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Hera

A sereia Hera sempre teve um sonho secreto. Todas as sereias têm sonhos, sejam
de rio ou mar. Hera era de rio, mas não sonhava apenas nas bacias e deltas em que vivia
e nadava, sonhava mais longe e mais alto. Sonhava terra firme, sonhava céu.

Sonhos de sereias normalmente envolvem lindas pérolas, deliciosos frutos do


mar, aventuras em naufrágios, casamentos com tritões belos e fortes. Mas Hera era
alérgica a pérolas, não gostava do cheiro de frutos do mar, não se interessava por
naufrágios e não entendia casamentos. Hera era diferente. O que a encantava foi visto
em uma noite na beira do rio. Ela viu os humanos se mexendo de um jeito todo lindo
que a fez sentir como se os corpos deles estivessem dançando no seu coração. Hera
sonhava em poder sambar.

Pobre Hera, todos já lhe haviam dito que samba é para quem tem pé e não cauda
– Hera tinha uma invejável cauda, mas ainda assim não eram pés. Mas Hera não era
moça-peixe de desistir assim facilmente. Ela observava de longe todas as festas da
superfície que conseguia. Seguia as bandas, decorava os passos, entendia as músicas e
movimentos. Mas como sambar sem pé, Hera?!

Uma noite ela se aproximou demais da margem e acabou topando com uma das
instrumentistas da banda. A mulher já tinha seus longos cabelos embranquecidos pelo
tempo. Ela os balançava ritmados enquanto tocava e dançava. Hera, insistente que era,
disse de seu sonho para a senhora. A música achou lindo e disse que adoraria ensiná-la.
Mas Hera disse que era meio peixe, não tinha pé para dançar. A música sorriu
carinhosamente e disse:

- Filha, você não é meio peixe, você é inteira sereia. O samba não tem a ver com
pé. O samba tem a ver com o que nos move, com o que nos joga no mundo e na vida.
Tem a ver com o que move corpo e alma. O que move meu corpo são meus pés, mas o
que afeta minha alma na dança é outra coisa.

Hera curiosa quis saber o que era essa coisa, queria descobrir se ao menos essa
coisa ela podia ter já que pés não tinha. A música com grande paciência disse que isso
ela teria que descobrir por si só, o caminho da descoberta faz parte da preparação para a
dança.
Hoje Hera abriu a primeira escola de samba fluvial que se tem notícias, fica lá
para os lados do São Francisco. Vêm sereia e tritões de todos os rios e mares para
aprender a dançar com ela. A Professora Hera diz que o samba é a junção de movimento
e sentimento, qualquer corpo que possa se movimentar e sentir pode sambar. Ela samba
com suas caudas, braços e cintura. Tem quem sambe com suas nadadeiras e barbatanas.
O segredo é descobrir o que move a alma no samba. Hera percebeu, depois de algumas
estações, que não era uma coisa só. Ela percebeu que assim como as marés, o tempo trás
e leva paixões e sentimentos. Ela já sambou por seus ideais, ela já sambou por seus
sonhos, por seus amigos, por seus amores. Hoje ela samba pelo amor às águas e pela
riqueza que os rios representam.

Antes Hera era, agora Hera é. E já em sua primeira aula a professora Hera revela
seu segredo: No samba o corpo – seja pé, pata, cauda, asa ou nadadeira – é o que se
movimenta, mas é a alma que dança.

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