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JORGE AMADO
A solução dos problemas humanos terá que contar com a literatura, a música, a
pintura, enfim com as artes. O homem necessita de beleza como necessita de pão
e de liberdade. As artes existirão enquanto o homem existir sobre a face da terra.
A literatura será sempre uma arma do homem em sua caminhada pela terra, em
sua busca de felicidade.
Jorge Leal Amado de Faria
“um baiano romântico e sensual”
23, da Academia Brasileira de Letras, que tem por patrono José de Alencar e por
primeiro ocupante Machado de Assis.
...vi que não era possível conciliar meu trabalho de escritor com o
de militante. Eu nunca tive cargo de direção, mas, no fundo, dado
ao fato de ser conhecido, acabei tendo uma atuação de dirigente sem
ser dirigente.
DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de
Janeiro: Record; Natal, RN: UFRN, 1996, p. 274.
A segunda fase, iniciada com Gabriela, cravo e canela, deve ser entendida não
como uma negação da primeira, mas como resultante de um projeto literário que sofre
transformações que se superam para encontrar um novo equilíbrio. Falamos aqui de uma
superação dialética, o que não significa negar ou abandonar o que foi feito, mas encontrar
novas alternativas para configurar a realidade que está em constante movimento.
A correlação de forças mundial sofreu transformações profundas a partir das
denúncias dos crimes de Stalin, durante a realização do XX Congresso do Partido
Comunista da URSS. Os métodos de atuação dos comunistas são, então, revistos e a
proposta de transição pacífica para o socialismo inaugura uma nova etapa de convivência
visando despolarizar o mundo (comunismo versus capitalismo) e minimizar as
repercussões da guerra fria.
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A crítica ácida de Alfredo Bosi não é um ponto fora da curva, mas afirmação de
um preconceito que ainda hoje prevalece, e se mantem como princípio de análise a
qualquer romance do escritor. Bosi peca, por não se debruçar de forma científica para
analisar a imensa obra de Jorge Amado: dedica menos de uma página de seu livro para
elaborar sua análise de uma obra romanesca de 23 títulos, sem considerar a incursão do
autor em outros gêneros literários, como o teatro, o conto e a literatura infanto-juvenil;
rotula algumas características que observa, mas não justifica sua postura de menosprezo.
O crítico resvala num falso moralismo quando acusa o autor de “uso imotivado do calão”,
sem considerar que o palavrão é parte integrante e substancial na linguagem popular e
não apenas “imagem do eros do povo”; ao comentar o “pitoresco em vez de captação
estética do meio” demonstra uma declarada má-vontade com uma capacidade literária de
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descrição, narração e relação do homem com a natureza, como se dá, por exemplo, em
Terras do sem fim, em que o homem se defronta com aspectos distintos da mata, e tem
estimulada suas contradições.
A mata dormia o seu sono jamais interrompido. Sobre ela passavam os dias e as
noites, brilhava o sol do verão, caiam as chuvas do inverno. Os troncos eram
centenários, um eterno verde se sucedia pelo monte afora, invadindo a planície, se
perdendo no infinito. Era como um mar nunca explorado, cerrado no seu mistério. A
mata era como uma virgem cuja carne nunca tivesse sentido a chama do desejo. E
como uma virgem era linda, radiosa e moça, apesar das arvores centenárias. Misteriosa
como a carne de uma mulher ainda não possuída. E agora era deseja também.
[...]
Da mata, do seu mistério, vinha o medo para o coração dos homens. Quando eles
chegaram, numa tarde, através do atoleiros e rios, abrindo picadas, e se defrontaram
com a floresta virgem, ficaram paralisados pelo medo. A noite vinha chegando e trazia
nuvens negras com elas, chuvas pesadas de junho.
[...]
Os homens se encolheram com medo, a mata lhes infundia um respeito religioso.
Não havia nenhuma picada, ali habitavam somente os animais e assombrações. Os
homens pararam, o medo no coração.
AMADO, Jorge. Terras do sem fim. 62. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 45-46.
