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JORGE AMADO

A solução dos problemas humanos terá que contar com a literatura, a música, a
pintura, enfim com as artes. O homem necessita de beleza como necessita de pão
e de liberdade. As artes existirão enquanto o homem existir sobre a face da terra.
A literatura será sempre uma arma do homem em sua caminhada pela terra, em
sua busca de felicidade.
Jorge Leal Amado de Faria
“um baiano romântico e sensual”

Jorge Amado nasceu a 10 de agosto de 1912, na fazenda Auricídia, no distrito de


Ferradas, município de Itabuna, sul do Estado da Bahia. Filho do fazendeiro de cacau
João Amado de Faria e de Eulália Leal Amado.
Formou-se pela Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro, em 1935.
Militante comunista, foi obrigado a exilar-se na Argentina e no Uruguai entre 1941 e
1942. Em 1945, foi eleito membro da Assembleia Nacional Constituinte, na legenda
do Partido Comunista Brasileiro (PCB), tendo sido o deputado federal mais votado do
Estado de São Paulo. Jorge Amado foi o autor da lei, ainda hoje em vigor, que assegura
o direito à liberdade de culto religioso. Nesse mesmo ano, casou-se com Zélia Gattai.
Em 1947, ano do nascimento de João Jorge, primeiro filho do casal, o PCB foi
declarado ilegal e seus membros perseguidos e presos. Jorge Amado teve que se exilar
com a família na França, onde ficou até 1950, quando foi expulso. Em 1949, morreu
no Rio de Janeiro sua filha Lila. Entre 1950 e 1952, viveu em Praga, onde nasceu sua
filha Paloma.
De volta ao Brasil, Jorge Amado afastou-se, em 1955, da militância política,
sem, no entanto, deixar os quadros do Partido Comunista. Dedicou-se, a partir de então,
inteiramente à literatura. Foi eleito, em 6 de abril de 1961, para a cadeira de número
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23, da Academia Brasileira de Letras, que tem por patrono José de Alencar e por
primeiro ocupante Machado de Assis.

...vi que não era possível conciliar meu trabalho de escritor com o
de militante. Eu nunca tive cargo de direção, mas, no fundo, dado
ao fato de ser conhecido, acabei tendo uma atuação de dirigente sem
ser dirigente.
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de
Janeiro: Record; Natal, RN: UFRN, 1996, p. 274.

A obra literária de Jorge Amado conheceu inúmeras adaptações para cinema,


teatro e televisão, além de ter sido tema de escolas de samba em várias partes do Brasil.
Seus livros foram traduzidos para 49 idiomas, existindo também exemplares em braile
e em formato de audiolivro.
Jorge Amado morreu em Salvador, no dia 6 de agosto de 2001. Foi cremado,
conforme seu desejo, e suas cinzas foram enterradas no jardim de sua residência na
Rua Alagoinhas, no dia em que completaria 89 anos.

* Informações biográficas extraídas do site oficial da Fundação Casa de Jorge Amado:


http://www.jorgeamado.org.br/?page_id=148&lang=pt&obra=788&start=2#obra - Acesso em 21/08/2018
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Uma obra engajada na luta do povo

Obra completa de Jorge Amado

 O País do Carnaval, romance (1931)


 Cacau, romance (1933)
 Suor, romance (1934)
 Jubiabá, romance (1935)
 Mar morto, romance (1936)
 Capitães da areia, romance (1937)
 A estrada do mar, poesia (1938)
 ABC de Castro Alves, biografia (1941)
 O cavaleiro da esperança, biografia (1942)
 Terras do Sem-Fim, romance (1943)
 São Jorge dos Ilhéus, romance (1944)
 Bahia de Todos os Santos, guia (1944)
 Seara vermelha, romance (1946)
 O amor do soldado, teatro (1947)
 O mundo da paz, viagens (1951)
 Os subterrâneos da liberdade, romance (1954)
 Gabriela, cravo e canela, romance (1958)
 A morte e a morte de Quincas Berro d'Água, romance (1959)
 Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso, romance (1961)
 Os pastores da noite, romance (1964)
 O Compadre de Ogum, romance (1964)
 Dona Flor e Seus Dois Maridos, romance (1966)
 Tenda dos milagres, romance (1969)
 Teresa Batista cansada de guerra, romance (1972)
 O gato Malhado e a andorinha Sinhá, historieta infanto-juvenil (1976)
 Tieta do Agreste, romance (1977)
 Farda, fardão, camisola de dormir, romance (1979)
 Do recente milagre dos pássaros, contos (1979)
 O menino grapiúna, memórias (1981)
 A bola e o goleiro, literatura infantil (1984)
 Tocaia grande, romance (1984)
 O sumiço da santa, romance (1988)
 Navegação de cabotagem, memórias (1992)
 A descoberta da América pelos turcos, romance (1994)
 O milagre dos pássaros, fábula (1997)
 Hora da Guerra, crônicas (2008)

A obra romanesca de Jorge Amado é comumente dividida em dois momentos, ou


fases, bastante distintos, e que têm como marco divisor a publicação de Gabriela, cravo
e canela, em 1958.
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A primeira parte, que se encerra com a trilogia Os subterrâneos da liberdade, é


considerada a “fase partidária” ou “fase partidarizada” do autor. De fato, as atenções de
sua escrita estavam, de maneira bastante significativa, voltadas para as questões mais
críticas da nossa sociedade, como a miséria, o abandono e a exploração do povo brasileiro.
O que se verifica, nos romances desse período, é a clara intenção de apresentar os
problemas sociais e apontar o socialismo como alternativa para aquela situação
promovida por um sistema de exclusão e privilégios.
No âmbito formal, observa-se um nítido amadurecimento do autor no trato com
os seus personagens e ao comportamento humano literariamente representado. Sempre
fiel ao realismo, o desenho psicológico dos personagens se estrutura a partir do
condicionamento histórico e das relações sociais a que estão submetidos. Alguns de seus
heróis já fazem parte da galeria dos grandes personagens do romance brasileiro do século
vinte: Antônio Balduíno (Jubiabá), Pedro Bala (Capitães da areia) e Mariana (Os
subterrâneos da liberdade).

Dentre os principais procedimentos de composição da primeira


fase que definem o seu caráter engajado, podem ser observadas
as seguintes características:
 Jargão próprio da luta comunista;
 Idealização dos personagens, sobretudo, os comunistas;
 Situação de luta de classes;
 Referência direta ao Partido Comunista.

A segunda fase, iniciada com Gabriela, cravo e canela, deve ser entendida não
como uma negação da primeira, mas como resultante de um projeto literário que sofre
transformações que se superam para encontrar um novo equilíbrio. Falamos aqui de uma
superação dialética, o que não significa negar ou abandonar o que foi feito, mas encontrar
novas alternativas para configurar a realidade que está em constante movimento.
A correlação de forças mundial sofreu transformações profundas a partir das
denúncias dos crimes de Stalin, durante a realização do XX Congresso do Partido
Comunista da URSS. Os métodos de atuação dos comunistas são, então, revistos e a
proposta de transição pacífica para o socialismo inaugura uma nova etapa de convivência
visando despolarizar o mundo (comunismo versus capitalismo) e minimizar as
repercussões da guerra fria.
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É nessa nova configuração política que o projeto literário de Jorge Amado se


reorganiza e encontra outras formas de configuração da realidade social e política. A
ausência do Partido Comunista em suas obras (o que será retomado em Farda fardão
camisola de dormir) não significa abrir mão das ideias humanistas do socialismo. Ao se
afastar do PCB, em 1956, abandona alguns procedimentos de composição, mas não altera
a substância de sua literatura.
Sua obra conserva os mesmos valores, alterando apenas sua forma de
configuração: o confronto entre o moderno e o arcaico, a miscigenação, a atuação social
da mulher, a profunda solidariedade com os marginalizados, e, sobretudo, a luta pela
liberdade. Jorge Amado deixou marcado não em seus romances, mas também em seus
contos, peças de teatro e crônicas, a luta por uma sociedade em que o homem tenha
satisfeita as suas necessidades básicas para uma vida digna e livre.

