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O CONCEITO DE GESTUS SOCIAL E SUA CONFIGURAÇÃO ÉPICO-REALISTA


E DIALÉTICA NA POÉTICA DE BERTOLT BRECHT

THE CONCEPT OF SOCIAL GESTUS AND ITS EPIC-REALISTIC AND DIALETIC


CONFIGURATION IN THE POETRY OF BERTOLT BRECHT

Luiz Paixão Lima Borges1

Resumo:
O conceito de gestus é, certamente, uma das maiores contribuições do pensamento de
Bertolt Brecht (1898-1956) para o teatro. O seu caráter revolucionário se manifesta em
suas amplas possibilidades de configuração estética e formal, como principal articulador
do efeito de distanciamento. O presente artigo pretende, por meio de uma análise
histórica, materialista e dialética, apresentar o gestus social em sua configuração épico-
dialética. Pretende, também, estabelecer as distinções fundamentais entre gesto e gestus,
o que tem produzido bastante confusão, compreendendo que nem todo gesto é um gestus,
ainda que um gesto possa vir a tornar um gestus.

Palavras-chave: Gestus social; Efeito de distanciamento; Realismo dialético; Teatro


épico; Bertolt Brecht.

Abstract:
The concept of gestus is certainly one of the greatest contributions of Bertolt Brecht's
(1898-1956) thinking to the theater. Its revolutionary character is manifested in its wide
possibilities of aesthetic configuration, as the main articulator of the distancing effect.
This article intends, through a historical, dialectical and materialistic analysis, to present
the social gestus in its dialectical and narrative configuration. It also intends to establish
the fundamental distinctions between gesture and gestus, which produces a lot of
confusion, understanding that not every gesture is a gestus, even if a gesture may become
a gestus.

Keywords: Social gestus; Distancing effect; Dialectical realism; Epic theater; Bertolt
Brecht.

1
Doutor em Literatura Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFMG.
E-mail: luizpaixaoteatro@gmail.com
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Gesto ou gestus?
A formulação do conceito de gestus2 social e sua práxis dramatúrgico-cênica não
são estáticas, e estão inseridas num contexto bem mais amplo da poética brechtiana, e são
resultado de uma pesquisa que se aprofundou ao longo dos quase quarenta anos que
Bertolt Brecht dedicou à investigação estética e formal em torno de um teatro épico,
realista e dialético. Não se pode pensar o teatro brechtiano sem se considerar um projeto
estético-ideológico que passa por transformações fundamentais, mas que sempre mantém
sua perfectiva de aprimoramento do efeito de distanciamento, procedimento estético e
formal que possibilita uma análise e uma compreensão dialética da realidade concreta.
Em sua definição dicionarizada, de origem latina – gestus –, o gesto não se
caracteriza apenas como ação física voluntária e ilustrativa de um sentimento, podendo
também, em outras circunstâncias, ser compreendido como uma atitude, não descrita pelo
movimento, que se assume em relação a alguma coisa específica, na disposição de se
colocar em favor de. Uma questão que precisa ser considerada em relação ao conceito
envolve a tradução do termo. Ao optar por utilizar sua forma latina, Brecht se refere tanto
ao gesto como expressão física dramatizada, quanto à sua concepção como
intencionalidade e atitude. Nessa perspectiva, a tradução de gestus por gesto, corre o risco
de induzir a uma leitura equivocada, pois não distingue um conceito – operador estético
do efeito de distanciamento –, de uma ação física naturalizada, e de caráter expressivo e
ilustrativo3.
O gesto, como percebido na poética brechtiana, importa menos em sua
naturalidade ilustrativa do que como procedimento estético que visa expressar
contradições, comportamentos e relações sociais objetivas. O seu processo de

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Existem diversas grafias para “gestus” e “gestus social”, ou mesmo, “gesto” nas várias traduções
consultadas e referenciadas no trabalho. Nas citações, manterei a grafia original; no entanto, utilizarei
sempre o itálico na palavra gestus e “gestus social” quando em texto de minha autoria.
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Para demonstrar, verifiquemos a tradução de Fiama Pais Brandão: “Chamamos esfera do gesto [gestus]
aquela a que pertencem as atitudes que as personagens assumem em relação umas às outras” (Foram
confrontadas as duas edições da obra: 1978, p. 124 e 2005, p. 154, em ambas, a tradução é a mesma).
Vejamos, agora, o comentário feito por Carlos Alberto Silva em seu artigo “Gesto e gestus: contribuições
para teoria e prática do gesto em cena”: tendo como base a tradução citada, afirma que “A referência é
“esfera dos gestos” e não Gestus. A ênfase na dimensão sensível do gesto ganha importância dado o
contraste com outras orientações técnicas e metodológicas de atuação”
(https://www.revistas.usp.br/aspas/article/view/68383, p. 34). Observa-se, portanto, que há um flagrante
equívoco, induzido pela tradução, pois, segundo o pensamento brechtiano, é o gestus que traduz “as atitudes
que as personagens assumem em relação umas às outras” e, de forma alguma, o gesto; ainda que o gesto
possa vir a ser um gestus, o que não é o caso na argumentação de Silva. O trecho traduzido por Brandão
(1978), pertence ao “Pequeno organon para o teatro §61”. Foram consultadas várias traduções do referido
trecho, e confirmada em todos a utilização da grafia latina – gestus: (BRECHT, 1967, p. 209); (BRECHT,
1971, p. 132); (BORNHEIM, 1992, p. 282).
3

