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MONSTROS

Já é sabido que toda história para crianças possui uma origem de realidade –
bem como, que toda realidade tem muito de história para crianças. Felizmente o
objetivo aqui não é depurar realidade e fantasia, mesmo porque ambos costumam se
compor de forma mais ou menos harmoniosa. Não vamos provar, verificar, debater,
analisar, argumentar ou julgar. Apenas contar.

Há muito tempo, o planeta era povoado por monstros. Essas criaturas vis
geravam caos e morte por onde passavam. Não podíamos mais apenas fugir ou nos
silenciar diante de tanta destruição. Era necessário lutar. No entanto, as criaturas
horrendas eram muito fortes, tinham poderes inimagináveis. Esses demônios eram
capazes de cortar, sufocar, envenenar, queimar, destroçar à distância e a sangue frio.
Suas peles eram grossas e resistentes como pedra. Seus olhos eram grandes e brilhantes
e viam no escuro. Voavam, nadavam, corriam como nenhum outro animal. Parecia não
haver como qualquer outro ser os destruir. E não havia de fato.

Foi então que em uma grande reunião de vários povos de diferentes origens e
costumes foi decido. A única forma de vencer os monstros seria fazendo com que eles
mesmos se destruíssem. Apenas eles tinham tal poder. Resolveram que era necessário
infiltrar alguém entre os demônios. Alguém que pudesse sabotar sua horda por dentro.
Fazer com que eles ruíssem e, assim, salvasse a todas e todos. No entanto, quem teria tal
coragem? Quem se proporia a viver entre seres de tamanha vilania?

A única voluntária foi uma jovem das terras do norte. Muitos se opuseram.
Vários disseram que deveria ser um varão a fazer tal serviço. No entanto, nenhum dos
tais fortes e bravos se propuseram a fazê-lo. Diante disso, por meio de uma acrobacia
argumentativa os anciões conseguiram se convencer que não fazer nada também era um
ato de coragem e que a masculinidade de todos estava protegida. A jovem foi mandada
em sua missão suicida.

Há vários problemas em se disfarçar entre os monstros. Das dificuldades,


provavelmente a maior é você não se transformar em um deles. Com o objetivo de
evitar que isso acontecesse, foi utilizado um sagaz artifício. Para a jovem se lembrar de
quem era, foi criada uma bela fruta com casca dura e espinhosa, mas com o interior
delicioso. Em homenagem a sua coragem, à fruta também foi dada uma coroa. Aquele
vegetal seria a memória viva de sua origem.

Outro problema era referente à alimentação. Ela não comia como os demônios.
Assim, lhe foram ensinadas várias técnicas para que pudesse se alimentar de forma
discreta enquanto estivesse disfarçada. Como presente, criaram também uma pequena
erva muito cheirosa que a faria se sentir em casa, afinal a missão poderia levar ano. Por
fim, foi produzida toda uma série de plantas que poderiam armazenar água para a
jovem. Era sabido que não se podia confiar no líquido que alimentava a horda dos
monstros.

Como estamos vivos, é de se imaginar que a missão – contra todas as


expectativas – foi bem-sucedida. De fato, os monstros foram derrotados. Seu ciclo de
dominação e destruição foi interrompido. Ainda não se sabe ao certo se morreram ou
apenas abandonaram suas práticas predatórias e vis. Qualquer um que não seja um
monstro, sabe que o que define a monstruosidade são as ações da criatura e não
exatamente a sua aparência. Assim, talvez aqueles que fossem monstros estejam ainda
entre nós, ou, quem sabe, tenham sido todos destruídos por si mesmos com a ajuda de
nossa heroína.

Seja como for, as grandes gargantas que escondiam as estrelas com sua fumaça
pararam. Seres como nós nunca mais foram fechados em grandes prisões abjetas para
tornarmo-nos comida para os demônios. Seus covis cinzas e malcheirosos foram de
novo tomados pelo verde. Os rios não mais são domados e mortos, a terra, não mais
envenenada. A vida se impôs à ganância monstruosa.

Sem dúvidas, ainda há várias perguntas sem resposta nesta história. Muitos dos
adultos se questionam: “Como a jovem conseguiu vencer?”; “Ela sobreviveu?”; “Onde
ela está?”. Mas costumam ser as crianças aquelas que conseguem ir ao coração do
conto: “Como eu faço para ser igual a ela?”

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