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Nus sob a luz milenar do luar

A moça daquele bar piscou-me o olho, quando cruzei com o seu olhar do outro lado do
balcão. Ela sabia que você estaria ali, exatamente no ângulo reto da esquina, esperando a mim ou
apenas assistindo ao tempo passar. Eu demorei de propósito, só para observar a superlua fazer-lhe
aura, dirigir-lhe os holofotes naturais. Foi isso e não há de ser outra coisa, o que me chamou a
atenção. Os holofotes naturais daquela superlua ofuscando-me a vista, deixando-me tonta, feito a
cachaça do sertão mineiro que me ensinou a dançar forró pé-de-serra ao som de Alceu Valença.
Primeiro, o tropeço. Em seguida, a dança.

Debaixo daquela aura lunar, o cheiro de medo era mais forte que o aroma de qualquer
perfume. Cheiro que exala de bicho acuado, bicho-gente, homem ou mulher. Ela estava tonta.
Inebriada. Quem briga com bicho, perde. Assumiu, então, que confiança é mesmo uma dessas
coisas extraordinariamente humanas que não necessitam de compreensão. Não tem data marcada
para se sentar à mesa e compartilhar o jantar, a cerveja clichê ou o vinho barato, metamorfoseando-
se em um alguém recém-saído das músicas de Caetano que, incrível e estranhamente, recobre sua
poesia com resquícios de racionalidade bruta.

O caso é que, quando caímos nas garras do clarão lunar, despimo-nos de súbito. Ficamos
nus, fazendo brotar o avesso do avesso que existe em nós. O farol do ponto mais alto da aldeia
iluminou-te todo, fazendo-me abandonar aquela primeira visão de mamífero emadeirado que se
apresentou quando nos cumprimentamos no ângulo reto, cruzamento de duas retas paralelas. É
terrível a existência de duas retas paralelas, porque elas nunca se cruzam e apenas se encontram
no infinito. A verdade é que nunca nos interessou a questão do infinito, pois ele mostrou-se mais
próximo do que, um dia, imaginamos, mas, a ti, o resto das ideias matemáticas, claro que sim.

Eu prefiro, mais de mil vezes, seu copo americano de cerveja ficando quente sobre mesa,
enquanto você fala sobre dados estatísticos concretos, a problemática social do mundo ou das
questões do comportamento individual tão previsível a ponto de ser previamente analisado e
concluído. De repente, eu já nem sei sobre o que você fala, porque a forma como seu dente incisivo
corta e suspende toda a beleza daquele bar escuro da moça que me piscou para além do balcão faz
com que eu, finalmente, entenda o porquê de estar ali.

Dois rapazinhos pegam as bicicletas e pedalam quatrocentos e vinte quilômetros até achar
a costa. Ao alcançá-la, tiram suas roupas e não mergulham. Conto-lhe essa história, esperando que
passe o efeito do álcool que eu não tomei. Você pergunta que sentido há nisso. Eu respondo que
não sei. De fato, não sei. Você não entenderia sem, antes, enxergar o que enxergo daqui. Você. A
aura lunar. Um jogo de luzes que me fizeram esquecer da promessa feita horas antes à dona Manu,
que mora ao lado de casa.

O dia da superlua. Não sei se te disse, mas, durante os nossos dias, foi sempre meia-noite
de lua cheia em Paris. Não que nosso encontro tenha sido de tamanha importância ao Universo.
Não foi. A lua não deixa o céu há milênios, mas, talvez, possamos encarar esse clarão como um
sinal não registrado nos manuais estatísticos do mundo, quiçá nas revistas acadêmicas descrentes
daquilo que não podem ver.
Às vezes, acho que vivo em um filme, que a vida é cinematografia um pouco estapafúrdia.
A materialidade das coisas reais machuca quem teima em sonhar. Mas, ainda existem certas coisas
imateriais, intersubjetivas, que forçam até os de alma mais conservadora a se amostrar. Foi assim,
com você sob o clarão da lua cheia. Mostrou-me seu mundo. Não acho que sejas o menino Arthur
Rimbaud. Não que sejas um T.S. Eliot anacrônico ou Hemingway antes de se mudar para Cuba.
Acho que tu és o teu mundo. Desculpa já nem sequer precisar te inventar, porque os holofotes
naturais daquela superlua já me contaram que você existe de carne, osso, saliva e suor. Desculpa,
mas essa sua crosta de ciência dura estilhaçou-se quando foi atravessada pelo cometa na velocidade
da luz.

A lua milenar, que nunca abandona seu posto, ainda que desejemos acreditar em milagres
lunares, iluminou-te todo para muito além dessa capa que te recobre. Essa luz, fantástica e potente,
tem poderes que não se dispõem em gráficos paridos pela racionalidade humana e,
paradoxalmente, no caminho contrário à razão, brilha para mostrar o que é, de fato real. Vi sua
realidade sob a luz do luar. E gostei do que se apresentou para mim.

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