configuração o transporta para um lugar em que a reflexão justifica sua existência


autorreferencial e formalmente teatralizada. Isto ocorre porque no realismo épico
dialético proposto por Brecht, cada gesto é pensado e executado com um propósito de
provocar e estimular uma crítica ao comportamento social do personagem e às situações
dramatizadas.
A autorreferencialidade em sua proposta estético-formal, portanto, não se
configura apenas como linguagem, que se esgota no jogo do teatro-dentro-do-teatro, mas
um procedimento que desvia a cena de sua presentificação ilusionista com o objetivo de
torná-la historicizada, num processo narrativo, dialético e materialista. Num teatro que
considera a totalidade corporal do ator como significativamente histórica e social, o
naturalismo gestual não encontra acolhida, e sua configuração não responde unicamente
às necessidades do personagem: do gesto, antes manifestação de um estado psicológico,
Brecht extraiu o contraditório revelador de situações e comportamentos, construído a
partir da perspectiva do confronto da arte com a realidade concreta.
[...] todo sentimento deve se refletir no exterior, isto é, deve ser transformado em
gestos. O ator precisa encontrar uma expressão exterior que dê significado às
emoções da sua pessoa, possivelmente uma ação que revele o seu estado
emocional. A emoção em questão precisa se exteriorizar e emancipar para que
ela possa ser tratada amplamente. Os gestos feitos com uma elegância especial,
com força e graça, ocasionam o Efeito-D. (BRECHT, 1967, p 164)

Como procedimento de autorreferencialidade, o gestus se apresenta, portanto,


teatralizado, correndo o risco de se tornar vítima de um esteticismo vulgar. No entanto,
sua estilização no âmbito corporal não significa a negação de sua intenção social, i.e., não
se pode confundir a elaboração amimética e teatralizada de uma postura, movimento ou
gesto, com um conjunto de signos que se traduzem apenas enquanto um conjunto de
signos, isentos de sua representação social. A autorreferência e a teatralização são formas
de distanciamento e não buscam um efeito que se esgota em si mesmo, são resultado
consciente e intencional de uma necessidade de esclarecimento de relações e
comportamentos condicionados historicamente.
Amparar sua teoria do distanciamento a partir de uma nova compreensão e
formalização do gesto, permitiu sua aproximação com a representação de atitudes e
comportamentos sociais em que o “papel desempenhado pelo elemento gestual [...] Para
esses julgamentos, o gesto era, justamente, a dialética contida no teatro” (BRECHT, 1973,
p. 52, tradução minha). É com essa compreensão que o gesto, desnaturalizado e
despsicologizado, se torna o primeiro caminho para o surgimento do conceito gestus, e se
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transforma no seu mais significativo operador do efeito de distanciamento, pois, “o


gestual imprimia o caráter dialético ao dramático” (BRECHT, 1973, p. 52, tradução
minha), e que já vinha sendo desenvolvido, de maneira sistemática em sua dramaturgia e
em sua encenação, que rompe com a presentificação ilusionista para assumir seu caráter
histórico e narrativo.
A dramaturgia dialética iniciou com uma experimentação formal bem mais
acentuada do que de conteúdo. Deixou de lado a psicologia e o caráter individual,
voltando sua atenção para o épico, diluindo as situações em processos. Os
grandes tipos, que eram apresentados de maneira distanciada, isto é, o mais
objetivo possível (para evitar a identificação), eram mostrados por meio de seu
comportamento em sua relação a outros tipos. (BRECHT 1973, p. 55, tradução
minha)

Sua afirmação como teatro, além de promover o necessário distanciamento crítico,


permite que o espetáculo, em sua totalidade, seja compreendido como um processo e não
como condição dada, implicando apresentar o homem em transformação constante, e não
como eterno humano. Assim, o gestus deve ser compreendido em seu todo estético-
ideológico, pois fora dessa instância de representação ele se nega, se fixando apenas como
um gesto, uma postura ou um movimento, do qual se retira única e exclusivamente uma
forma estetizada, que pouco representa além de si mesma. Embora, num primeiro
instante, ainda estivesse muito vinculado ao gestual do ator, as experiências revelaram
seus níveis mais elevados de significação social e suas possibilidades de abranger os
vários âmbitos da encenação e da dramaturgia.