Cronista de tensão mínima, soube esboçar largos painéis coloridos e


facilmente comunicáveis que lhe franqueariam um grande e nunca desmentido êxito
junto ao público. Ao leitor curioso e glutão de sua obra tem dado de tudo um pouco:
pieguice e volúpia em vez de paixão, estereótipos em vez de trato orgânico dos
conflitos sociais, pitoresco em vez de captação estética do meio, tipos “folclóricos”
em vez de pessoas, descuido formal a pretexto de oralidade... Além do uso às vezes
imotivado do calão: o que é, na cabeça do intelectual burguês, a imagem do eros do
povo. O populismo literário deu uma mistura de equívocos, e o maior deles será por
certo o de passar por arte revolucionária. No caso de Jorge Amado, porém, bastou a
passagem do tempo para desfazer o engano.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 46. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

A crítica ácida de Alfredo Bosi não é um ponto fora da curva, mas afirmação de
um preconceito que ainda hoje prevalece, e se mantem como princípio de análise a
qualquer romance do escritor. Bosi peca, por não se debruçar de forma científica para
analisar a imensa obra de Jorge Amado: dedica menos de uma página de seu livro para
elaborar sua análise de uma obra romanesca de 23 títulos, sem considerar a incursão do
autor em outros gêneros literários, como o teatro, o conto e a literatura infanto-juvenil;
rotula algumas características que observa, mas não justifica sua postura de menosprezo.
O crítico resvala num falso moralismo quando acusa o autor de “uso imotivado do calão”,
sem considerar que o palavrão é parte integrante e substancial na linguagem popular e
não apenas “imagem do eros do povo”; ao comentar o “pitoresco em vez de captação
estética do meio” demonstra uma declarada má-vontade com uma capacidade literária de
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descrição, narração e relação do homem com a natureza, como se dá, por exemplo, em
Terras do sem fim, em que o homem se defronta com aspectos distintos da mata, e tem
estimulada suas contradições.

A mata dormia o seu sono jamais interrompido. Sobre ela passavam os dias e as
noites, brilhava o sol do verão, caiam as chuvas do inverno. Os troncos eram
centenários, um eterno verde se sucedia pelo monte afora, invadindo a planície, se
perdendo no infinito. Era como um mar nunca explorado, cerrado no seu mistério. A
mata era como uma virgem cuja carne nunca tivesse sentido a chama do desejo. E
como uma virgem era linda, radiosa e moça, apesar das arvores centenárias. Misteriosa
como a carne de uma mulher ainda não possuída. E agora era deseja também.
[...]
Da mata, do seu mistério, vinha o medo para o coração dos homens. Quando eles
chegaram, numa tarde, através do atoleiros e rios, abrindo picadas, e se defrontaram
com a floresta virgem, ficaram paralisados pelo medo. A noite vinha chegando e trazia
nuvens negras com elas, chuvas pesadas de junho.
[...]
Os homens se encolheram com medo, a mata lhes infundia um respeito religioso.
Não havia nenhuma picada, ali habitavam somente os animais e assombrações. Os
homens pararam, o medo no coração.
AMADO, Jorge. Terras do sem fim. 62. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 45-46.

Mas, em tudo, destaca-se um ponto que merece ser debatido, quando acusa Jorge
Amado de “descuido formal a pretexto de oralidade”. Para o comentador, buscar
representar a linguagem do povo, num procedimento em que consegue a aproximação
entre o Narrador e o Narrado, é signo de baixa literatura e “populismo literário”.
Jorge Amado rompe com a dicotomia linguística observada em, por exemplo, A
bagaceira, de José Américo de Almeida, em que se confrontam de maneira bastante
acentuada o léxico erudito do narrador e o léxico popular-regional dos trabalhadores,
demonstrando, aqui sim, uma postura em que o pitoresco é realçado, pois visto de fora.
O Narrador estabelece uma distância significativa entre a sua voz e a voz daquele que
narra.
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À vista do bueiro fumegante que sujava o céu estivo, a matula espectral detinha-se
esperançosa. E ficava a espiar a casa do engenho como uma grande essa armada no
negrume do teto velho.
Alguns faziam menção de subir. Mas logo desandavam, aos tombos, na mobilidade
incerta.
De quando em quando, um magote vingava o socalco. Chegavam mastigando em
seco, para enganar a fome, nas mais grotescas atitudes.
Dobravam-se os joelhos, não como pedinchões. Genufletiam moídos de fadiga.
Não se carpiam, como se estivessem realizando um destino irremediável. Nem,
sequer, lavavam com lágrimas as caras poentas.
Escorraçados, retrocediam, arquejantes, sem uma queixa.
E, desengonçando-se, de déu em déu, numa marcha esquecida, o rebotalho errante
ia atulhar as feiras, malignar as cidades.
ALMEIDA, José Américo. A bagaceira. 42. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 9.

Em Jorge Amado, o homem deixa de ser olhado como um elemento exótico e


pitoresco para se revelar em sua inteireza, confrontado com sua condição social. O seu
realismo, ainda que marcado por momentos de grande sensibilidade e emoção, muitas
vezes podendo ser vistos como idealizados, é sempre concreto, isto é, identifica a
realidade que organiza o comportamento de cada um de seus personagens, bem como as
circunstâncias a que estão submetidos.
Jorge Amado não simula esconder-se na figura de um Narrador imparcial para se
fazer um autor isento, coloca-se definitivamente ao lado de seus personagens oprimidos
e explorados, assumindo o discurso da transformação social e nele se manifestando
declaradamente. Fiel à ideologia, transforma a obra num espaço privilegiado para discutir
e revelar o que se esconde no interesse da divisão de classes, nos privilégios de quem
domina, e na luta de quem quer se libertar.
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Entre os absurdos que a universidade brasileira comete, há um que certamente


chega ao paroxismo: a ausência de estudos sistemáticos e abrangentes sobre a obra de
Jorge Amado, nosso escritor mais lido dentro e fora do país. Essa lacuna, injustificável
sob qualquer motivo, deve-se a vários fatores, um dos quais ligado ao falacioso
argumento de que a obra do romancista baiano seria de baixa qualidade estética, o que
a tornaria desmerecida de integrar o Olimpo das obras pesquisáveis. [...] Por sua vez,
a crítica da obra amadiana tem-se caracterizado, com raras exceções, pela falta de
abrangência e profundidade, por um preconceito estético que frequentemente mascara
o preconceito ideológico e, principalmente, pelo despreparo teórico para compreender
o real significado da obra, além do desconhecimento das matrizes populares que a
alimentam.
BEZERRA, Paulo. Jorge Amado resgatado. In: DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance
em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal, RN: UFRN, 1996, p. 11.

Uma poética e sua permanência


Em “Nota” de abertura ao romance Cacau, de 1933, Jorge Amado destaca alguns
pontos que são fundamentais para o entendimento de sua obra romanesca, pois apresenta
um nítido caráter de conceituação da poética amadiana. Dela, é possível extrair princípios
norteadores da primeira fase de sua obra, e aspectos que persistirão também na segunda
fase.

Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para


um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das
fazendas de cacau do sul da Bahia.
Será um romance proletário?
AMADO, Jorge. Cacau. In: ______. O país do carnaval, Cacau, Suor. São
Paulo: Martins, 1970[?], p. 101.

1 – “... um mínimo de literatura para um máximo de honestidade”

A polêmica nascida em torno de “um mínimo de literatura”, serviu, de fato, para


estigmatizar o autor e sua obra literária, ao longo do tempo. Considerado por alguns
comentaristas como desleixo literário ou incapacidade de elaboração formal sofisticada,
“um mínimo de literatura” refere-se, objetivamente, a uma recusa a um tipo de literatura
que se amparava no beletrismo que ignorava as características linguageiras do povo que,
muitas vezes eram recriadas como fato exótico a ser admirado, provocando uma distância
formal entre o Narrador sempre muito culto, e os personagens populares como
representação da ignorância e do desconhecimento erudito.
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Jorge Amado, e outros importantes autores do movimento literário de 30,


conseguem estabelecer formalmente uma aproximação entre o Narrador e o Narrado. Sem
perder o rigor da língua escrita, confere ao Narrador um coloquialismo na linguagem ao
mesmo em que respeita o Narrado (personagens) preservando a oralidade característica
de sua classe, de sua região e de sua formação cultural.
O “máximo de honestidade”, expressão aparentemente contrária ao caráter
ficcional da literatura, se propõe a uma investigação criteriosa do comportamento social
dos personagens e da própria história a ser contada, que, no caso de Jorge Amado, terá
sempre no povo da Bahia a sua inspiração artística e literária.

2 – “... a vida dos trabalhadores”

Jorge Amado se empenhou em construir personagens populares, e, através deles


representar sua cultura, seus valores e suas lutas. Homens e mulheres socialmente
excluídos e economicamente marginalizados que assumem o protagonismo em uma obra
que investiga as relações sociais, denunciando a exploração e revelando a força do povo.
Trabalhadores da terra na luta contra os coronéis, e trabalhadores do mar que
enfrentam as adversidades da natureza, são seus personagens mais frequentes. Sua opção
pelo pobre se manifesta no respeito com que trata a mulher prostituta, tão presente em
seus romances, sobretudo naqueles escritos a partir de Gabriela, cravo e canela.