Mas, em tudo, destaca-se um ponto que merece ser debatido, quando acusa Jorge
Amado de “descuido formal a pretexto de oralidade”. Para o comentador, buscar
representar a linguagem do povo, num procedimento em que consegue a aproximação
entre o Narrador e o Narrado, é signo de baixa literatura e “populismo literário”.
Jorge Amado rompe com a dicotomia linguística observada em, por exemplo, A
bagaceira, de José Américo de Almeida, em que se confrontam de maneira bastante
acentuada o léxico erudito do narrador e o léxico popular-regional dos trabalhadores,
demonstrando, aqui sim, uma postura em que o pitoresco é realçado, pois visto de fora.
O Narrador estabelece uma distância significativa entre a sua voz e a voz daquele que
narra.
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À vista do bueiro fumegante que sujava o céu estivo, a matula espectral detinha-se
esperançosa. E ficava a espiar a casa do engenho como uma grande essa armada no
negrume do teto velho.
Alguns faziam menção de subir. Mas logo desandavam, aos tombos, na mobilidade
incerta.
De quando em quando, um magote vingava o socalco. Chegavam mastigando em
seco, para enganar a fome, nas mais grotescas atitudes.
Dobravam-se os joelhos, não como pedinchões. Genufletiam moídos de fadiga.
Não se carpiam, como se estivessem realizando um destino irremediável. Nem,
sequer, lavavam com lágrimas as caras poentas.
Escorraçados, retrocediam, arquejantes, sem uma queixa.
E, desengonçando-se, de déu em déu, numa marcha esquecida, o rebotalho errante
ia atulhar as feiras, malignar as cidades.
ALMEIDA, José Américo. A bagaceira. 42. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006, p. 9.
proposta de “um máximo de honestidade” para apresentar a luta do homem nas suas
relações de trabalho e exploração de sua mão-de-obra; em segundo lugar, sob o ponto de
vista narrativo, apresenta o protagonismo da classe operária e camponesa. Isso significa
um posicionamento crítico e materialista ao sistema capitalista: crítico porque apresenta
as fraturas de um sistema que vê o homem apenas como produtor do lucro; materialista
porque em sua análise privilegia as relações sociais historicamente condicionadas.
Cacau
Segundo o site oficial da Fundação Casa de Jorge Amado, Cacau foi concluído
em junho de 1933 e teve sua 1ª edição pela Ariel Editora, Rio de Janeiro, em agosto de
1934, com capa e ilustrações de Santa Rosa, 197 páginas e tiragem de dois mil
exemplares. A 2ª edição é de setembro do mesmo ano, com três mil exemplares”.
FAZENDA FRATERNIDADE
As nuvens encheram o céu até que começou a cair uma chuva grossa. Nem uma
nesga de azul. O vento sacudia as árvores e os homens seminus tremiam. Pingos de
água rolavam das folhas e escorriam pelos homens, Só os burros pareciam não sentir
a chuva. Mastigavam o capim que crescia em frente ao armazém. Apesar do temporal
os homens continuavam o trabalho. Colodino perguntou:
– Quantas arrobas você já desceu?
– Vinte mil, o Antônio Barriguinha, o tropeiro, pegou do último saco:
– Esse ano o home colhe oitenta mil...
– Cacau como diabo!
– Dinheiro pra burro...
Desamarraram os burros e Barriguinha tangeu-os:
– Vambora, tropa desgraçada...
Os animais começaram a andar de má vontade. Antônio Barriguinha chicoteava-os:
– Burro miseráve... Carbonato, dianho, vambora... Na frente, Mineira, a madrinha
da tropa, chocalhava guizos. A chuva caía, um aguaceiro grande. A casa do coronel
estava com as janelas fechadas. Honório, que vinha da roça, chalaceou com
Barriguinha:
– Eh! Muié de tropeiro!
– Como vai, amásia do podador?
– Como vai tua mãe?
– A tua tá ficando frouxa...