O gestus para além do gesto


Inicialmente, Brecht se fixou no gesto como articulador do gestus, mas com o tempo
suas experiências demonstraram uma abrangência ainda maior para a sua utilização, uma
vez que deve ser entendido como o conjunto de elementos corporais, materiais e textuais
que revelam as contradições fundamentais que se apresentam na fábula, produzindo em
sua configuração o distanciamento.
[...] gestus é o operador de um efeito de estranhamento no sentido próprio; e em
particular que o estranhamento deriva da superposição de [vários] significados
sobre os demais, mostrando-nos, por exemplo, como um movimento involuntário
da mão poderia, em certas circunstâncias (quando executado por Luís XIV
durante uma entrevista particularmente decisiva, mas também quando
desempenhado por um insignificante lojista durante as elaborada e imperdoáveis
negociações da vida citadina), contar como um fatídico ato histórico, com
consequência sérias e irreversíveis [...] (JAMESON, 1999, p. 139)
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A busca por um gesto, tanto expressivo em sua forma quanto carregado de


significações sociais em sua configuração, tem sua origem no teatro expressionista que
propôs um rompimento radical com as formas realistas e naturalistas, e ganhou maior
relevo quando Brecht entrou em contato com as técnicas de interpretação dramática
chinesa, particularmente, através dos trabalhos do ator Mei Lan-Fang.
A representação tradicional chinesa também conhece o efeito de distanciamento
e o aplica de uma maneira extremamente sutil. [...] o artista chines nunca
representa como se houvesse uma quarta parede além das três que o cercam. Ele
expressa sua consciência de estar sendo observado. [...] o artista observa a si
próprio. (BRECHT, 1967, p. 105)

Ainda que haja uma predominância da apresentação do caráter gestual do gestus,


sua manifestação não está circunscrita à gesticulação do ator, na sua movimentação
cênica, postura física e na modulação de sua voz. A configuração do gestus extrapola o
ato de gesticular, uma vez que este não consegue exprimir em sua totalidade o caráter
social de determinada situação ou das representações dos conflitos interiores do
personagem, também motivados por uma condição social, permitindo uma configuração
síntese dos processos apresentados na cena.
Gestus não significa mera gesticulação. Não se trata de uma questão de
movimentos das mãos, explicativos ou enfáticos, mas de atitudes globais. Uma
atitude é Gestus quando está baseada num gesto e é adequada a atitudes
particulares adotadas pelo que a usa, em relação a outros homens. (BRECHT,
1967, p. 77)

A compreensão equivocada e simplista de que gestus é apenas gesto impede uma


abordagem crítica e dialética das outras instâncias representativas do teatro como o
próprio texto dramatúrgico, os cenários, figurinos, iluminação, música, etc. Em artigo de
1929, Brecht escreveu:
Quando uma atriz desse novo tipo [de teatro] estava representando a serva de
Édipo Rei, anunciou a morte de sua senhora, gritando “morta, morta” numa voz
penetrante e sem emoção. Seu “Jocasta morreu” foi dito sem nenhum pesar (sic)
mas tão firme e definidamente que o simples fato da morte de sua senhora tinha
mais peso naquele momento preciso do que o que poderia ser criado por qualquer
tristeza. Ela não abandonou sua voz ao horror, mas talvez sua face, pois usava
uma maquilagem branca para mostrar o impacto que uma morte causa nos que
a presenciam. (BRECHT, 1967, p. 45, grifo meu)

A utilização da “maquilagem branca” como representação formal do “impacto”


da morte, e substituindo a manifestação emocional do personagem e sua ação sobre a
plateia, se configura, nos parâmetros de sua realização cênica, como forma embrionária
do gestus, ainda que Brecht não o defina como tal. No artigo em questão, não há nenhuma
referência ao conceito do gestus, porém, não há como negar que a utilização da
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“maquilagem branca” quebra uma naturalidade e uma expectativa emocional,