3 – “Será um romance proletário?”

A opção estética de Jorge Amado é coerente com a ideologia que professa:


assumidamente comunista – foi eleito deputado pelo Partido Comunista do Brasil (PCB)
para a Constituinte de 1946 –, optou por uma estética de inspiração realista como forma
de configuração literária.
Sua percepção de que o mundo só poderia ser transformado através de um processo
consciente de mobilização e organização revolucionária, dedicou sua obra a essa luta.
O “romance proletário”, anunciado em Cacau, ao contrário do que prega a crítica
ideológica e preconceituosa esteticamente, que acusa sua obra de panfletária, deve ser
entendido sob duas perspectivas que o caracterizam, considerando sempre o contexto
histórico em que cada um de seus romances foi produzido: em primeiro lugar, se constitui
de um realismo que tem no trabalhador o objeto de sua análise, ou seja, dialoga com a
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proposta de “um máximo de honestidade” para apresentar a luta do homem nas suas
relações de trabalho e exploração de sua mão-de-obra; em segundo lugar, sob o ponto de
vista narrativo, apresenta o protagonismo da classe operária e camponesa. Isso significa
um posicionamento crítico e materialista ao sistema capitalista: crítico porque apresenta
as fraturas de um sistema que vê o homem apenas como produtor do lucro; materialista
porque em sua análise privilegia as relações sociais historicamente condicionadas.

Cacau

Segundo o site oficial da Fundação Casa de Jorge Amado, Cacau foi concluído
em junho de 1933 e teve sua 1ª edição pela Ariel Editora, Rio de Janeiro, em agosto de
1934, com capa e ilustrações de Santa Rosa, 197 páginas e tiragem de dois mil
exemplares. A 2ª edição é de setembro do mesmo ano, com três mil exemplares”.

Escrevi Cacau com evidentes intenções de propaganda


partidária. Conservei-me porém rigorosamente honesto,
citando apenas fatos que observei. É um livro onde a
imaginação não trabalhou.
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trad. Annie
Dymetman. Rio de Janeiro: Record, 1990, p.
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Escrito em primeira pessoa, o segundo romance de Jorge Amado merece algumas


considerações que o distinguem do seu primeiro livro, pois apresenta inovações que irão
marcar de forma irreversível a sua obra. O primeiro aspecto que merece atenção deve ser
observado na mudança temática: se em O país do carnaval nos apresenta os conflitos
existenciais do seu personagem principal, Paulo Rigger, filho de um grande fazendeiro
do cacau, que desfruta o privilégio de viagens à Europa cercado de belas mulheres, em
Cacau, seu personagem-narrador, José Cordeiro, conhecido por Sergipano, é o filho de
um burguês falido que perde toda a riqueza, abandona sua terra natal, São Cristóvão/SE,
se proletariza e vende sua força de trabalho numa fazenda de cacau.

FAZENDA FRATERNIDADE

As nuvens encheram o céu até que começou a cair uma chuva grossa. Nem uma
nesga de azul. O vento sacudia as árvores e os homens seminus tremiam. Pingos de
água rolavam das folhas e escorriam pelos homens, Só os burros pareciam não sentir
a chuva. Mastigavam o capim que crescia em frente ao armazém. Apesar do temporal
os homens continuavam o trabalho. Colodino perguntou:
– Quantas arrobas você já desceu?
– Vinte mil, o Antônio Barriguinha, o tropeiro, pegou do último saco:
– Esse ano o home colhe oitenta mil...
– Cacau como diabo!
– Dinheiro pra burro...
Desamarraram os burros e Barriguinha tangeu-os:
– Vambora, tropa desgraçada...
Os animais começaram a andar de má vontade. Antônio Barriguinha chicoteava-os:
– Burro miseráve... Carbonato, dianho, vambora... Na frente, Mineira, a madrinha
da tropa, chocalhava guizos. A chuva caía, um aguaceiro grande. A casa do coronel
estava com as janelas fechadas. Honório, que vinha da roça, chalaceou com
Barriguinha:
– Eh! Muié de tropeiro!
– Como vai, amásia do podador?
– Como vai tua mãe?
– A tua tá ficando frouxa...
A tropa, carregada de sacos de cacau, desaparecia na volta da estrada. Atrás,
Antônio Barriguinha, forte e alto, amulatado, a tocar os burros com um chicote
comprido. Honório subiu a ladeira e cumprimentou Colodino:
– Bom dia.
– Um dia desgraçado. Chuva que não acaba mais.
E de repente, mudando de assunto:
– Já desceu vinte mil arrobas, Honório.
– Então Mané Frajelo tá contente.
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– Se tá...
Honório sentou-se na pedra junto a Colodino, dando as costas ao armazém, que
conservava as portas fechadas. Em frente, cercada por um jardim, lindo de jasmineiros
e roseiras, a casa-grande da fazenda, de janelas azuis e varanda verde. Em cima uma
tabuleta de um pintor barato:

FAZENDA FRATERNIDADE
do coronel Manuel Misael de Sousa Teles

Honório riu um riso alvar, com seus dentes brancos, magníficos, que contrastavam
com o rosto negro e os lábios grossos:
– Mané Frajelo.
– Mané Miserável Saqueia Tudo.
Honório cuspiu:
– Merda Mexida Sem Tempêro.
Ficaram olhando. Como era grande a casa do coronel... E morava tão pouca gente
ali. O coronel, a mulher, a filha e o filho, estudante, que nas férias aparecia, elegante,
estúpido, tratando os trabalhadores como escravos. E olharam as suas casas, as casas
onde dormiam. Estendiam-se pela estrada. Umas vinte casas de barro, cobertas de
palha, alagadas pela chuva.
– Que diferença...
– A sorte é Deus quem dá.
– Qual Deus... Deus também é pelos ricos...
– Isso é mesmo.
– Eu queria ver o Mané Frajelo dormir aqui.
– Devia ser divertido.
Colodino acendia um cigarro. Honório pegou da foice de podar os cacaueiros e
contou:
– A roça lá detrás do rio tá assinzinha de cacau. Um safrão.
– Esse ano o homem colhe umas oitenta mil.
Nós ganhávamos três mil e quinhentos por dia e parecíamos satisfeitos. Ríamos e
pilheriávamos. No entanto nenhum de nós conseguia economizar um tostão que
fosse. A despensa levava todo nosso saldo. A maioria dos trabalhadores devia ao
coronel e estava amarrada à fazenda. Também quem entendia as contas de João
Vermelho, o despenseiro? Éramos todos analfabetos. Devíamos... Honório devia
mais de novecentos mil-réis e agora nem podia se tratar. Um impaludismo crônico
quase o impedia de andar.
Assim mesmo partia às seis horas da manhã para podar as roças, depois de comer
um prato de feijão com carne seca. Era um tipo curioso aquele Honório. Preto, forte,
alto, brigão, estava na fazenda há quase dez anos. Um bom camarada, capaz de se
sacrificar pelos outros. Apesar dele dever muito, o coronel o conservava.
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Diziam que ele já fizera algumas mortes a mando de Mane Frajelo. Não sei se é
verdade. Sei que Honório era o melhor camarada desse mundo. Bebia cachaça pelo
gargalo da garrafa e Jamais foi visto embriagado. Mané Frajelo respeitava-o.
Mané Frajelo fora um apelido posto na cidade. Pegou. Um flagelo, de fato, aquele
homem gordo, de setenta anos, que falava com uma voz arrastada e vestia
miseravelmente. Manuel Misael de Sousa Teles era o seu verdadeiro nome. Possuía
mais de oitenta mil contos e as suas fazendas estendiam-se por todo o Município de
Ilhéus. Nós fazíamos contas à noite. João Grilo, magro como um espeto, mulato
gozado, que contava anedotas, bancava o matemático. Sentava nas tábuas que lhe
serviam de cama e enquanto Colodino passava os dedos pela viola, fazia as contas:
– Oitenta mil arrobas a doze e quinhentos, são...
– ... mil contos.
– É o que Merda Mexida Sem Tempero tem de lucro só em cacau.
Nós arregalávamos os olhos admirados. Mil contos... E nos pagava três mil e
quinhentos por dia.
AMADO, Jorge. Cacau. In: ______. O país do carnaval, Cacau, Suor. São Paulo: Martins, 197 [?], p.
102-104.

