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Resumo:
O conceito de gestus é, certamente, uma das maiores contribuições do pensamento de
Bertolt Brecht (1898-1956) para o teatro. O seu caráter revolucionário se manifesta em
suas amplas possibilidades de configuração estética e formal, como principal articulador
do efeito de distanciamento. O presente artigo pretende, por meio de uma análise
histórica, materialista e dialética, apresentar o gestus social em sua configuração épico-
dialética. Pretende, também, estabelecer as distinções fundamentais entre gesto e gestus,
o que tem produzido bastante confusão, compreendendo que nem todo gesto é um gestus,
ainda que um gesto possa vir a tornar um gestus.
Abstract:
The concept of gestus is certainly one of the greatest contributions of Bertolt Brecht's
(1898-1956) thinking to the theater. Its revolutionary character is manifested in its wide
possibilities of aesthetic configuration, as the main articulator of the distancing effect.
This article intends, through a historical, dialectical and materialistic analysis, to present
the social gestus in its dialectical and narrative configuration. It also intends to establish
the fundamental distinctions between gesture and gestus, which produces a lot of
confusion, understanding that not every gesture is a gestus, even if a gesture may become
a gestus.
Keywords: Social gestus; Distancing effect; Dialectical realism; Epic theater; Bertolt
Brecht.
1
Doutor em Literatura Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFMG.
E-mail: luizpaixaoteatro@gmail.com
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Gesto ou gestus?
A formulação do conceito de gestus2 social e sua práxis dramatúrgico-cênica não
são estáticas, e estão inseridas num contexto bem mais amplo da poética brechtiana, e são
resultado de uma pesquisa que se aprofundou ao longo dos quase quarenta anos que
Bertolt Brecht dedicou à investigação estética e formal em torno de um teatro épico,
realista e dialético. Não se pode pensar o teatro brechtiano sem se considerar um projeto
estético-ideológico que passa por transformações fundamentais, mas que sempre mantém
sua perfectiva de aprimoramento do efeito de distanciamento, procedimento estético e
formal que possibilita uma análise e uma compreensão dialética da realidade concreta.
Em sua definição dicionarizada, de origem latina – gestus –, o gesto não se
caracteriza apenas como ação física voluntária e ilustrativa de um sentimento, podendo
também, em outras circunstâncias, ser compreendido como uma atitude, não descrita pelo
movimento, que se assume em relação a alguma coisa específica, na disposição de se
colocar em favor de. Uma questão que precisa ser considerada em relação ao conceito
envolve a tradução do termo. Ao optar por utilizar sua forma latina, Brecht se refere tanto
ao gesto como expressão física dramatizada, quanto à sua concepção como
intencionalidade e atitude. Nessa perspectiva, a tradução de gestus por gesto, corre o risco
de induzir a uma leitura equivocada, pois não distingue um conceito – operador estético
do efeito de distanciamento –, de uma ação física naturalizada, e de caráter expressivo e
ilustrativo3.
O gesto, como percebido na poética brechtiana, importa menos em sua
naturalidade ilustrativa do que como procedimento estético que visa expressar
contradições, comportamentos e relações sociais objetivas. O seu processo de
2
Existem diversas grafias para “gestus” e “gestus social”, ou mesmo, “gesto” nas várias traduções
consultadas e referenciadas no trabalho. Nas citações, manterei a grafia original; no entanto, utilizarei
sempre o itálico na palavra gestus e “gestus social” quando em texto de minha autoria.
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Para demonstrar, verifiquemos a tradução de Fiama Pais Brandão: “Chamamos esfera do gesto [gestus]
aquela a que pertencem as atitudes que as personagens assumem em relação umas às outras” (Foram
confrontadas as duas edições da obra: 1978, p. 124 e 2005, p. 154, em ambas, a tradução é a mesma).
Vejamos, agora, o comentário feito por Carlos Alberto Silva em seu artigo “Gesto e gestus: contribuições
para teoria e prática do gesto em cena”: tendo como base a tradução citada, afirma que “A referência é
“esfera dos gestos” e não Gestus. A ênfase na dimensão sensível do gesto ganha importância dado o
contraste com outras orientações técnicas e metodológicas de atuação”
(https://www.revistas.usp.br/aspas/article/view/68383, p. 34). Observa-se, portanto, que há um flagrante
equívoco, induzido pela tradução, pois, segundo o pensamento brechtiano, é o gestus que traduz “as atitudes
que as personagens assumem em relação umas às outras” e, de forma alguma, o gesto; ainda que o gesto
possa vir a ser um gestus, o que não é o caso na argumentação de Silva. O trecho traduzido por Brandão
(1978), pertence ao “Pequeno organon para o teatro §61”. Foram consultadas várias traduções do referido
trecho, e confirmada em todos a utilização da grafia latina – gestus: (BRECHT, 1967, p. 209); (BRECHT,
1971, p. 132); (BORNHEIM, 1992, p. 282).