apresentando-a como provocadora do espanto e da perplexidade, pretendendo com isso
levar o público a uma nova compreensão dos acontecimentos dramáticos. A representação
de um comportamento humano, por meio de uma configuração de caráter não realista em
sua forma – a maquilagem branca –, mas com a função de revelar as relações realistas a
que o homem está colocado socialmente – o impacto da morte –, qualifica essa
representação com o que ele viria a conceituar como “Gestus social [que] é o gesto
relevante para a sociedade, o gesto que permite conclusões sobre as circunstâncias
sociais” (BRECHT, 1967, p. 77-79).
As exigências de uma reconfiguração do realismo, possibilitando ao espectador
novas perspectivas de recepção, que não se determinem pelo seu envolvimento emocional
com a ação dramática, foram supridas com a utilização de formas que estimulam sua
capacidade crítica, num processo que levou o dramaturgo e encenador a pensar
adequações estéticas e formais, muitas vezes rompendo mesmo com os parâmetros da
configuração realista. No entanto, a utilização de procedimentos não realistas não implica
renúncia ao realismo como método de análise.
Se a arte reflete a vida, ela o faz com espelhos especiais. A arte não deixa de ser
realista por alterar as proporções, mas sim quando as altera de tal modo que o
público, ao tentar usar as reproduções na prática, em relação a ideias e impulsos,
naufraga na vida real. É preciso certamente que a estilização não suprima a
naturalidade do elemento natural, mas que o intensifique. (BRECHT, 1967, p.
218)

Para promover essa nova compreensão de realismo, não bastou desnaturalizar o


gesto e teatralizar sua forma, foi necessário imprimir em sua configuração o caráter
dialético, o que permitiu acentuar o efeito de distanciamento e sua significação social.
Daí, fez surgir daí a ideia do gestus social, certamente o aspecto mais revolucionário de
sua poética, uma forma narrativa dotada de alto poder revelador de comportamentos e
situações. Não se trata, como se demonstra, de mera estilização, pois sua composição não
se reduz a um efeito ou a um símbolo: o gestus social denuncia contradições, apresenta o
comportamento humano em sua relação de poder e opressão, de luta e libertação, de
possibilidades de transformação.
O caráter narrativo-épico aplicado às três instâncias do teatro – texto, interpretação
e encenação – não foi abandonado, foi aprofundado e ampliado em suas possibilidades,
pois amparada pelo gestus social: ao historicizar as ações dos personagens, possibilita o
distanciamento crítico por parte do leitor/espectador, que deve fixar-se na fábula. A
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presentificação do realismo burguês leva-o a uma aproximação psicológica com o drama


do personagem, acentuando o envolvimento emocional.
Para se entender o mundo como passível de modificação, é preciso compreender
o homem como agente transformador e, ao mesmo tempo, transformável. Compreender
a dinâmica do movimento e suas leis, regidas pela dialética; compreender que o
movimento é absoluto e o repouso relativo; compreender que da observação nasce o
espanto, do espanto surge a compreensão de que as coisas, assim como os homens, se
modificam.

Gestus social
O conceito de gestus é, certamente, uma das maiores contribuições do pensamento
brechtiano para o teatro. O seu caráter revolucionário se manifesta em sua ampla
possibilidade de configuração estética, uma vez que serve a todas as instâncias do teatro
como forma de composição artística das contradições dialéticas e materialistas que
condicionam o comportamento humano. Sua capacidade de síntese dialética das
contradições da sociedade, por meio de representações que carregam significados e
revelações, o gestus revela as condições objetivas em que se relacionam os personagens
entre si e com a situação a que estão subordinados.
A exposição da história e sua comunicação por meios ajustados de
distanciamento constituem a tarefa principal do teatro. Nem tudo depende do ator,
ainda que nada pode ser feito se não o levarmos em conta. A história é
interpretada e apresentada pelo teatro como um todo, constituído de atores,
cenógrafos, encarregados das máscaras e do guarda-roupa, músicos e
coreógrafos. Todos eles conjugam suas artes para uma operação comum, sem
evidentemente, renunciar à sua autonomia. Dá-se ênfase ao Gestus geral da
representação – o que sempre sublinha o que está sendo mostrado [...] (BRECHT,
1967, p. 216)