A realidade social da exploração do homem acompanha cada palavra e cada ação


apresentada pela narrativa. O processo de conscientização dos trabalhadores não acontece
ao acaso, é fruto de um amadurecimento daquelas pessoas que, aos poucos passam a
compreender que existe alguma coisa errada na relação delas com o patrão. O cacau não
é apenas um fruto da terra, é a própria terra, é o sustento de cada um, é a exploração do
trabalho, é motivo da consciência que se expande e se concretiza. A conscientização
política e social de José Cordeiro o aproxima do ideário socialista, mas ainda não se pode
considerar Cacau um romance afiliado ao realismo socialista. Exatamente por isso, o
questionamento do autor: “Será um romance proletário?”.

Realismo socialista
As primeiras manifestações do realismo socialista serão encontradas na peça Os
pequenos burgueses, de Gorki, que apresenta elementos que se enquadram
esteticamente nessa vertente; no entanto, é no romance Mãe que Gorki escrito em
1907, que Gorki se consolida como o primeiro escritor realista socialista. O realismo
socialista foi adotado como estética oficial da União Soviética em 1934, ano de
realização do Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos.

Máximo Gorki (1868-1936)


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A vivência com os outros trabalhadores “alugados” e o domínio da escrita,


permitem a Cordeiro maiores possibilidades de refletir sobre as condições de trabalho em
um ambiente de absoluta exploração. O caráter memorialista e testemunhal confere ao
romance “veracidade” sobre uma realidade objetiva, que é vista “de dentro”, pois narrada
por um trabalhador da fazenda. Ainda que não tenha a onisciência de todos os
acontecimentos – e isso fica claro pela própria fragmentação da obra –, o testemunho de
José Cordeiro confirma a “verdade dos fatos”. A sobreposição do factual sobre o ficcional
reafirma a intenção inicial do autor: - “o máximo de honestidade” sobre a coisa narrada.
São 20 capítulos que não respeitam uma cronologia: são fragmentos de uma
lembrança que compõem um painel em que os fatos se sobrepõem de acordo com os
impulsos emocionais do personagem-narrador. Cacau é um romance “escrito” por José
Cordeiro, revelando suas vivências e dando o seu testemunho sobre a vida dos trabalhados
nas fazendas de cacau, no sul da Bahia. A autorreferencialidade (metalinguagem)
aproxima autor e personagem na poética de realização do romance: criador e criatura se
encontram na negação do caráter literário da obra.

Esse discurso me deu a ideia de reunir algumas cartas de trabalhadores e


rameiras para publicar um dia. Depois, já no Rio de Janeiro, relendo essas cartas,
pensei em escrever um livro. Assim nasceu “Cacau”. Não é um livro bonito, de
fraseado, sem repetição de palavras. É verdade que eu hoje sou operário, tipógrafo,
leio muito, aprendi alguma coisa. Mas, assim mesmo, o meu vocabulário continua
reduzido e os meus camaradas de serviço também me chamam Sergipano, apesar de
eu me chamar José Cordeiro.
Demais não tive preocupação literária ao compor essas páginas. Procurei
contar a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau. Não sei se desvirtuei esse
trabalho contando meu caso com a filha do patrão. Mas isso entrou no livro
naturalmente, apesar de não ter sido convidado.
AMADO, Jorge. Cacau. In: ______. O país do carnaval, Cacau, Suor. São Paulo:
Martins, 1970[?], p. 163)

Este livro está sem seguimento. Mas é que ele não tem propriamente enredo e
essas lembranças da vida da roça eu as vou pondo no papel à proporção que me vêm
à memória. Li uns romances antes de começar “Cacau” e bem vejo que este não se
parece nada com eles. Vai assim mesmo. Quis contar apenas a vida da roça. Por vezes
tive ímpetos de fazer panfleto e poema. Talvez nem romance tenha saído.
AMADO, Jorge. Cacau. In: ______. O país do carnaval, Cacau, Suor. São Paulo:
Martins, 1970[?], p. 165-166.
15

Os subterrâneos da liberdade

Na epígrafe da trilogia Os subterrâneos da


liberdade – a mesma para os três volumes –, Jorge
Amado nos adverte, a partir de trecho de um soneto de
Camões, que toda sua narrativa é verdadeira, pois
Metida tenho a mão na consciência
E não falo senão verdades puras
Que me ensinou a viva experiência.

A narrativa tematiza a luta de classes durante o


período de vigência do Estado Novo, tendo de um lado a burguesia e do outro os
operários e comunistas, projeta linguística e ideologicamente o autor, construindo seu
ethos de militante comunista, que, como já visto anteriormente, está vinculado à estética
de orientação marxista-leninista.

O Estado Novo, também conhecido como Terceira República, é o período que se


estende de 10 de novembro de 1937 até 31 de janeiro de 1946, quando o país,
governado por Getúlio Vargas, viveu um estado ditatorial. Vargas, valendo-se de um
falso plano de ataque dos comunistas, intitulado Plano Cohen, institui um regime
caracterizado pela centralização do poder, nacionalismo, anticomunismo e
autoritarismo. Nesse período, o Partido Comunista do Brasil-PCB foi praticamente
dizimado pela polícia política.

A narrativa da Trilogia reconta, em parte ficcionalmente, em parte factualmente,


a luta e reconstrução do Partido durante a ditadura varguista. Contrapõe a dimensão
ficcional do discurso literário com a dimensão histórica da atividade militante. A luta de
classes se faz presente ao longo dos três volumes da narrativa e se impõe de maneira
irreversível: os personagens representantes populares são movidos pela vontade de
transformação social, pela certeza da vitória do socialismo e pela luta para tornar essa
vitória possível; os representantes burgueses são movidos pelos interesses imediatos do
lucro, da exploração, da sede do poder e da falta de critério moral para obter o que se
deseja. Os discursos percorrem caminhos distintos, as classes se dividem, caminhando
em lados opostos que se confrontam na diversidade de interesses. Festas suntuosas
contrapõem-se às greves por melhores salários e, até mesmo, às greves políticas; as
bebedeiras e ressacas se contrastam com a miséria; as orgias calam os gritos de um preso
político nos calabouços da tortura.
16

O camarada João empurrou a porta apenas encostada da distante casa suburbana.


Acendeu a luz da sala, Zé Pedro dormia encolhido no sofá a barba por fazer. Carlos
tinha-se estira do no chão, sobre a capa de borracha, e João considerou, ao espiá-lo,
quanto ele era jovem ainda: assim dormindo parecia um adolescente. Não os
despertou em seguida, foi até o fundo da casa, abriu a torneira da pia na estreita
cozinha deixou que a água corresse sobre sua cabeça. Assim afastava o sono e o
cansaço. Espiou o fogão e viu o bule de café preparado por Josefa, a companheira de
Zé Pedro. Ela jamais esquecia de deixar-lhes, nos dias em que ali se reuniam, o café
pronto, era só esquentar. João riscou um fósforo sob o fogareiro a álcool, pôs o bule
em cima. Só então foi acordar os outros. Carlos sorria no seu sono, era um mulato
claro, mestiço de italiano e negra. Zé Pedro era mulato também, mas de muitas
misturas diferentes. De origem camponesa, deixara o trabalho nas plantações
nordestinas de cana-de-açúcar para servir como soldado do Exército, onde aprendera
a ler e a escrever e onde se ligara aos comunistas. Quando terminou o serviço militar,
ingressou como operário numa fábrica de sapatos. Mas a vida partidária não tardou a
envolvê-lo por completo e, depois de uma longa prisão, entrou na ilegalidade.
Percorreu todo o Nordeste em tarefas do Partido, terminara sendo enviado para São
Paulo, depois dos acontecimentos de 1935, quando a polícia de vários Estados
nordestinos o buscava. Formavam agora os quatro o secretariado do Comitê Regional
de São Paulo, eles três e mais o Ruivo. Um secretariado jovem e novo tinha substituído
camaradas presos não havia muito.
Enquanto os outros esfregavam os olhos e se espreguiçavam, João voltou à
cozinha, deitou o café nas xícaras, pegou o açucareiro. Botou tudo sobre uma bandeja
de lata, trouxe para a sala. Zé Pedro perguntou:
- Então?
Mexiam o café, agora estavam sentados próximos uns dos outros e Carlos havia
trancado a porta a chave.
- Os homens não querem nada... Muita gentileza, muita sabedoria política, meias
palavras para dizer as coisas mais tolas como se estivessem dizendo segredos
tremendos, eis aí o senhor Deputado Artur não sei o quê, não sei o quê Carneiro da
Rocha... Que o Exército, patati-patatá, como se ele não soubesse que os generais estão,
quase todos, comprometidos com Getúlio e com os integralistas.
- Que disse da proposta de união das forças antifascistas?
- Não disse nada. Tirou o corpo fora, e quando me ouviu falar em defender as
liberdades democráticas, dando armas aos operários, o homem só faltou morrer
sufocado... Nunca vi tanto medo do povo... Eles não vão aceitar aliança nenhuma, não
vão se unir coisa alguma, a gente não pode contar com esses pretensos democratas
nem um minuto. Eles sabem que o golpe está aí, mas nada fazem e nada farão de
concreto para impedi-lo.
- Nada – confirmou Carlos. – Temos hoje notícias do Vítor, da Bahia. Ele esteve
também com o pessoal do José Américo, lá. O Governador tem armas, tem mesmo
muita arma, tem amigos no Exército e ele próprio tem prestígio entre os soldados, e
Vítor lhe ofereceu gente disposta pro barulho, sabe o que ele respondeu: - Não quero
derramar o sangue do povo baiano... – E esse é um que não vai continuar no governo,
que Getúlio bota pra fora. Imagine os outros, os que esperam ficar apesar do golpe...
- É um problema de classe... – disse Zé Pedro. – Eles sabem que o golpe vem, que
vamos ter um governo fascistizante, mas eles preferem tudo, mesmo os integralistas,
do que apoiar-se no povo. Temem ter que marchar se o povo tiver armas na mão. No
fundo, todos eles, têm esperança de arranjar-se depois do golpe...
AMADO, Jorge. Os subterrâneos da liberdade: Os ásperos tempos. 35. Ed. Rio de Janeiro: Record,
1982, p. 104-106.
17