A tropa, carregada de sacos de cacau, desaparecia na volta da estrada. Atrás,
Antônio Barriguinha, forte e alto, amulatado, a tocar os burros com um chicote
comprido. Honório subiu a ladeira e cumprimentou Colodino:
– Bom dia.
– Um dia desgraçado. Chuva que não acaba mais.
E de repente, mudando de assunto:
– Já desceu vinte mil arrobas, Honório.
– Então Mané Frajelo tá contente.
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– Se tá...
Honório sentou-se na pedra junto a Colodino, dando as costas ao armazém, que
conservava as portas fechadas. Em frente, cercada por um jardim, lindo de jasmineiros
e roseiras, a casa-grande da fazenda, de janelas azuis e varanda verde. Em cima uma
tabuleta de um pintor barato:
FAZENDA FRATERNIDADE
do coronel Manuel Misael de Sousa Teles
Honório riu um riso alvar, com seus dentes brancos, magníficos, que contrastavam
com o rosto negro e os lábios grossos:
– Mané Frajelo.
– Mané Miserável Saqueia Tudo.
Honório cuspiu:
– Merda Mexida Sem Tempêro.
Ficaram olhando. Como era grande a casa do coronel... E morava tão pouca gente
ali. O coronel, a mulher, a filha e o filho, estudante, que nas férias aparecia, elegante,
estúpido, tratando os trabalhadores como escravos. E olharam as suas casas, as casas
onde dormiam. Estendiam-se pela estrada. Umas vinte casas de barro, cobertas de
palha, alagadas pela chuva.
– Que diferença...
– A sorte é Deus quem dá.
– Qual Deus... Deus também é pelos ricos...
– Isso é mesmo.
– Eu queria ver o Mané Frajelo dormir aqui.
– Devia ser divertido.
Colodino acendia um cigarro. Honório pegou da foice de podar os cacaueiros e
contou:
– A roça lá detrás do rio tá assinzinha de cacau. Um safrão.
– Esse ano o homem colhe umas oitenta mil.
Nós ganhávamos três mil e quinhentos por dia e parecíamos satisfeitos. Ríamos e
pilheriávamos. No entanto nenhum de nós conseguia economizar um tostão que
fosse. A despensa levava todo nosso saldo. A maioria dos trabalhadores devia ao
coronel e estava amarrada à fazenda. Também quem entendia as contas de João
Vermelho, o despenseiro? Éramos todos analfabetos. Devíamos... Honório devia
mais de novecentos mil-réis e agora nem podia se tratar. Um impaludismo crônico
quase o impedia de andar.
Assim mesmo partia às seis horas da manhã para podar as roças, depois de comer
um prato de feijão com carne seca. Era um tipo curioso aquele Honório. Preto, forte,
alto, brigão, estava na fazenda há quase dez anos. Um bom camarada, capaz de se
sacrificar pelos outros. Apesar dele dever muito, o coronel o conservava.
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Diziam que ele já fizera algumas mortes a mando de Mane Frajelo. Não sei se é
verdade. Sei que Honório era o melhor camarada desse mundo. Bebia cachaça pelo
gargalo da garrafa e Jamais foi visto embriagado. Mané Frajelo respeitava-o.
Mané Frajelo fora um apelido posto na cidade. Pegou. Um flagelo, de fato, aquele
homem gordo, de setenta anos, que falava com uma voz arrastada e vestia
miseravelmente. Manuel Misael de Sousa Teles era o seu verdadeiro nome. Possuía
mais de oitenta mil contos e as suas fazendas estendiam-se por todo o Município de
Ilhéus. Nós fazíamos contas à noite. João Grilo, magro como um espeto, mulato
gozado, que contava anedotas, bancava o matemático. Sentava nas tábuas que lhe
serviam de cama e enquanto Colodino passava os dedos pela viola, fazia as contas:
– Oitenta mil arrobas a doze e quinhentos, são...
– ... mil contos.
– É o que Merda Mexida Sem Tempero tem de lucro só em cacau.
Nós arregalávamos os olhos admirados. Mil contos... E nos pagava três mil e
quinhentos por dia.