Produto do conhecimento e da consciência social, a autorreferencialidade torna-


se, em Brecht, conteúdo dramatizado, ainda que o seja de forma não estritamente realista,
pois, o que está em questão não é o referente em si mesmo, mas aquilo que o subjaz, i.e.,
as relações que condicionam comportamentos, uma vez que “a apreensão do real não está
em sua exata reprodução, mas na configuração das relações sociais que condicionam o
comportamento humano” (BORGES, 2021, p, 10). O gestus é condicionado pela
realidade concreta e adquire estatura social, e para Brecht, “o princípio do Gestus deve
substituir o princípio da imitação” (BRECHT, 1967, p. 84), concluindo com isso que o
gestus poderá ser uma formalização – não formalista – de nítido caráter teatral. Um pão
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pode ser apenas um alimento, mas também pode representar a miséria de um determinado
personagem, é neste momento que o pão ganha a dimensão de gestus social. A sua
realização permite o distanciamento crítico necessário para a compreensão das forças que
atuam definindo hierarquias e subordinações de classes observadas na sociedade,
adquirindo uma função que é simultaneamente estética, política e ideológica. O gestus
social permite compreender, por meio de uma perspectiva social, as diversas situações
dramáticas apresentadas, tanto em sua expressividade cênica, quando em sua estrutura
dramatúrgica, pois “cada acontecimento comporta um gestus básico” (BRECHT, 1967,
p. 213), o que significa dizer que as ações dos personagens estão socialmente
condicionadas e, como tal, devem ser apresentadas.
Dividindo o material [...] num Gestus após o outro, o ator apodera-se do
personagem, apoderando-se antes da história. Só depois de caminhar por todos
os episódios é que pode, como de um salto, ajustar-se e fixar seu personagem,
completo com todas as características individuais. [...] as contradições contidas
nas atitudes diversas da personagem [...] o ator encontra na história, encarada
como um todo, possibilidade de associar esses aspectos contraditórios.
(BRECHT, 1967, p. 212)

Compreender os gestus social é, portanto, compreender o comportamento


dialético e contraditório do personagem e das situações a que está dramaticamente
submetido. A construção e especificidade de cada gestus está condicionada à definição
do gestus fundamental em que se sustenta a totalidade da peça, i.e., um determinado
comportamento não se manifesta senão em sua relação direta com o conjunto de suas
ações, ainda que sejam contraditórios entre si, uma vez que a contradição é objeto de
análise da dialética, e pode ser representada cenicamente. Cada personagem possui o seu
gestus fundamental, bem como cada cena comporta um gestus básico próprio e sempre
subordinado ao gestus fundamental da peça, que orienta e organiza todos os gestus que
serão construídos na totalidade da encenação. A esse conjunto deve-se a organização
estético-filosófica do espetáculo.
A atitude que os personagens assumem em relação uns aos outros é o que
chamamos esfera do Gestus. Atitude física, tom de voz e expressão facial são
determinadas por um Gestus social; os personagens injuriam-se, cumprimentam-
se, esclarecem-se uns aos outros, etc. As atitudes tomadas de pessoa para pessoa
pertencem [à esfera do gestus] mesmo às que, na aparência, são de ordem privada,
tal como a exteriorização da dor física, na doença, ou na fé religiosa. (BRECHT,
1967, p. 209)
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O gestus social e a encenação


A encenação deve ser entendida como a totalidade do espetáculo, na qual suas
partes se harmonizam estética e dialeticamente, por meio de formas bem definidas que
permitem compreender o desenvolvimento da fábula e possibilitem em sua leitura uma
relação com a realidade concreta, por meio da parábola. A materialização de cenários,
iluminação, figurinos e parte musical, deverão ter acentuadas, no modo ou na forma,
gestus que possam denunciar as relações sociais.
Para Brecht, a iluminação cênica tem como função primeira manter ativa a
consciência do público; não há, de sua parte, um pensamento formulado sobre a utilização
dialética da iluminação como gestus social; sua intenção é construir uma luz que rompa
com a separação existente entre palco e plateia, sugerindo um nivelamento social e eleve
o nível de atenção do público:
Se nós iluminarmos a representação dos atores de uma maneira que os refletores
caiam dentro do campo de visão do espectador destruímos parte de sua ilusão de
estar assistindo um acontecimento momentâneo, espontâneo, não ensaiado e real.
(BRECHT, 1967, p. 167)

O fato de não pensar dialeticamente a iluminação cênica, levou Brecht a uma


impossibilidade de sua utilização como gestus social, o que seria possível por meio de
seus diversos recursos e efeitos visuais, produzidos a partir de cores, intensidade, formas
e ângulos de projeção. A iluminação possui grande capacidade de produzir
distanciamento e gestus social: através dela é possível se definir relações de poder e
imprimir uma historicidade à ação dramática, ao mesmo tempo em se enriquece
esteticamente o espetáculo, sem com isso limitar ou restringir a consciência do público;
da mesma maneira, a dialética sombra/luz permite acentuar e/ou denunciar contradições
do comportamento do personagem em relação a outro personagem, bem com suas
contradições internas. Por outro lado, confere grande valor ao cenário como elemento
narrativo, sem permitir que a reprodução detalhista supere sua função de gestus:
[...] o cenógrafo passa a dispor de grande liberdade se não mais tiver de conseguir
a ilusão de um quarto ou de uma paisagem, ao montar a cena. Bastam-lhe alusões:
estas alusões devem contudo (sic) dar testemunho histórico ou social, muito mais
incisivo que o ambiente real. (BRECHT, 1967, p. 217)