O Estado Novo não foi apenas um regime autoritário e repressivo, cerceador das
liberdades fundamentais do povo brasileiro; não foi apenas um mecanismo político para
Vargas se perpetuar no poder; o Estado Novo não pode ser analisado sem se considerar
um projeto maior que visava o alinhamento com o nazi-fascismo na luta obsessiva contra
o “comunismo internacional”. Jorge Amado viveu esse momento com bastante
intensidade e, ele, também, sofreu perseguições e prisões, teve seus livros queimados em
praça pública. Superou o Estado Novo e se elegeu Deputado Constituinte pelo PCB, em
46.

Não restam dúvidas de que Os subterrâneos da liberdade são o romance mais


radical de Jorge Amado. Nele, o confronto de classes é exposto de maneira inequívoca.
É o mais próximo que o escritor chegou do realismo socialista. O conceito do herói
positivo atinge aqui sua elaboração formal mais representativa. Personagens como João,
Mariana, Carlos, Ruivo e Vítor se enquadram num perfil que reúne todas as qualidades
de um militante comunista: abnegação, determinação, generosidade, consciência de
classe, disciplina partidária e coragem para enfrentar as adversidades da luta política,
homens e mulheres “feitos de um outro barro”.
O Narrador se coloca declaradamente ao lado dos comunistas e dos operários, se
confundindo ideologicamente com eles. A estrutura narrativa é construída por dois
discursos que se antagonizam de acordo com a classe social narrada: solidariza-se com
os trabalhadores e não poupa elogios de engrandecimentos moral da luta e abnegação dos
que se empenham na construção de uma sociedade mais justa e socialista; por outro lado,
ao narrar os acontecimentos que envolvem os personagens burgueses, não abre mão do
deboche e do escárnio, lançando contra eles os mais agressivos adjetivos.
O romance tem o cuidado de contemplar a luta de dois seguimentos da classe
trabalhadora: o operário da grande metrópole, São Paulo, o Estado mais industrializado
do país, e a luta camponesa que é representada no vale do Rio Salgado, no sertão de Mato
Grosso. A condição daqueles trabalhadores rurais é discutida durante uma expedição de
representantes da burguesia às terras do coronel Venâncio Florival, associado ao capital
norte-americano. O intelectual e historiador Hermes Rezende faz parte da comitiva e
justifica a exploração do camponês e entende que a consciência política representa a
infelicidade do trabalhador, pois ao saber de sua condição se angustia e se amargura
porque deixa de ser conformado e não tem como transformar a realidade, que está
18

previamente estabelecida e não sujeita à transformação. O sofisma de seus argumentos é


o que há de mais reacionário na história do pensamento:

[...] Hermes Rezende, acompanhado pelo fazendeiro, percorria as plantações e


criatórios de gado, conversava como colonos e trabalhadores. Ia por vezes com ele o
jornalista enviado pela A Notícia, um jovem que antes jamais saíra da cidade, vago
simpatizante comunista e bem distante de qualquer atividade. Esse horrorizava-se com
o espetáculo dos trabalhadores ignorantes e na sua maioria enfermos, com aquela
humanidade subalimentada, falando uma língua de reduzido vocabulário, dobrado
numa humildade nascida do terror. Uma tarde, quando Venâncio Florival não estava
com ele, o jornalista chamou a atenção de Hermes Rezende para aquela
impressionante realidade:
- Eles vegetam... Que diferença faz dos tempos da escravidão? Ao lado da fartura
e do luxo da casa-grande está o contraste mais chocante: a miséria dos colonos...
E contava como um dos meeiros lhe dissera, respondendo a uma sua pergunta: “Essas
terras todas, dessa redondeza, e o povoado e as matas e os bichos e mesmo a gente,
tudo pertence a seu coronel Florival...
O historiador explicava:
- Eles são felizes, mesmo nessas condições miseráveis.
- Felizes? – espantava-se o jornalista.
- Sim, meu caro. Eles não sabem que são miseráveis. A consciência, o conhecimento
da miséria é que traz a infelicidade. É o que acontece com os operários. Eles são
infelizes porque a agitação revolucionária lhes dá o conhecimento da exploração em
que vivem. Sem isso, estariam conformados e, por consequência, felizes. É o que
acontece com os trabalhadores rurais. Estão perfeitamente conformados, não almejam
nada melhor, são os únicos seres felizes desse país... Invejáveis na sua miséria... É
como um marido enganado pela esposa: ele só começa a ser infeliz quando toma
conhecimento da traição. Não é mesmo?
- Donde se conclui que o melhor é deixar como está...
- E que fazer? Reforma agrária, dar-lhes terras? É transformar esses seres simples e
sem problemas em homens ambiciosos e cheios de problemas. O pedaço de terra que
cada um deles recebesse não lhe traria felicidade. Continuariam miseráveis e teriam
perdido a inocência...
O jornalista coçou a cabeça:
- É... Pode ser...
- (...) Vamos deixar esses caboclos em paz, nada de perturbar a virgindade dos seus
sentimentos. Eu sou socialista, mas sou contra qualquer violência, que só pode agravar
a vida dessa gente.
AMADO, Jorge. Os subterrâneos da liberdade: agonia da noite. 35. Ed. Rio de Janeiro: Record, 1982,
p. 37-38.

A cena é contraposta por um momento de elaboração dessa mesma consciência,


quando Nestor, um trabalhador rural, luta contra o analfabetismo, enfrentando a letras.
Nestor tenta domar sua mão e desenhar as formas daquele universo que para ele ainda é
desconhecido. As dificuldades são superadas por sua determinação. Despertar a
19

consciência dos trabalhadores é tarefa urgente para enfrentar o poderio capitalista que
avança sobre aquelas terras ainda virgens. Nestor descobre as letras e tudo o que elas
podem representar para o avanço da luta contra a exploração capitalista. Do
conhecimento, surge uma nova consciência, e desta consciência novas possibilidades se
anunciam.