AMADO, Jorge. Cacau. In: ______. O país do carnaval, Cacau, Suor. São Paulo: Martins, 197 [?], p.
102-104.
Realismo socialista
As primeiras manifestações do realismo socialista serão encontradas na peça Os
pequenos burgueses, de Gorki, que apresenta elementos que se enquadram
esteticamente nessa vertente; no entanto, é no romance Mãe que Gorki escrito em
1907, que Gorki se consolida como o primeiro escritor realista socialista. O realismo
socialista foi adotado como estética oficial da União Soviética em 1934, ano de
realização do Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos.
Este livro está sem seguimento. Mas é que ele não tem propriamente enredo e
essas lembranças da vida da roça eu as vou pondo no papel à proporção que me vêm
à memória. Li uns romances antes de começar “Cacau” e bem vejo que este não se
parece nada com eles. Vai assim mesmo. Quis contar apenas a vida da roça. Por vezes
tive ímpetos de fazer panfleto e poema. Talvez nem romance tenha saído.
AMADO, Jorge. Cacau. In: ______. O país do carnaval, Cacau, Suor. São Paulo:
Martins, 1970[?], p. 165-166.
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Os subterrâneos da liberdade
O Estado Novo não foi apenas um regime autoritário e repressivo, cerceador das
liberdades fundamentais do povo brasileiro; não foi apenas um mecanismo político para
Vargas se perpetuar no poder; o Estado Novo não pode ser analisado sem se considerar
um projeto maior que visava o alinhamento com o nazi-fascismo na luta obsessiva contra
o “comunismo internacional”. Jorge Amado viveu esse momento com bastante
intensidade e, ele, também, sofreu perseguições e prisões, teve seus livros queimados em
praça pública. Superou o Estado Novo e se elegeu Deputado Constituinte pelo PCB, em
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consciência dos trabalhadores é tarefa urgente para enfrentar o poderio capitalista que
avança sobre aquelas terras ainda virgens. Nestor descobre as letras e tudo o que elas
podem representar para o avanço da luta contra a exploração capitalista. Do
conhecimento, surge uma nova consciência, e desta consciência novas possibilidades se
anunciam.
Mundinho levantou o binóculo, aplicou-o aos olhos. Viu sua casa moderna, trouxera
um arquiteto do Rio para construí-la. Os sobrados da avenida, os jardins do palacete
do coronel Misael, as torres da matriz, o grupo escolar. O dentista Osmundo, envolto
num roupão, saía de casa para o banho de mar tomado bem de manhãzinha para não
escandalizar a população. Na praça São Sebastião, nem uma só pessoa. O Bar Vesúvio
com suas portas fechadas. O vento da noite derrubara uma tabuleta de anúncio na
frente do cinema, Mundinho examinava cada detalhe atentamente, quase com emoção.
A verdade é que gostava cada vez mais daquela terra, não lamentava o aloucado
arroubo a trazê-lo um dia, há poucos anos, para ali, como um náufrago à deriva,
servindo-lhe qualquer terra onde salvar-se. Mas essa não era uma terra qualquer. Ali
crescia o cacau. Onde melhor aplicar o seu dinheiro, multiplicá-lo? Bastava ter
disposição para o trabalho, cabeça para os negócios, tino e audácia. Tudo isso ele
possuía e algo mais: mulher a esquecer, paixão impossível a arrancar do peito e do
pensamento.
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Era um velho seco, resistente à idade. Seus olhos pequenos conservavam um brilho
de comando, de homem acostumado a dar ordens. Sendo um dos grandes fazendeiros
da região, fizera-se chefe político respeitado e temido. O poder viera às suas mãos
durante as lutas pela posse da terra, quando o poderio de Cazuza de Oliveira
desmoronou-se. Apoiara o velho Seabra, esse entregou-lhe a região. Fora duas vezes
intendente, era agora senador estadual. De dois em dois anos mudava o intendente,
em eleições a bico de pena, mas nada mudava em realidade, pois quem continuava a
mandar era mesmo o coronel Ramiro, cujo retrato de corpo inteiro se podia ver no
salão nobre da intendência, onde se realizavam conferências e festas. Amigos
incondicionais ou parentes seus revezavam-se no cargo, não moviam uma palha sem
sua aprovação. Seu filho, médico de crianças e deputado estadual, deixara fama de
bom administrador. Abrira ruas e praças. Plantara jardins, durante sua gestão a cidade
começara a mudar de fisionomia. Falava-se ter assim sucedido para facilitar a eleição
do rapaz à Câmara Estadual. A verdade, porém, é que o coronel Ramiro amava a
cidade à sua maneira, como amava o jardim de sua casa, o pomar de sua fazenda. Nos
jardins de sua casa plantara até macieiras e pereiras, mudas vindas da Europa.