Na Cena 6, de Vida de Galileu, observa-se dois momentos de significativa


construção do gestus social. No âmbito estrito da cena, são construídos o seu gestus
fundamental, que organiza a sua totalidade, e um gestus específico de grande valor, que
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envolve a “pedra da sabedoria”4: um grupo de sábios, altos prelados, monges e estudiosos,


debocham da ciência e das descobertas científicas, negando o valor do que está além de
suas capacidades de percepção: o gestus negacionista acompanha toda a cena e é
dominante enquanto demonstração de uma determinada relação social entre o poder e a
ciência; no caso do gestus específico, há um momento em que Galileu deixa a “pedra da
sabedoria” cair, e é interpelado por um dos sábios:
O PRIMEIRO ESTUDIOSO dirigindo-se a Galileu – Uma coisa caiu no chão,
senhor Galileu.
GALILEU que tirara o seu seixo do bolso e estivera brincando com ele, até que
finalmente caísse, abaixa-se para levantá-lo – Pra cima, Monsenhor, caiu pra
cima.
O PRELADO GORDO faz meia volta – Impudente. (BRECHT, 1991, p. 107)

O que se observa é que não se trata apenas de uma ironia de Galileu, mas pretende-
se estabelecer através dela o contraponto científico a todos os comentários anteriores,
criando assim uma crítica científica à crítica negacionista. O comentário de Galileu
assume a condição de gestus social ao historicizar a situação, por meio da dialética
negação e afirmação da lei da gravidade: ao negar a lei da gravidade – “caiu pra cima” –
Galileu afirma a ciência, e nega todos os comentários negacionistas, por meio de um dado
científico que está confirmado em sua negação.
Um momento de rara sofisticação do uso do gestus, pode ser observado no modo
e na forma de utilização do figurino na Cena 12 – O Papa, da peça Vida de Galileu5, em
que o Papa Urbano VIII e o Cardeal Inquisidor discutem a possibilidade de Galileu ser
submetido aos instrumentos de tortura. De acordo com a rubrica, o Papa, um matemático,
cientista como Galileu, deverá ser “paramentado durante a audiência”. O Cardeal
Inquisidor lança mão de todos os argumentos para convencer Sua Santidade de que
Galileu deve ser punido, para que se neutralize a inquietação que se verifica na sociedade
e no próprio seio da Igreja. Ao final, quando tem que proferir sua decisão, Urbano VIII
determina: “o extremo dos extremos é que lhe mostrem os instrumentos”. Brecht, nesse
momento, indica que “O Papa está inteiramente paramentado”. A sua decisão é tomada
somente no momento em que ele está resguardado em sua absoluta autoridade papal, o
que confere à cena o status de gestus social.

4
“Pedra da sabedoria” é uma pequena pedra que Galileu traz sempre consigo e, em alguns momentos,
permite explicações de caráter cientifico; No momento em que é tomada de Galileu, pela Inquisição, ela,
mais uma vez, assume o caráter de gestus, em sua representação social e política.
5
BRECHT, Vida de Galileu, p. 146-149.
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No texto dramatúrgico, detectamos sua configuração nas indicações propostas


pelo autor através das rubricas, letras de músicas, poemas, títulos de cenas e atos, bem
como, e, sobretudo, nos diálogos construídos sob forma argumentativa em que não se
considera uma reprodução naturalista do modo de fala da classe social de cada
personagem6. Circunstâncias e comportamentos, dialeticamente confrontados, revelam
uma ação objetiva na configuração dos personagens, conferindo a eles uma capacidade
argumentativa que não corresponde, necessariamente, à sua realidade, pois carregam
contradições que podem, por um lado, acentuar sua tipicidade enquanto representação de
determinada classe social, e, por outro, apresentam características que negam sua
tipicidade, pois extrapolam os limites comportamentais da classe representada. Sua
argumentação é traduzida em diálogos altamente sofisticados e elaborados de acordo com
a lógica dialética, portanto, muitas vezes incompatíveis com sua condição: o que está em
jogo não são os conflitos interiores dos personagens, mas o embate de ideias determinado
pelo contexto em que eles se movimentam. Sendo assim, Mãe Coragem representa mais
por suas ideias do que por sua tipicidade, o que não diminui o caráter realista de sua
configuração estética. Para Brecht,
São historicamente significativos (típicos) as pessoas e acontecimentos que,
mesmo não sendo os mais frequentes de maneira geral, nem os que mais chamam
a atenção, são, no entanto, decisivos para os processos evolutivos da sociedade.
A eleição do típico deve ser feita segundo o que consideramos positivo
(desejável) ou negativo (indesejável).
O significado próprio da palavra “típico” [...] é: historicamente significativo. Esse
conceito nos permite trazer à luz da poesia acontecimentos insignificantes em sua
aparência, raros, desapercebidos, da mesma maneira as pessoas modestas, raras,
porque são historicamente significativas, isto é, são importantes para o progresso
da humanidade, para o socialismo. No entanto, esses acontecimentos e essas
pessoas deverão ser representados de forma realista, ou seja, com todas as suas
contradições [...]. (BRECHT, 1984, p. 409-410, tradução minha)