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Gestus social
O conceito de gestus é, certamente, uma das maiores contribuições do pensamento
brechtiano para o teatro. O seu caráter revolucionário se manifesta em sua ampla
possibilidade de configuração estética, uma vez que serve a todas as instâncias do teatro
como forma de composição artística das contradições dialéticas e materialistas que
condicionam o comportamento humano. Sua capacidade de síntese dialética das
contradições da sociedade, por meio de representações que carregam significados e
revelações, o gestus revela as condições objetivas em que se relacionam os personagens
entre si e com a situação a que estão subordinados.
A exposição da história e sua comunicação por meios ajustados de
distanciamento constituem a tarefa principal do teatro. Nem tudo depende do ator,
ainda que nada pode ser feito se não o levarmos em conta. A história é
interpretada e apresentada pelo teatro como um todo, constituído de atores,
cenógrafos, encarregados das máscaras e do guarda-roupa, músicos e
coreógrafos. Todos eles conjugam suas artes para uma operação comum, sem
evidentemente, renunciar à sua autonomia. Dá-se ênfase ao Gestus geral da
representação – o que sempre sublinha o que está sendo mostrado [...] (BRECHT,
1967, p. 216)
pode ser apenas um alimento, mas também pode representar a miséria de um determinado
personagem, é neste momento que o pão ganha a dimensão de gestus social. A sua
realização permite o distanciamento crítico necessário para a compreensão das forças que
atuam definindo hierarquias e subordinações de classes observadas na sociedade,
adquirindo uma função que é simultaneamente estética, política e ideológica. O gestus
social permite compreender, por meio de uma perspectiva social, as diversas situações
dramáticas apresentadas, tanto em sua expressividade cênica, quando em sua estrutura
dramatúrgica, pois “cada acontecimento comporta um gestus básico” (BRECHT, 1967,
p. 213), o que significa dizer que as ações dos personagens estão socialmente
condicionadas e, como tal, devem ser apresentadas.
Dividindo o material [...] num Gestus após o outro, o ator apodera-se do
personagem, apoderando-se antes da história. Só depois de caminhar por todos
os episódios é que pode, como de um salto, ajustar-se e fixar seu personagem,
completo com todas as características individuais. [...] as contradições contidas
nas atitudes diversas da personagem [...] o ator encontra na história, encarada
como um todo, possibilidade de associar esses aspectos contraditórios.
(BRECHT, 1967, p. 212)
O que se observa é que não se trata apenas de uma ironia de Galileu, mas pretende-
se estabelecer através dela o contraponto científico a todos os comentários anteriores,
criando assim uma crítica científica à crítica negacionista. O comentário de Galileu
assume a condição de gestus social ao historicizar a situação, por meio da dialética
negação e afirmação da lei da gravidade: ao negar a lei da gravidade – “caiu pra cima” –
Galileu afirma a ciência, e nega todos os comentários negacionistas, por meio de um dado
científico que está confirmado em sua negação.
Um momento de rara sofisticação do uso do gestus, pode ser observado no modo
e na forma de utilização do figurino na Cena 12 – O Papa, da peça Vida de Galileu5, em
que o Papa Urbano VIII e o Cardeal Inquisidor discutem a possibilidade de Galileu ser
submetido aos instrumentos de tortura. De acordo com a rubrica, o Papa, um matemático,
cientista como Galileu, deverá ser “paramentado durante a audiência”. O Cardeal
Inquisidor lança mão de todos os argumentos para convencer Sua Santidade de que
Galileu deve ser punido, para que se neutralize a inquietação que se verifica na sociedade
e no próprio seio da Igreja. Ao final, quando tem que proferir sua decisão, Urbano VIII
determina: “o extremo dos extremos é que lhe mostrem os instrumentos”. Brecht, nesse
momento, indica que “O Papa está inteiramente paramentado”. A sua decisão é tomada
somente no momento em que ele está resguardado em sua absoluta autoridade papal, o
que confere à cena o status de gestus social.
4
“Pedra da sabedoria” é uma pequena pedra que Galileu traz sempre consigo e, em alguns momentos,
permite explicações de caráter cientifico; No momento em que é tomada de Galileu, pela Inquisição, ela,
mais uma vez, assume o caráter de gestus, em sua representação social e política.