Gostava, de ver a cidade limpa (e para isso fizera a intendência adquirir caminhões),
calçada, ajardinada, com bom serviço de esgotos. Animava as construções de boas
casas, alegrava-se quando os forasteiros falavam da graça de Ilhéus, com suas praças
e jardins. Mantinha-se, por outro lado, obstinadamente surdo a certos problemas, a
reclamações diversas: criação de hospitais, fundação de um ginásio municipal,
abertura de estradas para o interior, construção de campos de esportes. Torcia o nariz
ao Clube Progresso e nem queria ouvir falar de dragagem, da barra. Cuidava de tais
coisas quando não tinha jeito, quando sentia abalar-se seu prestígio. Assim fora com
a estrada de rodagem, obra das duas intendências, a de Ilhéus, a de Itabuna. Olhava
com desconfiança certos empreendimentos, e, sobretudo, certos hábitos novos. E
como a oposição estava reduzida a um pequeno grupo de descontentes sem força e
sem maior expressão, o coronel fazia quase sempre o que queria, com um supremo
desprezo pela opinião pública. No entanto, apesar de sua teimosia, nos últimos tempos
sentia seu indiscutível prestígio, sua palavra como lei, um tanto quanto abalados. Não
pela oposição, gente sem conceito. Mas pelo próprio crescimento da cidade e da
região, que às vezes parecia querer escapar de suas mãos agora trêmulas. Suas próprias
netas não, o criticavam porque ele fizera a intendência negar uma ajuda de custo ao
Clube Progresso? E o jornal de Clóvis Costa não ousara discutir o problema do
ginásio? Ele ouvira a conversa das netas: Vovô é um retrógrado!
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Jorge Amado não deixa de ser marxista ao escrever Gabriela, apenas o seu
marxismo não está mais contaminado pela ortodoxia stalinista, mas por uma configuração
que não carrega em si as palavras de ordem; as relações sociais apresentadas se
manifestam de maneira a compor um quadro em que o social e o literário se encontram
em equilíbrio, permitindo certa primazia do poético em sua prosa, que será sempre
empenhada na construção de um mundo novo. O materialismo em sua escrita se impõe
na compreensão do choque entre o novo e o velho. As relações sociais e políticas
continuam imprimindo o caráter de sua obra. É preciso, no entanto, estar atento a essas
novas configurações para perceber o empenho de seus romances na defesa intransigente
das camadas populares.
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Outros morreram e os corpos ficaram pelo caminho, pasto dos urubus. A caatinga
acabou, começaram terras férteis, as chuvas caíram. Ela continuava a deitar-se com
ele, a gemer e a rir, a dormir recostada sobre seu peito nu. Clemente falava, cada vez
mais sombrio, explicava as vantagens, ela apenas ria e balançava a cabeça numa
renovada negativa. Certa noite, ele teve um gesto brusco, atirou-a para um lado, num
repelão:
- Tu não gosta de mim!
De súbito, saído não se sabe de onde, o negro Fagundes apareceu, a arma na mão,
um brilho nos olhos. Gabriela disse:
- Foi nada não, Fagundes.
Ela havia batido contra o tronco de árvore junto ao qual estavam deitados.
Fagundes baixou a cabeça, foi embora. Gabriela ria, a raiva foi crescendo dentro de
Clemente. Aproximou-se dela, tomou-lhe dos pulsos, ela estava caída sobre o mato, o
rosto ferido:
- Tenho até vontade de te matar e a mim também...