A mesma capacidade de argumentação vale tanto para um cientista (Galileu),


como para o Papa, ou para a vivandeira Anna Fierling, a Mãe Coragem. No embate de
ideias se revelam os interesses de classe e as contradições sociais.
O gestus deve ser compreendido como um complexo de gestos, expressões
corporais e frases ou alocuções que uma ou várias pessoas dirigem a uma ou
várias pessoas. [...] Um gestus pode traduzir-se exclusivamente em palavras [...]
As palavras podem ser substituídas por outras palavras, os gestos por outros

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Brecht se contrapõe, em parte, ao entendimento de Engels sobre o realismo: “O realismo, para mim,
implica, para além da verdade do pormenor, a reprodução verdadeira de personagens típicos em
circunstâncias típicas. [...] Quanto mais o autor encobre as suas opiniões, melhor para a obra de arte. O
realismo a que me refiro pode transparecer apesar do ponto de vista do autor”. ENGELS, Carta a Margaret
Harkness, Abril de 1888. In: MARX; ENGELS, Sobre literatura e arte, p. 70-71. Abaixo, Brecht irá
esclarecer o seu entendimento de “típico”, que não está subordinada à concepção do realismo tradicional.
12

gestos, sem que isso modifique o gestus, ou seja, sem modificar a atitude que se
está querendo demonstrar. (BRECHT, 1970, p. 26, tradução minha)

Uma das imagens mais marcantes dos espetáculos de Brecht é, sem dúvida, o grito
sem som emitido por Mãe Coragem, na Cena 3 da peça Mãe Coragem e seus filhos. A
configuração não realista do gestus social através de sua boca escancarada revela toda a
sua contradição interna e as relações a que está submetida no momento da cena e que
precisa preservar por motivo de segurança7.
Chega um momento, em Mãe Coragem, em que que os soldados carregam o corpo
morto de Schweizerkas. Eles suspeitam que se trata do filho de Coragem mas não
têm certeza. Ela pode ser obrigada a identificá-lo. [...] Diante do corpo estendido
de seu filho, ela simplesmente sacudia sua cabeça em negação muda. Os soldados
compeliam-na a olhar novamente. Novamente ela não dava sinal de
reconhecimento, somente um olhar morto. Enquanto o corpo era carregado,
Weigel olhava para o outro lado e rasgava sua boca imensamente aberta. A forma
do gesto era a do cavalo berrante na Guernica de Picasso. O som que surgia era
cru e terrível além de qualquer descrição que eu conseguisse fazer. Mas, na
realidade, não havia som. Nada. O som era silêncio total. Era o silêncio que
gritava e gritava por todo teatro a ponto do (sic) público abaixar sua cabeça como
diante de uma rajada de vento. (STEINER, 2006, p. 200-201)

A descrição de Steiner demonstra o aspecto reflexivo e distanciado do gestus, ao


mesmo tempo em que nos revela o seu caráter emocional, porém, não-catártico.
Percebemos a dor de Mãe Coragem, mas não sofremos com ela; entendemos o seu
comportamento sem nos perdermos em seus meandros psicológicos; suas contradições
ganham relevo sobre os seus conflitos. Sua reação expressa a sua dor, mas também
expressa uma circunstância social, que deve ser compreendida como resultante do
comercio da guerra.
As necessidades objetivas de Mãe Coragem e a cegueira produzida pela ambição
do lucro predominam sobre o seu sentimento na tomada decisão de conseguir a libertação
do filho por meio do suborno:
MÃE CORAGEM - Parece que eu perdi tempo demais, regateando”. (BRECHT,
1991, p. 216)8

7
Um pequeno trecho da cena do grito sem som, de Helene Weigel, pode ser verificado em:
https://www.youtube.com/watch?v=facfL5QYDCE - Acesso em 06.01.2021.
8
Todas as citações de falas e diálogos de peças serão colocadas em recuo, mesmo aquelas inferiores a três
linhas, e que não se enquadrem nas orientações da ABNT e da revista, que recomendam que toda citação
com menos de três linhas seja integrada ao corpo do texto. Tal opção se justifica no intuito de se manter as
suas características dramatúrgicas, por julgar que a distribuição de “falas” dos personagens interfere
substancialmente na forma de apreensão das mesmas.
13

