Eu corro, ando, disparo, caminho. Só nunca, em hipótese nenhuma, eu paro. Às
vezes me pedem-me mais. Às vezes sobro. Às vezes deslizo, escorro entre os dedos ou entre os prédios. Estou sempre por aí e por aqui, mas aquilo que é obvio demais fica invisível depois de algumas vezes. Para tentar não deixar os seres desavisados – sempre que acabo eles me vem com reclamações – tenho um contrato com o sol. Ele é a marca diária da minha existência e da minha insistente inquietude. Eu mudei bastante. Já fui muito largo, muito longo. Já fui constante. Hoje depende. Sou relativo, às vezes. Sou eu quem leva e traz as coisas. Estava lá no começo – pois sem mim não havia começo - e vou ser quem apagará a luz no final da festa do tudo – e depois de mim nada mais poderá terminar ou começar. Hoje há grandes monumentos em minha honra: cheios de ponteiros e números. Quase todos carregam algum desses no bolso ou no pulso. As pessoas me espremem, me esticam, me torcem tentando tirar um pouco mais de mim de mim. Imploram-me por mais e mais. São como viciados que acabam tomando toda sua dose de um só gole sem saborear o gosto, cor ou cheiro do delicioso veneno do qual não podem escapar. Mas, por incrível e atrasado que possa parecer, não estou aqui para falar de mim. Quero falar de um acordo que fiz com um desses pequeninos a quem dou algumas fagulhas de mim. Menino cheio de medo. Não sabia se me tinha demais ou de menos. Na época me gastava quase todo com uma menina e ainda reclamava que eu não sobrava. O medo era de mim. Sempre que ele me olhava ficava apavorado. Sabia que eu sempre acabo para cada um, no fim termino seguindo sozinho. Naqueles momentos eu abraçava o menino à menina. Ele sabia que aquele abraço findaria, adiantado ou atrasado. Um dia ele me procurou e disse que queria fazer um acordo para que o abraço durasse para sempre. Disse que sabia que era aquele abraço que ele havia esperando por tanto e que não iria larga-lo agora ou depois. Tentei avisá-lo dos riscos desses meus abraços apertados, mas fui ignorado. Garotos. O acordo foi o seguinte: eu o levaria um ano para trás e ele teria que no último momento de dezembro estar beijando a menina em um lugar no qual eu pudesse ser visto, tocado e sentido, assim eu os daria o “beijo do pra sempre”. Foi um 2013 muito divertido. O menino inventou um acampamento em uma praça para tentar ganhar algumas semanas, sabia que em época de festa junina teria as condições a seu favor. Reescreve textos e repensou falas. Não deixou, dessa vez, passar o convite do show na cidade de seu irmão. Não contava com os desentendimentos envolvendo meias e calçados, mas conseguiram lidar bem com isso. Aceitou logo o convite para conhecer a família dela e a chamou para conhecer a sua. No entanto, a pressa e o meu uso extensivo não deixou que o rapaz visse algumas coisas – o óbvio e sua invisibilidade. É assim, me ganham e me perdem quase no mesmo instante. Tudo ia bem. A moça era esperta e logo desvelou a minha charada. Era o último dia de dezembro e iriam passar a virada no litoral. Eu já havia assumido minha derrota quando fui ao oriente ser louvado em primeira mão. Quando me aproximava da praia brasileira vi a garota em uma rua perdida à procura do rapaz. Ele estava ainda mais perdido. Havia muitas pessoas, carros, luzes, relógios, bombas ansiosas. Faltavam poucos segundos. Depois de um ano de preparos o acordo seria desfeito. Eu não conseguia segurar a mina chegada, eu sou inevitável. O garoto viu a moça ao longe na rua... Ela já o havia visto e corria em sua direção (30s). O garoto passou pegando-a pela mão (20s); Viraram em direção ao mar (18s); Correram pela rua abaixo (12s); Subiram na calçada (8s); Tiraram os sapatos (4s); Pisaram a areia (1s); Abraçaram-se (1s); Beijo (0s) – vida, bombas, gritos, riscos de luz, estrelas coloridas, abraços e beijos soltos por todo o lugar. Beijaram-se diante do mar, onde água, céu e terra me dão corpo e voz. Confesso, eu segurei a respiração por um segundo. Ninguém nunca reparou, mas desde aquele ano todo último minuto de dezembro tem 61 segundos. Você me acha misericordioso? Nada disso. Fiz isso exatamente para que eles percebessem que eu estou aí para todos e não seria eu quem definiria o fim ou não daquele abraço. Eles deveriam assumir suas responsabilidades comigo e não o inverso. Tentei ensinar o garoto a me valorizar por meio de nosso acordo, mas meninos são difíceis. A eternidade de uma vida é o que todos têm. Nem mais nem menos. Todos me têm por uma vida para fazer o quiserem ou puderem. O “beijo do pra sempre” é dado por elas e eles e não por mim. Mesmo diante de muitos pedidos, não mais voltei para o garoto. Já estava atrasado, continuei olhando sempre em frente. E essas são outras histórias com as quais não quero que você, paciente leitor, me perca ainda mais.