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“CATARSE” E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL:

CONTRIBUIÇÃO DE VIGOTSKI E GRAMSCI

Leandro Amorim Rosa


Mestre;
Professor do Instituto Municipal de Ensino Superior de Catanduva (IMES- Catanduva);
Doutorando em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;
Bolsista CNPq;
Eixo temático: 3) Psicologia Política das Comunidades: Intervenção, prática e ação
comunitária;
Comunicação oral.
“Catarse” e transformação social: contribuições de Vigotski e Gramsci

“Catarse” é um termo utilizado por diversos autores em diferentes campos do

conhecimento. Desde a antiguidade até autores contemporâneos, tal categoria tem sido

adotada com significados certas vezes próximos, certas vezes profundamente divergentes. Em

sua concepção clássica, a “catarse” é entendida no sistema aristotélico como efeito último da

tragédia e tem como objetivo purgar os espectadores do sentimento socialmente não aceito

abordado no drama, reforçando assim a coesão e o status quo social (Boal, 1991).

A partir de uma concepção diversa da abordada acima, encontram-se as definições de

Vigotski e Gramsci. Ambos os autores - materialistas dialéticos – entendem a “catarse” como

momento e/ou processo relacionados à transformação social. Mantem-se em comum com o

sistema aristotélico a ideia de mudança do sujeito. No entanto, enquanto Aristóteles defende

um processo no qual essa mudança resultaria em uma normalização às regras sociais – um

disciplinamento de comportamentos, valores e emoções -, os autores marxistas propõem que a

partir da catarse o sujeito potencializa sua capacidade de transformação social.

Em sua obra de juventude “Psicologia da Arte”, Vigotski (1998) relaciona a “catarse”

à reação estética provocada pela arte. A arte é mais que o contágio emocional. Ela transforma

os sentimentos. Para o autor a “catarse” ocorre devido ao choque de sentimentos

contraditórios que geram uma explosão afetiva, a qual terá como produto um novo

sentimento. Segundo ele, não se trata apenas de potencializar sentimentos já existentes, mas

de produzir formas de sentir qualitativamente novas. Analogia com os evangelhos. Origem da

arte como necessidade de relaxamento fisiológico diante de duro trabalho. Mesmo hoje a arte

ainda visa aliviar e organizar sentimentos sociais. Seria a arte uma técnica social dos

sentimentos. Os artefatos artísticos são sentimentos fundidos e materializados. A música não

leva a uma ação especifica, mas é capaz de potencializar e energizar o corpo. O autor
defende que a arte deve desempenhar um papel de grande importância no momento de

revolução social pelo qual passa a União Soviética dos anos 20 do século passado. De acordo

com Vigotski (1998), a arte é imprescindível para a criação do “novo homem”, o homem

socialista que superaria a forma de ser do homem gestado no capitalismo.

Gramsci (2007), por sua vez, entende que a discussão sobre a transformação da arte

deve, na verdade, ser realizada no âmbito da transformação da cultura em geral. A

transformação da cultura e da vida moral se faz imprescindível para a mudança social em sua

perspectiva. O pensador italiano utilizará o termo “catarse” em um contexto não diretamente

relacionado às artes, mas sim a política. Política no sentido “amplo” gramscinano está presente

em qualquer forma de práxis que supere a recepção ou manipulação passiva dos dados imediatos

e se dirija conscientemente a níveis mais universais da totalidade do real. Além disso, nessa

acepção ampla, a política se dá também nos momentos nos quais é possível, a partir da cadeia de

causalidades impostas pelas necessidades, alcançar o nível da teleologia, ou seja, ser capaz de

tangenciar o domínio da liberdade. A política “ampla”, segundo Coutinho (2007), é identificada

com liberdade, e assim sendo, é elemento (real ou potencial) ineliminável de todas as esferas do

ser social e sinônimo de “catarse”. Segundo Gramsci, a “catarse” se refere ao processo pelo

qual há a passagem do momento meramente econômico (egoísta-passional) para o momento

ético-político. Ou seja, ele defende que por meio da “catarse” os sujeitos deixariam de ser

apenas coagidos pela realidade econômica e passariam a poder também deslumbrar

possibilidades de ações e modos de ser advindas da liberdade política. Seria a passagem da

causalidade econômica a teleologia política possibilitada a partir de relações sociais e

históricas concretas.