A frase dita por Mãe Coragem não é apenas a constatação de um fato concreto,
mas a configuração de um gestus que representa uma síntese, ainda que precária, de tudo
o que a guerra irá provocar de perdas em sua vida. No entanto, um gestus bem maior e
mais significativo vem acompanhando sua trajetória, e assim continuará: a carroça não é
apenas um componente da cenografia da peça, devendo ser compreendida como seu
gestus fundamental: nela, o comércio se realiza e o capitalismo se vê representado; a
carroça é o gestus do dinheiro e do capitalismo; é também a definição formal da
exploração capitalista da guerra.
As duas peças que aqui analisadas, terminam ambas com gestus social, que
merecem ser destacados. Em Mãe Coragem e seus filhos, depois de perder os três filhos
para a guerra, Mãe Coragem segue um Regimento:
MÃE CORAGEM atrelando-se à carroça - Espero poder puxar sozinha esta
carroça. Acho que vai, quase sem nada dentro. Agora o jeito é começar tudo outra
vez. Puxando a carroça. Esperem por mim! (BRECHT, 1991, p. 265-266)

Em Vida de Galileu, assinalo dois instantes que podem representar dois finais para
a peça. O primeiro, Cena 14, logo após entregar uma cópia de Discorsi para Andrea Sarti,
Galileu, prisioneiro da Inquisição, está só, com Virginia. Ele, então, pergunta para a filha,
que está na janela:
GALILEU – Como é que está a noite?
VIRGINIA na janela – Clara. (BRECHT, 1991, p. 167)

Na cena seguinte, Cena 15, Andrea Sarti, atravessando a fronteira com os


Discorsi, conversa com uns meninos:
O TERCEIRO MENINO aponta a jarra de leite, que Andrea deixou – Olhe aí!
O PRIMEIRO – E o caixote desapareceu! Vocês estão vendo que foi o diabo?
ANDREA voltando-se – Não, fui eu. Você precisa aprender a abrir os olhos. O
leite e a jarra estão pagos. São para a velha. Eu ainda não respondi à sua pergunta,
Giuseppe. Não há jeito de voar pelos ares em cabo de vassoura. A não ser que
haja uma máquina presa ao cabo. Mas uma máquina dessas ainda não existe.
Talvez ela nunca venha a existir, porque o homem é muito pesado. Mas nunca se
sabe. Estamos muito longe de saber o bastante, Giuseppe. Nós ainda estamos
muito no começo.

Referências
BENJAMIN, Walter. Ensaios sobre Brecht. Trad. Claudia Abeling. São Paulo: Boitempo,
2017.
BORGES, Luiz Paixão Lima. Brecht & Piscator: do teatro épico ao realismo dialético.
Inédito.
BORNHEIM, Gerd. Brecht: a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
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BRECHT, Bertolt. Teatro dialético. Trad. Luiz Carlos Maciel. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1967.
BRECHT, Bertolt. Escritos sobre teatro v. 2. Selección: Jorge Hacker. Trad. Nélida
Mendilaharzu de Machain. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1970.
BRECHT, Bertolt. Escritos sobre teatro v. 3. Selección: Jorge Hacker. Trad. Nélida
Mendilaharzu de Machain. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1971.
BRECHT, Bertolt. Escritos sobre teatro v. 1. Selección e traducción Jorge Hacker.
Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1973.
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Trad. Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1978.
BRECHT, Bertolt. El compromiso en literatura y arte. 2. ed. Trad. J. Fontcoberta.
Barcelona: Ediciones Península, 1984.
BRECHT, Bertolt. A vida de Galileu. In: BRECHT, Bertolt. Teatro Completo 6. Trad.
Antonio Bulhões, Roberto Schwarz, Geir Campos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1991.
BRECHT, Bertolt. Mãe Coragem e seus filhos (uma crônica da guerra dos trinta anos).
In: BRECHT, Bertolt. Teatro Completo 6. Trad. Antonio Bulhões, Roberto Schwarz, Geir
Campos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1991.
JAMESON, Fredric. O método Brecht. Trad. Maria Silvia Betti. Revisão técnica Iná
Camargo Costa. Petrópolis (RJ): Vozes, 1999.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Sobre literatura e arte. Trad. Olinto Beckerman. São
Paulo: Global, 1979.
STEINER, George. A morte da tragédia. Trad. Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva,
2006.

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