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Silêncio

As ondas batiam no casco de forma indefensável. O choque da água junto à


madeira do mastro fazia com que todos fossem molhados pelo mar e pelo medo.
Odisseu dissera que não seria fácil e, desde a morte de Aquiles, era evidente o mau
agouro que o fim daquela guerra nos trazia. O céu era noturno ainda durante o dia, o
vento ameaçava entornar o navio como um brinquedo de papel, os homens também
estavam sombrios e a beira da queda – no mar e no desespero. A terrível tempestade não
dava trégua. Eu estava apavorado, mas enfim o mundo batia em consonância com meu
coração.

Brigávamos contra o vento, a chuva e o movimento do oceano para ficarmos em


pé. Ainda assim, entre trovões e raios, Ulisses grita: “Cera! Cordas! Amarrem-me e
protejam-se! Elas se aproximam”. Nosso capitão, herói de guerra das ilhas gregas, nos
alertara para esse momento. A região da ilha de Ítaca era famosa pelas encantadoras
sereis que enfestavam o local. A tripulação havia sido orientada a proteger seus ouvidos
com cera e o capitão deveria ser atrelado ao mastro para não se permitir levar pelas
belas do mar. Eu fiquei encarregado de amarrar Ulisses. Assim, quando os cantos
começaram, eu ainda não estava pronto. Meus ouvidos estavam vulneráveis e foram
inundados pelo canto das sereis.

Odisseu começou a gritar desesperadamente para que eu o soltasse, estava o


nobre herói tomado pela paixão produzida pelos cantos. Eu, no entanto, não havia sido
desperto por aquelas canções místicas. Eram lidas, sem dúvidas, porém não seria eu
arrastado para o mar e para as pedras por razão de meia dúzia de versos marítimos. Os
cantos se tornaram mais fortes, os marinheiros tampavam seus ouvidos, Ulisses
implorava por sua liberdade, eu seguia sereno diante do agradável som. Após alguns
minutos, a tempestade se enfraqueceu e as músicas começaram a diminuir, o perigo
aparentemente passara. Porém, ao longe ouvi uma única voz que se aproximava.

A voz vinha do fundo do mar, não conseguia ver ao certo a quem pertencia. A
criatura estava escondida entre ondas e ventos. Apenas seus longos e fortes cabelos
podiam ser avistados da superfície. Gritei para que ela se revelasse, ela permaneceu sob
o mar. Seu canto era diferente dos outros: sua voz corria junto às minhas veias, me
esquentava, me acolhia, me acalmava, me incendiava. Todo meu corpo era abraçado por
sua canção. Eu podia sentir o cheiro de sua música, o gosto, o toque e o prazer de cada
nota e harmonia. Os outros já estavam recompostos: sem cera nos ouvidos e
desamarrado. Falei sobre a canção insurportavelmente afável, mas nenhum a podia
ouvir. Eu procurava a mulher das águas em todos os lados da embarcação, porém só via
pequenos reflexos de seus cabelos em movimento. Os homens disseram que eu havia
enlouquecido, que não havia som algum.

Diante daquela melodia, era necessário decidir entre permanecer no navio ou me


atirar a seu encontro. Eu havia já escolhido, há anos, permanecer na segurança da
embarcação, mas a voz daquela mulher triturara, em segundos, certezas ancestrais. Seria
ela também uma sereia? Não. Eu resistia a sereias sem grades dificuldades. Ela era outra
coisa: outra música, outro cheiro, outra vida. Comecei a me amarrar ao mesmo tempo
em que me dirigia ao mar. Não sabia o que fazer. Poderia morrer se me lançasse. Porém,
do que adiantaria viver sem me lançar? Dúvidas, medo, desejo, paixão, esperança: cada
coisa era uma nota na canção daquela moça do mar. Diante de meus momentos de
indecisão o canto cessou.

Procurei desesperadamente pelos cabelos oceânicos ao redor do navio, não os


encontrei. Onde ela estava? Havia ela desistido de me matar ou desistido de me fazer
viver? Ela me queria ou apenas estava cantando para o sol e para o mar? Ela sumira sem
deixar rastros. Naqueles poucos instantes, eu decidi: quero ir com ela. Fui para a popa e
esperei. Não sabia se pular ao mar seria minha morte ou salvação, mas, certamente, pior
do que tal risco seria viver no silêncio deixado pela sua ausência. Esperei...

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