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BRECHT, Vida de Galileu, p. 146-149.
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Brecht se contrapõe, em parte, ao entendimento de Engels sobre o realismo: “O realismo, para mim,
implica, para além da verdade do pormenor, a reprodução verdadeira de personagens típicos em
circunstâncias típicas. [...] Quanto mais o autor encobre as suas opiniões, melhor para a obra de arte. O
realismo a que me refiro pode transparecer apesar do ponto de vista do autor”. ENGELS, Carta a Margaret
Harkness, Abril de 1888. In: MARX; ENGELS, Sobre literatura e arte, p. 70-71. Abaixo, Brecht irá
esclarecer o seu entendimento de “típico”, que não está subordinada à concepção do realismo tradicional.
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gestos, sem que isso modifique o gestus, ou seja, sem modificar a atitude que se
está querendo demonstrar. (BRECHT, 1970, p. 26, tradução minha)
Uma das imagens mais marcantes dos espetáculos de Brecht é, sem dúvida, o grito
sem som emitido por Mãe Coragem, na Cena 3 da peça Mãe Coragem e seus filhos. A
configuração não realista do gestus social através de sua boca escancarada revela toda a
sua contradição interna e as relações a que está submetida no momento da cena e que
precisa preservar por motivo de segurança7.
Chega um momento, em Mãe Coragem, em que que os soldados carregam o corpo
morto de Schweizerkas. Eles suspeitam que se trata do filho de Coragem mas não
têm certeza. Ela pode ser obrigada a identificá-lo. [...] Diante do corpo estendido
de seu filho, ela simplesmente sacudia sua cabeça em negação muda. Os soldados
compeliam-na a olhar novamente. Novamente ela não dava sinal de
reconhecimento, somente um olhar morto. Enquanto o corpo era carregado,
Weigel olhava para o outro lado e rasgava sua boca imensamente aberta. A forma
do gesto era a do cavalo berrante na Guernica de Picasso. O som que surgia era
cru e terrível além de qualquer descrição que eu conseguisse fazer. Mas, na
realidade, não havia som. Nada. O som era silêncio total. Era o silêncio que
gritava e gritava por todo teatro a ponto do (sic) público abaixar sua cabeça como
diante de uma rajada de vento. (STEINER, 2006, p. 200-201)
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Um pequeno trecho da cena do grito sem som, de Helene Weigel, pode ser verificado em:
https://www.youtube.com/watch?v=facfL5QYDCE - Acesso em 06.01.2021.
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Todas as citações de falas e diálogos de peças serão colocadas em recuo, mesmo aquelas inferiores a três
linhas, e que não se enquadrem nas orientações da ABNT e da revista, que recomendam que toda citação
com menos de três linhas seja integrada ao corpo do texto. Tal opção se justifica no intuito de se manter as
suas características dramatúrgicas, por julgar que a distribuição de “falas” dos personagens interfere
substancialmente na forma de apreensão das mesmas.
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A frase dita por Mãe Coragem não é apenas a constatação de um fato concreto,
mas a configuração de um gestus que representa uma síntese, ainda que precária, de tudo
o que a guerra irá provocar de perdas em sua vida. No entanto, um gestus bem maior e
mais significativo vem acompanhando sua trajetória, e assim continuará: a carroça não é
apenas um componente da cenografia da peça, devendo ser compreendida como seu
gestus fundamental: nela, o comércio se realiza e o capitalismo se vê representado; a
carroça é o gestus do dinheiro e do capitalismo; é também a definição formal da
exploração capitalista da guerra.
As duas peças que aqui analisadas, terminam ambas com gestus social, que
merecem ser destacados. Em Mãe Coragem e seus filhos, depois de perder os três filhos
para a guerra, Mãe Coragem segue um Regimento:
MÃE CORAGEM atrelando-se à carroça - Espero poder puxar sozinha esta
carroça. Acho que vai, quase sem nada dentro. Agora o jeito é começar tudo outra
vez. Puxando a carroça. Esperem por mim! (BRECHT, 1991, p. 265-266)
Em Vida de Galileu, assinalo dois instantes que podem representar dois finais para
a peça. O primeiro, Cena 14, logo após entregar uma cópia de Discorsi para Andrea Sarti,
Galileu, prisioneiro da Inquisição, está só, com Virginia. Ele, então, pergunta para a filha,
que está na janela:
GALILEU – Como é que está a noite?
VIRGINIA na janela – Clara. (BRECHT, 1991, p. 167)
Referências
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Inédito.
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