primeira resposta à questão social.
Segundo Santos (2012) no período, de “industrialização restringida” (1930-1956), é
importante para a formação do mercado, posta a centralidade na indústria de transformação
(responsável por transformar matéria prima em produtos semi ou totalmente finalizados)
produzindo empregos, formando o perfil de trabalhador urbano-industrial que será base do
sindicalismo. O contexto permeado por crises no âmbito econômico, político e social, novos
sujeitos e condições objetivas chamando atenção, da sociedade e do Estado, para a questão
social. Evitando a opressão racial como outro componente na luta contra a dominação, o mito
da igualdade racial se mostra eficiente para desmobilizar a classe operária. A partir da década
de 1930, o aumento da repressão e sua deslegitimação perante o movimento operário e aos
sindicatos, que estavam sob tutela do Estado.
No ponto de vista político é um período com diversas diretrizes ideopolíticas,
conservadores e revolucionárias. A classe operária tem em sua reivindicação a legitimidade da
questão social no Brasil. As ações em resposta à questão social pela Igreja, Estado e,
timidamente, pelo mercado visam atender para controlar a luta de classes, implantam um
conjunto de medidas, do qual surge o Serviço Social. (SANTOS, 2012)
Santos (2012) aponta que na “industrialização pesada”, a partir de 1964, se finaliza o
processo de capitalismo retardatário brasileiro, devido a intensa intervenção econômica e a
relação do capital nacional e internacional com o objetivo de expansão produtiva. Essa fase é
o crescimento da indústria mecânica, modificando o capital constante e variável. Outro ponto
do período é o grau de flexibilidade estrutural e da precariedade das ocupações que resulta em
alta rotatividade dos trabalhadores, mesmo com o padrão de proteção social. Leva assim a
forte característica dos índices de desemprego do Brasil, com problemas histórico-estruturais,
o qual o grande índice de desemprego tem caráter estrutural.
O processo de “modernização conservadora” e “revolução passiva” caracteriza a
política brasileira por muito tempo gerida de forma antidemocrática. O fato implica na relação
capital e trabalho, pois limita a organização dos trabalhadores, alimenta uma cultura
autoritária e resulta no autoritarismo patronal, herança do passado patriarcal. O contexto
naturaliza a superexploração do trabalho e violentas respostas às manifestações sindicais,
definindo historicamente as respostas à questão social , também, como caso de polícia.
(SANTOS, 2012).
Mesmo após a década de 1930, quando as respostas à questão social se torna
meramente caso de política, não significa o abandono da repressão como parte da regulação
estatal aos trabalhadores. Essa repressão era feita pela violência física e pelo paternalismo e
mandonismo fortemente presente na construção ideológica das classes subalternas brasileiras,
herança da relação escravizado e escravizador. Esse mecanismo desestrutura o produto das
lutas e coloca os direitos conquistados como “favores” e “ação bondosa” do Estado, por
muitas vezes usado para frear a resistência operária, restringindo o acesso aos direitos legais
só para os trabalhadores filiados aos sindicatos oficiais. Importante lembrar que esses direitos
trabalhistas, primeiramente, são apenas para os trabalhadores urbanos. (SANTOS, 2012).
De Acordo com Josiane Santos (2012) esse trato é multiplamente determinado, parte
determinado pela burguesia brasileira criada de uma sociedade colonial e escravista que
impedia violentamente as medidas que diminuíssem seus privilégios, mesclando aspectos
liberais políticos, mas usando o Estado sempre que necessário para garantir sua margem de
lucro. Outra determinação, é o processo de acumulação internacional do capital, que permite
pouca organização política em detrimento da grande exploração do trabalho. Os dois pontos
mostram a “modernização conservadora” que defende os interesses de latifundiários e
imperialistas. Um destes são os baixos custos do trabalho brasileiro, advindo do tom da
escravidão (IANNI, 1978) e os baixos preços das mercadorias brasileira. Determina a
dificuldade de organização dos trabalhadores impactados pelo escravismo e um regime
político republicano oligárquico, que se manteve restrito à participação política até 1960.
Um fator importante decorrente do desenvolvimento “raízes latentes da nossa questão
social” estruturada no sistema escravista-colonial, no patriarcado e no racismo é a forma que a
contribuição negra sofreu com apagamentos, mudanças de discursos, limitando a participação
negra na formação social no âmbito cultural e na geração de riqueza através do trabalho
escravo, mesmo assim de forma contida. A prevalência da cultura do branco europeu toma o
lugar de centralidade, hegemonia, controle, civilidade e desenvolvimento avançado. A
contribuição negra sofre silenciamento, também, nas movimentações contra a dominação
escravagista. Se voltarmos à contribuição da Ivone Silva (2008) na concepção da acumulação
capitalista e a exploração de escravizados como componentes do princípio da questão social
brasileira, podemos afirmar que as manifestações de luta e resistência escravizada
representam o princípio do espírito de resistência da nossa classe trabalhadora na legitimidade
da questão social. A origem, da reivindicação frente a contradição e complexidade do sistema
colonial-escravista, é decorrente da mobilização escravizada para a sua reumanização.
Segundo Silva (2008, p.35)” [...] somos produtos, sim, de uma forte contribuição
deste componente étnico, que é base da nossa formação. É lamentável reduzir sua presença na
nossa história, como mera massa de boçais, pois isso soa como preconceito ou grave deslize
analitico.” Precisamos ter ciência que na condição forçada de escravizado, o negro foi o
alicerce da nossa sociedade como um todo e não apenas limitado ao regime escravista
(IANNI, 1978).

Considerações finais

Perante a discussão realizada é perceptível a centralidade da racismo como


componente da formação social brasileira, podemos pontuar que o racismo é pilar importante
do colonialismo, patriarcalismo e principalmente do sistema escravista. Se essas categorias
são fundamentais na formação dos primeiros germes da questão social brasileira, essas são
desenvolvidas e dissolvidas como retroalimentação do capitalismo no Brasil.
Apesar das mudanças no âmbito político, jurídico, social e econômico exigidos pela
lógica capitalista, as raízes da questão social brasileira são reproduzidas e conservadas
intensificando as contradições já inerentes do regime do capital, impregnado nas relações
sociais, correlação de forças. Ocasionando impactos negativos na mobilização da classe
trabalhadora na reivindicação de direitos sociais.
A contribuição do negro na construção da sociedade brasileira não esta limitada ao
sistema escravista, e o seu resgate e maior aprofundamento, dessas raizes se mostra a cada dia
mais importante para o arcabouço teorico do Serviço Social em busca de maior criticidade do
seu objeto de intervenção. É importante o incentivo a pesquisa e maior contingente de
pesquisadores para igualar de forma analítica o racismo como categoria que distingue a forma
que os indivíduos serão impactados. Questão materializada nos índices sociais que
evidenciam a população negra como majoritária nas expressões da nossa questão social.
Em sintese, a condição desumana destinada ao negro na sociedade escravista
metamorfoseou-se nas expressões da questão social e na violação dos direitos humanos na
sociedade do capital, não só chocando as vidas dos negros, mas de toda classe trabalhadora.
Por conseguinte, a busca da superação do regime atual têm na luta antiracista ferramenta para
quebrar a reprodução do regime anterior na questão social.

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