Quando começara, obedecendo aos conselhos do gigante, a tentar decifrar o


mistério das letras sobre uma velha cartilha conseguida no arraial, seus olhos não as
retinham, deixavam que as letras se baralhassem, se misturassem, numa confusão,
dançassem em sua frente. Nos primeiros dias, quando os olhos se enevoavam e se
recusavam a fixar separadamente cada um daqueles misteriosos signos do alfabeto,
ele pensara em se desesperar e mesmo lágrimas de raiva sentira nascer, ardendo em
suas pupilas. Mas era necessário: como ler para os demais aqueles papéis
esclarecedores se ele mesmo não soubesse ler? Como estudar os livros dos quais
Gonçalo falava? Não bastava sentir o fogo da revolta crescendo dentro dele, fazia-se
preciso acendê-lo em todos os demais, e para isso era necessário saber ler e escrever.
A voz do gigante do Vale ressoava em seus ouvidos, no repetido conselho:
-Tua primeira tarefa, Nestor, é aprender a ler e a escrever.
Seus olhos terminaram por se habituar, por não mais confundir e baralhar as letras,
por poder fixa-las separadamente, e sua boca foi reconhecendo, nas letras e silabas se
juntando, as palavras familiares e outras também desconhecidas antes. Já poderia
agora ler, com certo esforço, quase correntemente. Muito mais difícil parecia-lhe
escrever, bem mais rebelde era a mão que os olhos, mão de calos do machado e da
foice, pesada, forçando o lápis, furando o papel, fugindo com os traços para os lados.
Onde buscar a delicadeza necessária para traçar essas letras de redondas curvas e
medidas retas?
[...]
O velho, estendido o jirau de madeira, pigarreando um crônico catarro, o rosto
cosido em rugas, mal fechava a camisa de bulgariana sobre o peito esquelético, o espia
numa animosidade feita de desconfiança e medo. Que faz ele ali, curvado sobre o
papel, perdendo tempo, em vez de dormir, de descansar da labuta do dia passado na
roça, sob o sol? Que invenção é essa de ler e escrever, não viveu até agora sem
necessidade de saber ler e escrever? Para que precisa desses luxos um trabalhador da
terra, um agregado do coronel Venâncio Florival?
[...]
Nestor aprendera de Gonçalo, e o aprendera também o mulato Claudionor e uns
poucos mais o estavam ensinando a todos os outros, que cada um pode construir o seu
próprio destino, cada um pode modificar a sua vida. A sua e a de todos em redor:
dependia deles mesmos, errada era a sabedoria dos velhos.
AMADO, Jorge. Os subterrâneos da liberdade: agonia da noite. 35. Ed. Rio de Janeiro: Record, 1982,
p. 45-47.

A reação contra os comunistas é violenta e implacável: direção e militância são


presos e torturados de maneira cruel. O Partido ressurge da luta clandestina e consciente
da necessidade de organização e mobilização do povo.
20

Haviam-no levado diretamente para a sala de torturas. O lúgubre humor policial a


designara pelo nome de “sala das sessões espíritas”. Durante todo o resto da tarde,
num cubículo úmido do porão da polícia, Carlos, o corpo doído dos socos e pontapés,
concentrara-se em dois problemas: quem os teria entregue? quanta gente teria caído?
Deveria sustentar as calças todo o tempo: haviam-lhe tirado o cinto e a gravata,
assim ele não tentaria enforcar-se. E, como as calças eram largas para ele, herdadas
dos outros, ameaçavam cair a todo momento. Terminou por sentar-se no cimento
molhado da cela, tinham jogado baldes de água antes de trancarem-no ali. Não podia
ter ideia de quantos companheiros a polícia prendera. Mas começava a desconfiar de
onde podia ter partido a denúncia: o grupo de Saquila. O jornalista andava foragido,
ganhara o mundo depois do fracasso do golpe armando-integralista. Carlos ouvir dizer
estar ele pelo estrangeiro, na Argentina ou no Uruguai, não se lembrava. Mas, não era
só Saquila quem sabia sobre ele. Sua verdadeira personalidade, suas funções no
Partido, eram conhecidas também de “Luís”, ou seja, de Heitor Magalhães, o ex-
tesoureiro do regional, expulso por ladrão. Só podia ter sido ele. A não ser que algum
camarada, preso por acaso, tivesse falado... Revia mais uma vez os nomes do
camaradas a par de sua casa, de seu nome, de sua responsabilidade partidária: não
eram muito e nenhum lhe parecia capaz de abrir-se na polícia.
Pelo meio da noite vieram buscá-lo dois tiras. Foi entre eles, segurando as calças,
não tinha ilusões sobre o que o esperava. Barros tentaria convencê-lo a falar no
gabinete, e depois, ali mesmo ou noutra sala, recorreriam à violência. Que se teria
passado com os companheiros de Santo André? Por um deles, Carlos era capaz de pôr
a mão no fogo, lera um tipo duro e provado, desse não iam conseguir nada. Os outros
dois, conhecia-os superficialmente, aguentariam ou não o bárbaro rojão da polícia?
Até onde aquelas prisões afetariam a greve em preparação nas fábricas de Santo
André?
Não o conduziram sequer ao gabinete de Barros, foi levado de uma vez para a sala
onde, ao entrar, Carlos notou pingos de sangue no chão. Alguém passara por ali antes
dele. Dois investigadores já estavam a esperá-lo: – soube depois chamar-se Pereirinha
–, e um moreno atlético, de nariz esborrachado, em que ele reconheceu um famoso
torturador apelidado Dempsey, por ter sido boxeur tempos atrás. Esse Dempsey
possuía uma reputação de criminoso bestial, trabalhara ante na polícia do Rio, mas a
crônica dos seus feitos escandalizara mesmo o Parlamento, antes do Estado Novo, e
devido ao protesto de alguns deputados, ele fora dado como demitido. Em verdade,
haviam-no apenas transferido para São Paulo. Estava em mangas de camisa e segurava
na mão um porrete de borracha. O chamado Pereirinha, cujos olhos maus seguiam os
movimentos de Carlos, descansara sobre uma cadeira um chicote de fios de arame.
Havia no aparelho um rádio ligado, a música de um tango se fazia ouvir em surdina.
Barros apareceu logo depois, em mangas de camisa ele também, fumando dessa
vez um charuto em lugar da clássica ponta de cigarro. Um dos tiras que haviam ido
buscar Carlos no cubículo fechou a porta. Barros sorria em meio ao silêncio, como se
encontrasse cômica a figura do prisioneiro sustentando as calças. Deu m passo,
sentou-se numa cadeira:
- Ouça aqui: tenho uma proposta a lhe fazer. Proposta de amigo. Desta vez está
tudo terminado para vocês, aqui, e em toda parte. Tou com o partido quase todo aqui
nos cubículos, a começar pelos “grandes”. No Rio, caiu a direção nacional inteirinha.
Nos outros Estados é a mesma coisa. Para lhe falar só de um, lhe digo que em Mato
Grosso não ficou ninguém na rua.
AMADO, Jorge. Os subterrâneos da liberdade: A luz no túnel. 29. Ed. Rio de Janeiro: Record, 1978,
p. 23-24.
21

Ainda que o radicalismo do autor e da situação que lhe serviu de referente, o


Estado Novo, se faça presente em cada palavra e em cada linha escrita, há no romance
uma paixão e um carinho pelos personagens que amalgamam Autor e Narrador, numa
comunhão de quem parecia saber que esse romance encerraria um ciclo, abrindo espaço
para uma nova experiência literária que justificaria e coroaria um projeto literário dos
mais fecundos e grandiosos da literatura brasileira.

Gabriela, cravo e canela

O romance Gabriela, cravo e canela é uma patente


confirmação de como a literatura é historicamente condicionada.
Publicada em 1958, o romance configura um momento em que o
Brasil passa por substanciais transformações econômicas, sociais
e políticas: o “nacional desenvolvimentismo”, promovido pelo
governo do Presidente Juscelino Kubistchek, prevaleceu não
apenas na indústria e setores da economia formal. O projeto
juscelinista se caracterizou, no campo político, por um estado
democrático de direito, nitidamente defensor das liberdades políticas, destacando-se,
inclusive, por não haver, durante todo o seu governo, presos políticos, fato até então
inédito no país. As liberdades democráticas formaram um solo fértil para uma
diferenciada manifestação do saber e do fazer. A nova realidade criou condições objetivas
e subjetivas para uma ação cultural e artística diferenciada e contaminou o espírito
daqueles que acreditavam na afirmação e crescimento do país.
O Partido Comunista do Brasil-PCB tem A “Declaração de Março”
que se adaptar a uma nova realidade política, provocou, no início dos anos 1960,
um racha nas fileiras do Partido
como já ressaltado anteriormente, promovida
Comunista do Brasil. O país passou
pela autocrítica do PCUS. O documento de a contar com dois partidos: Partido
1958, conhecido como “Declaração de Março”, Comunista Brasileiro-PCB,
alinhado com as orientações da
liberta o partido do sectarismo e do dogmatismo União Soviética; e Partido
que prevalecia em suas fileiras. Comunista do Brasil-PCdoB, que
não aceita a política de transição
pacífica.
22

O condicionamento da literatura de Jorge Amado não se verifica apenas na


reformulação do seu conteúdo, estabelecendo com isso uma referência imediata da
realidade objetiva; a sua forma adquire uma nova configuração, que reflete o momento
político e econômico da realidade brasileira: o otimismo contagiante do governo JK se
manifesta no humor trabalhado pelo escritor; o sentimento de brasilidade e unidade
nacional ganha sua representação na figura de Gabriela, personagem-síntese e símbolo do
povo brasileiro. Sua obra sofre um redirecionamento em relação a tudo o havia escrito
anteriormente.