No que se refere à diferença entre o papel da arte para a transformação social,

podemos realizar algumas ponderações. Vigotski escreve sua obra em uma sociedade “pós-

revolucionária”, ou seja, supostamente os elementos relacionados a mudanças infraestruturais


já estavam em curso. Assim, seria um momento adequado para se questionar sobre a função

da arte naquele contexto em movimento. Gramsci, por sua vez, está escrevendo no cárcere de

uma sociedade dirigida pelo fascismo. Provavelmente tal conjuntura política influencia

profundamente a concepção que o autor italiano possui sobre o papel revolucionário da arte,

fazendo-o não conceber tal manifestação como prioritária no processo de transformação

social.

Mesmo possuindo profundas diferenças entre os autores podemos destacar, tendo a

“catarse” como vértice, um elemento de articulação significativo: a importância que as

transformações no âmbito das emoções/afetos/sentimentos possuem para a mudança social.

Vigotski e Gramsci defendem que o surgimento de novas possibilidades de práxis política,

que gerem uma organização social de caráter emancipador, passa necessariamente não apenas

pelos conceitos e/ou saberes dos sujeitos, mas também pelas formas de tais sujeitos sentirem a

realidade. Gramsci (Coutinho, 2011, p. 322) escreve: “É fato pacífico que a ‘clareza’

intelectual dos termos da luta é indispensável, mas esta clareza é um valor político quando se

torna paixão difundida e é premissa de uma forte vontade”. Nesse e em outros trechos

(Gramsci, 2007), o pensador sardo defenderá a necessidade da indissociabilidade entre o

pensar e o sentir na práxis política.

Vigotski (2001), por sua vez, defende a necessidade de entender a subjetividade como

um sistema no qual diversas funções psicológicas relacionam-se entre si, compondo diferentes

dramas subjetivos. Os afetos, assim como outras funções psicológicas superiores, comporiam

o drama subjetivo e seriam compostos a partir das relações sociais e da realidade história na

qual o indivíduo está inserido. Ou seja, o comportamento humano não pode ser compreendido

fora do campo dos afetos. No que diz respeito especificamente ao meio político, o autor

soviético escreve – corroborando com os relatos de John Reed (2010) - como a revolução

russa foi levada a cabo em última instancia não por heróis ou líderes, mas sim, pelo povo. Em
sua resenha ao livro de Reed, Vigotski relata que o povo era o coração apaixonado que

bombeava o sangue que sustentava do corpo revolucionário.

Por fim, a partir dos elementos destacados das obras de Vigotski e Gramsci, podemos

defender importância dos afetos em processos de mudança social. Fazem-se necessários

estudos mais aprofundados para melhor aprofundarmos conceituações e delinearmos

propostas. Porém, até o momento entendemos que o processo de catártico gramsciano pode

ser entendido como uma ampliação da ideia de conscientização, pois esse não se refere apenas

ao âmbito da consciência, mas abarca as diversas esferas do humano, potencializando assim

sua práxis política. A “catarse” vigotskiana aborda a potencialidade existente nos afetos, mas

ressalta que, assim como uma navalha, os afetos podem ser utilizados para fins diversos – não

necessariamente progressistas. Talvez possamos pensar na catarse vigotskiana como parte do

processo da catarse gramsciana. É possível que o impacto estético, dentro de circunscritores

sociais e políticos específicos, possa abrir possibilidades para superar o momento meramente

econômico e potencializar processos rumo a posturas genuinamente ético-políticas.

Palavras chaves: Vigotski; Gramsci; catarse; psicologia política; participação politica; afeto.

BIBLIOGRAFIA

Boal, A. (2005). O Teatro do Oprimido e outras Poéticas Políticas. Editora Civilização


Brasileira: Rio de Janeiro.

Coutinho, C. N. (2007). Gramsci: Um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro,
RJ: Civilização Brasileira.

Coutinho, C. N. (Org.). (2011). O leitor de Gramsci: Escritos escolhidos. Rio de Janeiro, RJ:
Civilização Brasileira.
Gramsci, A. (2007) Quaderni del Carcere. Edizione crítica dell’ Istituto Gramsci (Vols. 2 e
3). Torino: Einaudi.

Reed, J. (2010). Os dez dias que abalaram o mundo. São Paulo : Penguin Classics Companhia
das Letras

Vigotski, L. S. (2000). Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, 21, 21-44.

Vygotsky, L.S. (1998). Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes.

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