- Por quê?
- Tu não gosta de mim.
- Tu é tolo...
- Que é que eu vou fazer, meu Deus?
- Importa não... – disse ela, e o puxou para si.
Agora, naquele último dia de viagem, desnorteado e perdido, ele terminara por se
decidir. Ficaria em Ilhéus, abandonaria seus planos, a única coisa importante era estar
ao lado de Gabriela.
- Já que tu não quer ir, vou arranjar jeito de ficar em Ilhéus. Só que não tenho
ofício, além de lavrar terra não sei fazer um nada...
Ela tomou-lhe a mão num gesto inesperado, ele sentiu-se vitorioso e feliz.
- Não, Clemente, fique não. Pra quê?
- Pra quê?
- Tu veio pra ganhar dinheiro, botar roça, ser um dia fazendeiro. É disso que tu
gosta. Pra que ficar em Ilhéus passando necessidade?
- Só pra te ver, pra gente tá junto.
- E se a gente não puder se ver? É melhor não, tu vai pra teu lado, eu vou pro meu.
Um dia, pode ser, a gente se encontra outra vez. Tu feito um homem rico, nem vai me
reconhecer.
Dizia tudo aquilo tranquilamente, como se as noites que dormiram juntos não
contassem, como se apenas se conhecessem.
- Mas, Gabriela...
Nem sabia como responder-lhe, esquecia os argumentos, também os insultos, a
vontade de bater-lhe para ela aprender que com um homem não se brinca. Só
conseguia dizer:
- Tu não gosta de mim...
- Foi bom a gente ter se encontrado, a viagem encurtou.
- Tu não quer mesmo que eu fique?
- Pra quê? Pra passar necessidade? Num vale a pena. Tu tem tua tenção, vai cumprir
teu destino.
- E tu qual é tua tenção?
- Quero ir pro mato não. O resto só Deus sabe. Ele ficou silencioso, uma dor no
peito, vontade de matá-la, de acabar com a própria vida, antes que a viagem
terminasse.
Ela sorriu:
- Importa não, Clemente.
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Rio de Janeiro: Record; Altaya, 1995, p. 80-81.
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Gabriela é um livro que eu diria muito otimista sobre a vida – aliás, toda a minha obra
é, eu não sou pessimista [...] É um livro otimista, e naquele momento havia um certo
sentimento de orgulho nacional do Brasil [...] Foi um momento em que, devido a uma
série de circunstâncias, inclusive o XX Congresso [do PCUS], que rompeu com o
sectarismo, se conheceu no Brasil uma espécie de “convivência” – o termo é
absolutamente correto – democrática entre políticos, intelectuais, artistas etc. E foi um
momento de grande dinamismo cultural [...] Uma grande efervescência em todos os
setores. Foi neste clima que escrevi Gabriela, e, de uma certa maneira, é verdade, o
livro corresponde à realidade deste clima. Houve uma confluência de coisas.
RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trad. Annie Dymetman. Rio de Janeiro: Record,
1990, p. 272 - 274.
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29
Bibliografia
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Martins, 1970[?].
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Rio de Janeiro: Record; Altaya, 1995.
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AMADO, Jorge. Os subterrâneos da liberdade: Agonia da noite. 35. Ed. Rio de
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AMADO, Jorge. Os subterrâneos da liberdade: A luz no túnel. 29. Ed. Rio de Janeiro:
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CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. 5. ed. revista pelo autor. Rio de Janeiro:
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RAILLARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Trad. Annie Dymetman. Rio de
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ROCHE, Jean. Jorge bem/mal Amado. Trad. Liliane Barthod. São Paulo: Cultrix,
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TAVARES, Paulo. Criaturas de Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record; Pró-Memória
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TAVARES, Paulo. O baiano Jorge Amado e sua obra. Rio de Janeiro: Record, 1980.
VÁRIOS. Jorge Amado, povo e terra. São Paulo: Martins, 1972.