Então publiquei Gabriela – eu decidira escrever uma história de amor, insistindo em


que fosse uma história de amor, mas sem abandonar o contexto social, a questão da
realidade brasileira. [...] O que caracteriza Gabriela é uma respiração mais ampla,
um conhecimento mais profundo da realidade, uma complexidade muito maior. Se há
um elemento novo e importante, mais importe do que tudo que caracteriza meus livros
anteriores é o humor. Ele surge em minha obra com Gabriela, e depois ficou para
sempre, e é um dos elementos fundamentais da minha criação.
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trad. Annie Dymetman. Rio de Janeiro: Record,
1990, p. 265 e 267.

O processo de modernização do Brasil se configura formalmente no confronto


entre o Coronel Ramiro Bastos, representante da oligarquia arcaica, e Mundinho
Falcão, representação da modernização das relações comerciais e políticas. A morte de
Ramiro Bastos significa o fim de uma era de atrasos, enquanto Mundinho traz a
modernidade e o “desenvolvimentismo” para Ilhéus.

Mundinho levantou o binóculo, aplicou-o aos olhos. Viu sua casa moderna, trouxera
um arquiteto do Rio para construí-la. Os sobrados da avenida, os jardins do palacete
do coronel Misael, as torres da matriz, o grupo escolar. O dentista Osmundo, envolto
num roupão, saía de casa para o banho de mar tomado bem de manhãzinha para não
escandalizar a população. Na praça São Sebastião, nem uma só pessoa. O Bar Vesúvio
com suas portas fechadas. O vento da noite derrubara uma tabuleta de anúncio na
frente do cinema, Mundinho examinava cada detalhe atentamente, quase com emoção.
A verdade é que gostava cada vez mais daquela terra, não lamentava o aloucado
arroubo a trazê-lo um dia, há poucos anos, para ali, como um náufrago à deriva,
servindo-lhe qualquer terra onde salvar-se. Mas essa não era uma terra qualquer. Ali
crescia o cacau. Onde melhor aplicar o seu dinheiro, multiplicá-lo? Bastava ter
disposição para o trabalho, cabeça para os negócios, tino e audácia. Tudo isso ele
possuía e algo mais: mulher a esquecer, paixão impossível a arrancar do peito e do
pensamento.
23

Dessa vez, no Rio, a mãe e os irmãos foram unânimes em achá-lo mudado,


diferente.
Lourival, o irmão mais velho, não pode deixar de reconhecer com sua voz de
desdém,
de homem sempre enfastiado:
- Não há dúvida, o rapazinho amadureceu.
Emílio sorrira, chupando o charuto:
- E está ganhando dinheiro. Não devíamos - falava agora para Mundinho - ter
permitido que partisses. Mas quem podia adivinhar que o nosso jovem galã tinha jeito
para negócios? Aqui nunca revelaste gosto senão para a esbórnia. E, quando te foste,
levando teu dinheiro, que podíamos imaginar senão mais uma loucura, maior que as
outras? Era esperar tua volta, para encaminhar-te na vida.
A mãe concluíra, quase irritada:
- Ele não é mais um menino.
Irritada com quem? Com Emílio por dizer tais coisas ou com Mundinho que já não
lhe vinha solicitar mais dinheiro, após esbanjar a mesada gorda?
Mundinho deixava-os falar, gozava aquele diálogo. Quando eles não mais tiveram
o que dizer, então anunciou:
- Penso meter-me na política, fazer-me eleger qualquer coisa. Deputado, talvez...
Pouco a pouco, estou a tornar-me o homem importante da terra. Que pensas, Emílio,
de me veres subindo à tribuna para responder a um desses teus discursos de adulação
ao governo? Quero vir pela oposição...
Na grande sala austera da residência familiar, os móveis solenes, a mãe a dominá-
los como uma rainha, os olhos altivos, a cabeleira branca, estavam os três irmãos a
conversar. Lourival, cujas roupas vinham de Londres, jamais aceitara deputação ou
senatoria. Mesmo um ministério recusara quando convidado. Governador de São
Paulo, quem sabe?, aceitaria se fosse escolhido por todas as forças políticas. Emílio
era deputado federal, eleito e reeleito sem o menor esforço. Muito mais idosos os dois
que Mundinho, espantavam-se agora de vê-lo homem, gerindo seus negócios,
exportando cacau, obtendo lucros invejáveis, falando daquela terra bárbara onde fora
se meter, ninguém jamais pôde saber por que motivo, anunciando-se deputado em
breve.
- Podemos te ajudar - disse, paternalmente, Lourival
- Faremos botar teu nome na chapa do governo, entre os primeiros. Eleição
garantida - completou Emílio.
- Não vim aqui para pedir, vim aqui para contar.
- Orgulhoso, o rapazinho... - murmurou Lourival desdenhoso.
- Sozinho, não te elegerás - previu Emílio.
- Sozinho vou me eleger. E no terço da oposição. Governo, só quero ser lá mesmo,
em
Ilhéus. Governo que vou tomar, não vim aqui para solicitá-lo a vocês, muito obrigado.
A mãe alteou a voz:
- Podes fazer o que quiseres, ninguém te impede. Mas por que te levantas contra
teus
irmãos? Por que te separas de nós? Eles só querem te ajudar, são teus irmãos.
- Não sou mais menino, a senhora mesma disse.
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Rio de Janeiro: Record; Altaya, 1995, p. 36-38.
24

Em filosofia dialética, o acúmulo quantitativo altera a qualidade da coisa, como a


água que passa do estado líquido para o gasoso depois de acumular certa quantidade de
calor. Assim também, acontece em Gabriela, tudo passa por transformação: os princípios
morais, legalistas e políticos acompanham o movimento da própria personagem, que
também se transforma em seu mais puro sentimento de liberdade. A luta dos contrários
provoca a transformação, e os contrários se completam, em seu aspecto político, na figura
do Coronel Ramiro Bastos.

Era um velho seco, resistente à idade. Seus olhos pequenos conservavam um brilho
de comando, de homem acostumado a dar ordens. Sendo um dos grandes fazendeiros
da região, fizera-se chefe político respeitado e temido. O poder viera às suas mãos
durante as lutas pela posse da terra, quando o poderio de Cazuza de Oliveira
desmoronou-se. Apoiara o velho Seabra, esse entregou-lhe a região. Fora duas vezes
intendente, era agora senador estadual. De dois em dois anos mudava o intendente,
em eleições a bico de pena, mas nada mudava em realidade, pois quem continuava a
mandar era mesmo o coronel Ramiro, cujo retrato de corpo inteiro se podia ver no
salão nobre da intendência, onde se realizavam conferências e festas. Amigos
incondicionais ou parentes seus revezavam-se no cargo, não moviam uma palha sem
sua aprovação. Seu filho, médico de crianças e deputado estadual, deixara fama de
bom administrador. Abrira ruas e praças. Plantara jardins, durante sua gestão a cidade
começara a mudar de fisionomia. Falava-se ter assim sucedido para facilitar a eleição
do rapaz à Câmara Estadual. A verdade, porém, é que o coronel Ramiro amava a
cidade à sua maneira, como amava o jardim de sua casa, o pomar de sua fazenda. Nos
jardins de sua casa plantara até macieiras e pereiras, mudas vindas da Europa.
Gostava, de ver a cidade limpa (e para isso fizera a intendência adquirir caminhões),
calçada, ajardinada, com bom serviço de esgotos. Animava as construções de boas
casas, alegrava-se quando os forasteiros falavam da graça de Ilhéus, com suas praças
e jardins. Mantinha-se, por outro lado, obstinadamente surdo a certos problemas, a
reclamações diversas: criação de hospitais, fundação de um ginásio municipal,
abertura de estradas para o interior, construção de campos de esportes. Torcia o nariz
ao Clube Progresso e nem queria ouvir falar de dragagem, da barra. Cuidava de tais
coisas quando não tinha jeito, quando sentia abalar-se seu prestígio. Assim fora com
a estrada de rodagem, obra das duas intendências, a de Ilhéus, a de Itabuna. Olhava
com desconfiança certos empreendimentos, e, sobretudo, certos hábitos novos. E
como a oposição estava reduzida a um pequeno grupo de descontentes sem força e
sem maior expressão, o coronel fazia quase sempre o que queria, com um supremo
desprezo pela opinião pública. No entanto, apesar de sua teimosia, nos últimos tempos
sentia seu indiscutível prestígio, sua palavra como lei, um tanto quanto abalados. Não
pela oposição, gente sem conceito. Mas pelo próprio crescimento da cidade e da
região, que às vezes parecia querer escapar de suas mãos agora trêmulas. Suas próprias
netas não, o criticavam porque ele fizera a intendência negar uma ajuda de custo ao
Clube Progresso? E o jornal de Clóvis Costa não ousara discutir o problema do
ginásio? Ele ouvira a conversa das netas: Vovô é um retrógrado!
25

Ele compreendia, aceitava os cabarés, as casas de mulheres da vida, a orgia,


desenfreada das noites de Ilhéus. Os homens precisavam daquilo, ele também fora
jovem. O que não entendia era clube para rapazes e moças conversarem até altas horas,
dançarem essas tais danças modernas, onde até mulheres casadas iam rodopiar em
outros braços que não os de seus maridos, uma indecência! Mulher é para viver dentro
de casa, cuidando dos filhos e do lar. Moça solteira é para esperar marido, sabendo
coser, tocar piano, dirigir a cozinha. Não pudera impedir a fundação do clube, bem se
esforçara. Esse Mundinho Falcão, vindo do Rio, escapava ao seu controle, não vinha
visitá-lo nem consultá-lo, decidia por sua própria conta, ia fazendo o que bem
entendia. O coronel sentia obscuramente ser o exportador um inimigo, ainda lhe daria
dor de cabeça. Na aparência mantinham ótimas relações. Quando se encontravam, o
que sucedia raramente, trocavam palavras gentis, protestos de amizade, punham-se à
disposição um do outro. Mas esse tal Mundinho começava a meter o bico em todas as
coisas, era cada vez maior o número de pessoas a cercá-lo, ele falava de Ilhéus, sua
vida, seu progresso, como se aquilo fosse assunto seu, de sua alçada, como se tivesse
alguma autoridade. Era homem de família do sul do país, acostumada a mandar, seus
irmãos tinham prestígio e dinheiro. Para ele, era como se o coronel Ramiro não
existisse. Não fora assim que agira quando resolvera abrir a avenida na praia?
Aparecera de súbito na intendência com as plantas, dono dos terrenos, os planos
completos.
Nacib lhe dava as notícias mais recentes, o coronel já tinha sabido do encalhe do
Ita.
- Mundinho Falcão chegou nele. Disse que o caso da barra...
- Forasteiro... - atalhou o coronel. - Que diabo veio buscar em Ilhéus onde não
perdeu nada? - era aquela voz dura do homem que tocara fogo em fazendas, invadira
povoados, liquidara gente, sem piedade. Nacib estremeceu.
- Forasteiro...
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Rio de Janeiro: Record; Altaya, 1995, p. 58-59.

Jorge Amado não deixa de ser marxista ao escrever Gabriela, apenas o seu
marxismo não está mais contaminado pela ortodoxia stalinista, mas por uma configuração
que não carrega em si as palavras de ordem; as relações sociais apresentadas se
manifestam de maneira a compor um quadro em que o social e o literário se encontram
em equilíbrio, permitindo certa primazia do poético em sua prosa, que será sempre
empenhada na construção de um mundo novo. O materialismo em sua escrita se impõe
na compreensão do choque entre o novo e o velho. As relações sociais e políticas
continuam imprimindo o caráter de sua obra. É preciso, no entanto, estar atento a essas
novas configurações para perceber o empenho de seus romances na defesa intransigente
das camadas populares.
26

Outros morreram e os corpos ficaram pelo caminho, pasto dos urubus. A caatinga
acabou, começaram terras férteis, as chuvas caíram. Ela continuava a deitar-se com
ele, a gemer e a rir, a dormir recostada sobre seu peito nu. Clemente falava, cada vez
mais sombrio, explicava as vantagens, ela apenas ria e balançava a cabeça numa
renovada negativa. Certa noite, ele teve um gesto brusco, atirou-a para um lado, num
repelão:
- Tu não gosta de mim!
De súbito, saído não se sabe de onde, o negro Fagundes apareceu, a arma na mão,
um brilho nos olhos. Gabriela disse:
- Foi nada não, Fagundes.
Ela havia batido contra o tronco de árvore junto ao qual estavam deitados.
Fagundes baixou a cabeça, foi embora. Gabriela ria, a raiva foi crescendo dentro de
Clemente. Aproximou-se dela, tomou-lhe dos pulsos, ela estava caída sobre o mato, o
rosto ferido:
- Tenho até vontade de te matar e a mim também...
- Por quê?
- Tu não gosta de mim.
- Tu é tolo...
- Que é que eu vou fazer, meu Deus?
- Importa não... – disse ela, e o puxou para si.
Agora, naquele último dia de viagem, desnorteado e perdido, ele terminara por se
decidir. Ficaria em Ilhéus, abandonaria seus planos, a única coisa importante era estar
ao lado de Gabriela.
- Já que tu não quer ir, vou arranjar jeito de ficar em Ilhéus. Só que não tenho
ofício, além de lavrar terra não sei fazer um nada...
Ela tomou-lhe a mão num gesto inesperado, ele sentiu-se vitorioso e feliz.
- Não, Clemente, fique não. Pra quê?
- Pra quê?
- Tu veio pra ganhar dinheiro, botar roça, ser um dia fazendeiro. É disso que tu
gosta. Pra que ficar em Ilhéus passando necessidade?
- Só pra te ver, pra gente tá junto.
- E se a gente não puder se ver? É melhor não, tu vai pra teu lado, eu vou pro meu.
Um dia, pode ser, a gente se encontra outra vez. Tu feito um homem rico, nem vai me
reconhecer.
Dizia tudo aquilo tranquilamente, como se as noites que dormiram juntos não
contassem, como se apenas se conhecessem.
- Mas, Gabriela...
Nem sabia como responder-lhe, esquecia os argumentos, também os insultos, a
vontade de bater-lhe para ela aprender que com um homem não se brinca. Só
conseguia dizer:
- Tu não gosta de mim...
- Foi bom a gente ter se encontrado, a viagem encurtou.
- Tu não quer mesmo que eu fique?
- Pra quê? Pra passar necessidade? Num vale a pena. Tu tem tua tenção, vai cumprir
teu destino.
- E tu qual é tua tenção?
- Quero ir pro mato não. O resto só Deus sabe. Ele ficou silencioso, uma dor no
peito, vontade de matá-la, de acabar com a própria vida, antes que a viagem
terminasse.
Ela sorriu:
- Importa não, Clemente.
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Rio de Janeiro: Record; Altaya, 1995, p. 80-81.
27

O jogo dialético acompanha a narrativa, nos apresentando dois lados de uma


mesma realidade, que se contrastam e se completam. Assim como os contrários
Mundinho Falcão e Ramiro Bastos produzem a transformação de Ilhéus, da aridez da
terra, surge a retirante Gabriela, em todo o seu esplendor, sua beleza e sensualidade. O
seu espírito livre reflete no seu comportamento o momento pelo qual o Brasil está
passando.
Gabriela, cravo e canela capta um instante da vida brasileira e anuncia um novo
país, esperançoso e otimista, belo e livre. Ao contrário do que muitos afirmam, o romance
abre um novo veio na literatura amadiana, imprimindo novas cores e novos temperos nos
procedimentos de composição romanesca.

Gabriela é um livro que eu diria muito otimista sobre a vida – aliás, toda a minha obra
é, eu não sou pessimista [...] É um livro otimista, e naquele momento havia um certo
sentimento de orgulho nacional do Brasil [...] Foi um momento em que, devido a uma
série de circunstâncias, inclusive o XX Congresso [do PCUS], que rompeu com o
sectarismo, se conheceu no Brasil uma espécie de “convivência” – o termo é
absolutamente correto – democrática entre políticos, intelectuais, artistas etc. E foi um
momento de grande dinamismo cultural [...] Uma grande efervescência em todos os
setores. Foi neste clima que escrevi Gabriela, e, de uma certa maneira, é verdade, o
livro corresponde à realidade deste clima. Houve uma confluência de coisas.
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trad. Annie Dymetman. Rio de Janeiro: Record,
1990, p. 272 - 274.
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Bibliografia
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